Metadados do trabalho

Justiça Restaurativa E A Educação Escolar No Brasil: Um Estado Do Conhecimento

Julia Maria da Silva Oliveira; Lécia Nájla dos Santos Melo

A Justiça Restaurativa (JR) é compreendida como um conjunto consistente de estratégias oriundas de diversos povos ancestrais, empregado para prevenção e resolução de conflitos, considerando as necessidades dos envolvidos. Os princípios e valores da JR norteiam variadas práticas restaurativas, que inicialmente, surgiram no campo do judiciário e, disseminou-se para outras áreas, inclusive a educação. O objetivo deste trabalho foi investigar as contribuições da JR e suas práticas restaurativas para a educação escolar no Brasil. Privilegiamos a pesquisa de abordagem qualitativa, de natureza descritiva e exploratória e, empregamos o método da pesquisa bibliográfica, com características de um estado do conhecimento. Realizamos a recensão dos escritos no Banco de Teses e Dissertações da CAPES. Os resultados obtidos revelaram que a JR e suas práticas apresentam enorme potencial na educação escolar, sendo o círculo restaurativo a prática mais recorrente e os professores, principais sujeitos envolvidos em sua aplicação. Embora as pesquisas analisadas demostrem diminuto sucesso perante a implementação da JR e das práticas restaurativas na escola, esta se configura como possibilidade exequível na prevenção, tratamento e redução dos conflitos neste espaço, bem como contribui à construção e fortalecimento dos relacionamentos saudáveis entre os sujeitos que nele convivem.

 

Palavras‑chave:  |  DOI:

Como citar este trabalho

OLIVEIRA, Julia Maria da Silva; MELO, Lécia Nájla dos Santos. Justiça Restaurativa e a Educação Escolar no Brasil: Um Estado do Conhecimento. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2021 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/97-justi%C3%A7a-restaurativa-e-a-educa%C3%A7%C3%A3o-escolar-no-brasil-um-estado-do-conhecimento. Acesso em: 16 out. 2025.

Justiça Restaurativa e a Educação Escolar no Brasil: Um Estado do Conhecimento

Alguns povos autóctones, também chamados indígenas, nativos originais ou aborígenes em diversas partes do mundo empregavam um método para a resolução (tratamento), dos conflitos na comunidade, por meio do diálogo. Esse método foi denominado Justiça Restaurativa (JR) primeiramente pelo psicólogo estadunidense Albert Eglash (1922), quando em 1977, escreveu o intitulado Beyond Restitution: Creative Restitution, em uma coletânea publicada por Joe Hudson e Burt Gallaway, denominada Restitution in Criminal Justice, no entanto é a partir da publicação do livro Trocando as lentes, de Howard Zehr, publicado na década de 1990 que o conceito e princípios da JR ganham destaque no mundo.

A JR poderá ser compreendida como um conjunto consistente de estratégias, que implicavam toda a comunidade na resolução de um conflito, considerando as necessidades dos envolvidos direta ou indiretamente. Desta forma, reuniam-se as pessoas que cometiam os atos infracionais, as vítimas (ou seus descendentes, pais, esposa/o) e a comunidade, a fim de, por meio do diálogo, encontrarem solução ao conflito instalado, bem como a responsabilização pelo ato cometido, e, sobretudo procuravam o reestabelecimento da paz no interior do grupo, tal qual restaurar os relacionamentos humanos e a vida em comunidade.

Entre nós, não indígenas, as práticas restaurativas são validadas pela comunhão de valores, de princípios e de conhecimentos provenientes dos povos indígenas do Canadá, dos Estados Unidos, dos Maoris da Nova Zelândia, dentre outros povos ancestrais (ZEHR, 2018), que embasam a JR.

De acordo com Scuro Neto (2008, p. 5) “a saga restaurativa começou no Brasil em 1998, de início não no Judiciário, mas em escolas públicas, como programa de pesquisa sobre prevenção de desordem, violência e criminalidade”, no âmbito do Projeto Jundiaí, no estado de São Paulo. A partir desse Projeto, as práticas restaurativas ganharam espaço na educação brasileira.

Neste contexto, propusemo-nos a investigar no Banco de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) as contribuições da JR e suas práticas restaurativas para a educação escolar no Brasil. Pretende-se ainda investigar as práticas restaurativas mais recorrentes na área da educação no Brasil e identificar os sujeitos envolvidos nas práticas restaurativas no Brasil no contexto da educação escolar. A relevância desse trabalho, consiste na possibilidade de revelar e desvelar as iniciativas que envolvem a JR na área educacional. A JR apresenta notória relevância no que diz respeito a possibilidade de reconfiguração no tratamento de questões conflituosas, pois contrapõe um sistema que segue a lógica retributiva/punitiva. Assim, mostra-se como uma alternativa importantíssima para repensar a maneira como os conflitos são concebidos e tratados. Outrossim, traz em si a valorização de um conjunto de saberes ancestrais cujos princípios e valores podem ser resumidos numa base em comum, a saber: o respeito. Dessa maneira a JR, com seus princípios teóricos e metodológicos aponta como um novo paradigma para se pensar os relacionamentos humanos.

Empregamos, no nosso estudo, a pesquisa bibliográfica, posto que esse método nos permite verificar a disseminação e efetivação da JR, especificamente com a escola e de forma ampla com a educação. Desta forma, nosso estudo traz na primeira parte a trajetória histórica da JR no mundo, no Brasil e na educação; em seguida, apresentamos o percurso metodológico utilizado na construção do trabalho. Posteriormente, analisamos e descrevemos os resultados, e, por fim, tecemos algumas considerações acerca da JR na educação escolar.

Trajetória histórica da Justiça Restaurativa (JR): conhecendo

 

A JR começou a ganhar notoriedade “no final da década de 70 e início da década de 80, no Canadá e na Nova Zelândia. Esse movimento originou-se dos resultados de estudos de antigas tradições que se baseavam em diálogos pacificadores e construtores de consensos” (ORSINI; LARA, 2013, p.306). Porém, popularizou-se no mundo, por meio dos escritos de Howard Zehr, com a obra Trocando as lentes.  Para Zehr (2018) a JR não é algo novo ou criado por um determinado povo, mais que isso, as práticas hoje assim denominadas já eram desenvolvidas há muito tempo, seguindo valores próprios das comunidades. Vale ressaltar que

 

Dois povos fizeram contribuições profundas e muito específicas às práticas nesse campo: os povos das primeiras nações do Canadá e dos Estados Unidos e os maori da Nova Zelândia. Mas de muitas maneiras a justiça restaurativa representa a validação de valores e práticas que são característicos de muitos grupos indígenas (ZEHR, 2018, p. 238).

 

Dessa maneira, a JR é formada por um conjunto de práticas, que tem em vista na sua construção, princípios e valores observados nas comunidades ancestrais, os quais hoje são aplicados para além da resolução de conflitos, contempla a prevenção, transformação destes e ainda a edificação de relacionamentos saudáveis. Tonche (2014, p. 45) afirma que

 

É difícil definir a justiça restaurativa em termos mais circunscritos. Não existe uma definição única para o modelo, mas sim uma série de valores ao qual ela está ligada e que as práticas deveriam necessariamente contemplar. Se para alguns teóricos do modelo a justiça restaurativa deveria ser melhor definida, outros acreditam que circunscrevê-la em moldes iria contra seus princípios atrelados à informalidade, além de inibir seu desenvolvimento.

 

Percebe-se que dada a amplitude de aplicações, é difícil para os que lidam diretamente com a JR encontrar uma definição específica para ela. Por isso, “embora haja um entendimento geral sobre seus contornos básicos, os profissionais do ramo não conseguiram chegar a um consenso quanto a seu significado específico” (ZEHR, 2020, p. 53). Dessa maneira, o autor acredita que não há uma forma restrita de definir a JR, assim, assevera que podemos encontrar diferentes conceitos, porém o quê essencialmente todos buscam descrever são os seus princípios e objetivos. Para Zehr (2020, p. 54) a

 

Justiça Restaurativa é uma abordagem que visa promover justiça e que envolve, tanto quanto possível, todos aqueles que têm interesse numa ofensa ou dano específico, num processo que coletivamente identifica e trata os danos, necessidades e obrigações decorrentes da ofensa, a fim de restabelecer as pessoas e endireitar as coisas na medida do possível.

 

Nesse sentido, a JR pode ser entendida como um meio de tratar conflitos com vistas a oportunizar a participação de todos os envolvidos, os quais são protagonistas na resolução do mesmo, ou seja, “a justiça restaurativa se constitui em um dos diversos tipos alternativos de resolução de conflitos existentes” (TONCHE, 2014, p. 43). Destarte, percebe-se a preocupação da JR com o tratamento de conflitos e transformação dos relacionamentos. Portanto, mais que preocupar-se com o conflito em si, a JR propõe analisar as razões que levaram a sua ocorrência, bem como quem são as pessoas que possivelmente foram atingidas por ele.

Diante do contexto apresentado, percebemos que a JR pode ser conceituada de diferentes formas, não sendo o mais importante reconhecê-la por meio destas, por isso compreender e respeitar seus objetivos, princípios e valores são de fundamental importância.

Zehr (2018) aponta que a JR é sustentada por três pilares, quais sejam: os danos e necessidades, obrigações e engajamento. Nessa lógica, quando a JR se concentra no dano, tem por objetivo identificar e cuidar das necessidades da vítima. Nesse processo, o ofensor é conduzido à responsabilização, em que reconhece que o ato cometido resulta em obrigações, ou seja, ao compreender as consequências de sua ação, o ofensor precisa agir de modo a corrigir, na medida do possível a situação. Por fim, o engajamento pressupõe a participação da vítima, do ofensor e da comunidade, dessa maneira, cada ator envolvido direta ou indiretamente agirá na busca para a resolução dos conflitos.

A JR é regida por princípios, que caracterizam uma prática como restaurativa ou não, quais sejam:

 

1. Focar antes de tudo, os danos e consequentes necessidades da vítima, mas também da comunidade e do ofensor.

2. Tratar das obrigações que resultam daqueles danos (as obrigações dos ofensores, bem como da comunidade e da sociedade).

                                         3. Utilizar processos inclusivos, cooperativos.

4. Envolver a todos que tenham legítimo interesse na situação, incluindo vítimas, ofensores, membros da comunidade e da sociedade.

5. Buscar reparar os danos e endireitar as coisas na medida do possível (ZEHR, 2020, p. 49).

 

 Zehr (2020) aponta, ainda, valores, sem os quais os princípios restaurativos podem não cumprir de forma satisfatória sua função. Dentre esses valores estão: a interconexão e a particularidade, mas enfatiza que todos os valores podem ser resumidos a um: o respeito. Isso porque, o respeito nos permite considerar todas as partes envolvidas e não apenas àquela que julgamos ser importante.  A união entre princípios e valores sustenta a JR, e, a valorização destes garante o reconhecimento de práticas como restaurativas, pois não se trata apenas de reunir pessoas para expressarem o fato e suas consequências, mas é imprescindível garantir o método, a fim de evitar desconfortos, constrangimento e descontrole da situação na sua totalidade.

 

As práticas restaurativas

 

É importante ressaltar que “a justiça restaurativa engloba sob sua denominação práticas diferentes para a resolução dos conflitos” (TONCHE, 2014, p.45-46). No entanto, essas práticas não estão estritamente ligadas ao tratamento de situações conflituosas, mas cumprem a função de criar ambientes restaurativos, onde os relacionamentos sejam observados, tratando preventivamente os conflitos. Destaca-se que

 

As práticas restaurativas são extremamente vantajosas, pois possibilitam mudanças diretas no campo das inter-relações. Elas levam aos envolvidos uma abordagem inclusiva e colaborativa, que resgata o diálogo, a conexão com o próximo, a comunicação entre os atores escolares, familiares, comunidades e redes de apoio. Elas nos levam a lidar com os conflitos de forma diferenciada: desafiando os tradicionais padrões punitivos, passamos a encarar os conflitos como oportunidades de mudança e de aprendizagem, ressaltando os valores da inclusão, do pertencimento, da escuta ativa e da solidariedade (NUNES, 2011, p. 46).

 

As práticas restaurativas apontam para a valorização dos relacionamentos humanos, dentro dos quais o conflito é algo natural, inerente às relações consigo e com o outro. No que concerne aos diversos tipos de práticas restaurativas, ressaltamos que “embora semelhantes em linhas gerais, os modelos de prática restaurativa diferem quanto ao número e tipo de participantes, e em alguns casos, quanto ao estilo de facilitação” (ZEHR, 2020, p. 65). Porém, enfatizamos que os modelos podem ser modificados, porém os princípios e valores permanecem, assim, sabemos que se trata de uma prática restaurativa.

Nesse sentido, Zehr (2020) indica os encontros entre vítima e ofensor, as conferências de grupos familiares e os círculos ou abordagens circulares, como práticas que podem ser consideradas totalmente restaurativas. Cada uma dessas práticas possui de forma clara um roteiro que norteia sua execução, conferindo fidelidade ao processo, não esquecendo que todas possuem em comum o fato de respeitarem no desenvolvimento da sua metodologia os princípios e valores da JR.

 

Disseminação da JR no mundo

 

A disseminação da JR no mundo se deve ao conhecimento e teorização de suas práticas, as quais estão ligadas às formas alternativas de tratar os conflitos por diversos povos ancestrais. Nesse contexto, Meirelles e Yazbek (2014, p. 109), apontam que

Em diversos locais ao redor do mundo inúmeros povos e tribos desenvolviam práticas distintas de resolução de conflitos baseadas em princípios e valores similares. Da mesma forma, algumas práticas eram usadas no sistema criminal antes mesmo de serem consideradas como pertencentes ao âmbito da Justiça Restaurativa.

 

Orsini e Lara (2013) apontam que ao final da década de 1970 e início da década 1980, no Canadá e Nova Zelândia, reconhecem e incluem no sistema jurídico a JR para a resolução de conflitos na comunidade. Porém, o principal marco para a capilaridade da JR no mundo foi a Resolução nº 2002/12 de 24 de julho, do Conselho Econômico e Social da ONU. Assim, a Resolução dispõe que a abordagem da JR

 

Propicia uma oportunidade para as vítimas obterem reparação, se sentirem mais seguras e poderem superar o problema, permite os ofensores compreenderem as causas e consequências de seu comportamento e assumir responsabilidade de forma efetiva, bem assim possibilita à comunidade a compreensão das causas subjacentes do crime, para se promover o bem-estar comunitário e a prevenção da criminalidade (ONU, 2002, p.2).

 

          Dessa forma, a Resolução ONU nº 2002/12 estabelece um novo tempo no que se refere ao uso das práticas de JR no mundo. No entanto, Orsini e Lara (2013) descrevem que tal resolução é fruto de um percurso que tem seus precedentes na Resolução 1999/26, de 28 de julho de 1999, intitulada “Desenvolvimento e Implementação de Medidas de Mediação e Justiça Restaurativa na Justiça Criminal” e na Resolução 2000/14, de 27 de julho de 2000, intitulada “Princípios Básicos para utilização de Programas Restaurativos em Matérias Criminais”, as quais referendavam o uso de programas da JR. Nesse contexto, observamos que a disseminação da JR teve como premissa uma série de dispositivos legais que garantiram a legalidade necessária para o uso de suas práticas, inicialmente no campo do judiciário, extrapolando para outros espaços.

 

JR no Brasil: aprendendo

 

As iniciativas para a implantação da JR no Brasil é complexa, para alguns autores, como, por exemplo, Carvalho (2012, p. 74), informa que

 

a JR foi introduzida no Brasil em 2004, por intermédio de uma ação governamental da Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça em parceria com PNUD. Na ocasião foi construído o projeto ‘Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro’ que resultou no suporte a um grupo de três projetos experimentais, na Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São Caetano do Sul (SP), no Juizado Especial Criminal do Núcleo Bandeirantes (Brasília, DF) e na 3ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre (RS).

 

          Enquanto que Camara (2013, p. 6) nos reporta que a JR,

 

No âmbito nacional, surgiu com o “Projeto Jundiaí: Viver e Crescer em Segurança”, desenvolvido em 26 escolas de 2º grau na região de Jundiaí, Estado de São Paulo. O principal objetivo era melhorar condutas, prevenir desordem, violência e criminalidade no âmbito escolar.

 

Porém, é no Poder Judiciário que a JR possui um arcabouço jurídico normativo, composto pela: Resolução 225, de 31 de maio de 2016, do Conselho Nacional de Justiça, a qual institui sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário; Portaria nº 74, de 12 de agosto de 2015, alterada pela Portaria nº 9, de 2 de fevereiro 2016, a qual indica Grupo de Trabalho para contribuir com o desenvolvimento da Justiça restaurativa; Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, a qual implanta e implementa o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional e, no Título II - Da Execução das Medidas Socioeducativas, Capítulo I - Disposições Gerais, no seu art. 35 que as medidas socioeducativas, possui dentre seus princípios, e no inciso III, determina que o agente da lei dê “prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas” (p. 4); Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, nos seus art. 72, 77 e 89.

Essas determinações jurídicas no âmbito do Poder Judiciário permitem que os operadores do direito, possam acessar outro paradigma, que não esteja alicerçado no modelo de justiça retributiva, distributiva e comutativa. Nesse sentido, Boonen (2011, p. 75) pondera que

 

a dinâmica das práticas restaurativas e a parceria entre a educação e a esfera judiciária tem vários benefícios, possibilitando, por exemplo, que os operadores do direito tenham um novo olhar sobre a escola, e esta se constitua em um espaço estratégico para implementação da JR e de uma efetiva cultura de paz.

 

Porém, essa lógica tende a tornar a JR como uma ação externa a escola, e, portanto, seus atores não são partícipes. Apesar disso, Carvalho (2012) aponta que mesmo não havendo estudos sistemáticos que avaliem os vários projetos existentes em escolas no Brasil, ressalta que no ambiente escolar há uma oportunidade única de firmar a JR e transmitir seus valores. Mapear esses projetos é tarefa árdua e pouco provável, devido à extensão do território nacional, isso significa que a todo o momento uma escola em uma determinada localidade pode realizar ou realizou uma prática restaurativa ou de inspiração restaurativa.

 

Justiça Restaurativa na Educação (JRE): revelando possibilidades

 

 A JR se expandiu para outros espaços, além do Poder Judiciário,

 

avançou muito além das aplicações no âmbito penal. Como observei, escolas e universidades representam espaços onde sua aplicação mais cresce, evidentemente com as devidas modificações linguísticas e procedimentais adequadas a esses contextos (ZEHR, 2018, p. 247).

 

Infelizmente, na educação e, especificamente na escola, a comunidade escolar acreditava que a JR, era empregada como alternativa suspensão ou expulsão, sanções disciplinares aplicadas aos estudantes que infligiam às normas. Deste modo, a JR se concentrava tão somente na resolução dos conflitos que envolviam danos e, nunca na prevenção (EVANS; VAANDERING, 2018).

Certamente, na escola, espaço privilegiado para a educação formal, onde o objeto central é a formação humana, lugar onde aprendemos sobre si e sobre as relações com o outro. Nesse entendimento em 2018, Katherine Evans e Dorothy Vaandering publicam o livro intitulado “Justiça Restaurativa na Educação: promover responsabilidade, cura e esperança nas escolas”. As autoras propalam pela Justiça Restaurativa na Educação (JRE), posto que a JR

 

As primeiras práticas estivessem baseadas em algum fundamento teórico, este vinha das disciplinas da criminologia e da sociologia, e não necessariamente da pedagogia. É preciso estabelecer a JRE como um campo autônomo, embora oriundo da JR; um campo baseado na educação e na pedagogia (EVANS; VAANDERING, 2018, p.29).

 

Nesse sentido, as autoras compreendem que a JRE, deve estar fundamentada na concepção da educação para o coletivo e não para o individual. E enfatizam que “é importante reconhecer que a cultura de uma escola nasce das crenças e valores das pessoas” (EVANS; VAANDERING, 2018, p.16). Assim, a JRE objetiva fomentar os relacionamentos saudáveis entre as pessoas no espaço escolar, desenvolver ações que possam prevenir e diminuir situações de violência e danos.

A JRE se apresenta como uma alternativa de enxergar a escola como um lugar de construção de identidades e relacionamentos. Outrossim, “as escolas que adotam a JRE devem refletir sobre o papel da dignidade no cultivo de relacionamentos saudáveis. O objetivo é trabalhar o conflito de modo a fortalecer o senso individual de dignidade” (EVANS; VAANDERING, 2018, p.95). Nesse sentido de ideias, a JRE propõe, por meio das práticas restaurativas uma mudança de paradigma, isto é,

 

Educar a criança no sentido de ensiná-la a falar, a se comunicar e a dialogar. À educação cabe a tarefa de ensinar a falar e a dialogar e a Justiça Restaurativa que busca a responsabilização participativa e coletiva, por meio desse processo dialógico, participativo e inclusivo, possui seu campo de incidência por excelência na escola (PENIDO, 2012 apud CAMARA, 2013, p.14).

 

          Desse modo, podemos afirmar que a JRE emerge como uma possibilidade de ressignificar as relações na escola, onde os sujeitos possam ser construtores de sua história. Com essa intenção, as práticas restaurativas se colocam como importantes aliadas na construção de relacionamentos saudáveis e criação de ambientes cooperativos, onde os estudantes podem se tornar colaboradores, num processo de reciprocidade. Essa realidade traz para a escola uma nova perspectiva para prevenir e resolver os conflitos, que estes possam servir de oportunidade para a reflexão dos sujeitos (docentes, discentes, coordenadores, diretores, etc.) quanto as suas atitudes, seus comportamentos, fazendo-os agir de maneira diferente da primeira, posto que a segunda ação é fruto de reflexão (ação-reflexão-ação).

A JRE deve ser pensada como uma ação que faz parte do planejamento da escola, que integra o Projeto Político Pedagógico (PPP), que possa envolver os profissionais que naquele espaço atuam. Os benefícios poderão promover um ambiente mais saudável para todos, bem como poderá também contribuir para que se torne um espaço onde a aprendizagem seja significativa.

Embora, acreditemos nas possibilidades do desenvolvimento da JRE no interior da escola, ressaltamos que assumir a postura restaurativa, não é fácil na prática e, não o conseguiremos imediatamente, é um processo de médio ou longo prazo. No Brasil, em especial, “isso acontece devido ao fato de que a sociedade brasileira é educada para revidar contrariedades de forma agressiva, tornando-se necessário o estudo e o aprofundamento desse método de forma constante” (PISTOIA; SILVA, 2017, p. 62). Por essa razão, a ruptura com práticas pedagógicas cristalizadas está no centro do processo, uma vez que as práticas restaurativas servem para restaurar, e, assim a autonomia é desenvolvida, tal qual a percepção de si, o estar no mundo, desafios inerentes à formação humana.

 

Trajetória metodológica

 

Na nossa trajetória metodológica, privilegiamos como método a pesquisa bibliográfica, uma vez que “é desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos” (GIL, 2008, p. 50). Marconi e Lakatos (2003) corroboram ao afirmar que esse tipo de pesquisa, põe o pesquisador em contato com tudo que já foi escrito sobre um tema determinado.

A natureza da nossa pesquisa é descritiva e exploratória, pois se propõe a identificar, analisar e descrever as contribuições da JR na educação escolar. Nosso trabalho se caracteriza, ainda, como um estudo do estado do conhecimento, pois “aborda apenas um setor das publicações sobre o tema estudado” (ROMANOWSKI; ENS, 2006, p. 40). Dessa maneira, a presente pesquisa revela um balanço da produção científica sobre a Justiça Restaurativa na Educação Escolar, nos Programas de Pós-Graduação.

Realizamos a recensão dos escritos no Banco de Teses e Dissertações da CAPES, na Grande Área do conhecimento de Ciências Humanas, e, em específico na Educação, no período de 2005 (início de projetos de Justiça Restaurativa no Brasil) a 2019. Para isso, empregamos a expressão exata “Justiça Restaurativa na Educação”.

A coleta de dados ocorreu nos meses de novembro e dezembro de 2020. Ao final desse período obtivemos: 2 dissertações e 1 tese na Plataforma Sucupira; 6 dissertações e 2 teses no sítio do repositório da instituição de origem; e, 1 dissertação   encontrada em pesquisa direta no site de busca Google, o que perfaz 9 dissertações e 3 teses, que possuem como objeto de investigação a JR na Educação Escolar. Não encontramos pesquisas anteriores a 2009 que tratassem da temática. Segue abaixo lista com as dissertações analisadas:

 

  1. Justiça Restaurativa no cotidiano escolar: uma alternativa para a solução de conflitos (MANGINI, 2010);
  2. Justiça Restaurativa na escola: perspectiva pacificadora? (ARAÚJO, 2010);
  3. Justiça Restaurativa na Escola: trabalhando as Relações Sociomorais (BARONI, 2011);
  4. Justiça Restaurativa na Escola: reflexos sobre a prevenção da violência e indisciplina grave e na promoção da cultura de paz (SANTANA, 2011);
  5. Justiça Restaurativa na escola: investigando as relações interpessoais (LUCATTO, 2012);
  6. Mediação de conflitos escolares e Justiça Restaurativa (COSTA, 2012);
  7. Violência e Indisciplina na Escola, Legislação e Solução de Conflitos: um estudo de caso centrado no Professor Mediador Escolar e Comunitário (SOUZA, 2012);
  8. Os Conflitos Violentos de Bullying na Escola e seus Entrelaçamentos com a Justiça Restaurativa (LOUZADA, 2013);
  9. Justiça Restaurativa: Um Estudo Exploratório a Partir da Perspectiva do Professor Mediador Escolar e Comunitário (CARNEIRO, 2017).

 

            Como fora enfatizado anteriormente além das dissertações, encontramos 3 teses, a saber:

  1. VEREDITO - Escola, inclusão, justiça restaurativa e experiência de si (SCHULER, 2009);
  2. Práticas Restaurativas: O Acontecer do Diálogo na Escola? (ARAÚJO, 2016);
  3. Prática Pedagógica Restaurativa de Convivência na Escola (FABIANOVICZ, 2018).

 

Observamos que apenas uma pesquisadora produziu dissertação (2010) e tese (2016) com o mesmo tema, Ana Paula Araújo, orientada pelo Prof. Dr. Marcos Villela Pereira, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o que significa aprofundamento do conhecimento sobre a temática.

Nossa busca constatou a predominância de dissertações que enfatizaram o tema da nossa investigação. Essa coleta de dados apresentou desafios que nos propiciaram criar novas estratégias ao processo investigativo. 

As faces da JR desveladas no percurso investigativo

 

O objetivo do nosso estudo é investigar, analisar as contribuições da JR na educação escolar. Para a consecução do nosso objetivo de pesquisa, realizamos uma leitura flutuante no corpo das teses e dissertações, a fim de identificar informações que não estavam claras nos resumos apresentados, essa análise nos conduziu então a algumas reflexões.

 

As dissertações nos revelam...

 

Constatamos que das dissertações analisadas, 7 empregaram a abordagem qualitativa para a execução das suas pesquisas e, 2 a abordagem quali-quantitativa. As técnicas para a coleta dos dados identificadas foram: entrevista semiestruturada, observação não-participante, entrevista clínica, levantamento bibliográfico, análise documental, e questionário.

Enfatizamos que 8 dissertações investigaram as ações de projetos já existentes na escola, os quais visavam a diminuição dos conflitos neste espaço. Ressalte-se que dois deles (Justiça para o século 21 e Justiça e Educação: parceria para a cidadania) são parte do projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileira”, uma iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e Ministério da Justiça para implantar práticas de JR no país.

Ressaltamos que no total os/as pesquisadores/as investigaram 12 escolas componentes dos projetos acima descritos. Nas pesquisas apontam a dificuldade em encontrar escolas em que os projetos estavam em atividade no momento de realização das pesquisas. Alguns precisaram coletar os dados por meio de entrevistas aos participantes de círculos restaurativos, pois no momento da realização da pesquisa os mesmos não estavam ocorrendo. Localizaram também escolas que não tinham conhecimento de que faziam parte do projeto, desconhecendo até mesmo do que se tratava a Justiça Restaurativa.

Os conflitos recorrentes dizem respeito a: bullying, problemas de relacionamento entre alunos/as que culminaram em agressão verbal e/ou física, desrespeito a professores/as e funcionários/as, destruição de patrimônio individual de colegas, indisciplina.

Averiguamos, também, que 5 dissertações abordaram a Comunicação Não-Violenta (CNV), pois afirmaram que é um método útil à efetivação de práticas restaurativas. Ressaltamos que a CNV é um método sistematizado e difundido pelo psicólogo Marshall Rosenberg que conduz as pessoas a um reencontro com sua humanidade, para um estado em que a violência não seja a base de suas decisões. Cabe destacar que o autor afirma que “ela não tem nada de novo: tudo que foi integrado à CNV já era conhecido há séculos” (ROSENBERG, 2006, p.21). Dada sua peculiaridade na promoção da paz é compreendida como uma abordagem de resolução de conflitos, uma vez que “nos ajuda a reformular a maneira pela qual nos expressamos e ouvimos os outros [...] Somos levados a nos expressar com honestidade e clareza, ao mesmo tempo que damos aos outros uma atenção respeitosa e empática” (ROSENBERG, 2006, p.21).

Assim, a CNV compreende uma forma específica de promover a comunicação entre as pessoas, que expressa cuidado consigo mesmo e com o outro, numa relação mútua de respeito. O principal objetivo da CNV é “criar uma qualidade de conexão consigo mesmo e com os outros que favoreça ações compassivas” (ROSENBERG, 2019, p.27). Por esse motivo, a CNV é considerada a linguagem da JR, pois o uso desse método associado às práticas restaurativas conduz os participantes a perceberem suas necessidades e a de todos os envolvidos em situações conflituosas. Outrossim, percebe-se que há um ponto em comum entre a CNV e a JR, uma vez que

 

Realizar Círculos Restaurativos também significa conectar-se com a humanidade do outro e aumentar a disponibilidade para ouvir necessidades e sentimentos recíprocos, cuja desconsideração por diversas razões, dificulta a aprendizagem e provoca conflitos (MARIONI, 2014, p. 151).

 

Percebe-se essa intrínseca relação entre a JR e a CNV, quando combinadas certamente promovem a garantia de sucesso na realização da prática restaurativa. Nesse contexto, verificamos que a principal prática restaurativa empregada pelos pesquisadores/as, foi o Círculo Restaurativo (9), que tem por objetivo oferecer uma maneira diferenciada na resolução dos conflitos, proporcionando autonomia entre as partes envolvidas para que por meio do diálogo possam expor suas necessidades, e chegar juntos a decisões que possam responder de forma positiva a resolução dos casos por meio da responsabilização e reparação do dano cometido.

Notamos que todos os projetos desenvolvidos nas escolas, visavam introduzir práticas restaurativas à resolução dos seus conflitos e envolviam pessoas que já atuavam na instituição, os quais são denominados de facilitadores, uma vez que é a pessoa responsável por ajudar os participantes na condução do processo restaurativo. Os facilitadores são fundamentais na condução de um processo restaurativo a fim de obter bons resultados (BOONEN, 2011).

Para se tornar um/a facilitador/a, a pessoa deveria participar da formação ofertada pela Secretaria de Educação, em parceria com o Judiciário, com duração de 74 horas no mínimo. O envolvimento dessas pessoas objetivava a preparação teórica, a fim de conhecer os princípios e valores da JR e, em especial, conhecer a prática do círculo restaurativo para atuar na escola com os alunos/as, mediando os conflitos que surgissem.  

 

O que revelam as teses encontradas

 

Em nossa busca localizamos 3 teses defendidas entre 2009 e 2017, que analisaram a aplicação da JR na escola. Todas as pesquisas empregaram a abordagem qualitativa. As técnicas identificadas para a coleta dos dados foram: entrevista semiestruturada, observação, levantamento bibliográfico, questionário e análise documental.

Na tese intitulada “Veredito - Escola, Inclusão, Justiça Restaurativa e Experiência de Si”, defendida por Betina Schuler investigou os sentidos da JR na escola. Para isso, a pesquisadora entrevistou diferentes sujeitos envolvidos nos projetos de JR, em Porto Alegre, bem como realizou uma análise documental sobre o tema. 

Schuler (2009) refletiu de forma crítica sobre o círculo restaurativo, a metodologia de aplicação e, considerou que esta prática restaurativa funciona como instrumento de controle das populações, a fim de conter suas ações violentas, por meio do constrangimento e deturpação da verdade. Nas palavras da autora:

 

O dispositivo da inclusão encerrando o indivíduo dentro dele mesmo, amarrando-o a uma dada moral, buscando seu melhoramento, com a ajuda de um expert, o qual teria a função de auxiliar na tradução das falas, encaixando-as nas necessidades tidas como universais, as quais deverão coincidir com a sociedade de segurança, garantindo o cumprimento do acordo, o qual deve ser verificável e calculável (SCHULER, 2009, p. 193).

 

            Interpela, ainda, sobre os limites das práticas restaurativas na garantia de liberdade dos sujeitos participantes. Conclui que o direcionamento dado na realização do círculo restaurativo necessita de atenção especial, sob o risco de fracassar em sua tentativa de promover a autonomia dos sujeitos.

As teses convergem que é preciso a realização de pesquisas, que tenham as práticas restaurativas como objeto do conhecimento e, enfatizam que se deve garantir a formação dos facilitadores, bem como a continuidade e aprofundamento dos estudos sobre a temática. 

 

Práticas restaurativas na escola: desafios e possibilidades...

 

Rosana Cathya Ragazzoni Mangini (2010) autora da dissertação, intitulada “Justiça Restaurativa no cotidiano escolar: uma alternativa para a solução de conflitos” analisou os projetos de JR no Brasil. A autora aponta como resultados da sua pesquisa, que o uso de práticas restaurativas é pertinente na prevenção da violência nas escolas, mas sua execução tem como entrave o paradigma retributivo e punitivo, ainda recorrente na escola. Nesse sentido, faz-se necessária a compreensão de que seus resultados positivos serão apresentados em longo prazo. Constata que a JR na escola precisa considerar a família e a comunidade, e, não se restringir aos professores e alunos, a fim de possibilitar mudanças nas relações em sociedade.

Na dissertação nomeada “Justiça Restaurativa na escola: trabalhando as relações sociomorais”, Mariana Custódio de Souza Baroni (2011) enfatiza que os Círculos Restaurativos possuem potencial para a resolução de conflitos na escola. Entretanto, ressalta a existência de obstáculos que impedem o sucesso das ações, quais sejam: o baixo número de facilitadores por escola, a não observância ao perfil do professor ao ser encaminhado para a formação, pois são indicados docentes que acumulavam diversas ações. Estes profissionais deveriam atuar como multiplicadores da formação na escola, o que não ocorreu.

A pesquisadora constatou ainda, que o Professor-Mediador Escolar e Comunitário não utilizava os princípios restaurativos para a resolução de conflitos. Empregou a contenção do ato violento, sem uso do diálogo e reflexão que visavam o fortalecimento de valores. Acredita que esses elementos contribuíram para a redução do uso do círculo restaurativo, até sua completa extinção.

Para Costa (2012) aqueles que se envolvem diretamente nas ações restaurativas não tem dúvida de sua eficácia. Na pesquisa que realizou, percebeu que houve avanços no tratamento dos conflitos escolares, assim como redução da reincidência de conflitos entre os que participaram de círculos restaurativos. Para isso, houve a participação da família e de outros sujeitos colaboradores na resolução dos conflitos na escola.

A pesquisadora apontou para as limitações no uso dos círculos restaurativos, quais sejam: pouco entendimento dos facilitadores quanto ao tratamento da violência, a necessidade de formação aprofundada, descontinuidade na realização dos círculos restaurativos, pouco envolvimento da comunidade escolar e externa.

Nesse mesmo sentido de ideias da autora retro citada, embora em períodos distintos, as dissertações produzidas por Louzada (2013), Souza (2012), Lucatto (2012), Araújo (2010) e Santana (2011) apontam como obstáculos à adoção da Justiça Restaurativa, a ausência de participação da comunidade escolar nas intervenções efetivadas. Por vezes, observaram que a comunidade escolar desconhecia a existência da JR e dos círculos restaurativos que ocorriam na escola. Costa (2012), Araújo (2012) e Santana (2011) registraram que isso acontece devido à carência de normas institucionais que contemplem a utilização da JR, e, de práticas restaurativas no cotidiano escolar, não somente para o tratamento dos conflitos como ações pontuais e isoladas, mas que cada indivíduo dentro daquele espaço ou na sua vida exterior àquele ambiente, assimile e integre os princípios fundamentais da JR.

Costa (2012), Araújo (2012), Santana (2011) e Louzada (2013) informam que a inexistência de avaliação e divulgação dos resultados dos projetos implantados na escola acerca da JR, constitui-se outro fator que distancia a comunidade escolar das ações da JR, e, passa a enxergá-la como uma ação pontual, que não diz respeito a escola como um todo, mas uma ação restrita a poucos sujeitos.

No que concerne à formação dos facilitadores, os quais serão responsáveis por efetuar as práticas restaurativas na escola, os resultados das pesquisas revelam: 1. Ausência de formação continuada aos facilitadores envolvidos; 2. Grande parte das facilitadoras indicadas era profissionais temporárias na escola; 3. Descontinuidade dos projetos nas escolas; 4. Ausência de acompanhamento e avaliação das ações; 5. Desânimo das docentes que se tornaram facilitadoras, devido à sobrecarga de atividades a realizar e; 6. Carência de respeito aos princípios básicos da JR, no momento da efetivação das práticas restaurativas.

A formação para a JR, a CNV e práticas restaurativas n

Tecendo algumas considerações...reflexão

 

Nesse trabalho o objetivo foi investigar as contribuições da Justiça Restaurativa na Educação Escolar, por meio de uma pesquisa bibliográfica, com caráter de Estado do Conhecimento. Para a consecução desse objetivo, analisamos teses e dissertações disponibilizadas na CAPES, na área da Educação. As buscas empreendidas nos conduziram a descobertas e desvelaram desafios que a Justiça Restaurativa na Educação deverá enfrentar, mas, também, revelaram contribuições para a educação escolar.

Ao iniciar nossas buscas acreditávamos que localizaríamos um quantitativo maior de pesquisas na área, haja vista que a JR existe no Brasil formalmente desde 2005. No entanto, percebemos que os estudos conduzidos nessa área nos programas de pós-graduação em Educação, ainda, são incipientes.

Nossa análise revelou que a prática de maior incidência nas pesquisas investigadas, foi o círculo restaurativo. Assinalou, também, que a comunidade escolar não enxerga as práticas restaurativas como meio para a resolução e tratamento de situações de conflitos. No que tange às escolas pesquisadas, às quais faziam parte de alguns projetos de JR no Brasil, chamou-nos a atenção a ausência nos escritos da justificativa para que tais unidades de ensino tivessem sido escolhidas. Verificamos que o tratamento de conflitos foi o principal motivo para a implantação e implementação da JR nas escolas.

Constatamos no que diz respeito aos facilitadores das práticas restaurativas, os resultados das teses e dissertações recomentam formação continuada, a qual poderá garantir a esses indivíduos maior conhecimento e experiência na efetuação das práticas restaurativas. No entanto, para além dos facilitadores, é preciso envolver toda a comunidade escolar em todas as etapas da implantação e implementação da JR, de modo a caminhar para a construção de uma escola que seja restaurativa e não apenas que aplique ações restaurativas pontualmente.

Nesse contexto, consideramos que as teses e dissertações analisadas revelam que a JR nas escolas enfrenta muitos desafios, porém apesar dos obstáculos e dificuldades apontam que a JR:

  1. e as práticas restaurativas podem se constituir em importante ferramenta para a prevenção, tratamento e resolução de conflitos no espaço escolar;
  2. pode desconstruir a concepção que o conflito é um problema nas relações, para colocá-lo no lugar de espaço de possibilidade ao crescimento, ao desenvolvimento de potencialidades dos sujeitos;
  3. pode contribuir à se tornar um instrumento à prevenção e redução das violências que ocorrem na escola e, quiçá, reverberar na sociedade ampla ;
  4. pode restaurar os elos rompidos, a partir da escuta atenta, do diálogo autêntico e da reflexão crítica;
  5.  e as práticas restaurativas fomentam a  valorização do indivíduo, o respeito a si, ao outro e ao seu entorno, a construção da autonomia dos sujeitos;
  6.  possibilita a comunicação autêntica, o entendimento sobre a responsabilização pelos atos cometidos, a prática colaborativa e a solidariedade;
  7. proporciona a participação efetiva da família na escola.

 

A JR e as práticas restaurativas proporcionam, sobretudo no âmbito escolar, a possibilidade de ruptura com a reprodução mecânica do modelo românico-germânico do sistema jurídico no nosso país, no qual a ênfase é dada ao seu caráter punitivo, violento. No qual a resolução dos conflitos é realizada com uso da força física, do domínio do Estado sobre os corpos, sobre a concepção e definição do que é crime, de como deve operar para obter justiça e, principalmente como construir a Paz em todos os diversos ambientes da sociedade. Nessa perspectiva, a JR e as práticas restaurativas, propõem o resgate da colaboração, cooperação, do ser gregário que somos, da observação e da escuta atentas, da assunção pela comunidade do indivíduo que é parte dela, parte da sua existência.

A JR envolve o tripé que está posto em qualquer delito, em uma situação de conflito, isto é: a vítima, o ofensor e a comunidade. Os postulados que fundamentam a JR são: 1 - o dano e as necessidades. O dano causado às pessoas, às comunidades e, também, ao ofensor; o centro da atenção está no atendimento imediato das necessidades da vítima, da sua família. 2 – as obrigações do ofensor, que assume a responsabilidade pelo dano causado. Nesse contexto, as práticas restaurativas, que se baseiam na colaboração, cooperação, constituem-se o meio, o veículo para provocar o entendimento das consequências que repercutem na vida do ofensor, bem como na vida da vítima, da família e da comunidade e, também, possibilitam à construção de um plano factível para atender às necessidades expressadas pela vítima, pela família, pela comunidade, igualmente do ofensor. 3 – o engajamento, que implica, a participação de todos envolvidos para que o plano traçado obtenha êxito.

Nesse horizonte que pensamos a escola, como lugar concreto para a materialização de um projeto restaurativo, de ações que visem a formação humana, objetivo fulcral na educação (acepção lato) desses seres incompletos, inacabados, que somos. Assim, precisamos para nossa existência aprendermos desde a infância a dialogar, a escutar, a observar, a respeitar, a desenvolver a empatia, a construir a paz.

ARAÚJO, A. P. Justiça Restaurativa na Escola: perspectiva pacificadora? 2010. 137 p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica, Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. Disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/3631. Acesso em 2 dez. 2020.

 

ARAÚJO, A. P. Práticas Restaurativas: o acontecer do diálogo na escola? 2016. 124 p. Tese (Doutorado em Educação) – Escola de Humanidades, PUCRS, Porto Alegre, 2016. Disponível em: https://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/8549. Acesso em 05 dez. 2020.

 

ASSUMPÇÃO, C. P. A.; YAZBEK, V. C. Justiça Restaurativa: um conceito em desenvolvimento. In: GRECCO, A. et al. Justiça Restaurativa em ação: práticas e reflexões. São Paulo: Dash, 2014. Cap. 1, p. 43-61.

 

BARONI, M. C. S. Justiça restaurativa na escola: trabalhando as relações sociomorais. 2011. 176 p. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2011. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/92263. Acesso em 03 dez. 2020.

 

BOONEN, P. M. A Justiça Restaurativa, um desafio para a educação. São Paulo: USP, 2011. Tese (Doutorado em Educação) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível em: http://disde.minedu.gob.pe/handle/123456789/1651. Acesso em 28 out. 2020.

 

CAMARA, L. B. Justiça restaurativa e educação: perspectiva para uma cidadania participativa. Revista Direito em Debate, Ijuí/RS, v. 22, ano. 22, n. 39, p. 3-23, jan/jun, 2013. Disponível em: https://revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/482. Acesso em: 28 out. 2020.

 

CARNEIRO, A. R. Justiça Restaurativa: um estudo exploratório a partir da perspectiva do professor mediador escolar e Comunitário. 2017. 178 p. Dissertação (Mestrado) - Universidade Metodista de Sao Paulo, São Bernardo do Campo, 2017. Disponível em: http://tede.metodista.br/jspui/handle/tede/1673. Acesso em 05 dez. 2020.

 

CARVALHO, L. A. Justiça Restaurativa no ambiente escolar: discussões sobre a experiência paulista. Revista Direito Educacional. São Paulo, v.6, n.3, p.65-87, jul-dez. 2012. Disponível em: http://www.academia.edu/Documents/in/Justica_Restaurativa_Nas_Escolas. Acesso em: 30 out. 2020.

 

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA.  Dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e  dá  outras  providências.  Resolução 225, de 31 de  maio  de  2016, 2016.  Disponível  em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2289.  Acesso em: 31 jan. 2021.

 

COSTA, S. F. M. Mediação de conflitos escolares e justiça restaurativa. 2012. 103 p. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) - Universidade do Oeste Paulista, Presidente Prudente, 2012. Disponível em: https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UOES_8359285445376f021ef995a28524a0a5. Acesso em 03 dez. 2020.

 

DAMASCENO, J. L. Gestão democrática no ensino superior em teses e dissertações (2006-2016). São Paulo: UNICID, 2018. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Cidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

 

DAOU, V. A postura do facilitador. In: GRECCO, A. et al. Justiça Restaurativa em ação: práticas e reflexões. São Paulo: Dash, 2014. Cap. 5, p. 129-143.

 

EVANS, K.; VAANDERING, D. Justiça Restaurativa na Educação: promover responsabilidade, cura e esperança nas escolas. 1. ed. São Paulo: Palas Athena, 2018. 137 p.

 

FABIANOVICZ, A. Prática pedagógica restaurativa de convivência na escola. 2018. 126 p. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba, 2018. Disponível em: https://tede.utp.br/jspui/handle/tede/1755. Acesso em 03 dez. 2020.

 

FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez, 1980.

 

GIL, A. C. Métodos e técnicas da pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008. 200 p.

 

LOUZADA, M. C. Os conflitos violentos de bullying na escola e seus entrelaçamentos com a justiça restaurativa. 2013. 182 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2013. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=729568. Acesso em 16 nov. 2020

 

LUCATTO, L. C. A justiça restaurativa nas escolas: investigando as relações interpessoais. 2012. 242 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, SP, 2012. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/250715. Acesso em: 03 dez. 2020.

 

MANGINI, R. C. R. Justiça Restaurativa no cotidiano escolar: uma alternativa para a solução de Conflitos. 2010. 120 p. Dissertação (Mestrado). Universidade de Sorocaba, Sorocaba, 2010. Disponível em: http://educacao.uniso.br/producao-discente/dissertacoes/2010/Rosana_Cathya_Ragazzoni_Mangini.pdf. Acesso em 05 dez. 2020.

 

MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Fundamentos da metodologia científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003. 311 p.

 

MARIONI, M. R. Metodologia enriquecida pela Comunicação Não-Violenta (CNV) e suas aplicabilidades em São Paulo - Brasil. In: GRECCO, A. et al. Justiça Restaurativa em ação: práticas e reflexões. São Paulo: Dash, 2014. Cap. 6, p. 147-157.

 

MARQUES, J. F. Círculos da paz: práticas restaurativas como instrumento de acesso à justiça nas escolas do Tocantins. 2015. 67 p. Dissertação (Mestrado Profissional em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos) - Universidade Federal do Tocantins, Palmas, TO, 2015.

 

MEIRELLES, C. A.; YAZBEK, V. C. Formatos conversacionais nas metodologias restaurativas. In: GRECCO, A. et al. Justiça Restaurativa em ação: práticas e reflexões. São Paulo: Dash, 2014. Cap. 4, p. 109-125.

 

NUNES, A.O. Como restaurar a paz nas escolas: um guia para educadores. São Paulo: Contexto, 2011, 137 p.

 

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Conselho Econômico e Social da ONU. Resolução nº 2002/12, de 24 de julho de 2002 Tradução de Renato Sócrates Gomes Pinto. Disponível em: https://juridica.mppr.mp.br/arquivos/File/MPRestaurativoEACulturadePaz/Material_de_Apoio/Resolucao_ONU_2002.pdf. Acesso em: 29 jan. 2021.

 

ORSINI, A. G. S.; LARA, C. A. S. Dez anos de práticas restaurativas no Brasil: a afirmação da justiça restaurativa como política pública de resolução de conflitos e acesso à Justiça. Revista Responsabilidades, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 305-324, set. 2012/fev. 2013. Disponível em: http://as1.trt3.jus.br/bd-trt3/bitstream/handle/11103/2631/adriana_sena_dez_anos_praticas_restaurativas.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 15 out. 2020.

 

PISTOIA, C. D.; SILVA, I. C. M. Práticas restaurativas: uma metodologia ao alcance do educador. 1. ed. Porto Alegre: Ediplat, 2017, 104 p.

 

ROMANOWSKI, J. P.; ENS, R. T. As pesquisas denominadas do tipo “estado da arte” em educação. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 6, n.19, p. 37-50, set./dez. 2006.

 

ROSENBERG. M. B. A linguagem da paz em um mundo de conflitos. 2. ed. São Paulo: Palas Athena, 2019. 206 p.

 

ROSENBERG. M. B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 4. ed. São Paulo: Ágora, 2006. 285 p.

 

SANTANA, C. S. Justiça Restaurativa na Escola: reflexos sobre a prevenção da violência e a indisciplina grave e na promoção da cultura de paz. 2011. 336 p. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2011. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/92238. Acesso em 03 dez. 2020.

 

SCURO NETO, P. O Enigma da Esfinge: Uma Década de Justiça Restaurativa no Brasil. Revista Jurídica-CGJ/FURB. ISSN 1982-4858 v. 12, nº 23, p. 3-24, jan/jun. 2008.

 

SHULER, B. Veredito- Escola, Inclusão, Justiça Restaurativa e Experiência de Si. 2009. 231 p. Tese (Doutorado em Educação) Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. Disponível em: https://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/2689. Acesso em 20 nov. 2020.

 

SOUZA, C. A. F. Violência e indisciplina na escola, legislação e solução de conflitos: um estudo de caso centrado no professor mediador escolar e comunitário. 2012. 169 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia, São Paulo, 2012. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/92300. Acesso em 03 dez. 2020.

 

TONCHE, J. Entre práticas e discursos: a utilização da justiça restaurativa na resolução de conflitos escolares envolvendo crianças, adolescentes e seus familiares em São Caetano do Sul SP. Revista Estudos de Sociologia. Araraquara, v.19, n. 36, p. 41-59, jan-jun. 2014. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/estudos/article/view/5792/5120. Acesso em: 14 out. 2020.

 

ZEHR, H. Justiça Restaurativa. 3. ed. São Paulo: Palas Athena, 2020. 121 p.

 

ZEHR, H. Trocando as lentes: Justiça Restaurativa para o nosso tempo. 3. ed. São Paulo: Palas Athena, 2018. 331 p.

 

Encontrou algo a ajustar?

Ajude-nos a melhorar este registro. Você pode enviar uma correção de metadados, errata ou versão atualizada.