Em a Política Aristóteles diz, “A desigualdade entre iguais e as distinções entre semelhantes são contra a natureza e, por conseguinte, contra a honestidade” (ARISTÓTELES, p. 2007). Em outras palavras, o sábio de Estagira afirma que a igualdade só é possível entre iguais. A racionalidade de Aristóteles reflete os limites históricos de seu tempo, reflete a sociedade escravista. Não por outra razão ele toma como natural determinações que são sociais. Contudo, não resta dúvida para ele que não é possível construir uma igualdade entre desiguais, por isso jamais o escravo grego pode alcançar qualquer nível de cidadania.
Essa “lei”, tão clara à Antiguidade Clássica, permanece inexorável. Guardadas as devidas proporções, podemos afirma que onde quer que exista classes sociais é impossível uma igualdade substantiva. Por mais que conquistas sejam alcançadas nesse campo (e elas são extremamente importantes e necessárias) a desigualdade de fundo permanece, mesmo depois de milênios de existência das civilizações. Entretanto, nem todas as sociedades historicamente existentes se constituíram em sociedades de classes. Nas comunidades primitivas de caçadores e coletores e nas sociedades do início da agricultura uma igualdade real, no plano econômico social, era a base que assegurava uma igualdade em todos os campos da vida social, inclusive entre gêneros e no acesso à educação.
Evidentemente que as sociedades primitivas tinham uma igualdade baseada no baixo desenvolvimento de suas forças produtivas, e por causa disso, viviam no limite da selvageria. A igualdade nelas existente era resultado da escassez e não da abundância. Neste momento da história o desenvolvimento do gênero humano está apenas se iniciando, e por isso mesmo, os indivíduos desenvolveram apenas muitíssimo parcialmente as suas potencialidades. Portando, o horizonte das comunidades primitivas não pode ser referência para a construção do futuro como projeto societário. Sobre essa questão, Lukács recupera uma passagem importante dos Grudisse de Marx, nos diz ele,
Em estágios anteriores de desenvolvimento, o indivíduo singular aparece mais completo precisamente porque não elaborou ainda a plenitude de suas relações e não as pôs diante de si como poderes e relações sociais independentes dele. É tão ridículo ter nostalgia daquela plenitude original: da mesma forma, é ridícula a crença de que é preciso permanecer naquele completo esvaziamento. (MARX, 2011, p. 110)
Lukács acrescenta,
No início da evolução do pensamento burguês dominou a tendência de afirmar o progresso esquecendo as suas contraditoriedades; já antes de Marx surgiu uma reação romântica à crítica da alienação, ligada com uma idealização de níveis inferiores de desenvolvimento primitivos; e este contramovimento romântico ainda domina hoje – aberta ou sub-repticiamente –, em todo caso escasso, estudo filosófico com o cotidiano e o seu pensamento. (LUKÁCS, 1966, p. 70. Tradução nossa)
Em nosso caso, não romantizamos a sociedade capitalista e nem opomos a ela um contramovimento romântico de retorno a uma primitividade idealizada. Recorremos ao estudo e análise da comunidade primitivas, não a idealizando ou a postulando como referência para a construção de uma nova sociedade, isso representaria um retrocesso social, um retorno às origens. Nossos objetivos residem em primeiro lugar em demonstrar a possibilidade histórica da construção de uma sociedade igualitária, a única capaz de realizar a substantiva universalidade da educação. O reconhecimento de que ao se autoproduzir em um metabolismo dialético com a natureza os homens e mulheres constroem a sociabilidade é comprovação de que outras formas de relação produtiva são possíveis. Em segundo lugar, o entendimento do funcionamento das sociedades primitivas, pode servir de reflexão e ponto de largada para uma construção futura, bem como para orientar ações contemporâneas.
Entender a organização social do chamado comunismo primitivo pode contribuir decisivamente para entendermos mais profundamente a organização da sociedade contemporânea. É olhando para um cenário como o das comunidades de caçadores e coletores – sendo ele, em muitos sentidos, o total oposto da sociedade contemporânea - que podemos contemplar as problemáticas de uma sociabilidade tão centrada na obtenção de lucro como esta na qual estamos inseridos.
Nesse sentido, buscamos investigar como se organizavam as comunidades primitivas e, em especial, como a igualdade de gêneros se processava em seu interior. A investigação dessa problemática, além de trazer a lume elementos importantes para o conhecimento dessas sociedades, tem como fundamental contribuição demonstrar, com fundamento na própria experiência humana passada, a possibilidade histórica de entificação de relação humano-sociais mais elevadas, compreendendo essa dimensão como tarefa pedagógica atinente a qualquer proposta de educação que se paute pela efetiva formação do gênero humano.
Neste artigo, baseamo-nos especialmente no estudo das obras de Williams (1991), Service (1971), e Leacock (in Engels 2012 e 2019). A escolha de Raymond Williams (1921–1988), especificamente o seu, O Povo das Montanhas Negras possui peculiaridades importantes. Nascido no País de Gales, Williams foi um teórico de orientação marxista que se consagrou no campo da sociologia, história, crítica estética, mas também como literato. A obra em tela é, justamente um romance. Apesar de ser um livro ficcional, ele é um importante trabalho para a compreensão da vida e organização social nas comunidades primitivas.
Williams se apoiou em um exaustivo levantamento histórico a respeito dos povos primitivos que habitavam as Montanhas Negras (região localizada no que é hoje o País de Gales) e em um profundo conhecimento da geografia da região na qual as histórias de seu romance se desenrolam. No livro temos a construção de narrativas ficcionais sobre grupos primitivos que habitaram a região das Montanhas Negras no País de Gales no decorrer de aproximadamente 25.000 anos.
No romance o ambiente externo existe como um personagem sempre presente, e a colocar obstáculos e oportunidades para os indivíduos sociais. Ainda assim, são esses últimos os verdadeiros agentes na relação que matem com o mundo ambiente. São eles que deliberam, planejam, decidem e se mobilizam para superar as adversidades encontradas.
A agudeza e o profundo conhecimento histórico de Williams ao escrever “O Povo das Montanhas Negras” são elementos necessários para que ele consiga produzir uma obra realista. Entretanto, apenas isso não é suficiente. O que Williams escreve é arte, e nesse sentido, tem uma função social totalmente diferente de uma autêntica obra histórica. Porém, ao criar esteticamente uma totalidade social que reflete os primórdios da humanidade, o autor, o faz de tal maneira que exprime o gênero humano daquela época, em seus dramas, alegrias e dificuldades. O que o nosso romancista quer transmitir não é, como seria no caso da História, os processos, ações e fatos postos em movimento pelos primeiros homens e mulheres. O objetivo do seu romance, como sempre é no caso da obra de arte, é agarrar os elementos mais humanos e promover a identificação do apreciador com tais elementos, desenvolvendo neste a sensibilidade. Neste sentido, Williams transforma seu conhecimento histórico em arte. Não é por outra razão que as histórias que compõe o romance são críveis, expressando situações passíveis de terem acontecido em sem sentido mais geral.
Williams reconstrói um universo de detalhes que estão relacionados as primeiras formas de organização humana. Enquanto narra as histórias de seus personagens, ele nos envolve com diversos detalhes históricos que vão desde a coleta e a caça e de animais, o aproveitamento da lã dos animais caçados, o domínio da agricultura e da pecuária, o domínio das técnicas relativas à produção, os procedimentos de descoberta dos astros até muitos outros elementos que estão perfeitamente alinhados com aquilo que é historicamente comprovado sobre aquele período histórico. Por se sustentar neste levantamento histórico, o autor conseguiu retratar de forma crível os grupos de caçadores e coletores, o seu cotidiano, as suas relações singulares e as personalidades dos sujeitos que transitam pelas histórias, de tal maneira que a ficção poderia facilmente ser verdade.
Não seria possível reconstruir, em termos historiográficos, aquilo que está colocado em detalhes na obra de Williams (1991), o máximo que a ciência histórica e antropológica consegue descrever ainda não seria capaz de atingir o grau de detalhismo que está presente em “O povo das montanhas negras”. É através da Arte, que não está submetida exigência de refletir cientificamente o real, que Williams (1991) consegue elaborar algo que a História e suas ciências auxiliares não conseguem.
Embora esta obra não nos sirva como material para especificar exatamente o que cada indivíduo que existiu naquele tempo histórico fez ou deixou de fazer, ao nível de seu cotidiano, e o que sentiram ou deixaram de sentir em dias específicos, ainda assim, há uma importância fundamental em estudá-la. O valor que existe em estudar esta obra reside justamente nesta capacidade do autor de detalhar e retratar, mesmo que apenas a nível estético e artístico, estes traços da organização social dos grupos primitivos de modo que consigamos contemplar o cotidiano e as singularidades daqueles grupos em ação. Tendo em vista todo o conhecimento histórico e cientificamente comprovado levantado pelo autor, é de se supor que os indivíduos agiriam de maneira muito semelhante ao que está retratado no livro.
A ORGANIZAÇÃO SOCIAL PRIMITIVA
É somente através do trabalho que surge a sociedade, o ser social propriamente dito. Entendido como o intercâmbio entre sociedade natureza, mediante o qual os homens e mulheres produzem seus meios de subsistência e de produção. Essa troca orgânica dos homens e mulheres com a natureza exige o desenvolvimento contínuo de capacidades e complexos socias sem os quais ela não se realiza, entre eles podemos citar, uma consciência para além da consciência animal e que antecipa os fins desejados e que guia a ação, um conhecimento dos meios que precisam ser ativados para realização da transformação do mundo natural em produto do trabalho, uma interação social entre os indivíduos, uma linguagem, uma divisão de tarefas etc.
É, portanto, através do trabalho que o homem deixa de ser simplesmente um primata vivo, curioso e sociável, para tornar-se um ser social capaz de manipular o meio e a si mesmo, desenvolver linguagens e tradições culturais, além de desenvolver seu próprio corpo e relações sociais, sexuais e de parentesco.
As primeiras formas de organização social humana constituíram-se em bandos de caçadores e coletores. Eles viveram em grupos comunais pequenos. Como o desenvolvimento das forças produtivas era extremamente baixo, os indivíduos encaravam uma realidade dura e escassa. As ameaças do mundo natural eram inúmeras e grandiosas, tendo em vista o incipiente afastamento das barreiras naturais daquelas sociedades. Consequentemente, o homem, a este ponto, tinha as ferramentas mais rudimentares possíveis. Todo este cenário econômico-social criava uma dinâmica na qual todos precisavam participar das atividades para garantir a sobrevivência do grupo. Sobre isso, Service (1971, p. 23) nos conta que,
A maioria das armas é tão limitada que o caçador tem de compensar o seu pequeno arsenal com engenho, persistência, sabedoria e, em muitos casos, a cooperação com outros ou, pelo menos, repartindo livremente a sua caça, quando tem sorte, para que possa mais tarde recebê-la de outros quando não tem sorte.
Devido a este baixo desenvolvimento das forças produtivas, as atividades de caça e coleta do homem primitivo eram quase que ininterruptas (SERVICE, 1971, p. 25), o que tornava impossível, nesta sociedade, o aparecimento de algum excedente de produção. Além disso, não era possível para um indivíduo do grupo viver às custas do trabalho alheio, então é correto afirmar que não existia nas sociedades de caçadores e coletores uma separação entre trabalho manual e intelectual.
Também não havia propriedade privado dos meios de produção. Lewis Morgan (1818–1881), pioneiro nas investigações acerca da origem social da sociedade, já mostrava, de acordo com Leacock (in Engels 2012, p. 237-241) que não havia a paixão pela propriedade nos primeiros estágios da sociedade. Engels complementa afirmando que as relações de produção eram essencialmente coletivas. Não existia uma produção de mercadorias para troca, a produção era apenas para o consumo (LEACOCK, in Engels 2012, p. 252-258).
Segundo Leacock (in Engels 2012, p. 242-246), alguns estudiosos cometeram o engano de achar que porque existem hierarquias em algumas sociedades consideradas primitivas, isto necessariamente implicava dizer que aquela era uma sociedade estratificada. Na verdade, a hierarquização existia, porém ela não concedia privilégio algum ao indivíduo do grupo que ocupasse uma posição de liderança. Não havia um pequeno grupo dominante que vivia separado do resto do grupo.
Um bom exemplo nos é fornecido pelos esquimós da Groelândia eram entendidos erroneamente como competitivos. Na verdade, eles só se tornaram assim quando estavam sofrendo a influência do contato com o comércio de peles da Europa (Leacock in Engels 2012, p. 242-246). Assim como toda sociedade de comunismo primitivo, os esquimós se constituíam-se em sujeitos socias individuais, portanto, portadores de individualidades. Essas individualidades comumente se opunham, mas não em uma oposição econômica e antagônica, como na sociedade de classes. O caso dos esquimós é uma boa referência, porque ao invés de competitivos, eles eram extremante interdependentes. Apenas com base nessa interdependência é que eles podiam se separar por longos períodos, pois contavam sempre com o apoio dos outros grupos “isolados”. É costumeiro colocar a liberdade e a individualidade em polos opostos, quando na verdade, nas comunidades primitivas, elas existiam, de tal modo que era garantido o espaço para a expressão destas últimas
Ainda sobre a questão da individualidade, vale a pena destacar o grau de autonomia individual que havia nos grupos primitivos. A esse respeito podemos citar um momento da obra de Williams (1991, p. 59-77), mais especificamente do “O lago de verão e o sangue novo”. No conto as personagens Varan e Adran, durante uma caçada, saem em busca de um alce macho, separam-se do restante do grupo. Varan e Adran rompem o que havia sido definido previamente pelo grupo, cujo o combinado era que caçar uma fêmea de alce seria o suficiente para satisfazer as necessidades do bando. Os dois jovens e fortes caçadores tiveram que ser deixados para trás pelo grupo, pois ficar ali poderia ameaçar a sobrevivência coletiva. O grupo, mesmo não tendo sido consultado quando os jovens decidiram partir em busca do alce macho sozinhos, se preocupava com eles e desejavam sua presença, visto que eles eram membros de igual importância para aquele grupo. O bando esperou o máximo que pôde. Em que pese a perda e incerteza a respeito dos destinos dos jovens, jamais vistos, o grupo não recriminou a decisão deles. Por mais que eles tivessem desviado-se do planejamento da caça, seu ato não foi na direção de buscar privilegiamento próprio, mas na de ampliar o ganho coletivo. Esse tipo de autonomia individual era vital para a sobrevivência do grupo.
Vemos que mesmo nas comunidades primitivas, pautadas na igualdade, havia espaço para a discordância, individualidade e autonomia. Esta autonomia é identificada tanto no momento em que os dois rapazes se separam do grupo, quanto no momento em que o grupo, mesmo decidindo seguir sem eles, ainda demonstra muitas preocupações e pesar diante do desaparecimento dos rapazes.
Em outro momento da obra de Williams (1991, p. 45-55) evidenciamos essas mesmas questões. No conto “Varan à beira dos grandes gelos”, temos Varan e sua esposa Almet. Eles pertencem a um grupo de caçadores e coletores que estão desbravando as proximidades das Montanhas Negras a procura de caça. Sendo nômades, eles se veem diante do frio e da escassez de alimentos na região em que circulam. Após atravessarem o primeiro e segundo rio-mar, chegam a lugares muito gélidos onde dificilmente encontrariam manadas para caçar. Conseguem, porém, pescar alguns peixes. Isso é suficiente para alimentação do bando de Varan naquele momento, mas a pescaria não elimina as complicações de não encontrar uma manada. Dizia uma lenda oral que rumando para o sul, para além da área onde se encontram, haveria um local com animais para caçar, mesmo com o tempo frio. Para eles, essa era a única saída.
Como Almet está em trabalho de parto, existe uma preocupação com o sexo do bebê. Isto porque, o equilíbrio reprodutivo do grupo exige que o próximo filho seja um menino. Mais uma mulher, poderia, no entendimento do bando, comprometer a sobrevivência do coletivo. Caso contrário, eles não poderão mantê-la. As mulheres do bando acreditam que Almet deve ficar com o bebê mesmo que seja uma menina. Os homens acham que não há maneira. Todos deliberam e decidem em conjunto sobre esta questão. Varan, que parece exercer um papel de liderança na questão, decide esperar mais uma lua para encontrar caçada, pois, assim, poderiam manter a menina. Do contrário, iriam para o sul, e as mulheres permaneceriam aonde estavam, alimentando-se de peixe.
Mais uma vez identificamos que, apesar do caráter igualitário existente no comunismo primitivo, ainda assim havia um espaço para a divergência de opiniões. Mesmo que houvesse divergência, as decisões eram tomadas de forma conjunta. Todos estavam envolvidos com as decisões tomadas pelo grupo. Também vemos aí a autonomia que existia dentro do grupo quando percebemos como eles poderiam se dividir ou se reunir à medida que as circunstâncias iam exigindo do grupo novas maneiras de se organizar. As mulheres ficariam para trás, mas não porque seriam abandonadas para morrer, e sim porque Varan confiava que elas eram capazes e autônomas o suficiente para sobreviverem por conta própria enquanto eles tentavam ir ao sul procurar por manadas. Também percebemos que, apesar de a sobrevivência do grupo ser priorizada, isso não significava dizer que eles iriam ignorar uma vida individual em benefício da sobrevivência do grupo. Sacrificar um integrante ou deixá-lo para trás era um último recurso, pelo qual o grupo evitava optar.
Além de não existir classes sociais e propriedade privada dos meios de produção o trabalho era dividido pelos sexos. Existia uma distribuição de bens direta através da qual se dava o consumo em pequenos grupos no, assim chamado, comunismo primitivo. A terra era propriedade comum e os instrumentos e ferramentas utilizados para a realização do trabalho eram posse de quem os utilizava diretamente.
Conforme Leacock, muitos autores tentaram refutar a existência desse comunismo primitivo, Frank G. Speck e Eiseley, por exemplo. Tomando como referência os povos montagnais-naskapi que habitavam a Península do Labrador, eles usaram as divisões de terras e territórios de caça dos montagnais-naskapi como prova de que o comunismo primitivo nunca houvera existido. De acordo com esses negacionistas, essas terras eram um tipo de propriedade individual que passava de geração em geração. Leacock, no entanto, refuta categoricamente esse argumento. Em suas pesquisas acerca dos montagnais-naskapi a autora constatou que o sistema de territórios de caça surgiu em decorrência do contato com o comércio de peles europeu. Antes do contato com o mercantilismo exploratório de exportação de peles os povos originários não procediam desta forma em relação à terra. Mesmo assim, após os contatos, a divisão do território de caça não implicava uma posse efetiva de terra pelos montagnais-naskapi. Isto porque, não se podia montar armadilhas para o comércio de peles no território de outro, mas era permitido a todos abater animais de caça, pescar, colher madeira, frutos ou cortiça das árvores nestes mesmos territórios quando para uso pessoal. Longe de negar o caráter comunitário daquela sociedade, o exemplo demonstra que mesmo após a exploração colonial esse povo originário manteve muitos elementos de sua sociedade em dissolução.
GÊNERO E AUTONOMIA NAS COMUNIDADES PRIMITIVAS
É com a civilização que ocorre a subjugação das mulheres, equiparando a sua condição a de escravas[i] dos homens. A monogamia, desde o começo, foi imposta somente as mulheres. Da mesma maneira, desde os primórdios da sociedade de classes passa a existir o adultério e a prostituição. A poligamia que, nas comunidades de caçadores coletores era algo aberto para a sociedade, tornou-se encoberta. A monogamia se tornou um símbolo da supremacia masculina.
Com o fim das comunidades primitivas a família nuclear passou a se constituir na unidade básica da sociedade de classes. Nela a mulher e seus filhos tornam-se dependentes de um homem. A linhagem passou da matrilinearidade para a patrilinearidade. De um modo geral a posição das mulheres na sociedade se deteriorou em relação aos homens. Para Engels,
O desmoronamento do direito materno foi a grande derrota do sexo feminino em todo mundo. O homem apoderou-se também da direção da casa; a mulher viu-se degradada, convertida em servidora, em escrava da luxúria do homem, em simples instrumento de procriação. Essa degradada condição da mulher, manifestada sobretudo entre os gregos dos tempos heróicos e, ainda mais, entre os dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocada, dissimulada e, em alguns lugares, até revestida de formas de maior suavidade, mas de maneira alguma eliminada (ENGELS, 2012, p. 77).
Antes da transformação das comunidades primitivas em sociedade de classes, o trabalho doméstico era comunal e a divisão do trabalho entre os sexos era marcada pela reciprocidade. As mulheres e seus filhos não eram dependentes economicamente de nenhum homem. As crianças faziam parte do grupo e ainda que ficassem órfãs não ficavam sem família, uma vez que a responsabilidade e o cuidado com as crianças era responsabilidade de todos. Não existia a separação que restringe a mulher ao trabalho doméstico e privado, e permite ao homem fazer o trabalho relativo à esfera pública. No comunismo primitivo, ambos os sexos trabalhavam em prol da sobrevivência e sustento do grupo.
A maior parte do alimento produzido era fornecido pelas mulheres. Os caçadores-coletores dependiam muito do alimento vegetal coletado pelas mulheres para complementar a alimentação proveniente da carne do animal caçado. Em sociedades horticultoras, era comum também que as mulheres produzissem a maior parte da lavoura. Na sociedade comunal primitiva, quem tomava as decisões era quem executava as ações, e isso conferia às mulheres grande influência e poder de decisão, visto que elas forneciam grande parte do da produção do grupo (LEACOCK, in Engels 2012, p. 252-258).
Ainda de acordo com Leacock (in Engels 2012, p. 252-258), nas sociedades primitivas, os homens tomavam decisões sobre a caça e a guerra, mas isso não quer dizer que as mulheres não tinham autonomia ou um papel importante na tomada de decisões. Os homens não eram “governantes” do grupo.
De fato, nos clãs dos povos horticultores, era comum a matrilinearidade e as decisões políticas contavam com a participação formal das mulheres. Alguns estudiosos veem nisso, erroneamente, uma justificativa para a existência de um matriarcado anterior a sociedade patriarcal, mas é importante ressaltar a diferença entre matrilinearidade e matriarcado. O primeiro trata-se apenas da linha de descendência que organizava os sistemas de parentesco, o último nunca existiu, pois não houveram sociedades estratificadas em que mulheres subjugaram os homens. Os sistemas matrilineares cederam aos patrilineares com o surgimento das relações de exploração da sociedade de classes.
De forma geral as sociedades horticultoras eram matrilineares e matrilocais, isto porque era das atividades produtivas das mulheres nas lavouras que provinha a maior quantidade de alimentos. Ao mesmo tempo, (LEACOCK in Engels 2012, p. 259-264), a forma padrão que prevalecia nas sociedades de caçadores-coletores era a patrilocalidade, tendo em vista o papel central da caça. Todavia, é importante destacar que é possível encontrar sociedades de caçadores-coletores que eram matrilocais, e que só deixaram de ser após contato com os europeus.
Como demonstra Leacock (in Engels 2012, p. 260-261) nos estudos acerca dos povos do Noroeste da Austrália, existe uma concepção errônea que entende que as mulheres são inferiores por não participarem de cerimônias dos homens ou de assuntos políticos. Porém, os homens também ficam de fora de rituais secretos das mulheres. Enquanto a guerra e os encontros formais ficam a cargo dos homens, as mulheres mais velhas e homens mais velhos participam da resolução de problemas intragrupais. Existem restrições para ambos os sexos em relação a com quem se pode casar e, além disso, ambos os sexos podem ter relações pré-maritais e tomar a iniciativa. As mulheres australianas, por exemplo, eram autônomas e participavam dos assuntos de seu povo, tendo consciência de seus direitos e responsabilidades.
Um outro exemplo é encontrado entre os esquimós. Ao contrário da crença comum de que as mulheres esquimós eram subservientes, é possível encontrar biografias de mulheres que demonstram alto grau de autonomia e independência de ação, além de considerável liberdade para escolher e flexibilidade para a tomada de iniciativa na condução de suas próprias vidas (LEACOCK, in Engels 2012, p. 260-261).
Entre os montagnais naskapi do Labrador, as mulheres tinham grande influência, tendo em suas mãos o poder de escolha de planos, atividades, viagens e invernadas. Além disso, os missionários jesuítas tentavam influenciar os homens montagnais contra a liberdade sexual predominante das mulheres daquela sociedade. Eles falavam aos homens sobre a importância de saber que um filho era seu de fato, mas os montagnais surpreenderam os missionários ao explicarem que em sua tribo, todas crianças da tribo importavam, não apenas aquelas que são consanguíneas. A paternidade na sociedade primitiva era tida em seu sentido social e não biológico (LEACOCK, in Engels 2012, p. 260-261).
O divórcio era simples e deveria partir da vontade de um dos parceiros, apesar de isso não ser algo comum. A morte é que provocava os fins das relações. Os relacionamentos eram, via de regra, amorosos e afetuosos. Não existia exclusividade sexual e a mulher era livre para deitar com os homens que quisesse sendo ela solteira ou esposa de um anfitrião. Isto é erroneamente entendido como uma prova da inferioridade da mulher, o que revela uma análise etnocêntrica e moralista que presume que as mulheres não desfrutavam de prazer sexual ou se beneficiavam tanto quanto os homens de uma maior variedade de parceiros (LEACOCK, in Engels 2012, p. 252-258).
Na transição para a sociedade de classes, aprecem mais restrições. O casamento passou a ser uma forma de consolidar a posição de um jovem par na gens[ii] ou no clã. Os pais começaram a participar da escolha do cônjuge e a trocar bens materiais com a família do parceiro. Passou a existir maior resistência da sociedade com relação a separação, apesar da dissolução do casamento ser possível e os parentes passaram a intervir mais (LEACOCK, in Engels 2012, p. 252-258).
A capacidade de dar à luz jamais foi um entrave social em nenhuma sociedade primitiva, nem mesmo a sociedade caçadora-coletora, que tinham o mais baixo nível de desenvolvimento tecnológico. A gravidez não limitava as possiblidades de realização das mulheres no interior daquelas comunidades. Com o desenvolvimento das relações de exploração, vemos esta mudança de perspectiva que está associada também ao declínio da importância da mulher na produção de alimentos. Isso se processa em meio a destruição do parentesco e da propriedade comunais em favor da família individual como unidade vulnerável, isolada e responsável economicamente pela manutenção de seus membros e pela criação de gerações novas e ao crescimento do trabalho masculino na agricultura. O trabalho feminino deixou de ser uma atividade socialmente necessária para ser trata como algo privado, que fica no espaço doméstico e separado da vida pública. O trabalho doméstico e outras atividades das mulheres chegaram a condições próximas à escravidão (LEACOCK, in Engels 2012, p. 259-264).
Segundo Leacock (in Engels 2012, p. 265-271), a família monogâmica é uma expressão da propriedade privada é ela quem fornece os meios para a herança individual. Com o declínio da atividade de caça e a substituição das mulheres na agricultura pelos homens, a família nuclear foi aos poucos se tornando a unidade econômica básica que é característica da sociedade de classes. Esta transição foi marcada pela destruição do direito materno em favor do direito paterno.
É com a subjugação e exploração das famílias de trabalhadores pelas classes superiores que se origina o acúmulo de riqueza individual. Os homens da classe trabalhadora, estando em uma posição vulnerável, não podiam se contrapor a intensa exploração que sofriam nas mãos da classe dominante tendo em vista que tinham mulheres e filhos que dependiam deles economicamente além de terem a responsabilidade de sustentarem a si mesmos. A família nuclear vai se tornando a célula basilar da sociedade de classes. (LEACOCK, in Engels 2012, p. 265-271)
O isolamento provocado pela organização da família individual, provoca sentimentos de ambivalência nos homens e mulheres, ainda mais quando as mulheres têm de trabalhar na indústria para ajudar no sustento familiar. A organização da sociedade de classes transforma o casamento em uma batalha constante que, consequentemente, embrutece o homem e o estimula à dominação mesquinha, enquanto que provoca amargura e raiva na mulher. Em comparação, nas sociedades pré-classe, as relações são marcadas predominantemente pela afetuosidade, o bem-estar, o respeito e a segurança. As relações conjugais de nossa sociedade tendem para a direção oposta destas características. Esta tendência é proveniente da estrutura social e não necessariamente da natureza do homem e da mulher. (LEACOCK, in Engels 2012, p. 265-271)
É possível perceber nitidamente que há diferenças essenciais na organização social dos caçadores e coletores quando comparadas a sociedade contemporânea. No comunismo primitivo, o respeito à individualidade dava aos sujeitos alguma liberdade para ir e vir como preferissem, longe da ideia de que no comunismo primitivo todos são iguais e não existe espaço para a diferença. É perceptível, também, que o compromisso com os interesses coletivos era algo muito importante para os indivíduos que pertenciam a comunidade, muito mais do que simplesmente agir por contra própria sem pensar nas consequências. Até mesmo quando os indivíduos se separam do grupo e tentam agir de maneira independente, o fazem pensando no bem coletivo. Quando comparamos as comunidades primitivas em relação a sociedade capitalista, vemos uma clara distinção entre individualidade e individualismo. Os caçadores e coletores, longe de viverem em um ambiente social homogêneo, respeitavam a individualidade e a entendiam como algo positivo. Já no capitalismo a individualidade é exaltada em detrimento de outras individualidades que passam a ser marginalizadas e roubadas de seu protagonismo no meio social. A individualidade aqui se exacerba e se volta mais para o individualismo egoísta, que não carrega em si outra intenção senão o ganho pessoal, desinteressado pelo outro.
Leacock (in Engels 2012, p. 283-284) nos diz que para a superação desta sociedade é preciso investigar e estudar laboriosamente sobre a unidade econômica da família como base da opressão das mulheres, as possibilidades da eliminação da produção de mercadorias e a alienação das relações interpessoais que provém dela em nível tecnológico avançado, da superação da contradição entre cidade e campo sem a transformação do mundo em um grande subúrbio, e da eliminação do Estado. Infelizmente, a produção ainda é controlada por leis “cegas” que atuam com violência pura e simples. É preciso que entendamos, como Leacock mostra ao citar Engels, que quanto mais uma atividade social escapar ao controle consciente do homem, como se fosse mero fruto do acaso, mais as leis próprias deste mesmo acaso se manifestarão como necessidade natural.
Segundo Leacock (in Engels 2012, 284-289), para que humanidade sobreviva é necessário que os revolucionários dominem as leis sociais tanto nos países capitalistas e neocoloniais quanto nos países socialistas.
No que diz respeito ao caráter particular da opressão das mulheres pelos homens, Leacock (in Engels, p. 265-271) afirma que ela só ficará clara quando ambos possuírem direitos iguais legalmente. No entanto, a igualdade perante a lei, somente, não basta para solucionar o problema. Assim como na relação entre capitalista e trabalhador, a igualdade legal revela a especificidade da opressão econômica vivida pelas mulheres e é a partir desta igualdade legal que se nortearão as mudanças que precisam ser realizadas. A libertação das mulheres só virá com a reincorporação de todo o sexo feminino à indústria social, a supressão da família individual como unidade econômica da sociedade e o fim da propriedade privada.
As lutas das mulheres das classes trabalhadoras são sempre deslegitimadas. Entretanto, é preciso compreender que todas as relações opressoras estão interligadas e fazem parte de nosso sistema como um todo, mas também com relação a necessidade de um esforço conjunto para que a mudança real aconteça. Infelizmente, apesar de ser reconhecida a importância da articulação entre os diferentes movimentos que buscam reinvindicações específicas, não houve grandes avanços destas articulações em seu sentido prático. Não se construíram laços organizacionais entre os diferentes movimentos sociais. (LEACOCK, in Engels 2012, p. 270-271)
Além do mais, o aprofundamento teórico é extremamente necessário para avançar a luta das mulheres. Segundo Leacock (in Engels 2012, p. 283-284), a supremacia masculina e a arrogância de homens, inclusive daqueles dedicados à mudança revolucionária, ainda fomenta a atitude anti-homens de algumas mulheres do movimento feminista. A raiva provocada nos indivíduos oprimidos não deve ser utilizada de maneira imprudente, assim como também não nem devemos deixar que ela se dissipe, ela deve ser utilizada como combustível para um significativo avanço da organização em direção à emancipação. O aprofundamento do estudo das comunidades primitivas e sua organização social pode nos oferecer um pontapé inicial na busca por um horizonte de superação das limitações da ordem social vigente.
[1] Segundo Leacock (in Engels 2012, p. 278-283), a escravidão existiu em quase todas as sociedades. Ela foi a primeira forma de trabalho que não era livre. Nas comunidades primitivas, os prisioneiros de guerra eram escravizados e lhes eram atribuídas as tarefas mais onerosas. Eles podiam até mesmo serem mortos em rituais como sacrifícios. No entanto, é importante salientar que o trabalho escravo ainda não era parte mais significativa da produção, por isso, a produtividade do trabalho escravo só seria economicamente relevante quando houvesse excedente suficiente, para além do custo de sua reprodução, permitindo, assim, o surgimento de uma classe exploradora considerável a partir dele. Nas sociedades primevas, os descendentes de escravos não eram necessariamente escravos, eles podiam ser reconhecidos como autênticos membros do grupo. Os escravos inicialmente treinavam para serem trabalhadores especializados e artesãos. Seu padrão de vida estava acima daquele do camponês agricultor, e sua situação era diferente daquele em que se encontrava o escravo de bando. Entende-se que o termo escravidão engloba diferentes tipos de agrupamentos. Se compararmos o México central e a antiga Mesopotâmia, veremos que houve uma transição que trouxe o fim dos grupos de parentesco e do controle comunal da terra, e fez crescer a propriedade privada na mão de elites urbanas. As mulheres escravizadas na Mesopotâmia eram importantes na produção de lã ou fio. Vale salientar, que em algumas sociedades as relações comunais primitivas transformavam-se em relações feudais sem que houvesse uma fase na qual o escravismo fosse predominante. O trabalho escravo, seja ele proveniente da escravidão de prisioneiros de guerra ou escravidão por dívidas, era usado para produção de bens agrícolas e de luxo para o consumo da aristocracia ou para empreendimentos estatais.
[2] Leacock (in Engels 2012, p. 255) nos explica que as gens seriam uma organização clânica dos povos agricultores primitivos, nos quais as relações comunais de trabalho e distribuição de bens permaneceram mesmo naqueles grupos que se tornaram relativamente grandes e estáveis, chegando a ter de 25 a 40 pessoas vivendo juntas.
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