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Professores Da Educação Profissional: Reflexões Sobre A Formação Docente

Ana Maria Freitas Teixeira

O artigo objetiva refletir sobre a formação dos professores que atuam na educação profissional e tecnológica. Observa-se a legislação que se multiplica nos últimos anos e sua desarticulação interna, bem como limitado impacto no cenário das escolas que oferecem esta modalidade educacional especialmente quando, inclusive, a formação profissional se coloca como um dos itinerários formativos do novo ensino médio. Por outro lado são inegáveis as mudanças no mundo do trabalho que impactam sobre a educação e a formação docente em um contexto de pouca articulação e clareza quanto a formação inicial e continuada desses profissionais.

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TEIXEIRA, Ana Maria Freitas. Professores da Educação Profissional: Reflexões Sobre a Formação Docente. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2023 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/648-professores-da-educa%C3%A7%C3%A3o-profissional-reflex%C3%B5es-sobre-a-forma%C3%A7%C3%A3o-docente. Acesso em: 16 out. 2025.

Professores da Educação Profissional: Reflexões Sobre a Formação Docente

A questão da formação docente, em especial da formação daqueles que atuam na educação profissional nem sempre ocupa lugar privilegiado nos debates sobre a temática. Simultaneamente, a educação profissional, locus em que esses profissionais atuam, ganhou certa evidencia ao ser considerado como um dos itinerários formativos do Ensino Médio em suas alterações mais recentes.

Uma preocupação mais sistematizada quanto a formação dos professores da educação profissional só se evidencia em 2012 com a Diretrizes Curriculares da Educação Profissional Técnica de Nível Médio (BRASIL, 2012, p.22) e as Diretrizes para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica (BRASIL, 2015). Nesses documentos a formação superior aparece como requisito para atuar na área indicando, também, que essa exigência deveria ser assegurada até 2020 mediante a oferta de formação em serviço direcionadas para licenciatura, de modo a habilitar os docentes ao desenvolvimento de prática pedagógica capaz de dialogar, inclusive, com as mudanças aceleradas no mundo do trabalho otimizando a formação oferecida aos jovens.

Em 2017 a promulgação da Lei n.13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (BRASIL, 2017) altera a LDB (BRASIL, 1996) e legaliza o notório saber como requisito para o exercício docente no ensino médio. Em análise a Lei de fevereiro de 2017 o Conselho Nacional de Educação produz o Parecer CNE/CEB nº 3, de 8 de novembro de 2018. Na sequencia teremos as Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2018) que trata do tema em três parágrafos. O documento indica a necessidade de formação em licenciatura, mas assegura a possibilidade de profissionais com “comprovada competência técnica referente ao saber operativo de atividades inerentes à respectiva formação técnica e profissional” possam atuar ministrando “conteúdos afins a sua formação ou experiência profissional” nos itinerários formativos profissionalizantes. Além desses podem atuar também no ensino médio aqueles graduados que tivessem concluído uma complementação pedagógica ou uma pós-graduação stricto sensu direcionada a docência na educação básica. Observando essas determinações legais, mais uma vez nos parece que se caminha na contracorrente de todo um debate voltado a superar a ideia de que para educação profissional seria o bastante a transmissão de técnicas.

Como se vê a formação de professores no Brasil segue em meio a múltiplas legislações e pouca clareza quanto ao perfil formativo necessário. Além disso, quando os documentos oficiais são examinados mais de perto é possível observar os desencontros sobre critérios e premissas para a formação dos professores da Educação Profissional e Tecnológica onde se vê uma frágil articulação entre notório saber e formação pedagógica.

O balanço realizado por Tozzeto e Gois Domingues (2020) em torno de uma amostragem de 14 dissertações e 3 teses disponíveis na Plataforma Sucupira, repositório da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), entre os anos de 2013 e 2017, que tratam sobre a formação desses docentes nos indica aspectos importantes especialmente porque esses estudos adotaram como campo empírico as instituições públicas que oferecem a modalidade sequencial da formação profissionalizante. Vale aqui lembrara que em 2017 foi homologada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) na qual a formação profissional é um dos cinco itinerários formativos indicados.

Retomando o balanço produzido por, Tozzeto e Gois Domingues (2020) observa-se que os dados levantados nas dissertações e teses assinalam que a formação em bacharelados e em cursos tecnológicos superiores era traço característico da formação dos professores que atuavam nas instituições profissionalizantes estando a formação pedagógica submetida a efetivação de ações de formação continuada em serviço. Esses profissionais vão estruturando a formação e a prática pedagógica diretamente em sala de aula, quando já estão diante de seus alunos, com o auxilio de colegas mais experientes, sempre que possível, e dos setores de apoio pedagógico, quando eles existem. As pesquisas recenseadas apontam que os docentes que atuam nas instituições pesquisadas experimentam, na prática, os reflexos desse cenário, bem como os alunos, indicando que “saberes experienciais e disciplinares não estão se bastando para o exercício da docência na Educação Profissional e Tecnológica”

Se para analisar os movimentos de avanços e retrocessos das ‘políticas’ de formação de professores no Brasil é fundamental entender as transformações que afetam a sociedade, do mesmo modo, para entender os percalço da formação dos professores do ensino profissionalizante é forçoso considerar as mudanças que tem marcado o mundo do trabalho.

De fato, as mudanças ocorridas no mundo no trabalho implicaram (e implicam) em amplos desdobramentos que atravessam distintas dimensões da vida em sociedade. Portanto, seria de se esperar que a formação e o trabalho dos professores, em especial daqueles vinculados a educação profissional, sofresse igualmente (mas não de modo automático) transformações em sua forma e conteúdo num movimento ancorado, também, nas políticas educacionais implantadas a partir de 1990 e que se intensificam a partir dos anos 2000.

Entretanto, parece-nos que as especificidades são absolutamente pontuais e que esse aspecto do debate sobre a formação docente se insere num modelo de educação, e, portanto de formação de professores, que abrange todos os níveis e modalidades de ensino, parte de um plano governamental em marcha desde a primeira metade dos anos de 1990. Em que pese esse caráter pontual não se deve minimizá-lo uma vez que tal perspectiva poderia significar a ocultação do controle da profissionalização docente via currículo por competências, ponto que discutiremos mais adiante.

De fato o que se verifica é que, apesar de todos os debates sobre formação docente, da importância desse aspecto para a construção de uma educação básica capaz de promover melhores condições de aprendizagem e qualificação para jovens e adultos e, apesar das exigências objetivas e subjetivas que se multiplicam aceleradamente no mundo da produção quando tratamos do perfil do trabalhador, não se observa uma ação claramente direcionada para a formação de professores que atuam no ensino técnico.

A esse respeito Burnier e Cruz (2007) observam:

 

Referimo-nos tanto ao reconhecimento, por um lado, do importante papel desempenhado pelos saberes do mundo do trabalho em sua constituição como docentes quanto, por outro lado, das importantes limitações impostas pela falta de acesso a um debate mais qualificado sobre a função social da escola e da educação profissional, informados pelo debate entre educação tecnológica, ensino técnico e formação humana. (p.356)

 

Ainda sobre esse aspecto Simão (2004) observa o caráter reativo das políticas de formação docente para a educação profissional no Brasil, ou seja, essas políticas costumam responder às exigências impostas social e economicamente, sem contar com um planejamento que garanta o estabelecimento de estruturas formativas definidas claramente.

Desse modo, para nos aproximarmos, ainda que de forma limitada, da questão da docência na educação profissional retomamos a narrativa de um professor educação profissional que nos relata sua trajetória em direção à docência, uma vez que tal relato pode nos auxiliar a melhor compreender a questão. O narrador, agora chamado de Professor, atua há 23 anos em uma instituição de ensino profissionalizante federal. Em seu longo caminho docente o Professor vivenciou muitas mudanças na instituição em que trabalha e viu o mundo trabalho passar por diversos processos de reconfiguração incidindo diretamente no perfil de seus alunos, nos conteúdos, no profissional demandado pelo mercado de trabalho e nos modos de ensinar.

Docência na educação profissional

Docência e trabalho, enquanto atividades humanas são processos em permanente construção cujos sujeitos envolvidos são o produto de processos educativos que se efetivam em interações sociais, culturais e políticas envolvendo subjetividades e singularidades dos contextos de ensino.

A profissão de professor, portanto, se associa à construção de um conjunto de habilidades práticas, teóricas, metodológicas que exige, continuamente, a tomada de decisões, num trabalho que tem outros seres humanos como, simultaneamente, “sujeitos”, “objetos” e “produtos” do processo de produção do trabalho pedagógico docente, trabalho caracterizado também pela reciprocidade do ato de educar que envolve escolhas e possibilidades, valores morais e culturais (PARO, 2004).

Tendo esse entendimento, consideramos que não existe um modelo de formação de professores a priori. As demandas de formação de professores nascem como respostas às mutações ocorridas no mundo do trabalho e nas relações sociais e se configuram a partir das posições assumidas frente aos projetos pedagógicos apresentados por grupos hegemônicos. Ainda assim, acredita-se que a formação docente, seja a formação inicial, seja a formação continuada para profissionais da Educação e da Educação Profissional e Tecnológica, deve estar pautada na heterogeneidade dos sujeitos e realidades educacionais, bem como nos diferentes níveis de experiência e mobilização dos professores para contextos formativos.

De fato, são múltiplos os caminhos que levam à docência e, especialmente na educação profissional, nem sempre esse caminho se encontra marcado por uma sólida formação pedagógica. É certo que a valorização de uma formação didático-pedagógica de natureza teórico-reflexiva em nada significa reduzir ou menosprezar a dimensão da formação pela prática (CHARLOT, 2005), seja no âmbito da docência e mesmo de outras profissões (TEIXEIRA, 2003). Pelo contrário, consideramos que a articulação entre essas duas dimensões pode, em muito, contribuir na construção de uma educação profissional que dialogue criticamente com as transformações nas formas de produzir e reproduzir a vida material e mesmo a não-material das sociedades humanas.

Vejamos quais as considerações que o Professor apresentou ao traçar o caminho até a sala de aula :

 

Eu sempre gostei de trocar ideias, (...), e sempre gostei de estudar e, por sorte, eu tive lá um professor de matemática, (...)  que me inspirava muito, um bom professor (...) eu estudava o assunto antes. Depois das aulas, quando os alunos demonstravam dificuldade ele pedia ‘(...) você fique com eles ai tirando dúvida’, então a coisa começou...eu comecei a me animar assim (...), ele passou a viabilizar aula particular pra mim em domicilio..então a coisa começou assim..dava aula.

 

Dar aulas particulares de matemática na infância parece emergir como uma experiência fortemente positiva que reúne, numa via de mão dupla, o prazer de estudar matemática e de ensinar: prazeres que vão desaguar na opção do Professor João pelo curso superior de Engenharia Civil. A formação em engenhara distanciou o Professor João do ensino ao longo de sua carreira de engenheiro, pois continuou com as aulas particulares durante o curso superior e mesmo depois de tê-lo finalizado e ingressar numa empresas de construção civil.

Então a partir desse momento eu era engenheiro e professor....então, nessa época, eu era engenheiro, trabalhava numa empresa de engenharia e ai comecei a dar aula (...) como professor substituto e nesse mesmo ano eu ingressei na escola (profissionalizante). (Professor )

 

São mesmo muitos os caminhos que podem conduzir um engenheiro à docência, a tornar-se professor de uma escola de educação profissional em que pese o fato de sempre ter lecionado nos cursos vinculados à sua área de formação, tais como Edificações, Técnico em Construção Civil, e sempre responsável por disciplinas de formação técnica (Instalações elétricas, materiais de construção, etc.).

Em verdade, não podemos afirmar que em certos cenários fosse simples encontrar profissionais com formação técnica especifica combinada à formação pedagógica para comporem o quadro docente das unidades de ensino da rede federal de educação profissionalizante. Certamente esse tipo de dificuldade não foi superado em que pese a rede federal de educação profissional já ter completado mis de cem anos (1909-2023).

Seguindo nessa direção podemos entender que a cada momento de desenvolvimento econômico e social correspondem projetos pedagógicos e a esses se vinculam diferenciados perfis de professores de modo a responder às demandas dos sistemas social e produtivo com base na concepção dominante.

A lógica pedagógica em vigor por longo período, vinculada organicamente a divisão social e técnica do trabalho sedimentada pelo modelo de organização da produção taylorista-fordista, visava responder às demandas de educação de dirigentes e trabalhadores dentro de uma clara definição de limites entre o instrumental e o intelectual.

Por seu turno o mundo da produção centrava-se num paradigma no qual as unidades fabris reuniam grande número de trabalhadores organizados numa estrutura rigidamente hierarquizada cujo objetivo estava em produzir em massa, produtos pouco diversificados, para responder a demandas relativamente homogêneas utilizando-se de uma tecnologia rígida e com processos de base eletromecânica rigorosamente estabelecidos, estando o espaço para inovação, criatividade e participação dos trabalhadores profundamente restrito.

Para atender a essa configuração o paradigma taylorista-fordista formulou tendências pedagógicas sempre conservadoras e fundadas na separação entre ação e pensamento. Esse modelo pedagógico se articulou em torno de proposições que oscilaram entre a concentração nos conteúdos ou nas atividades práticas. Nesse cenário não se coadunava a preocupação de observar a relação estabelecida entre o aluno e os conhecimentos estudados com o intuito de assegurar a integração entre a teoria e a prática na perspectiva da conquista do domínio intelectual. Assim, os conteúdos tendiam a ser fortemente selecionados e organizados sob uma concepção positivista de ciência, fragmentada e linear perdendo-se a vinculação com as relações sociais e produtivas

Esse modelo mostrava-se bem adequado para a educação de trabalhadores que se ocupavam em executar, sem grande variação, as mesmas tarefas e atribuições exigidas por processos técnicos de base rígida sendo suficiente para tanto alguma escolaridade e muita experiência (KUENZER, 1998). Assim, com base em memorizar e repetir na seqüência adequada os passos exigidos para cada operação estava centrada uma pedagogia voltada à uniformidade de respostas para procedimentos padronizados, tanto no trabalho quanto na vida social. (KUENZER, 1999)

Esse modelo determinou um perfil de professor cuja habilidade em oratória sobrepunha-se à formação científica centrada nos conteúdos da área especifica e na educação. Desse modo era perfeitamente razoável que sua formação fosse em outra área profissional correlata à disciplina a ser ministrada sendo suficiente compreender e bem transmitir o conteúdo escolar que compunha o currículo, assegurar boa disciplina e respeito garantindo o processo de transmissão dos conteúdos.

Ocorre, entretanto, que ao longo das últimas décadas, o processo intensificado de globalização e reestruturação produtiva mudou profundamente o modelo de desenvolvimento econômico hegemônico. Essa alteração do cenário trouxe novas demandas de formação aos trabalhadores bem como aos professores, especialmente àqueles vinculados à educação profissional. Ao domínio do conteúdo somaram-se outras exigências associadas ao domínio de metodologias de ensino capazes de viabilizar aos estudantes a utilização de conhecimentos científicos e tecnológicos que os tornassem aptos a intervir no cotidiano da produção gerando, dessa forma, novos conhecimentos.

Nesse panorama a crescente incorporação de ciência e tecnologia aos processos produtivos e sociais acaba por gerar um quadro de contradição aparente. Uma contradição baseada na combinação entre tarefas que se tornam mais simples, mas assentadas em tecnologias mais sofisticadas, e níveis mais elevados de conhecimento do trabalhador. Esse binômio acabou produzindo uma pressão pela elevação da escolaridade dos trabalhadores. Assim, a relação entre trabalho e educação fundada, no taylorismo-fordismo, sobretudo nas ‘artes de fazer’ (CERTEAU, 2008), na força física, no trabalho manual passa, progressivamente, a ser mediada pelo conhecimento.

A substituição da base eletromecânica pela base microeletrônica trazendo flexibilidade atinge todas as dimensões da vida social e produtiva nos últimos anos e assim as exigências migram para o desenvolvimento de habilidades cognitivas e comportamentais.

Em lugar de memorizar procedimentos demanda-se a capacidade de colocar em uso o conhecimento científico de diferentes áreas para resolver problemas inesperados implicando, a princípio, num maior domínio de conteúdos e formas intelectuais de elaborar o trabalho, tornando-se exigência básica educação inicial e continuada tendencialmente mais complexas. Exigem-se igualmente novos comportamentos, as práticas individuais são substituídas por procedimentos cada vez mais coletivos e formas de controle devem ser internalizadas pelos trabalhadores (KUENZER, 1999).

Num cenário com tais alterações demanda-se por uma educação dita de “novo tipo” que parece apontar para a expansão de processos pedagógicos sistematizados que significam o alargamento dos processos escolares e, para tanto, um professor de outro perfil seria necessário.

Esse sucinto desenho do panorama nos indica algumas pistas sobre as características esperadas desse professor de novo tipo, quais sejam: capacidade para entender as mudanças ocorridas no mundo do trabalho e seus desdobramentos sobre a dimensão pedagógica das relações sociais e produtivas, de modo a identificar as novas demandas da educação e os interesses que estão em jogo. Isso significa dizer um professor preparado para intervir nos processos pedagógicos amplos e específicos, institucionais e não institucionais, um professor com formação teórica para compreender esses processos em articulação com a sociedade, sem perder de vista a crítica.

Sob esses aspectos notamos um indicativo, no mínimo curioso, ao analisar a fala do Professor que vivi positivamente uma ação institucional voltada para a formação dita pedagógica. As palavras do Professor apontam os efeitos ampliados que essa experiência produziu.

 

Fiz o curso de licenciatura plena aqui já na Instituição [refere-se a escola profissionalizante], Licenciatura Plena na área de construção civil, com ênfase para materiais de construção uma coisa assim (...)  então fiz esse curso e gostei porque isso aliou a parte técnica com a parte pedagógica e talvez isso ai tenha me impulsionado pra gostar mais ainda do quanto gosto da área de ensino. (Professor)

 

Aliar a formação técnica à formação pedagógica é de fato um desafio constante quando tratamos da docência no universo das instituições profissionalizantes. Num mundo do trabalho marcado pela ascensão de um novo paradigma de produção, caracterizado pela utilização de novas tecnologias e formas de organização do processo produtivo, observa-se claramente as alterações no conteúdo e natureza do trabalho. Decorre daí exigências voltadas à qualificação da força de trabalho que não se limitam ao campo técnico (VALLE, 1997).

Mudanças dessa magnitude atingem os professores em geral e, particularmente, aqueles diretamente envolvidos em processos de formação profissional em nível médio. Pensar, diante desse panorama, em docentes detentores de conhecimentos técnicos, mas fragilmente preparados para lidar com as particularidades dos processos de ensino-aprendizagem pode, por si só, ser objeto de preocupação se considerarmos, tão somente, o perfil do jovem profissional de nível técnico que se apresenta ao mercado de trabalho.

Para enfrentar esses desafios, lançados igualmente a professores e jovens estudantes de cursos técnicos, seria o caso de considerarmos que o conjunto dessas transformações requisita também um perfil de professor de novo tipo. Um perfil que implica no enfrentamento da intricada relação entre trabalho e educação em tempos de rápidas e intensas alterações não apenas na base material, mas igualmente, no âmbito das relações de produção.

Certamente se trata de um novo perfil bastante amplo, complexo e arrojado que poderia ser sintetizado pelo que há de especifico na função docente quanto à intervenção em processos pedagógicos intencionais e sistematizados e na capacidade de transformar o conhecimento social e historicamente produzido em saber escolar, ativando conteúdos e metodologias adequadas, expressando, em seu fazer educativo, sua vinculação ao grupo social ao qual se compromete (KUENZER, 1998a). A questão central está em demarcar a intencionalidade da ação docente como ação de formação evitando cair no discurso mais amplo, verdadeiro, mas incompleto, sobre o caráter pedagógico de todas as relações sociais e produtivas, o que levaria a supor que todos são professores sendo desnecessária uma formação específica, não havendo assim uma identidade desse profissional.

O relato que se vê abaixo indica a preocupação do Professor em compreender as mutações sofridas no papel que ele mesmo ocupa no processo formativo dos jovens técnicos, bem como sua percepção quanto às exigências continuadas no que se refere à qualificação dos profissionais. Além disso, encontramos a clara indicação da presença dos princípios das competências e habilidades como diretrizes pedagógicas no ensino profissional:

 

Porque o professor de hoje não é mais aquele professor de antigamente que chega dá aula e, muitas vezes, ditava o assunto, ou ele copiava num caderninho e colocava no quadro pra copiar, hoje o referencial não é mais esse, o professor hoje ele é um facilitador, então o professor hoje ele deve orientar o aluno, induzir o aluno a procurar a informação (...) aquela conotação de habilidades e competências que a gente consegui formar aqui na escola uma concepção de interdisciplinaridade isso, naquela época, foi muito bem, mas hoje a gente sente que há um desvio. (Professor)

 

Portanto, nos deteremos brevemente sobre as nuances que têm caracterizado as políticas mais recentes em torno da formação de professores no Brasil para destacar a centralidade que o conceito de competência tem assumido, buscando assim evidenciar que tal como os jovens que buscam inserção socioprofissional estão expostos à força da nova semântica do mercado de trabalho, os professores do Ensino Médio, especialmente aqueles vinculados à educação profissional, também são diretamente atingidos por essas mesmas exigências.

De fato, as reformas recentes no campo educacional têm mantido a vinculação entre educação e interesses do mercado. A formação de professores também faz parte desse conjunto de reformas que se intensificaram a partir do inicio dos anos 2000 sob o argumento fácil de que qualquer avanço na qualidade da educação estaria diretamente vinculado a mudanças nos princípios e ações formativas endereçadas a esses profissionais da educação. Vários documentos foram produzidos desde então e dentre eles o conceito de competências emerge como central na formulação do que se convencionou chamar de "novo" paradigma educacional. Apesar de todas as polêmicas em conceituar competências, nos documentos oficiais para a formação de professores encontramos a seguinte definição: “capacidade de mobilizar múltiplos recursos, entre os quais os conhecimentos teóricos e experienciais da vida profissional e pessoal, para responder às diferentes demandas das situações de trabalho”. (BRASIL, 1999, p. 61).

Por outro lado, o movimento que parece ter se desenvolvido é um processo de recontextualização do conceito que estreitou a vinculação educação e mercado reforçando uma relação determinista entre o desempenho do professor e o de seus alunos. Uma formação embasada no desenvolvimento de competências aponta em grande medida para dois aspectos: a) uma lógica de profissionalização que permite um controle distinto da aprendizagem e do trabalho docente; b) uma concepção de ensino que tende a minimizar o conhecimento teórico e sua mediação pedagógica; uma combinação de elementos que abre forte possibilidade para que a prática acabe ocupando o papel de maior relevância em detrimento de uma formação intelectual e política dos professores (DIAS, 2002; MACEDO, 2002.)

Ganham visibilidade no mundo globalizado, princípios como a avaliação do desempenho, currículo por competências, promoção por mérito e os conceitos de produtividade, eficiência e eficácia se difundem. A esse discurso mais global somam-se especificidades locais que, guardando uma tensão permanente, não poucas vezes, constituem uma bricolage de práticas e teorias diversas que são traduzidas e ressignificadas (BALL, 2001; LOPES, 2002). Trata-se, contudo, de um processo que tende, fortemente, a produzir discursos e ações muitas vezes ambíguos. É exatamente num movimento desse tipo que se procura construir o consenso em relação às ações de governo fundadas na legitimação da idéia de mudança e de qualidade da educação onde se insere a legitimação das reformas.

No caso do Brasil é comum o estabelecimento de uma associação entre o fraco desempenho na aprendizagem dos alunos e a formação insuficiente do quadro docente, o que justificaria as alterações decorrentes dos vários documentos oficiais que tratam do tema da formação de professores brasileiros. Busca-se, assim, o compromisso por parte do professor na implementação de reformas, de novos currículos, de novas ferramentas avaliativas e, simultaneamente, um mecanismo de controle da ação docente.

Um olhar mais cuidadoso pode nos levar a considerar que o processo de avaliação de competências acaba, em verdade, funcionando como controle da formação de professores à medida que se busca a redefinição do processo de formação contínua com base na concepção de competência profissional. Em verdade, encontraremos nas teorias curriculares instrumentais as bases para a relação que se estabelece entre competências e controle do trabalho docente, bem como para sua vinculação com a profissionalização dos professores.

Palavras finais

 

O conceito de competência como balizador da formação docente assume lugar central nos documentos oficiais enquanto "novo" paradigma que contribui para sustentar os argumentos que defendem a necessidade da escola estar em harmonia com as mudanças da sociedade e, portanto, ajustada ao mercado de trabalho. Seja nos Referenciais como nas Diretrizes salienta-se o conjunto das novas tarefas a que a escola deveria responder, dentre as quais esta o imperativo de ressignificar o ensino como caminho para responder aos desafios do mundo contemporâneo. As Diretrizes, inclusive, indicam que essa necessidade de ressignificação vincula-se a potencializar transformações sociais necessárias sem, contudo, indicar quais seriam elas.

Nesse movimento de readequação das políticas de formação docente observa-se também a combinação entre elementos conservadores e de renovação. No campo da renovação poderíamos apontar a busca por uma escola que procura aproximar-se da comunidade e da família indicando o interesse em criar ambientes ao desenvolvimento das novas competências desejáveis para a inserção no mundo atual, a exemplo da capacidade de inserção em contextos diversificados de trabalho e em mudança constante. Como aspecto mais tradicional e conservador está a preocupação em levar a escola a responder aos interesses de mercado, aspecto de que já falamos anteriormente.

Os Referenciais apontam claramente para o desafio em "consolidar um novo perfil profissional muito diferente do convencional" (p.45), um novo "modelo de professor" (iden, ibid.) numa leitura que visa vincular, diretamente, o desempenho do professor e do aluno como um dos pilares defendidos na formação docente.

Por outro lado, o caráter flexível dos currículos de formação de professores se sustenta no argumento da liberdade aos diferentes percursos na formação de cada docente. Essa flexibilidade tende a valorizar o caráter individualizante das competências ao promover a modularização do ensino na perspectiva do aprender a aprender. Cabe ao professor desenvolver suas competências

Entretanto, é importante lembrar que as relações entre disciplinas escolares e competências são mais complexas do que se quer fazer parecer. As competências não têm conteúdo próprio dado que os conteúdos que elas mobilizam podem variar de acordo com o desempenho que se pretende desenvolver. Afinal, a formação de competências e habilidades demanda conteúdos de diferentes disciplinas que se articulam conforme as exigências das situações concretas, ou seja, podemos ter competências associadas a disciplinas sem que dependam de um conteúdo disciplinar. De outro modo as competências podem estar vinculadas a várias disciplinas.

Portanto, a presença forte das competências no que se refere a aprender a ser professor, pede ênfase no conhecimento prático destacando que saber-aprender um conceito é muito distinto de saber e aprender um trabalho.

Assim, um olhar mais apurado pode nos auxiliar a compreender os limites e os “enjeux” (jogo de forças) que se difundem sob o manto de uma dita ‘nova semântica’, bem como as conexões estreitas entre políticas de formação de professores, especialmente no que se refere à educação profissional, e as exigências do mundo do trabalho.

Hoje eu me preocupo com isso [refere-se às mudanças no mundo do trabalho], (...), o professor não pode ser mais aquele professor que tinha aquele caderninho amarelado (...) se o professor não tomar cuidado ele pode estar a reboque, então isso é evidente em mim, eu concluo que o professor hoje tem que ser bom na informática, tem que fazer cursos, tem que fazer, tem que participar de congressos (...) não pode ficar no caderninho amarelo.(Professor)

 

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