Metadados do trabalho

Narrativas De Mulheres Sobre As Relações De Gênero Nas Ciências Agrárias

Márcia Alves da Silva; Letícia Mossate Jobim

Este artigo analisa as relações de gênero no campo educacional das Ciências Agrárias, tendo em vista ser considerada uma área tradicionalmente masculina. A pesquisa foi realizada com estudantes egressas do curso Técnico em Agropecuária do Instituto Federal Farroupilha (IFFar/RS), que deram continuidade aos estudos nas Ciências Agrárias. A partir de suas narrativas, juntamente com as de servidores/as que tiveram envolvimento com os estágios, buscamos identificar as relações de gênero, tanto nos locais de estágios como de trabalho. Situada no campo teórico dos Estudos Feministas Interseccionais e de Gênero, a metodologia adotada caracteriza-se por ser de cunho qualitativa e por utilizar a História Oral temática, com uso de entrevistas narrativas. O que ficou constatado é que a falta de confiança e credibilidade que enfrentavam enquanto estudantes repete-se em seus lugares de trabalho, apesar delas terem experiência e formação na área. No entanto, ainda prevalece a supervalorização da força física em detrimento da intelectual, a falta de confiança nas capacidades das mulheres e desprezo por suas opiniões, sendo necessário, constantemente, que um homem confirme o que elas afirmam para que suas opiniões sejam ouvidas e respeitadas

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SILVA, Márcia Alves da; JOBIM, Letícia Mossate. NARRATIVAS DE MULHERES SOBRE AS RELAÇÕES DE GÊNERO NAS CIÊNCIAS AGRÁRIAS. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2023 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/643-narrativas-de-mulheres-sobre-as-rela%C3%A7%C3%B5es-de-g%C3%AAnero-nas-ci%C3%AAncias-agr%C3%A1rias. Acesso em: 16 out. 2025.

NARRATIVAS DE MULHERES SOBRE AS RELAÇÕES DE GÊNERO NAS CIÊNCIAS AGRÁRIAS

Os estudos de gênero vêm ganhando cada vez mais importância em nossa sociedade e adentrando diretamente no espaço educacional, onde, inclusive, as mulheres permaneceram excluídas por muito tempo. Essa exclusão foi fruto de um longo processo histórico de opressão patriarcal, inferiorização e segregação das mulheres, legitimadas por construções culturais e discursivas que utilizaram as diferenças biológicas como principal justificativa. Tendo em vista que ainda hoje muitas mulheres sofrem inferiorização em diversas áreas, buscamos em nossos estudos, dar visibilidade aos enfrentamentos por elas sofridos no campo educacional e também profissional para que estas situações não se perpetuem.  

Deste modo, este artigo apresenta parte de uma pesquisa de Doutorado em Educação realizada com estudantes do curso Técnico em Agropecuária do Instituto Federal Farroupilha/RS entre os períodos de 2015 a 2020 e que posteriormente, deram continuidade aos estudos nas Ciências Agrárias.  Na primeira parte iremos apresentar os diversos discursos construídos historicamente, que alicerçam as bases da sociedade patriarcal, mantendo estruturas que menosprezam as mulheres em diversos campos do social. Na sequência apresentamos alguns dados obtidos na pesquisa, analisando-os a partir do referencial teórico feminista. Foram dados nomes fictícios às pessoas entrevistadas a fim de preservar suas identidades.

Ao realizar um estudo sobre a construção histórica do corpo feminino, Ana Maria Colling[1] (2014) foi evidenciando os discursos misóginos aos quais as mulheres foram submetidas em diferentes momentos da História, ao produzir ‘verdades’ sobre o feminino, hierarquizando e reforçando uma suposta supremacia masculina. Esses discursos foram definindo os espaços que homens e mulheres deveriam ocupar na sociedade, colaborando para que a diferença entre os sexos se transformasse em paradoxos de desigualdades.

Quando essas questões são articuladas com raça e classe, orientação sexual, faixa etária, etnia, religião e/ou capacidades, os discursos se modificam e as desigualdades se agravam.  Dentre eles, a autora destaca o discurso grego, em que a inferioridade feminina se dá em todos os planos: na anatomia, na fisiologia e na ética; no discurso religioso, a partir da tradição judaica cristã, que colaborou de forma decisiva para a inculcação da inferioridade da mulher: o relato da criação da mulher, sua parte na tentação de Adão e sua consequente condenação por Deus, danando a humanidade, produziu efeitos devastadores sobre a imagem do feminino.

O discurso médico também contribuiu com essa ideia, ao fazer a descrição anatômica dos órgãos sexuais como o inverso dos masculinos, reforçando a imagem de um corpo feminino inacabado. Juntamente com o discurso médico, desenvolveu-se o psiquiátrico, segundo o qual a menstruação era indicador de doença mental, predispondo todas as mulheres à loucura e à violência. Na psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939) é o primeiro a tomar a diferença entre os sexos como objeto, propondo uma teoria da sexualidade: “Segundo ele, a sexualidade é desenhada a partir do confronto com a ‘perfeição’ e marcada por uma insatisfação da mulher, de sua consciência da falta de pênis e na inveja dele” (COLLING, 2014, p. 95-96). Importante destacar que, mesmo a construção do conhecimento científico, que historicamente rompe com os saberes do senso comum, muito embasados nos preceitos religiosos, acaba por contribuir na manutenção e no fortalecimento do processo de subjugação das mulheres, procurando mantê-las na invisibilidade social e na dependência do masculino.

Heleieth Saffioti (2013) também problematizou os diversos discursos que produziram uma ‘essência’ feminina e, dentre eles, o da igreja católica, por reforçar práticas discriminatórias em relação às mulheres, que sempre figuraram como seres secundários e submissas ao homem. Ao destacar o discurso à juventude feminina da Ação Católica, de 24 de abril de 1943, a autora evidencia a força da religião na demarcação de lugares para homens e mulheres:

 

Pio XII destina a mulher à maternidade; tudo que lhe for permitido fazer além de ser mãe é secundário e conserva sempre o caráter de atividade complementar das atividades masculinas. É como mãe e como esposa que ela pode realizar-se na Terra, assim como somente como mãe ela salvará sua alma sobre o terrível pecado que pesa sobre seu destino” (SAFFIOTI, 2013, p. 151).

 

Com o fim da idade Média e a laicização da sociedade, havia a crença de que a ciência supostamente estaria livre de subjetividades, livre da fé, separada da natureza e da política; acreditava-se na sua neutralidade e isenção com a política e com a sociedade. Entretanto, como explica Latour (1994), ocorreram construções e reconstruções epistemológicas (algumas vezes quase imperceptíveis) entre natureza, ciência e política que ele caracteriza como proliferação dos híbridos, mas que a modernidade nega: “É possível mobilizar a natureza, coisificar o social, sentir a presença espiritual de Deus defendendo ferrenhamente, ao mesmo tempo, que a natureza nos escapa, que a sociedade é nossa obra e que Deus não interfere mais” (LATOUR, 1994, p.27). 

Por isso, a ciência não perdeu seu caráter androcêntrico e as mulheres permaneceram excluídas de todo o processo de produção científica. As perguntas consideradas importantes e de interesse geral eram feitas por homens brancos, ocidentais e de classe dominante e produziram respostas abrangentes e consideradas universais que adquiriram status de verdade absoluta e de neutralidade. Inúmeros paradoxos de desigualdades foram se construindo entre homens e mulheres e respaldaram práticas jurídicas e constitucionais de exclusão, produzindo ‘verdades’ sobre o corpo feminino. Sobre isso, Gerda Lerner (2019) escreve que

 

Esse constructo metafórico, o da “mulher inferior e não exatamente completa'', incorporou-se a todos os principais sistemas explicativos, de forma a competir com a realidade. [...] A desigualdade entre homens e mulheres foi construída, não somente na linguagem, no pensamento e na filosofia da civilização ocidental, mas também na maneira como o próprio gênero se tornou uma metáfora que define as relações de poder a fim de mistificá-las e torná-las invisíveis” (LERNER, 2019, p.259).

Tais construções foram instituindo lugares às mulheres, produzindo modelos de feminilidade e valores tidos como inerentes à natureza feminina: mães, esposas dedicadas, mulheres frágeis, delicadas, emotivas, sensíveis, sedutoras, ternas, etc. As diferenças transformaram-se em subordinação, inferioridade e sujeição, e possibilidades biológicas como a gravidez, a menstruação e a amamentação, tornaram-se imposições e marcadores sociais, tornando as mulheres indissociáveis de suas funções maternais.

 

AS REPRESENTAÇÕES DO FEMININO NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

 

Todos esses marcadores também contribuíram para justificar sua sujeição e exclusão do mundo do pensamento e do conhecimento. Por isso, a educação formal não era vista como uma necessidade às mulheres. Quando passou a ser-lhes concedida, foi de forma controlada e limitada, não indo além do necessário para torná-las boas donas de casa e boas mães (COLLING, 2014). Com o passar do tempo, muitos desses discursos foram sendo transformados, alguns por interesses econômicos e outros pela luta de muitas mulheres.  Entretanto, ainda há um longo caminho a ser percorrido no combate às desigualdades entre os gêneros. 

No campo educacional, tivemos muitos avanços, mas ainda encontramos alguns discursos em pleno ‘modus operandi’, principalmente quando se trata de justificar a exclusão das mulheres de determinadas atividades ou profissões. Também, é visível e de forma ainda mais contundente, quando buscam adentrar em guetos considerados masculinos. Mesmo que, atualmente, as mulheres sejam maioria em todos os níveis de ensino no Brasil[2], a segregação sexual prevalece em certas profissões, fazendo com que determinadas áreas profissionais, consideradas masculinas, permaneçam, praticamente, intocáveis. Quando ocupadas por mulheres, seguem reproduzindo, em seu interior, uma divisão sexual das tarefas, em que elas realizam atividades consideradas ‘femininas’ e vice-versa. Quando se trata de mulheres negras, a “especialização sexual” em alguns setores profissionais agrava-se ainda mais, pois suas presenças em profissões tradicionalmente masculinas é ainda mais rara (SAFFIOTI, 1987).

Por isso, a importância de se pensar sobre as atividades que as mulheres estão desenvolvendo em profissões tradicionalmente masculinas e as especificidades desse fazer, como estão se posicionando e sendo posicionadas no mundo do trabalho. Como bem questiona Cristina Yannoulas (2013), verificar se o aumento e a inclusão de mulheres (feminilização[3]) no mundo do trabalho pode significar um avanço nas relações de gênero no mundo do trabalho ou se trata apenas de uma continuidade dos papéis sociais disfarçados sob o título de inclusão e igualdade de gênero, ou então, de uma reformulação de novas estratégias de exploração do trabalho feminino.

De acordo com Margaret Maruani (2009), “analisar a situação das mulheres no mercado de trabalho é questionar seu estatuto social: o emprego feminino é um fio condutor para compreender o espaço das mulheres na sociedade” (p.86). Por isso, entrevistamos estudantes egressas que já estão inseridas no mundo do trabalho para saber como estavam se desenvolvendo as relações de gênero em seus respectivos empregos. As que ainda não estavam inseridas, falaram sobre suas experiências nos estágios e expectativas de emprego. A fim de preservar o sigilo sobre suas identidades, foram dados nomes fictícios às entrevistadas.

 

NARRATIVAS SOBRE AS RELAÇÕES DE GÊNERO

 

Rose, uma das egressas entrevistas, fez o técnico em Agropecuária no IFFar e está no último semestre do curso de Agronomia em uma Universidade Federal, disse que foi bem aceita durante o estágio realizado em uma empresa, na área de desenvolvimento e pesquisa de produtos químicos devido a esta ser predominantemente ocupada por mulheres nesta empresa.  Entretanto, ao ser perguntada se tivesse feito estágio com um produtor rural ela teria a mesma aceitação, respondeu o seguinte:

 

Não, porque assim... eu já tive contato com diversos tipos de produtores rurais, porque nessa empresa a gente trabalha também fazendo dias de campo e desenvolvimento de produtos químicos. Então, às vezes, eles trazem os produtores mais importantes da região, os maiores produtores, para conhecer a estação de pesquisa, saber o produto que eles vão aplicar na lavoura deles. E, às vezes, como essa empresa era maior parte, gurias, nós apresentávamos os dados da nossa pesquisa e a gente via que …tudo que a gente tinha acabado de falar,  eles perguntavam para o técnico da empresa que trouxe eles, que era um homem... e ele repetia o que a gente tinha acabado de falar, sabe… E é muito típico... dia de campo é sempre a mesma coisa. Eu fui nos congressos a nível brasileiro, tipo... eu vou te dar um exemplo: Eu fui para o congresso do arroz irrigado, foi em Balneário Camboriú, no ano de 2019. A gente tava explicando a tecnologia de um herbicida que foi lançado e eu tava explicando... e daí o produtor que tava nesse congresso, ele disse bem assim: - “Agora dá para alguém tirar essa guriazinha e explicar de novo”? (Rose- Entrevista realizada em 21/03/2022)

 

Questionada sobre como reagiu diante do fato, ela explica:

Eu disse assim para ele, tipo... Primeiro eu parei...olhei para ele e disse assim: Essa guriazinha exige mais respeito por que eu estudei pra estar aqui e falar esse conteúdo. E não tem outro colega que vai lhe explicar tão bem quanto eu porque fui eu que fiz essa pesquisa. Daí ele simplesmente deu as costas e foi embora. (Rose)

No relato de Rose, se evidencia o desprezo e a descredibilidade ao conhecimento das mulheres na área agrícola, tendo em vista a necessidade de que outro homem valide e esclareça aquilo que elas já disseram. Esse comportamento pode ser considerado como Hepeating[4], quando a mulher diz alguma coisa e é ignorada, e o homem repete e é ouvido.  Também vem ao encontro da afirmação da filósofa Marilyn Frye (1983) ao dizer que a cultura heterossexual é homoafetiva, pois são nas relações entre homens que ocorrem as maiores trocas e demonstrações de afeto: eles se admiram, veneram-se, respeitam-se, ensinam e aprendem uns com os outros. Já a relação com as mulheres se limita apenas à sexual. Desse modo, o homem heterossexual é apenas aquele que pratica sexo exclusivamente com mulheres, tudo o mais que se refere a uma relação amorosa, ocorre entre homens. 

Na sequência, ao ser perguntada como ela vê as expectativas de emprego para as meninas, ela diz que percebe que as mulheres têm muito mais dificuldades e, quando não conseguem emprego ou não são aceitas em programas de mestrado na área, acabam desistindo e buscando carreiras fora do campo da Agronomia:

 

 [...] as gurias da Agronomia, as que não entram no mercado de trabalho, que entram pouquíssimas, acabam indo pro Mestrado. E as que não conseguem entrar no mercado de trabalho e nem no Mestrado elas saem da área da Agronomia. Eu conheço várias que já me disseram que não conseguiram oportunidade, por elas não terem experiências a campo ou por não acreditarem na capacidade delas, que elas não foram contratadas pelas empresas que elas faziam estágios, e acabaram abrindo lojas... lojas de camisetas, lojas de roupas, loja de perfume, essas coisas... saíram totalmente da área. E às vezes, eu tenho até amigas que terminaram agora pouco o mestrado na área da Agronomia... e que tem experiência a campo por trabalharem na propriedade dos pais,  elas com graduação e mestrado, os pais não aceitam opinião.  Ela formada e no mercado de trabalho ela não conseguiu se encaixar e resolveu abrir uma loja que não tem nada a ver com Agronomia. (Rose- Entrevista realizada em 21/02/2022)

 

 Ela diz ainda que tem observado que a cada 15 meninas formadas, apenas 5 ou 6 estão na área:

 

E as outras? Daí acabam que, fazem o mestrado, daí não conseguem um emprego pós mestrado e acabam entrando no doutorado.  Tá mas e aí? E depois? (Rose)

 

Viviane que cursou o técnico em Agropecuária e se formou em Agronomia no IFFar, conta que foi contratada pela mesma empresa onde fez seu estágio e que sentia que sua capacidade intelectual somente seria comprovada caso provasse também capacidade física:

 

[...] durante o meu estágio parecia que eu tinha que provar que eu tinha capacidade física, que eu tinha capacidade de executar coisa manual para eles, talvez, acessarem o meu conhecimento intelectual. E aí eu andei confrontando umas ideias de um cara e ele viu que eu tinha razão, (risos) aí ele me rebaixou muito. Agora ele começou a se arrepender porque ele viu que eu não ia desistir do meu trabalho, que eu tô fazendo, por exemplo, atividades de serviços gerais, dos serviços gerais mais baixo que tem e, formada! Tem por exemplo, o cara que nem terminou o ensino médio e que tá lá de supervisor! (Viviane- Entrevista realizada em 14/03/2022)

 

Nesse relato, percebe-se o quanto os pesos e medidas são diferentes para homens e mulheres no mundo do trabalho. O quanto é difícil para os homens serem contestados pelas mulheres ou admitir que elas estejam certas. Se um homem faz isso é sinal de inteligência, se a mulher o faz, é sinal de arrogância. Até onde sabemos não existe comprovação científica de que a força auxilie na melhor execução de tarefas que exijam o intelecto. Mesmo um lutador de boxe precisa do intelecto para vencer uma luta. O que se vê, é que quando não há argumentos coerentes para descartar uma mulher de uma função, recorre-se ao quesito ‘força’.

Nesse mesmo sentido, Anita, também formada no técnico em Agropecuária e acadêmica do curso de Agronomia, ambos cursados no IFFar,  ao falar sobre as expectativas em relação ao mercado de trabalho, diz que acredita que a área de Agronomia tem atuação gigantesca em diversos setores, e que talvez os homens sejam mais escolhidos devido à capacidade física:  

Tem muito produtor que ainda é um pouco mais velho e acha que o homem tem mais capacidade, mesmo tendo a mesma formação e o mesmo currículo. Eu acho que isso ainda é muito enraizado. No momento da escolha vai pesar, se for uma questão de campo... mas em laboratórios, eu acho que é bem mais tranquilo. [.... Então eu acho que no momento da escolha eles vão achar que o homem é mais capacitado, que é o homem isso, que o homem aquilo. Então eu acho que no desempate, tendo o mesmo currículo, talvez o homem seja a prioridade nessa escolha. (Anita- Entrevista realizada no dia 26/08/2022)

 

O que se percebe é que para a realização do trabalho do campo, ainda se supervaloriza a capacidade física em detrimento da intelectual. Segundo Anita, isso só vai se superado quando chegar informação para que esse pensamento antiquado seja transformado. O problema geracional é uma questão recorrente nas falas das mulheres.

Sobre a força como justificativa, Lagarde (2005) explica que o poder remete simbolicamente à força. Ou seja, a crença em uma suposta superioridade física, emocional e intelectual dos homens nada mais é que uma ideologia apreendida por homens e mulheres, em que se outorga um valor de verdade a isso, mesmo que, muitas vezes, essas características não correspondam a nível individual ou até mesmo grupal. Isso explica o porquê que algumas mulheres sofrem violências físicas por homens de menor tamanho ou força: a força deles e a fraqueza delas não provêm de seus corpos, senão de seu lugar na sociedade, da posição política da força, que o gênero masculino possui. Essa ideologia nos faz acreditar que somos fisicamente mais fracas, mesmo que existam evidências contrárias: “De hecho, la fuerza -simbolica- és uno de los principios constitutivos y de realización de la masculinidade” (LAGARDE, 2005, p. 268). Segundo a autora, a tese da força masculina e da fraqueza feminina nos faz crer que a força é um atributo inerente aos homens e inacessível às mulheres e, ainda, mesmo os homens mais fracos são considerados mais fortes que as mulheres.  Esses princípios são considerados, por ela, elementos de coerção sofisticados, usados para simbolizar o poder patriarcal com o consenso de mulheres e homens.  Ou seja, aprendemos isso, passamos a acreditar e jamais contestamos.

Viviane conta que logo que terminou o estágio lhe ofereceram o emprego, porém, com uma proposta salarial esdrúxula:

 

Eu conheci um rapaz, que ele começou a trabalhar quando eu ainda era estagiária e a gente faz umas perguntas tipo: Ah... quanto ganha? pra eu pelo menos ter uma noção de quanto eu ganharia…Tudo bem, ele já tinha bastante experiência, já tinha trabalhado na área, ele já tinha ficado uns dois anos nos Estados Unidos. Mas o salário dele era quatro mil e meio e o que me ofereceram foi dois mil e meio. E a justificativa da empresa foi: “tu nem te formou ainda, tu tem muito que aprender”. Aí agora eles contrataram uma mulher para ser responsável por um laboratório que eles estão construindo. E a mulher é Doutora, e o salário dela é quatro mil, bem inferior ao do rapaz que tava lá antes dela…(pausa)... tem bastante essa segregação de questão salarial pra homem e pra mulher. (Viviane)

 

Marilane Teixeira (2013) observa que é comum a discriminação das mulheres e salários menores mesmo quando realizam as mesmas tarefas que os homens. Muitas empresas, a fim de ocultar essa situação, acabam registrando as trabalhadoras com outras funções ou designando de modo diferente o mesmo posto de trabalho.  Viviane relata uma situação de desvio de função e ‘rebaixamento’, após confrontar algumas ideias na empresa:

 

 De carteira, eu sou assistente de laboratório, mas na verdade quando eles me contrataram eu ia cuidar de um setor de semi prontos. E eu iria fazer ajustes finos. Por exemplo: observar algum manejo que pudesse ser feito diferente, uso de regulador de crescimento para cuidar das plantas para que elas se desenvolvam de um jeito mais compacto. É uma floricultura, uso de um produto químico, por exemplo, um fungicida, de inseticida... Essa parte de observar e controlar. Só que eu confrontei umas ideias e aí eu fui rebaixada. Agora eu faço os serviços gerais, ‘um pouquinho para baixo’ de serviços gerais... (Viviane)

 

Quando perguntada quais as atividades que ela passou a realizar, explica:

 

Ah, por exemplo, tá rolando o programa de hortênsias... e aí eu tava tirando o inço das plantas… Por exemplo: quando crescem as invasoras é preciso tirar, só que elas tão no chão.  Porque assim... 90% das plantas estão nas mesas só que essas estão no chão e não é dentro da estufa. É para o lado de fora. Isso quer dizer que é uma atividade no sol e com postura ruim. (Viviane) 

 

Sobre o tipo de confronto:

 

 Eu disse que aquelas plantas estavam doentes. E aí ele me disse: - “Não, isso é problema de irrigação”. E eu disse: mas eu já tinha te notificado… E aí eu falei para o meu supervisor: Eu já tinha te notificado sobre a irrigação e também já tinha te pedido material.  Fiquei dias te pedindo o material e aí agora porque o fulano (o fulano é o dono da empresa), e agora que o fulano te confronta, aí tu não faz nada! Só que isso é uma disputa de força e, e disputa de força eu sempre vou perder porque ele tá num nível superior… (Viviane)

 

Questionada se achava que poderia ter sido desacreditada, sua resposta foi a seguinte:

 

Não foi desacreditada, porque ele sabia que eu tinha razão. E aí, por exemplo, existe um calendário de tratos culturais que a gente precisa fazer. E aí já tava passando da data, as plantas já estavam aptas para passar por aquele trato cultural. E eu queria fazer. Só que aí o dono da empresa disse não. Tava todo mundo vendo que devia ter feito. Só que o dono da empresa disse que não e ele não quis fazer a explicação agronômica. Mas onde é que já se viu??!! O cara não tem a noção de nada de Agronomia! O cara é empresário e o empresário devia deixar que os agrônomos façam o trabalho!  Só que tem várias coisas na empresa que estão andando super mal porque esse cara vai atrás de tudo que o dono fala. Só que eu não vejo isso como uma boa forma de atuação profissional, de simplesmente baixar a cabeça e aceitar. Eu acho que se a gente tem uma ideia, se a gente tem a convicção dessa ideia, nem que seja pelas beiradas a gente tem que dar um jeito... passar essa ideia adiante. (Viviane)

 

Como se vê, o poder de uma autoridade masculina - ‘o chefe’ -  é tão forte, que mesmo não tendo o conhecimento necessário para atender as demandas de sua própria empresa, intimida até mesmo outro homem, que sequer ousa defender ou seguir a opinião de uma mulher, mesmo que seja para favorecer e defender os interesses do chefe. Todavia, apesar do sentimento de impotência nessa disputa, Viviane acredita na capacidade de transformar essa situação através de caminhos alternativos.

Além dessas questões, Viviane conta que, no seu ambiente de trabalho, é comum ouvir dos homens ‘piadas’ machistas:

 

 Esses dias eu vi o dono da empresa falando alguma coisa com o supervisor.  E aí ele disse: Fernando, vê com a Viviane se ela não te dá a b***** dela. Bem assim! Eu tive que fingir que não ouvi e agir naturalmente. E aí eu ouvi a risadinha dele dizendo: não… E aí depois ele veio me dar feliz dia da mulher! E eu estava me remoendo por dentro e dizendo: não adianta desejar feliz dia da mulher e aí simplesmente da tapinha nas costas quando chefe faz uma piada dessas. (Viviane)

 

Tendo em vista a valorização da masculinidade nessa área, as egressas foram questionadas se em algum momento precisaram incorporar algum tipo de comportamento considerado ‘masculino’ para serem respeitadas. Rose respondeu:

 

 Sim, várias vezes, quanto à forma de me vestir e a comunicação. Várias vezes já foi falado tanto na graduação quanto no técnico, por exemplo: usar uma legging! - Ah, tu não pode usar uma leggin senão tu vai chamar a atenção do produtor, sabe…ou da produtora…sei lá!  Me disseram que a vestimenta da mulher no campo tinha que ter uma calça jeans, uma camisa e uma botina fechada, uma gola polo, e daí a gente incorpora! Incorpora! [...] Eu fico irreconhecível! Tipo: é outra pessoa, sabe… não é a Rose.  Eu tenho que incorporar uma personagem porque senão tu pode chamar a atenção para além daquilo que tu quer mostrar, que é tua capacidade técnica. (Rose)

 

Em algum momento da conversa, Viviane se definiu como uma menina brava, briguenta e geniosa. Perguntada se esse comportamento a ajudou a ser mais respeitada, ela disse: “Com certeza! foi a minha personalidade que tornou o processo mais fácil porque se eu fosse uma pessoa mais delicada, mais doce… não funcionaria muito bem”.(Viviane) Infelizmente, para sobreviver em alguns espaços e serem mais respeitadas e valorizadas, as mulheres precisam incorporar e adequar seus comportamentos e até mesmo suas vestimentas a um referencial masculino. Qualquer vestígio de feminilidade precisa ser ocultado, pois tudo o que remete ao ‘universo feminino’ é desqualificado e desvalorizado.  Não é à toa que a grande parte das mulheres que ocupam espaços predominantemente masculinos, como na política ou em grandes corporações, acaba optando pelo terno - símbolo de poder e dominância- abrindo mão de suas preferências pessoais. Isso nos fez pensar sobre espaços feminizados, em que os homens são minorias. Será que em algum momento precisaram aparentar fragilidade, sensibilidade ou emotividade[5] para serem respeitados? Adequarem suas vestimentas, aderindo a saias ou ao salto alto? Maquiarem-se? Quando isso ocorre, geralmente é por vontade própria, e não por imposição ou necessidade de adquirir respeito. A imposição e adequação são necessárias apenas às mulheres, nunca aos homens.

Mais um exemplo disso é dado por Roberto, um ex servidor do IF que atuou por longo tempo nos encaminhamentos de estágios, e que atualmente é docente em uma escola politécnica de uma Universidade Federal onde continua responsável pelos estágios. Ele conta que ao tratar de estágios para as meninas escuta coisas do tipo:

 

 “-Ah, a gente aceita estagiária, mas já pede para se vestir decente!” Aí tu já sabe que é para não botar vestido curto, tapar as pernas (risos), de repente botar uma capa da irmã Lurdes[6]... (Roberto - Entrevista realizada no dia 22/06/2022).

 

Ele diz que essa mediação é muito tensionada, e que a não aceitação de meninas ainda é muito recorrente em algumas áreas. Segundo ele, as áreas que elas são mais aceitas são avicultura, suinocultura e ovinocultura. Diz que na área de gado de corte, ninguém quer mulher. Perguntado sobre o porquê de as mulheres serem mais aceitas nessas áreas, ele responde:

 

Por quê? Ah, é mais sensibilidade... Ah, esses dias eu fui ali numa granja e o cara me disse assim: -“Ah, eu queria colocar todas as mulheres daqui, por que a mulher parece que trabalha com mais sensibilidade na relação com os animais”. E daí ele ainda me mostrou, e falou de parto, de cuidado com o leitão… e daí ele disse assim: parece que é o materno que tá… (risos) Mas é interessante isso né…e se tu pegar por exemplo na Fruticultura, que é uma área que eu trabalho mais hoje também, é mulher! Horta? Mulher! Então assim... eu não vou te dizer que estão atrás de mulher , mas tem mais espaço... (Roberto)

 

O que se percebe é que tanto a aceitação como a segregação em certas áreas e ocupações está orientada “por uma compreensão e uma naturalização dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres, e a sua presença apenas será admitida se representar um prolongamento de seus atributos considerados naturais, especialmente na área de cuidados”. (TEIXEIRA, 2013, p.85-86). Desse modo, conforme a área que elas desejam atuar Roberto lhes diz:

 

-Pode desistir logo do curso, que não adianta você fazer uma coisa e depois não vai ter empregabilidade! Porque assim... dependendo da área não vai ter! Não vai ter! Por exemplo, o aluno[7] que vem fazer o técnico voltado para produção animal e quer trabalhar com gado de corte: Desiste! Desiste!  Não tem! Não tem! O mundo do trabalho não quer essa gente! Não quer!  O empregador não gostaria de ter… (Roberto)

 

Roberto poderia ter aconselhado os empregadores a aceitá-las, ressaltando suas capacidades e competências ao invés de aconselhá-las a desistirem de trabalhar em determinadas áreas. Sua atitude apenas fortalece e perpetua a segregação sexual, sem estimular nenhuma mudança nas estruturas ocupacionais do mundo do trabalho. 

Ele conta, também, que geralmente são 20 e tantas meninas nessas turmas para as quais ele precisa arrumar espaço. E o que ele ouvia dos produtores no Instituto Federal, continua ouvindo na Universidade:

 

“-Eu não quero colocar alguém aqui que possa ter algum tipo de relacionamento com os meus empregados, que vai despertar neles o interesse, que vá desfocar”. Ou tipo assim: “- O serviço aqui não é serviço para mulher”. (Roberto)

 

Relata, ainda, que algumas vezes as próprias mulheres dos produtores não as querem, por receio de envolvimento com marido, filhos ou funcionários. O argumento utilizado pelos produtores é ‘evitar desavenças com suas mulheres’.

A servidora Luciana, que foi coordenadora do setor de estágios por 15 anos, ao falar sobre os pré-requisitos exigidos pelos produtores na sua época, relata:

 

A gente tinha muito pré-requisito de algumas propriedades. Tinha um senhor de Uruguaiana, eu não lembro o nome da propriedade. [...] E ele tinha uma propriedade rural né... e ele era agropecuarista junto.  E aí ele deixava bem claro o perfil dele para nós: ele não queria: moreno, ele não queria menina, ele queria de preferência, que fosse estagiário que fosse oriundo da zona rural, e que fosse do tipo de descendência de italiano, de alemão, sabe... 

Que nem esse senhor a gente tinha um senhor que era um pouco mais ‘light’, não era tão direto que nem esse. Um de São Borja. Ele nunca deixou dito assim: eu não quero alguém assim de cor, mas ele deixava bem dito assim: Eu quero aquele que é da zona rural e que é tipo... de italiano também, a mesma coisa, sabe… Então a gente enfrentava esse preconceito também com os meninos, né... (Luciana- Entrevista realizada no dia 02/09/2022)

 

Quando questionada sobre o que eles alegavam para exigir esse perfil afirmou:

 

O que eles alegavam o seguinte..., é que o pessoal de origem era mais trabalhadora. Baseado em que eu não sei! (risos) Se tinha alguma pesquisa sobre isso ou não... alguma coisa… mas era essa a alegação. Eu até desconheço isso, mas eles diziam que os morenos eram mais preguiçosos. (Luciana)

 

Perguntamos a Luciana sobre como funcionavam as avaliações das estudantes nos estágios e ela conta que antes de 2008 não havia uma normativa de estágio. Então só entregavam uma carta apresentando a/o aluna/o juntamente com o cronograma que precisava ser cumprido a fim de comprovar que o estágio tinha sido feito e o supervisor fazia uma avaliação. Perguntamos se o supervisor do estágio era um professor e ela explica:

 

Não, aí assim: depois da lei que foi implantada em 2008, aí se criou a questão de se ter um orientador no campus, um professor orientador.  Por lei tem que ter um professor orientador da área [...]. Ele vai ficar responsável, depois vai rever o relatório junto com o aluno, qualquer problema que o aluno tenha quanto ao estágio, alguma dúvida, ele vai entrar em contato com o orientador e ele vai ter que ter um supervisor na empresa. A empresa vai ter que determinar um supervisor para ele também na área que tenha conhecimento, nas atividades que ele vai desenvolver na empresa, que vai ficar responsável por ele lá na empresa. É esse o canal que vai ter com a empresa. [...] Então tem esses dois, dentro da instituição e dentro da empresa que vão estar auxiliando o aluno [...] (Luciana)

 

Como Luciana acompanhou o retorno das avaliações, perguntamos se havia alguma diferença em relação ao desempenho das meninas e dos meninos nos estágios. E ela disse:

 Não, não… Até tem meninas que… olha! Tem umas ali que até foram mais bem avaliadas que os meninos. Tem umas ali da zootecnia, que como se diz popularmente: elas eram do ‘ pega’ mesmo! Porque elas trabalhavam! Elas desenvolviam uma boa atividade no estágio. Tinha umas muito bem avaliadas como tipo relacionado com o perfil do aluno. Como tem um aluno bom em sala de aula... que desempenha bem, tem o estagiário também, né.  Geralmente se o aluno não é muito bom ele não vai desenvolver um estágio muito bom também. Então a gente teve umas meninas muito bem avaliadas, não por uma questão de gênero mesmo, né, eu acho que não é nesse ponto não. (Luciana)

 

Sobre os editais de estágio e a preferência pelo sexo masculino, ela diz:

 

Claro, já teve situações assim da empresa para pedir preferencialmente do sexo masculino na época que eu estava lá. Eu me lembro! Até pela questão que eles alegavam não ter alojamento só para meninas, era só para meninos.[...] Que não eram preparados para alojamento para mulher.(Luciana)

 

Como se percebe, o problema da aceitação de mulheres nessa área já começa nos estágios. Infelizmente elas não podem escolher onde querem fazer, e sim onde são aceitas. Por isso que muitas vezes, assim como Viviane, as mulheres acabam aceitando propostas salariais indignas, submetem-se a humilhações e fingem não ouvir as ‘piadinhas’ misóginas no ambiente de trabalho.

Isso vem ao encontro da afirmação de Maruani (2009), de que “o mercado de trabalho é um dos lugares onde se constroem, de maneira cotidiana, diferenças e disparidades entre homens e mulheres” (p. 86).  A autora diz também que o crescimento da profissionalização das mulheres pouco afeta e em alguns casos, até aumenta a hierarquia das desigualdades profissionais e ocupacionais em termos de remunerações, condições de trabalho, prestígio e outras qualidades dos empregos. Isso porque não alteraram em profundidade as representações sobre o emprego feminino ou a própria divisão sexual do trabalho doméstico.  Yannoulas (2013) acredita essas mudanças “não alteraram de maneira expressiva o tipo de carreira profissional ou ocupacional, pautado geralmente pelo modelo do profissional masculino ou, dito em outros termos, pelas possibilidades concretas dos homens no exercício das respectivas profissões ou ocupações” (p.36-37) 

Questionamos Roberto sobre a que ele atribuía o fato das meninas não serem aceitas nessas outras áreas, se elas deixavam algo a desejar ou se era somente por preconceito e machismo. Ele citou dois motivos: a falta de estrutura e a falta de força física. A passagem a seguir mostra isso, quando ele afirmou que:

 

Tem uma questão assim: o caso de um produtor que levou uma menina para Santiago e me disse assim: “- Eu vou receber, tudo bem, ok. Ela vai ficar na minha casa, ela vai fazer a rotina com os empregados, ela vai ter o banheiro individual dela.” Então assim... tu tem uma coisa própria a pensar,  as estruturas, que às vezes é um ambiente de homem, tudo atirado![...] Esses dias um menino me disse que foi fazer um estágio de campo aqui em Santa Flora e ele chegou lá na propriedade e era tudo… tinha sapo dentro da casa, o banheiro... Inacreditável! Um mosquital a noite inteira. – “Eu fiquei uma noite e fui embora”! E assim... parece que é uma atividade que não evoluiu. Os alunos foram para uma cabanha grande, de nome! Fotografaram e me mandaram... Inacreditável! Eram dois colchões no chão, eles iam ficar duas semanas e pouco lá, ou 10 15 dias, e a primeira coisa que eles tiveram que fazer foi uma organização para poder dormir. Então, essa estrutura de acolhimento ele tem vergonha de apresentar para as meninas. Nesse caso de Santiago lá, eu ia te falar ele me disse assim: ela vai acompanhar tudo, mas eu preciso que ela saia daqui na sexta-feira de tarde. Porque não tem ninguém na fazenda e eu não vou deixar uma mulher sozinha aqui. Então a pecuária tem essas características... (Roberto)

[...] E a outra questão, é a questão do trabalho. É um trabalho pesado né, é um trabalho de força, o trabalho de dominar um bicho, às vezes eles vão para o campo e tem que pegar um terneiro, fazer alguma coisa desse tipo aí, e não é uma coisa assim... A menina, às vezes, não tem essa força para fazer esse tipo de atividade. Então eu te diria sim, isso aí nós temos uma dívida histórica e nós não vamos corrigir com facilidade. (Roberto)

 

A falta de estrutura e a precarização dos alojamentos destinados aos trabalhadores do campo pode ser considerada resquícios deixados pela escravidão, quando não havia nenhum tipo de preocupação quanto ao bem estar e dignidade das pessoas escravizadas. Há de se convir que as condições relatadas pelo estudante não são adequadas nem para homens, nem para mulheres. Atualmente tem sido recorrente o resgate de trabalhadores de zonas rurais que ainda são submetidas ao trabalho análogo a escravidão, vivendo em condições degradantes e desumanas.  Portanto, esse é um problema que precisa ser corrigido independente do sexo.

Roberto dá aula para vários cursos na escola politécnica: para o curso de Agropecuária, Zootecnia, Fruticultura e Alimentos. Sobre o número de matrículas de meninos e meninas ele fala que estão equivalentes, mas demonstra pessimismo em relação à inserção das mulheres no mercado de trabalho:

 

Equivalente para as mulheres. Estão ganhando a léguas! Pra ti ter uma ideia, eu sou coordenador do técnico em Fruticultura, então tem 60 vagas e são 48 mulheres. E na Zootecnia, a turma agora tem 35 e deve ter umas 26 meninas, por aí... Na turma, essa da pandemia, que terminou só 13, tem um guri. Na zootecnia, é recorrente... E aí tu vê assim, tipo: tem vaga, tem!  Para guri! Para guria não tem vaga! Isso aí eu te garanto. E o pior é que às vezes eu tenho que dizer ainda (quando pedem meninos): é guria!  Com aquela cara assim né (risos) É o que temos! Porque eles não querem guria, e não tem guri, né... (Roberto)

 

Ele também relata que a maioria dos meninos que ingressam no curso pretendem voltar pra casa e assumir os negócios da família, pois não querem trabalhar como empregados. E, ao visitar algumas propriedades, tem observado que muitos produtores têm empregado alguns trabalhadores sem estudo, capacitando-os para ficarem trabalhando nas propriedades e sendo mandado por um agrônomo ou alguém acima. O que se percebe é que pela falta de profissionais do sexo masculino, os produtores preferem ‘capacitar’ seus empregados a contratar mulheres qualificadas para o trabalho. 

Outra questão observada é que tanto na fala de Luciana como na de Roberto, a falta de uma ‘estrutura’ para receber as mulheres foi um argumento recorrente.  Assim, esse não é um problema exclusivo das escolas agrotécnicas e propriedades rurais, pois, com exceção do espaço doméstico, os demais espaços do mundo produtivo sempre foram pensados para os homens. Basta ver os problemas enfrentados pelas parlamentares mulheres que somente no ano de 2016[8] conquistaram o direito a um banheiro feminino no plenário; tampouco a licença maternidade está regulamentada em muitos regimentos de assembleias legislativas e câmaras. É o mesmo caso de jogadoras e árbitras de futebol/futsal que apontaram a inexistência de banheiros femininos em alguns ginásios, precisando muitas vezes alternar ou dividi-los com os homens[9].

Por isso a necessidade de trabalharmos em prol da desconstrução de discursos discriminatórios que por vezes estão naturalizados ou invisibilizados no espaço educacional, como também fora dele. Identificá-los,?  permite o aprimoramento das práticas e atividades docentes e o fortalecimento dos pressupostos de uma educação humanizada, sem discriminação ou preconceitos

 

[i] A fim de dar visibilidade e aumentar o reconhecimento das produções intelectuais de mulheres, optamos por citá-las com nome e sobrenome na primeira menção.

 

[iii] De acordo com Yanoullas, (p.37-38, 2013) “a feminilização refere-se ao aumento de mulheres (pessoas de sexo feminino) na composição da mão de obra em uma determinada ocupação ou profissão. Já, a feminização, refere-se às transformações num determinado tipo de ocupação ou profissão, vinculadas às práticas sociais e simbólicas predominantes na época ou na cultura especificamente analisadas, e que rebatem numa mudança no significado da profissão ou ocupação. Nessa pesquisa, estarei atenta a ambos os processos”.

 

[iv] Esse termo, conforme o mesmo artigo do Geledés (<https://www.geledes.org.br/verbete-draft-feminismo-nos-negocios-o-que-e-bropriating>), surgiu num post da astrônoma americana Nicole Gigliucci no Twitter, e que segundo ela, foi cunhado por seus amigos. Vem de he (pronome ele, em inglês) + peating (de repeating, ou repetir).

 

[v] Características estereotipadas atribuídas ás mulheres.

 

[vi] Irmã Lurdes, é uma religiosa muito atuante e conhecida na cidade de Santa Maria (cidade onde Roberto reside) por seus projetos de economia solidária.

 

[vii] Quando ele fala o aluno, refere-se às meninas.

 

[ix] Ver em JOBIM, Letícia M. As implicações da interseccionalidade no mundo do trabalho: um olhar sobre a profissão de árbitras. In: XVI Colóquio Educon. Sergipe, 2022. Anais Eletrônicos.  Disponível em:
https://coloquioeducon.com/org_trabalhos/adm/exportar_trabalho_pdf.php?id_trabalho=419. Acesso em 01/08/2023.

Pensamos que é preciso fazer o mundo parar de girar e se organizar em torno do sexo masculino. As mulheres estão avançando massivamente para outros espaços e profissões que não aquelas que lhes foram destinadas e, de acordo com Lerner (2019), o pressuposto básico deve ser que é inconcebível para qualquer coisa ocorrer no mundo sem que as mulheres estejam envolvidas” (p. 279).

A pesquisa demonstrou que o aumento de mulheres em áreas tradicionalmente masculinas não representam melhorias nas relações de gênero. As relações de força ainda são bastante desiguais e disputadas, tendo em vista a rigidez em que a cultura androcêntrica e patriarcal foi acimentada. Predominou entre as entrevistadas o sentimento de impotência e, em alguns momentos, a necessidade de calarem-se frente às injustiças, tendo em vista a posição de poder e autoridade exercida pelos homens, tanto nas instituições de ensino como nos locais de trabalho: professores e chefes. Isso mostra a necessidade de se investir em educação feminista para homens e mulheres e viabilizar que mais mulheres assumam posições e cargos de liderança para que não sejam enfraquecidas pelo patriarcado.

 

[1] A fim de dar visibilidade e aumentar o reconhecimento das produções intelectuais de mulheres, optamos por citá-las com nome e sobrenome na primeira menção.

[2]http://inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/cresce-presenca-das-mulheres-em-todos-os-niveis-de-ensino/21206.

[3] De acordo com Yanoullas, (p.37-38, 2013) “a feminilização refere-se ao aumento de mulheres (pessoas de sexo feminino) na composição da mão de obra em uma determinada ocupação ou profissão. Já, a feminização, refere-se às transformações num determinado tipo de ocupação ou profissão, vinculadas às práticas sociais e simbólicas predominantes na época ou na cultura especificamente analisadas, e que rebatem numa mudança no significado da profissão ou ocupação. Nessa pesquisa, estarei atenta a ambos os processos”.

[4] Esse termo, conforme o mesmo artigo do Geledés (<https://www.geledes.org.br/verbete-draft-feminismo-nos-negocios-o-que-e-bropriating>), surgiu num post da astrônoma americana Nicole Gigliucci no Twitter, e que segundo ela, foi cunhado por seus amigos. Vem de he (pronome ele, em inglês) + peating (de repeating, ou repetir).

[5] Características estereotipadas atribuídas ás mulheres.

[6] Irmã Lurdes, é uma religiosa muito atuante e conhecida na cidade de Santa Maria (cidade onde Roberto reside) por seus projetos de economia solidária.

[7] Quando ele fala o aluno, refere-se às meninas.

[8] In: https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/comum/bancada-feminina-do-senado-conquista-direito-a-banheiro-feminino-no-plenario. Acesso em: 30/08/2022.

[9] Ver em JOBIM, Letícia M. As implicações da interseccionalidade no mundo do trabalho: um olhar sobre a profissão de árbitras. In: XVI Colóquio Educon. Sergipe, 2022. Anais Eletrônicos.  Disponível em:
https://coloquioeducon.com/org_trabalhos/adm/exportar_trabalho_pdf.php?id_trabalho=419

Bancada Feminina do Senado conquista direito a banheiro feminino no Plenário: Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/comum/bancada-feminina-do-senado-conquista-direito-a-banheiro-feminino-no-plenario>. Acesso em: 30/08/2022.

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Cresce presença das mulheres em todos os níveis de ensino. Instituto Nacional de Estudos e pesquisas educacionais Anísio Teixeira (INEP). Disponível em: <https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/outros/cresce-presenca-das-mulheres-em-todos-os-niveis-de-ensino>. Acesso em: 17/08/2022.

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