As mulheres viviam enclausuradas em preconceitos construídos socialmente. Às mulheres das classes mais favorecidas, não era permitido circular livremente na sociedade, ter formação escolar tal qual era ofertada aos homens, exercer profissões e até mesmo trabalhar no espaço público. “As opções para educação de mulheres se restringiam a alguns poucos conventos que guardavam as meninas para o casamento, raras escolas particulares nas casas das professoras, ou o ensino individualizado, todos se ocupando apenas das prendas domésticas” (ARRUDA, 2019, p. 31). Quanto às mulheres escravizadas e das classes proletárias, além de não terem acesso à educação e de não lhes ser permitido exercer profissões socialmente mais reconhecidas e vantajosas financeiramente, trabalhavam em atividades domésticas, nas lavouras, nas fábricas e no comércio, uma vez que a sociedade não abria mão dessa força de trabalho mais barata e, consequentemente, mais lucrativa para seus patrões e/ou senhores de escravos. Fica visível nessa divisão do uso dos corpos das mulheres, que as primeiras existiam para fornecer herdeiros que dariam continuidade às famílias socialmente privilegiadas, enquanto as outras, mulheres do povo, além de produzirem mão de obra, também significavam força de trabalho da qual a sociedade precisava economicamente e não abria mão.
A religião cristã, utilizando-se dos textos sagrados, incutiu no imaginário coletivo que as mulheres devem ser governadas, submissas e abnegadas, já que precisam renunciar a si mesmas e viver suas vidas e seus desejos em prol do outro. O destino das mulheres foi traçado com o objetivo de “cuidar” da família que constituiu por meio do casamento, promovendo a sobrevivência da espécie e repondo a mão de obra para o trabalho. Quando isso não acontecia, as mulheres eram vistas pela sociedade como incompletas, indignas, incapazes de cumprir o seu papel social, e isto culminava em perseguições e marcas sociais.
Os fundadores do cristianismo não viam as mulheres com bons olhos; seus discursos misóginos descreviam o corpo das mulheres como uma porta para o inferno. Os primeiros teólogos da igreja tinham as mulheres como a principal causa do pecado original. Seus escritos não questionam a ideia de que o primeiro homem poderia, se quisesse, ter recusado comer do fruto proibido. Coube à mulher esse peso. Os textos da época retrataram as mulheres como demônios da sedução, e por isso era preciso que elas fossem trancafiadas e vigiadas para não desencaminhar e levar os homens à ruína.
Entretanto, Carole Pateman (2020), observa que as raízes da opressão das mulheres estão inscritas na teoria do contrato sexual, segundo o qual a subordinação feminina está centrada no poder que os homens exercem sobre as mulheres. A autora cita que existem três tipos de contrato: contrato social, o contrato sexual e o contrato original. O primeiro refere-se à liberdade civil exercida pelos homens e que exclui as mulheres; o segundo refere-se à sujeição vivida pelas mulheres em relação aos homens; e no terceiro, que é a junção do contrato social com o contrato sexual, estão inscritas a liberdade do homem e a dominação da mulher. Esse contrato revela como o direito patriarcal dos homens sobre as mulheres foi criado. A “lei do direito sexual masculino”, criada com base no contrato original, dá aos homens direitos políticos e sexuais sobre os corpos das mulheres e sobre a prole. Neste contrato, o corpo da mulher é visto como um objeto, uma propriedade particular que o homem pode dispor como quiser.
Segundo essa visão, percebe-se que o controle do corpo da mulher tem como um dos objetivos a produção de herdeiros legítimos nascidos dentro da sociedade do casamento, visando à transmissão das riquezas acumuladas a partir do surgimento da propriedade privada, conforme Engels (2012).
Delumeau (2003) afirma que a concepção agostiniana de pecado original levou à misoginia. Para ele, o pecado, que começou pela mulher, mata a alma, privando-a da graça e arrasta assim o corpo na dor do pecado. Araújo (1997), confirma que nunca se perdia a oportunidade de lembrar às mulheres o terrível mito do Éden.
A mulher estava condenada, por definição, a pagar eternamente pelo erro de Eva, a primeira fêmea, que levou Adão ao pecado que tirou da humanidade futura a possibilidade de gozar da inocência paradisíaca. Já que a mulher partilhava da essência de Eva, tinha de ser permanentemente controlada (ARAÚJO, 1997, p. 46).
Primeiro através da religião, as mulheres foram consideradas culpadas por todos os males da humanidade. Perigosas como as serpentes deveriam ser mantidas presas e vigiadas, sem direitos, controladas e submetidas à moral dos homens. Para essa moral, ela era posse de um homem, tornando-se apenas um objeto no domínio masculino, conforme nos diz Foucault (2001): “Trata-se de uma moral dos homens [...]. Consequentemente, moral viril, onde as mulheres só́ aparecem a título de objetos ou no máximo como parceiras as quais convém formar, educar e vigiar, quando as tem sob seu poder [...]” (FOUCAULT, 2001, p. 23). Sua principal função era a perpetuação da raça humana. Ribeiro (2000, p. 82), confirma que as mulheres brancas no século XVI deveriam ser importadas de Portugal para o Brasil com o intuito de reprodução e fixação do padrão étnico europeu/branco. Segundo, Ribeiro, fica claro que não tinha importância a procedência social, a condição física e mental dessas mulheres; o que importava é que fossem meras reprodutoras dos filhos dos portugueses.
De acordo com Lerner (2019, p. 45), “quando o argumento religioso perdeu força, a explicação tradicionalista da inferioridade das mulheres tornou-se “científica”. As teorias Darwinistas reforçaram as crenças de que a sobrevivência da espécie era mais importante do que a autorrealização”. Propagava-se a inferioridade da mulher em relação ao homem, observando aspectos físicos e biológicos. Pregava-se que a mulher era um ser mal acabado, deficiente, incapaz de aprender. Em suma, por serem “deficientes”, nunca assumiriam a maioridade, e precisavam ser conduzidas sempre por homens tais como: seu pai, marido, irmãos, tios, cunhados, etc.
Teorias cientificas, como por exemplo a da Frenologia, segundo Souza (2012), justificavam por meio do estudo do tamanho e do peso do cérebro a incapacidade intelectual da mulher e das pessoas não brancas. Corroborando com essa ideia, outros defensores científicos do patriarcado afirmavam que a
definição de mulheres era justificada pelo papel materno e pela exclusão de oportunidades econômicas e educacionais como algo necessário para a sobrevivência da espécie. Era por causa da constituição biológica e da função materna que as mulheres eram consideradas inadequadas para educação superior e muitas atividades vocacionais. Menstruação, menopausa e até gravidez eram vistas como debilitantes, doenças ou condições anormais, que incapacitavam as mulheres e as tornavam de fato inferiores (LERNAR, 2019, p. 45).
Segundo Lernar (2019, p. 45), a psicologia, através da máxima Freudiana de que, para as mulheres “a anatomia é o destino”, também colaborou para que se determinasse o destino biológico da mulher, reforçando os papéis de gênero predominantes e justificando a dominação masculina. Ainda, segundo ela, de acordo com a visão falaciosa da sociobiologia, “os grupos que praticam a divisão sexual do trabalho têm vantagens evolutivas e que de algum modo tornam-se parte da nossa herança genética” (LERNAR, 2019, p. 45-46). Como se pode notar, esses discursos justificaram a condição da mulher como presa de sua espécie e, consequentemente, sua subjugação pelo homem estaria escrita no código genético. A intenção parece querer colocar um ponto final nesse assunto, já que, se está inscrito no gene não há como fugir disso.
Partindo disso, o interesse pela pesquisa em tela surgiu a partir das leituras realizadas durante as aulas ministradas na disciplina Fundamentos em Educação II, no curso de Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. A partir das leituras e discussões das obras: A Didática Magna ou como outros a conhecem Tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo a Todos (publicado por Jan Amos Komensky ou Comenius em 1649), Cinco Memorias sobre Instrução Pública (publicado pelo Marquês de Condorcet em 1791) e Emílio ou Da Educação (publicado por Jean Jacques Rousseau em 1792), foi possível perceber as nuances nas ideias desses autores sobre a educação das mulheres, seus objetivos e visões de mundo.
O presente artigo pretende identificar e refletir como a educação feminina foi proposta a partir dos discursos produzidos por esses autores, levando em consideração seus tempos históricos e a sociedade na qual estavam inseridos. O texto que se inicia é fruto de uma primeira abordagem de pesquisa do tipo qualitativa exploratória. A metodologia partiu da leitura dos textos desses autores com o intuito de levantar suas principais concepções e propostas acerca da educação das mulheres.
EDUCAÇÃO PARA OS OFÍCIOS ELEVADOS
Mesmo aqueles que, aos olhos de seus contemporâneos propuseram ideias progressistas, trouxeram consigo valores patriarcais e machistas em relação às mulheres. Exemplo disso é o Tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo a Todos denominado também de Didática Magna, escrito por Comenius no século XVII, que traz em seu bojo uma inovação no que tange à educação, especialmente a feminina. É contextualizado num tempo em que a esmagadora maioria das mulheres era analfabeta e vivia trancafiada em casa, sem nenhum direito, como comprovam esses dois provérbios populares: “uma mulher digna só saía de casa em três oportunidades: para ser batizada, para se casar e para ser enterrada”. Outro dizia que “o melhor livro é a almofada e o bastidor” (VESSONI, 2019, p. 38).
Comenius defendia a educação para todos/as, um protótipo, um primeiro tronco, do que poderíamos nominar de Educação Popular. Ele propôs que o ensino fosse ofertado de forma universal por meio de professores qualificados, que deveriam seguir seu método de ensino. Ele defendia que o ensino deveria ser realizado nas escolas comuns e que essas deveriam ser construídas e mantidas pela autoridade pública (reis, príncipes ou repúblicas).
Essa proposta de educação defendida por Comenius foi muito progressista para o seu tempo histórico, contexto social e cultural por dois motivos. Primeiro, porque era uma ideia embrionária de financiamento público para a educação, em um contexto em que somente os filhos dos ricos tinham acesso à educação. Esta, quando acontecia, se dava em casa por meio de preceptores, professores particulares ou em irmandades religiosas.
Segundo, porque pretendia ensinar tudo a todos, independentemente de classe ou sexo de nascimento. Para esse autor: “Toda a Juventude de ambos os sexos deve ser enviada às escolas”, não apenas os filhos dos ricos ou dos cidadãos principais, mas todos por igual, nobres e plebeus, ricos e pobres, rapazes e raparigas, em todas as cidades, aldeias e casais isolados” (COMENIUS, 2001, p. 38). Comenius entendia que de posse dos conhecimentos fundamentais adquiridos os atores sociais podiam desenvolver suas verdadeiras vocações. Ele via na educação um meio de moldar os costumes e os comportamentos para desfrutar de uma vida plena na Terra e depois da morte no céu.
O texto de Comenius nos mostra que em relação ao direito de acesso à educação, ele via as mulheres com os mesmos direitos e capacidades cognitivas que os homens. Segundo ele, as mulheres também tinham o direito à educação por serem filhas de Deus, e como os homens, são imagem e semelhança dele,
igualmente participantes da graça e reino dos céus, igualmente sabedoria (muitas vezes até mais que o nosso sexo), igualmente para elas está aberto o caminho dos ofícios elevados; uma vez que, frequentemente, são chamadas pelo próprio Deus para o governo dos povos, para dar salutares conselhos a reis e a príncipes, para exercer a medicina e outras artes salutares ao gênero humano, para pronunciar profecias e exprobar sacerdotes e bispos (COMENIUS, 2001, p. 39).
Nessa passagem, fica claro que é garantido à mulher ter acesso à educação, para que execute melhor os chamados ofícios elevados, e para viver uma vida voltada para fé, para a maternidade e para os cuidados com a família, exercendo o papel de esposa e mãe. Usando o termo “sexo frágil” em relação à educação das mulheres ele faz uma ressalva dizendo:
(...) pois é nossa opinião que as mulheres sejam instruídas, não para a curiosidade, mas para a honestidade e para a beatitude. Sobretudo naquelas coisas que a elas importa saber e que podem contribuir quer para administrar dignamente a vida familiar, quer para promover a sua própria salvação, a do marido, dos filhos e de toda a família (COMENIUS, 2001, p. 39).
A educação pensada por Comenius para as mulheres serve para controlar e manipular seus pensamentos e, consequentemente, seu comportamento, evitando que fiquem ociosas e tenham pensamentos pecaminosos, ou seja, é uma forma de controlar a sexualidade da mulher e sua forma de ver o mundo pelas lentes da religião, nesse caso, o protestantismo seguido por ele. Nesta passagem do texto suas intenções ficam claras: “Temos medo que cometam temeridades? Mas quanto mais lhes tivermos ocupado o pensamento, tanto menor lugar encontrará a temeridade, a qual, normalmente, é originada pela desocupação da mente” (COMENIUS, 2001, p. 39). Mais adiante ele aconselha que não seja ofertado todo tipo de livros, somente aqueles que levam ao “conhecimento verdadeiro de Deus”:
Todavia, com que precaução? Todavia, de tal maneira que lhes não seja dado como alimento toda a espécie de livros (do mesmo modo que à juventude de outro sexo; sendo deplorável que, até aqui, este mal não tenha sido evitado com maior precaução), mas livros nos quais possam haurir constantemente, com o verdadeiro conhecimento de Deus e das suas obras, verdadeiras virtudes e a verdadeira piedade (COMENIUS, 2001, p. 39).
O comportamento perpassado na sociedade cristã e ratificado no tipo de educação pensado por Comenius para as mulheres reflete uma mulher temente a Deus, que educa seus filhos e filhas no caminho da fé e honra seu marido com um comportamento fiel e dedicado. Uma mulher que vive e se prepara para salvação eterna dela e de sua família. Esse comportamento determina qual mulher é respeitável ou não socialmente, quais papéis ela pode ou não desenvolver na sociedade, determinados por um discurso essencialista que aponta o sexo biológico como demarcador das ações e espaços que a mulher pode ocupar dentro do grupo social.
Apesar de apresentar ideias progressista para época, o texto de Comenius retrata o medo de perder o controle sobre o corpo da mulher e, consequentemente, sobre a sua sexualidade limitando, portanto, o que ela deve ler e aprender. Contudo, é preciso reconhecer que suas ideias trouxeram, como efeito colateral, a possibilidade de as mulheres entrarem para o mundo dos letrados, permitindo o contato, ainda que proibido, de pensamentos e valores que, mais tarde, culminaram com o movimento feminista, a partir do turbilhão de ideias presentes na Revolução Francesa.
Pautada em torno dos interesses burgueses econômicos, a Revolução Francesa foi deflagrada em 1789. Apesar da existência de alguns pensadores que abordaram as questões femininas, esse movimento foi engendrado por homens, para manter seus direitos e privilégios sociais em relação à aristocracia e, consequentemente, em relação às mulheres. Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade serviram para facilitar suas transações econômicas e ascensão ao poder social. A liberdade partia da ideia de que o comércio só pode se desenvolver em uma sociedade de pessoas livres, que possam realizar transações econômicas. Ademais, sem indivíduos livres que recebessem por seu trabalho, não poderia existir um amplo mercado consumidor que possibilitasse o acúmulo de capital, por isso a defesa do fim da escravidão. A igualdade pensada por eles era, em termos jurídicos, para facilitar a compra e venda de seus produtos, já que todas as desigualdades sociais entre compradores e vendedores não são essenciais, o que importava era a igualdade jurídica dos participantes do ato comercial. Todos eram considerados cidadãos, embora com diferentes situações econômicas. Além disso, o comércio só seria possível com quem detivesse propriedades de bens e capitais, e que pudesse dispor deles, por isso a defesa da propriedade privada tão essencial à sociedade capitalista. Da mesma maneira, para a realização do comércio, pouco importavam as convicções religiosas, por isso o estado deveria ser laico.
Esses ideais defendidos pela burguesia conduziram a esperança de que todos teriam os mesmos direitos, exerceriam sua liberdade de forma universal e que o progresso humano, advindo da razão, da ciência e da tecnologia, beneficiaria a todos/as igualmente. Contudo, o que se viu foi a exploração do trabalho no contexto do capitalismo industrial, e as mulheres continuaram sem exercer sua liberdade de ir e vir, de ter propriedades, de ter a guarda dos filhos, já que estes pertenciam aos pais, em virtude do pátrio poder que era considerado natural. Os homens, por meio do contrato sexual, continuavam proprietários das mulheres e de seus descendentes.
ROUSSEAU E A EDUCAÇÃO DO “SEXO FRÁGIL”
Devemos ter em mente que o iluminismo não tinha em suas raízes ideias feministas, e que Jean Jaques Rousseau pensava como a maioria dos iluministas em relação à educação que deveria ser dada às mulheres. Em seu tratado de educação em forma de romance, Emílio, ou Da Educação, Rousseau descreve, no capítulo V, como deve ser a educação ofertada ao sexo frágil, e tece comentários revoltantes pensados para os padrões atuais. Percebe-se, a partir da leitura da obra, que a educação pensada para as mulheres por Rousseau é uma educação doméstica, passada de mãe para filha, a partir de concepções patriarcais de submissão feminina, com conhecimentos elementares que servem para o exercício do matrimônio e da maternidade.
Ao afirmar que “Sofia deve ser mulher, como Emílio é homem” (ROUSSEAU, 2014, p. 515), Rousseau estabelece o lugar de cada um na sociedade desde comportamentos a atitudes. Ele compreende que homens e mulheres são diferentes em tudo o que depende do sexo. Tais diferenças são pensadas por ele a partir de aspectos físicos e biológicos que acabam por criar papéis sociais diferentes para ambos os sexos. Esses papéis sociais ditam os comportamentos e valores esperados por cada sexo e, por consequência, estabelecem diferenças na educação de homens e mulheres: uma voltada para o espaço público e outra para o espaço privado do lar.
Uma vez que se demonstrou que o homem e a mulher não são nem devem ser constituídos da mesma maneira, nem quanto ao caráter, nem quanto ao temperamento, segue-se que não devem ter a mesma educação. Seguindo as direções da natureza, devem agir de concerto, mas não devem fazer das mesmas coisas; o fim do trabalho é comum, os trabalhos são diferentes e, por conseguinte, os gostos que os dirigem. Depois de procurar formar o homem natural, vejamos como devemos formar-se também essa mulher que convém a esse homem (ROUSSEAU, 2014, p. 524).
Ao afirmar que “o fim do trabalho é comum, mas que os trabalhos são diferentes” ele demonstra reconhecer que os dois sexos desenvolvem trabalhos úteis para a sociedade: um voltado para o espaço público remunerado e o outro voltado para o espaço privado reprodutivo. Esta divisão de tarefas e papéis sociais entre os sexos denomina-se divisão sexual do trabalho, e visa a reprodução de seres humanos com dois objetivos: primeiro dar continuidade a espécie humana e, segundo repor a mão de obra para o capital, possibilitando o funcionando da estrutura social e do lucro, segundo Biroli (2016),
A distinção entre trabalho remunerado e não remunerado é colocada, assim, no cerne das formas de exploração características do sistema patriarcal no mundo capitalista. O trabalho que as mulheres fornecem gratuitamente como aquele que está envolvido na criação dos filhos e no cotidiano das atividades domésticas, libera os homens para que se engajem no trabalho remunerado. São elas apenas que fornecem esse tipo de trabalho gratuitamente, e sua gratuidade se define numa relação, o casamento. É nele que o trabalho gratuito das mulheres pode ser caracterizado como não produtivo (BIROLI, 2016, p. 726).
Nessa concepção, os homens devem ser os provedores e as mulheres as cuidadoras do lar, dos filhos e da paz conjugal, de modo que a educação de cada um ofereça ferramentas para que desenvolvam com maestria suas funções sociais em uma nova sociedade voltada para formação do “cidadão” do sexo masculino. Este sim será formado para exercer sua maioridade social, gozando de todos os direitos e privilégios.
Aqui reside uma diferença entre as ideias de Rousseau e Comenius: se para o primeiro a educação deve preparar o indivíduo para fazer prevalecer nos seus comportamentos as exigências racionais da vida em sociedade exercendo sua cidadania, para o segundo a formação do Homem é para a vida eterna, porque este é espírito destinado à imortalidade; desta forma, seu aprendizado visa contribuir para que ele evolua rumo à perfeição espiritual e intelectual que o conduzam para o Criador.
Em seu texto, Rousseau (2014) afirma ser um princípio que: “toda educação das mulheres deve ser relativa aos homens”, ou seja, a educação ofertada às mulheres, desde a infância, deve ser para prepará-las paras seus deveres de mãe e esposa servil e fiel, procurando agradar, apoiar e servir ao homem através de sua doçura, seu amor, conselhos, cuidados e consolo, quando for necessário (Rousseau, 2014, p. 527). Para Rousseau, uma boa esposa contribui para um ambiente familiar feliz, mostrando ao marido que os prazeres domésticos compensam os prazeres públicos (Rousseau, 2014, p. 543).
Ele indica como lugar ideal para educação física feminina “os conventos, onde as pensionistas têm uma alimentação grosseira, mas também muitas diversões, corridas, jogos ao ar livre e nos jardins são preferíveis à casa paterna”. Esta, segundo ele, demonstra não proporcionar exercícios físicos e alimentação adequados ao desenvolvimento saudável dos corpos femininos. Em contraposição à educação nos conventos, a educação nos lares mostrava-se como extremamente severa: “a menina [...] sempre mimada ou repreendida, sempre sentada sob as vistas da mãe em um recinto bem fechado, não ousa levantar-se, nem andar, nem falar, nem murmurar [...]” (ROUSSEAU, 2014, p. 529).
Além da educação física feminina, Rousseau (2014) orienta a aprendizagem de atividades manuais como a costura, o bordado e as rendas, pois esses aprendizados vêm por si mesmos, a partir do interesse que elas têm em um dia se enfeitarem. Este aprendizado culmina com a aprendizagem do desenho (de folhagens, frutas, flores e roupagens) para a tapeçaria. Outros saberes como a música e a dança também são pertinentes. Mais um componente presente na educação das meninas é a leitura, contudo, segundo ele, aprendem com relutância. A utilidade da aprendizagem da leitura e da escrita se limita à administração de sua casa, ou seja, a condução das atividades domésticas. Entretanto, o autor recomenda que, antes de tudo, as meninas devem aprender a fazer contas, pois nada tem mais utilidade visível, uma vez que, evita erros na economia doméstica (ROUSSEAU, 2014, p. 533).
Rousseau propõe que “toda menina, sem exceção, deve estar sujeita à religião de sua mãe e, posteriormente, à do seu marido” (ROUSSEAU, 2014, p. 547), e que o ensino religioso deve se dar pelo exemplo e pela imitação e não pelo catecismo. Para ele, mais importante que conhecer os dogmas, é saber que Deus se revela por meio das suas obras e é por meio dos seus feitos que o conhecemos, e nem mesmo assim o conheceremos plenamente. A menina aprenderá que está sempre sob as vistas de Deus. Ele não só será a testemunha dos seus atos, mas dos seus pensamentos, da sua virtude e dos seus prazeres. (ROUSSEAU, 2014, p. 555).
Ainda faz parte da educação feminina pensada por Rousseau (2014) o domínio que a mulher deve ter de si mesma, por meio do controle de suas emoções. Essas atividades são pensadas como forma de disciplinar o comportamento feminino a partir de padrões patriarcais vigentes, uma vez que, uma mulher dócil e obediente é mais fácil de ser dirigida e controlada pelos interesses masculinos.
Devemos treiná-las primeiros para as coisas obrigatórias, para que nunca lhes custem; devemos ensiná-las a domar todas as suas fantasias para submetê-las a vontade de outrem. Se quisessem trabalhar sempre, deveríamos forçá-las a nada fazer. A dissipação, a frivolidade, a inconstância são os defeitos que nascem facilmente de seus primeiros gostos corrompidos e sempre satisfeitos. Para prevenir esse defeito ensinai-as principalmente a vencerem a si mesmas. Em nossas loucas instituições, a vida da mulher de bem é uma luta perpétua contra si mesma e é justo que a mulher compartilhe o sofrimento pelos males que nos causou (ROUSSEAU, 2014, p. 534).
Vários autores/as, entre eles John Stuart Mill (2017) e Foucault (1996, 2001, 2008), têm demonstrado em suas obras o quanto a moral burguesa visava enclausurar as mulheres no espaço privado do lar, inibindo suas criatividades e inviabilizando seus direitos de viverem suas próprias vidas como desejassem. Mill (2017), demonstrou em seu texto, A sujeição das Mulheres, que os homens querem mais das mulheres do que apenas dominar seus corpos pela força, eles querem dominar a mente das mulheres através dos sentimentos, eles objetivam ter uma escrava voluntária e para isso eles se valem da educação perpassada pela família e pela religião para perpetuar a cultura da dominação. Essas duas instituições são responsáveis inicialmente pela construção das condutas de comportamentos e dos papeis sociais baseados no sexo de nascimento. Elas levam as mulheres à crença de que
o ideal de seu caráter é exatamente o oposto do ideal do homem; nem vontade própria, nem governo por autocontrole, mas submissão e rendição ao controle de outros. Todos os conceitos morais lhes informam que é dever das mulheres, com todo o sentimentalismo corrente que é de sua natureza, viver para os outros; abdicar completamente de si mesmas, e não ter uma vida a não ser em suas afeições. [...] Quando juntamos três coisas — primeiro, a atração natural entre sexos opostos; segundo, a total dependência de uma mulher a seu marido, sendo que todo privilégio ou prazer desfrutados por ela sejam considerados presentes dele, ou atos dependentes inteiramente de sua vontade; e por fim, que o principal objetivo do empenho humano, a consideração, e todos os objetos de ambição social geralmente só possam ser buscados ou obtidos por ela por intermédio dele —, seria um milagre que o objetivo principal de ser atraente para um homem não se tornasse o norte da educação feminina e da formação de seu caráter. E, uma vez assimilado esse grande agente de influência na mentalidade das mulheres, um instinto egoísta fez os homens se valerem disso a um limite extremo, como meio de manter as mulheres sob sujeição, ao lhes venderem a ideia de que a docilidade, a submissão e a resignação de toda a vontade individual da mulher aos desígnios do homem é parte essencial da atratividade sexual (MILL, 2017, p. 243-244).
Esse comportamento social é explicitado por Foucault a partir do conceito de governamentalização dos indivíduos. De acordo com ele, o que se propôs a chamar de governamentalidade é a maneira como a sociedade, por meio das relações de poder, regula a conduta dos indivíduos a partir de ideais de comportamentos, atitudes e valores de um determinado grupo dominante, ou seja, a partir de uma visão de mundo totalizante que se autodenomina como “verdadeira”. Em seu texto, Foucault (2008, p. 258), chama a atenção para a condução da conduta dos loucos, dos doentes, dos delinquentes, das crianças e a esses acrescentamos as mulheres, que durante anos foram consideradas imbecilitus sexus.
Segundo Foucault, essa forma de regular a conduta dos indivíduos se dá por meio de técnicas tácitas sendo uma delas a disciplina, que é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras (FOUCAULT, 1996, p. 36). Isso acontece através da construção de “verdades universais”, “verdades” estas propagadas pelos diversos discursos que circulam na sociedade. Esses discursos visam legitimar o lugar de quem manda ou obedece, de quem é lúcido ou louco, de quem é respeitável ou não, de quem tem ou não autonomia e maioridade para conduzir suas vidas. Eles se propagam através dos processos de socialização: primária (realizada através da família e da interação social que corre pelo caminho da informalidade e corresponde ao mundo da vida cotidiana), secundária ou socialização formal que (acontece através da escola, das instituições, e do mundo do trabalho) e atualmente a terciária que ocorre através dos diferentes meios de comunicações: rádio, televisão, cinema, jogos eletrônicos, redes sociais entre outros (MEJÍA, 2018, p. 77-79).
INSTRUÇÃO PÚBLICA PARA HOMENS E MULHERES
A educação pensada a partir do século das luzes conduz à autonomia pela razão e ao progresso do indivíduo e de seu coletivo. O projeto pedagógico da modernidade tem como meta um sujeito que age conforme a razão e, por meio da educação, desenvolve a inteligência, racionaliza a vontade e se converte em cidadão por meio da inserção no mundo do trabalho. Pela educação, o sujeito pode sair da menoridade na qual se encontra. Kant (1974), afirma que “Aufkärung (esclarecimento) é a saída do homem de sua menoridade da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso do seu entendimento sem a direção de outro individuo”. Fazer uso da maioridade é ter coragem de pensar por si mesmo, assumir o entendimento de si próprio e do mundo, sem o controle e a direção de outrem. Para este esclarecimento, porém, nada mais se exige senão a liberdade. O princípio da liberdade deve partir da consciência da obrigação moral que é motivada pelo sentimento de respeito a si mesmo, a outrem e às leis sociais. O sujeito que faz uso de sua maioridade não se deixa levar pelos pensamentos alheios, ele compreende que o seu direito termina quando começa o do outro. Ele é senhor dos seus passos e, apesar de muitas vezes não concordar com algumas leis sociais, ele as cumpre porque sabe obedecer, mas isso não quer dizer que enquanto cidadão ele não as critique.
É nesse contexto que Condorcet insere seu projeto de Instrução pública, um projeto que confere ao Homem a capacidade da crítica, desenvolve a estrutura curricular escolar, como deveria ser a qualificação dos professores, os diferentes níveis das instituições educacionais, os conceitos de didática, os objetivos a atingir em tais aplicações, e, como herdeiro dos iluministas, faz críticas aos jesuítas e propõe a laicidade do ensino.
A educação pensada por Condorcet é semelhante a educação pensada por Comenius no que tange ao direito de todos/as terem acesso ao ensino por meio de uma educação pública e na defesa que os dois sexos têm as mesmas capacidades cognitivas, e em algumas áreas das ciências as mulheres têm mais acuidade que os homens. Contudo, diverge em muitos pontos da educação pensada por Rousseau, principalmente, quando propõe que a instrução pública seja ofertada igualmente nas mesmas escolas e salas de aula para os dois sexos, independente da classe social, garantindo que homens e mulheres tivessem os mesmos graus de ensino e conteúdos escolares. Para Condorcet, uma instrução limitada às mulheres com base em justificativas biológicas, segundo ele, consagra os preceitos da ignorância e a tirania da força (CONDORCET, 2008, p. 172). Além disso, seu incentivo a instrução pública para os dois sexos, era baseado em questões estruturais e econômicas, já que, para ele, seria muito caro manter duas escolas no mesmo vilarejo e encontrar mão de obra suficiente de um único sexo para lecionar (CONDORCET, 2008, p. 61). Percebe-se, nesta atitude, a presença dos interesses do capital, pois, para produzir e lucrar mais, o capital precisa de mão de obra qualificada, independentemente de ser homem ou mulher, e essa qualificação que vem por meio da educação não pode ser onerosa aos interesses do mercado.
Apesar de defender a educação feminina e admitir a possibilidade de a mulher ter uma profissão, observa-se, na passagem do texto abaixo, que o autor limita as profissões em que a mulher pode ou não atuar e, consequentemente, acaba por limitar sua inserção na instrução que leva às profissões destinadas apenas aos homens, comprovando-se aqui a divisão social e sexual do trabalho. Também é visível, nessa passagem do texto, o poder que as famílias, no caso o pai, exercem sobre a vida das mulheres, uma vez que, são eles que decidem se elas podem ou não ter acesso aos graus superiores.
Com efeito, como toda instrução se limita a expor as verdades, a desenvolver suas provas, não se vê como diferença dos sexos exigiria uma diferença na escolha das verdades ou na maneira de prová-las. Se o sistema de instrução comum – que tem como finalidade ensinar indivíduos da espécie humana o que lhes é necessário saber para cumprir seus deveres – parece por mais amplo para as mulheres, que não são chamadas a nenhuma função política, pode-se limitar seu acesso aos primeiros graus, mas sem proibir que as que tiverem disposições mais felizes e cujas famílias as quiserem tornar cultas possam ter acesso aos outros graus. Se há uma profissão que seja reservada exclusivamente aos homens, as mulheres não seriam admitidas à instrução particular exigida por essa mesma profissão. No entanto, seria absurdo excluí-las daquela instrução que tem por finalidade as profissões que elas devem exercer (CONDORCET, 2008, p. 57).
Quanto ao exercício de profissões pelas mulheres, segundo Condorcet, cabem-lhes a docência e a arte de curar, ambas inserindo-as no campo do cuidado com o outro. Diferentemente do texto dos outros autores, o texto desse autor, constrói argumentos que justificam na sociedade a utilização da mão de obra da mulher. De acordo com o que ele sugere “uma nação não pode ter uma instrução pública se as mulheres não podem cumprir os deveres de professoras domésticas”. Ele afirma que não se pode dispensar a mulher no exercício da docência por dois motivos: primeiro porque elas são metade da população e a instrução pública precisa de muita mão de obra; segundo porque está função demanda de pessoas que têm uma vida sedentária e que se enquadra bem com a constituição física do sexo feminino (CONDORCET, 2008, p. 172). Está explícito a ideia de que existem trabalhos mais propícios a mulher em virtude de sua força física e de compatibilização com seu papel de esposa e mãe de família, trabalhos indispensáveis ao funcionamento da sociedade e que esta não pode dispensar.
A outra profissão que é permitida as mulheres, segundo Condorcet (2008), é a arte de curar, ou seja, o exercício da medicina que a essa época ainda não era considerada uma ciência. De acordo com ele, “a arte de curar é uma das atividades nas quais a instrução deve ser comum aos dois sexos”. Para justificar a presença das mulheres nessa arte, Condorcet (2008), usa três argumentos: o primeiro se refere ao fato que as mulheres já desenvolviam há séculos essa arte, realizando partos, pequenas cirurgias e cuidando de doentes, ou seja, já detinham um saber passado por gerações. A partir disso, ele defende que essas mulheres recebam instrução para desempenhar melhor suas atividades no cuidado das crianças e das mulheres, e para que possam, nos casos das mais pobres, obter recursos para sua própria subsistência.
O segundo argumento, destaca que não se podia negar a contribuição das mulheres nessa atividade, e a necessidade de sua mão de obra frente à escassez de médicos que pudessem atender a todos , principalmente à população pobre, que não possuía recursos suficientes para pagar os honorários de um médico. Isso mostra que, assim como na docência, mais uma vez a sociedade não podia se dar o luxo de dispensar a mão de obra feminina.
O terceiro argumento é construído a partir da ideia de que as mulheres possuem características próprias do seu sexo (doçura, sensibilidade e paciência) o que facilitaria o exercício da atividade de curar (CONDORCET, 2008, p. 223-224). Isso reforça a ideia, ainda hoje vigente, de que às mulheres cabem os cuidados com o outro. Pois segundo Mill (2017, p. 244), os conceitos morais vigentes na sociedade pregam que as mulheres nasceram com a missão de cuidar dos outros e para isso anulam-se completamente de si mesmas em função dos outros, daqueles de sua família principalmente.
A instrução pública pensada por Condorcet teria como finalidade livrar as educandas da tirania e oferecer subsídios para que possam pensar por si mesmas (CONDORCET, 2008, p. 54). Contudo, essa ideia de pensar por si mesma parece contraditória, pois a mulher não exerce sua liberdade completamente, já que precisa do consentimento de outro para realizar-se, de onde se depreende que a mulher é proibida de exercer sua maioridade.
Percebe-se, a partir das ideias de Condorcet, que a inclusão das mulheres na instrução pública tem como objetivo também formar esposas que possam compartilhar do mesmo nível educacional que seus maridos, para ajudá-los a conservar os benefícios da educação que receberam no passado, além de permitir a ela acompanhar a vida escolar dos/as filhos/as que frequentam a instrução pública, promovendo o reforço dos conhecimentos não apreendidos. Nesta questão, Condorcet reforça que é da mãe essa obrigação, visto que ela é a responsável pelos cuidados com a família, uma vez que, o pai se dedica ao trabalho no espaço fora do lar. (CONDORCET, 2008, p. 58-59). Segundo Biroli (2016), essa forma de organização social “atribuiu coletivamente a responsabilidade pelas crianças às mulheres, e liberou coletivamente os homens dessa mesma responsabilidade, isto é, a apropriação do trabalho de uma mulher por seu marido” (BIROLI, 2016, p. 726).
Apesar disso, a instrução pública pensada por Condorcet é relevante porque assim como Comenius institui a escola como lugar de saber. Além de recusar boa parte do discurso moralista de Rousseau, ao propor uma escola mista com iguais condições de acesso e aprendizagem para meninos e meninas, defendendo que as mulheres tinham as mesmas capacidades cognitivas que os homens, inclusive para a aprendizagem das ciências. Ele defendeu a dedicação da mulher a estas, desde que tenham disposições. Condorcet também exigia o voto feminino, combatia veementemente a discriminação religiosa, exigia uma educação laica e o fim da escravidão nas colônias. Ele acreditava que os impedimentos quanto a essas reivindicações representava um atraso para o progresso do Homem e da sociedade.
Ao defender que as mulheres têm as mesmas condições de aprender e que devem acessar a instrução pública, possibilitou às mesmas adquirir conhecimentos, adentrar o espaço público primeiro pela escola, e, depois, através de uma profissão. O acesso à leitura e escrita permitiu o desenvolvimento da criticidade e da tomada de consciência sobre a condição social em que viviam as mulheres. Esses acontecimentos, somados a outras questões sociais que vinham acontecendo, levaram ao surgimento do movimento feminista. Esse movimento das mulheres surgiu inicialmente na Europa, durante a Revolução Francesa, no século XVIII, época em que as mulheres travaram verdadeiras batalhas em busca da cidadania feminina. Costa (1998), define o feminismo como
a consciência adquirida sobre a situação de subalternidade da mulher na sociedade, bem como da necessidade de se estabelecerem iniciativas políticas para modificar essa situação. Assim, a categoria “feminismo” refere-se a uma doutrina e/ou a um movimento social voltado para a transformação da situação da mulher na sociedade (COSTA, 1998, p. 23).
Segundo Miguel (2014), a contribuição do feminismo é crucial porque recusa as desigualdades binárias entre os sexos, denuncia a situação das mulheres como efeito de padrões de opressão; além disso, o feminismo faz uma crítica à sociedade, que reproduz as diferenças e impede a ação autônoma de muitos de seus integrantes. Ele acrescenta que “[...] como corrente intelectual, em suas várias vertentes combina militância pela igualdade de gênero com a investigação relativa às causas dos mecanismos de reprodução da dominação masculina” (MIGUEL, 2014, p.16).
Os três autores estudados nesta pesquisa foram importantes para a reflexão de como a educação feminina foi proposta na época em que viveram. Os resultados da pesquisa apontaram, que dentro de seus contextos históricos, sociais e culturais, os três autores têm como ponto em comum, a compreensão de que a missão da mulher é a maternidade, o cuidado da família e a educação dos filhos. Contudo, dos três autores, Condorcet, é o mais progressista quanto à educação feminina, e que, apesar de reproduzir ideias essencialistas, contribuiu para a emancipação da mulher na sociedade.
A partir do estudo dos filósofos apresentados neste artigo, fica claro como o patriarcalismo e o capitalismo vêm agindo nos últimos séculos. Inicialmente, trataram de aprisionar as mulheres em casa a partir de discursos criados por homens, de que as mulheres são incapazes de gerir sozinhas suas próprias vidas. Isso possibilitou ao homem se apropriar do corpo da mulher e do trabalho doméstico desenvolvido por ela. Como não são capazes de gerir a própria vida, mulheres também não são capazes de educar os filhos do sexo masculino, entregando a outros, no caso aos homens, essa responsabilidade. A partir do momento que isso não é mais rentável, o capital passa, por exemplo, a dispor, no espaço público, da mão de obra mais barata das mulheres: passa a pregar que a mulher é o ser ideal para promover a educação dos filhos/as, usando como justificativa para tal empreitada os dons femininos.
No século XXI o capitalismo está cada vez mais sútil e agressivo ao criar outras formas de exploração e opressão das mulheres. Cada vez mais, através da mídia, o capitalismo revestido de outra forma de exploração vem se apropriando de pautas feministas, propagando o fim da violência contra a mulher, denunciando as formas de exploração e opressão das mulheres pelos homens, enaltecendo o empoderamento da mulher, etc. Essa nova forma de exploração está sendo implementada em nossa sociedade através do conceito “empresárias de si” termo defendido por Rago (2018). Segundo essa autora, o capitalismo se apropria das pautas feministas valorizando e impondo como símbolo de uma nova autonomia feminista a figura da “empresária de si”, capazes de investir em seu capital humano, elevar sua produtividade e gerar renda no jogo concorrencial artificialmente criado pelo Estado.
Essa nova mulher, criada em nome da realização e sucesso pessoal, investe pesado na sua formação, ocupa cargos em ascensão ou cargos importantes em grandes empresas privadas ou públicas e, movida por uma fome de poder e realização, deixa-se escravizar pelo capitalismo. Acreditando que está contribuindo para sua autonomia e liberdade, está cada vez mais presa na teia da exploração. Em busca de conquistar seu lugar ao sol e provar que é tão boa ou melhor que os homens, trabalha cada vez mais, se cobra e culpa todo o tempo, renuncia a vida particular, os momentos de descanso, afasta-se das pessoas que ama: amigos e familiares. Quando casada, além de desenvolver o trabalho produtivo no espaço público, precisa conciliá-lo com o trabalho reprodutivo, do qual a sociedade se beneficia, mas não valoriza. De acordo com Biroli (2016), o patriarcado público continua a produzir opressão e o controle das mulheres, porém, de forma transformada, utilizando a inclusão como pano de fundo. A expropriação do trabalho das mulheres se dá agora de forma mais coletiva do que individual, e a casa, que continuaria a ser um espaço de opressão, não seria mais o principal lugar em que transcorrem as vidas das mulheres. Estado e mercado de trabalho passariam a ser as dimensões em que os constrangimentos se organizam e se institucionalizam (BIROLI, 2016, p. 728).
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