Autonomia refere-se à capacidade de um indivíduo, organização ou sistema tomar decisões próprias, e exercer controle sobre suas ações, sem depender excessivamente de influências externas. No campo da educação brasileira, a autonomia foi difundida pelos escritos de Paulo Freire (1921-1997), entendendo-a como caráter fundante da prática docente e do trabalho pedagógico alinhados à pedagogia libertadora de educação, em contraposição à “educação bancária” da pedagogia tradicional. Devido ao seu interesse por questões da educação popular e da alfabetização de jovens e adultos, também tendo relação com o movimento de renovação da Igreja Católica nos anos de 1950, Freire orientou seus trabalhos no entendimento de que a solidariedade com os mais pobres (Cordeiro, 2019) era fundamental para docência, principalmente aquela que tem como ambiente de trabalho o cotidiano das escolas públicas.
A autonomia, na visão de Paulo Freire, é a capacidade dos indivíduos de pensar de forma independente, tomar decisões informadas e agir de acordo com suas próprias convicções. Ele acreditava que os/as educadores/as deveriam criar ambientes de aprendizado que valorizassem a participação ativa dos/as alunos/as, permitindo-lhes explorar tópicos relevantes para suas vidas e contextos culturais. Nessa perspectiva, a autonomia está profundamente ligada à capacidade dos indivíduos de se engajar criticamente com o mundo, de questionar, de se tornar agentes ativos de sua própria aprendizagem, e de se envolver na transformação positiva da sociedade. Essa autonomia não apenas está direcionada ao sujeito educando da relação ensino-aprendizagem, como também se volta para a constituição da identidade do trabalho docente. O objetivo do trabalho docente e pedagógico, nessa leitura freireana, que tomou corpo em diversos cursos de formação de professores no Brasil ao longo do último século, se inscreve em uma prática que tem como compromisso a cooperação “no processo de conscientização e de libertação dos oprimidos, no sentido da instauração de condições para a construção coletiva e autônoma de uma sociedade nova, em que não haja mais dominantes nem dominados” (Cordeiro, 2019, p. 183).
A partir dessa configuração que tomou conta dos currículos dos cursos de formação docente no Brasil, compreendemos que o sujeito docente tem a responsabilidade de transmitir conhecimento, orientar os/as alunos/as em seus estudos, e avaliar o aprendizado com o comprometimento da ação-reflexão-ação, ou seja, de uma prática consciente e crítica. Utilizaremos neste trabalho o termo “sujeito docente” no âmbito da “professoralidade” (Pereira, 2016), para nos referirmos ao papel ativo que os/as professores/as desempenham no processo educativo, sendo, então, agentes que lideram e facilitam a aquisição de conhecimento por parte dos/as alunos/as.
Na abordagem pós-estruturalista, o termo “professoralidade” sugere a compreensão de que o sujeito docente “se produz em uma prática de ensinar, de trabalhar na formação de outros sujeitos, em uma prática de educar”, já que “é alguém que escolhe esse caminho como via de percurso no mundo” (Pereira, 2016, p. 13). A partir do entendimento de que o sujeito docente se constitui por meio da produção de “diferenças”, e longe de constituir um “perfil profissional do professor” ou uma “identidade do professor”, é importante compreender que “tornar-se professor [...] significa uma diferença na história de cada sujeito. E, para fugir da captura pelo estereótipo formal, do identitário, é cada vez mais fundamental assumir o risco da experimentação de si” (Pereira, 2016, p. 18).
A profissão docente, com o passar dos anos, tem se inscrito em uma discursividade própria que se destaca como “pouco compensadora em termos de remuneração, mas aparentemente capaz de oferecer aos seus praticantes inúmeras outras compensações de ordem pessoal, moral, espiritual, filosófica ou política” (Cordeiro, 2019, p. 42). Desta forma, o sujeito docente no processo educativo influencia diretamente o desenvolvimento intelectual e acadêmico dos/as estudantes, desempenhando um papel importante no desenvolvimento de suas habilidades sociais, éticas e emocionais. Sendo assim, estes/estas não apenas compartilham conhecimento, mas também inspiram, motivam e são orientados/as em suas jornadas de aprendizado.
Esse artigo é fruto de um recorte da pesquisa realizada entre os anos de 2017 e 2019 com professoras servidoras públicas de escolas da rede municipal de ensino da Região Metropolitana de Recife, Pernambuco. A pesquisa titulada por “É a escola dos meus sonhos, mas não é a escola pública”: o que (des)aparece no currículo entre desejos e fantasias, teve o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e o objetivo de compreender como professoras servidoras públicas dos anos iniciais da educação básica constituem subjetividades coletivas que estruturam e mobilizam sentidos em torno da prática curricular. A partir de uma abordagem discursiva e pós-estrutural de pesquisa, discutimos como os desejos e as fantasias, em uma leitura de análise social advinda das contribuições da psicanálise lacaniana, interpelam a subjetividade e o trabalho docente por meio da identificação que as professoras apresentaram com a profissão. Na pesquisa, foram desenvolvidas narrativas com o uso de entrevistas, e a análise partiu da relação conceitual e teórica entre a Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e a Análise do Discurso Francesa de Dominique Maingueneau. O objetivo desse artigo, então, é compreender como a autonomia docente é construída por professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental, a partir da análise de suas narrativas em torno da estruturação do trabalho docente e pedagógico. Para tanto, tomamos como referência a compreensão de currículo como prática discursiva e cultural que se relaciona de forma intrínseca ao trabalho docente e pedagógico.
A seguir, desenvolvemos a abordagem teórico-metodológica do trabalho, considerando as possibilidades do diálogo entre a Análise do Discurso e a Teoria do Discurso; a nossa compreensão em torno da autonomia e do trabalho docente; e apresentamos os fragmentos das entrevistas realizadas com as professoras. Por fim, tecemos as nossas considerações sobre o tema.
A teoria do discurso desenvolvida e sistematizada por Ernesto Laclau (1935–2014) e seus articuladores (Chantal Mouffe, Alice Casimiro Lopes, Gustavo Gilson Sousa de Oliveira, Rita Frangella, Judith Butler, Slavoj Žižek, Jason Glynos, entre outros/as), possui referências teóricas relacionadas a filosofia heideggeriana, filosofia analítica, filosofia da desconstrução, ao marxismo, estruturalismo e pós-estruturalismo. Em crítica a concepção estruturalista da análise social, que tem como objetivo identificar regras, verdades e leis que perpassam explicações de causa e efeito na dinâmica social, a abordagem estrutural tem como tentativa identificar e definir um “centro” discursivo das práticas sociais no contexto das práticas comunicativas (Mendonça e Rodrigues, 2014).
Na abordagem de pesquisa pós-estrutural o problema do estruturalismo não é a busca pelo centro, mas a função que este assume de “fundamento estrutural transcendente”, pois, ao considerá-lo fixo, é possível inseri-lo fora do jogo que ele mesmo preside em torno de sua própria constituição. Nessa compreensão, o centro, quando assume uma função transcendental, não torna possível identificar os mitos que regem a sociedade (Mendonça e Rodrigues, 2014). Isso porque no âmbito da realização de uma pesquisa social, “na medida em que a linguagem não representa a realidade, qualquer significado pode ser atribuído a um significante e isso é um processo cultural” (Lopes e Macedo, 2011, p. 39).
Para Alice Casimiro Lopes (2018), a teoria do discurso é produtiva para o campo da pesquisa educacional por valorizar “dimensões conflituosas e indeterminadas, porque contingentes, da política”, fazendo compreender um conceito de política como “não racionalista, sem um centro que determine sua direção, sem sujeitos conscientes e identitariamente orientados para dada estratégia ideológica” (Lopes, 2018, p. 136).
Gustavo Oliveira (2018) ressalta que não há modelo metodológico “sistemático e unificado” que pode ser “adotado ou aplicado nas pesquisas discursivas”, já que
cada pesquisa precisa construir seu próprio objeto de estudo através da problematização da realidade estudada e da articulação dos conceitos teoréticos com os elementos/momentos que constituem discursivamente essa realidade; precisa elaborar sua própria estratégia metodológica de acordo com as características do objeto proposto e da problemática delineada. (Oliveira, 2018, p. 171).
O autor comenta que “discurso” e “discursividade” vai além das “enunciações através do código linguístico”, tendo como referência as “regras de associação e atribuição de sentido que estruturam não somente a produção simbólica [...]”, como também a “construção da própria materialidade do mundo” (Oliveira, 2018, p. 171). Priscylla Dias (2019) comenta que Gustavo Oliveira (2018), ao propor uma abordagem investigativa de articulação entre a análise do discurso francesa e a teoria política do discurso, exercita movimentos investigativos de possibilidades da realização de uma pesquisa em educação que atua na referência teórica discursiva e pós-estruturalista. Desta forma, uma abordagem nestes termos está cunhada na teoria do discurso, tendo como contribuição a análise do discurso francesa enquanto recurso investigativo.
A pesquisa que desenvolvemos com as professoras servidoras públicas de escolas da rede municipal de cidades da Região Metropolitana de Recife (Pernambuco) foi constituída por meio de entrevistas. A entrevista é perpassada por relações de poder, inscrevendo os sujeitos participantes (quem entrevista e quem participa na condição de entrevistado/a) em posições sociais e discursivas (Rocha et al., 2004). Neste sentido, Maingueneau (2015, p. 48) compreende que uma análise do discurso objetiva “as propriedades do próprio gênero do discurso, os papéis sociodiscursivos que põe em relação”, no caso em questão, a entrevistadora/pesquisadora e a entrevistada/sujeito participante.
Priscylla Dias (2019) ressalta que a entrevista é uma arena de linguagem que mobiliza aspectos de um jogo de convencimento em torno de si mesmo durante a enunciação, sendo possível dizer que o os sentidos constituídos pelos sujeitos participantes são ressignificados e reelaborados de acordo com a sistematização do conteúdo. No contexto da pesquisa acadêmica, a entrevista possui um modo singular de atualização através de práticas de linguagem que autorizam a produção de textos que serão validados por um grupo de especialistas no assunto. A entrevista acadêmica, neste sentido, é um “dispositivo enunciativo” que tem como base um conjunto de conhecimentos já constituídos. Desta forma, a entrevista não pode ser considerada como ferramenta ou técnica (Rocha et al., 2004).
As formações imaginárias constituem uma identificação discursiva tanto pelo sujeito que enuncia (sujeito locutor, enunciador), quanto pelo sujeito que participa da enunciação (sujeito interlocutor, coenunciador). Essa identificação é remetida ao “ethos” que, por sua vez, não aparece explicitamente no enunciado, mas por meio do ritmo, da entonação, da escolha das palavras, e até mesmo do argumento utilizado no contexto de enunciação (Martins, 2007). Sendo assim, a entrevista é “um dispositivo de produção/captação de textos, um dispositivo que permite retomar/condensar várias situações de enunciação ocorridas em momentos anteriores”, sendo também “uma nova situação de enunciação que reúne entrevistador e entrevistado, situada num certo tempo, num espaço determinado, revestida de certo ethos, com objetivos e expectativas particulares, etc.” (Rocha et al., 2004, p. 16).
O ethos pode ser compreendido como dito e discursivo. O ethos dito apresenta informações físicas e morais do sujeito enunciante, informações relacionadas às apreensões sociais e psicológicas que conformam um mundo ético. Sendo assim, informações de tipo psicológico decorrem do ethos dito, em que há configuração de um mundo ético do sujeito enunciador pelo sujeito interlocutor que, por sua vez, estabelece equivalência entre o “ser” e o “dizer”. Se o ethos dito advém do enunciado, o ethos discursivo é influenciado tanto pela produção do texto, que o próprio sujeito enunciador realiza, quanto pela sua leitura, admitida pelo sujeito interlocutor. Isso porque se trata de um ethos “propriamente discursivo, mostrado, [que] é construído pelo destinatário a partir de índices que são dados pela [sua] enunciação” (Maingueneau, 2010, p. 84).
A categoria de ethos na análise do discurso corrobora para o entendimento do sujeito da educação enquanto discursivo e cultural. Neste sentido, pensar o trabalho docente e pedagógico é pensar a articulação entre processos e procedimentos subjetivos, sociais e políticos.
Helena Felício e Lourdes Possani (2017) compreendem que o desenvolvimento curricular possibilita traduzir a autonomia docente pela execução dos planos educacionais e escolares, seja no âmbito da seleção de conteúdos, na didática, ou até mesmo nos silêncios entre currículo prescrito e vivido. Entretanto, Alice Lopes e Elizabeth Macedo (2011) sugerem que não há como dissociar o currículo vivido do currículo prescrito e do currículo oculto, já que toda e qualquer configuração e enunciação curricular se traduz no próprio objeto que denominamos como currículo. Considerando as disputas no ambiente escolar, além da disputa pela seleção de conteúdos, se faz importante também o entendimento de que a disputa na produção de significados na escola não é restrita à escola, mas também “a todo um processo social que tem a escola como um lócus de poder importante, mas que não se limita a ele” (Lopes e Macedo, 2011, p. 93). Desta forma, podemos concluir que o desenvolvimento curricular traduz a autonomia docente por meio dos sons e dos silêncios do currículo como produção cultural.
Na escola pública, existe um modus operandi que regula e flexibiliza o currículo, podendo ajudar professores/as e gestores/as a compreender os impasses regulação e flexibilização do trabalho docente. Um exemplo são as leis e as diretrizes nacionais que permitem e estimulam a autonomia da escola e de professores/as, ao mesmo tempo em que as avaliações externas direcionam um padrão curricular em larga escala, suspendendo essa autonomia. É por isso que a autonomia docente não pode ser entendida como capacidade individual/pessoal de independência, associada a uma imagem de distanciamento e de isolamento, em que as decisões relacionadas à profissão são realizadas de modo solitário. A autonomia é concebida e implantada por meio da permanência das relações entre os sujeitos envolvidos com o contexto educacional e escolar ao qual pertencem (Felício e Possani, 2017).
A autonomia docente precisa se constituir enquanto um processo de reflexão crítica, em que as práticas, os valores e as próprias instituições sejam problematizadas, emancipando o profissional docente (Contreras, 2022). Apesar desse entendimento de autonomia como emancipação do profissional docente, é importante reconhecer que o currículo enquanto prática discursiva e cultural já assume possibilidades de intervenção em uma situação escolar do cotidiano. Isto porque o próprio conceito de emancipação é ressignificado por meio do entendimento de que em uma abordagem discursiva e pós-estrutural que a teoria do discurso proporciona, “o sujeito não existe antes da ação política, mas se constitui por essa ação. Portanto, a emancipação e o projeto emancipatório não existem fora da ação política. São construídos na medida em que atuamos politicamente” (Lopes e Macedo, 2011, p. 182).
O sujeito pleno - desalienado, emancipado, ilustrado ou consciente - não é pré-condição para a ação política, tal como identidades plenas (qualquer identidade) não só não se constituem como sequer são necessárias para as lutas políticas (e para o mundo, para a vida). O movimento em uma dada ação consiste na busca por preencher a falta da estrutura que constitui o sujeito. Assim, a ação de mudança (agency) é o horizonte da estrutura, o excesso de sentido (a heterogeneidade) que não pode ser simbolizado a não ser como lugar vazio. (Lopes, Oliveira e Oliveira, 2018, p. 17).
Quando se pensa no sujeito da educação, emergem atos educativos que condizem com a inscrição do sujeito docente em uma condição de ser viajante, ser sujeito da experiência, ser sujeito “ex-posto”. O sujeito da experiência, ex-posto, envolve uma maneira de exposição que envolve vulnerabilidade e riscos. Sendo assim, “se a experiência é o que nos acontece, e se o sujeito da experiência é um território de passagem, então a experiência é uma paixão” (Bondía, 2002, p. 26), paixão que evoca a tensão entre prazer e dor. Se tratando do trabalho docente, o território de passagem constitui fragmentos de diversas paisagens que se articulam com experiências-outras da configuração da prática pedagógica.
O sujeito ama a própria paixão, e assim o faz porque “o sujeito apaixonado não é outra coisa e não quer ser outra coisa que não a paixão” (Bondía, 2002, p. 26). Esses aspectos se voltam para a educação, os encontros, as significações atreladas pela prática de presença, de estar presente, porque está à disposição daquilo que simplesmente “nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (Bondía, 2002). No âmbito do trabalho docente, ocorre uma prática de aprendizagem, de troca, de pausas que permitem reflexões que podem aflorar sentidos de didática, prática curricular, trabalho pedagógico, aspectos que se articulam com o contexto de organização e de funcionamento do trabalho na escola e na sala de aula.
[Autonomia docente] é o poder, né. É o poder de executar o trabalho em si. Graças a Deus nessa escola [que eu trabalho], a gente [professora] nunca foi podado, não, sabe. [...] Então, a autonomia da… da… da professora, deve ser, na sua sala de aula, deve ser total. Pra que ela faça realmente os trabalhos sem aquele impasse de não pode. Antigamente a gente tinha aqui televisão nas salas. E eu gostava de trazer vídeos e mostrava os vídeos aos meninos. Em cima daquele vídeo eu fazia a minha aula e tudo. Hoje a gente não tem mais essa oportunidade porque ficou concentrado só no auditório, e eu não sei mexer ali [sorri], aí geralmente eu faço as minhas coisas. Mas eu tenho um videozinho pequeno e trago, mostro pra os meninos, e faço do jeito que eu quero, entendesse. O pessoal não bota obstáculo, não, graças a Deus. (Professora do 2º Ano do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Recife).
De acordo com José Contreras (2002), é importante não reduzir o significado da autonomia docente à reflexão e negociação que os/as professores/as têm nos limites do contexto ao qual socializam. Na visão do autor, é necessário ampliar a compreensão da autonomia docente para que o objeto de preocupações do trabalho não fique restrito à sala de aula e às questões imediatas que precisam de decisões do fazer didático.
O relato da Professora do 2º Ano do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Recife (EFRMR) relaciona a autonomia docente no âmbito da sala de aula, considerando, inclusive, o uso de tecnologias no processo do ensino-aprendizagem (“Antigamente a gente tinha aqui televisão nas salas. E eu gostava de trazer vídeos e mostrava os vídeos aos meninos. [...] Hoje a gente não tem mais essa oportunidade porque ficou concentrado só no auditório, e eu não sei mexer ali [sorri]”). O relato compreende um apelo discursivo a Deus como facilitador do caráter autônomo de seu trabalho pedagógico (“Graças a Deus nessa escola [que eu trabalho], a gente [professora] nunca foi podado, não, sabe”; O pessoal não bota obstáculo, não, graças a Deus”).
O ethos da Professora do 2º Ano EFRMR condiz com a alternância entre a primeira pessoa no singular (eu) e a primeira pessoa no plural (nós), significando a voz ativa de uma profissional que fala em nome do coletivo a partir de suas experiências profissionais: “a gente nunca foi podado”, “a gente tinha aqui”, “e eu gostava de trazer”, “eu fazia minha aula e tudo”, “a gente não tem mais essa oportunidade, “eu não sei mexer ali”, “geralmente eu faço as minhas coisas”, “eu tenho um videozinho”, “faço do jeito que eu quero”. A sua enunciação também traz expressões de felicidade quando menciona a terceira pessoa do singular (ela): “para que ela faça realmente os trabalhos”. Aqui temos um ethos experiente cuja tentativa de validar a sua enunciação ocorre por meio da menção aos outros discursivos do seu trabalho docente e pedagógico, colegas profissionais atuantes como docentes.
O “ethos experiente” é um conceito que se refere à credibilidade e à autoridade que uma pessoa ganha ao longo do tempo devido à sua experiência e conhecimento em um determinado campo ou área de atuação. Esse termo está relacionado à persuasão retórica, que envolve o uso de argumentos convincentes para influenciar uma audiência. A professora que é vista como ethos experiente significa a sugestão dessa enquanto uma fonte confiável e respeitável de informações ou opiniões dentro de seu domínio de expertise. Isso pode ocorrer devido a forma como a Professora do 2º Ano EFRMR menciona as suas realizações e contribuições notáveis no campo da alfabetização durante o desenvolvimento da pesquisa.
A recorrência ao outro discursivo, colegas da profissão docente, como forma de legitimidade da enunciação também ocorre na narrativa da Professora do Grupo IV da Educação Infantil da Rede Municipal de Jaboatão dos Guararapes (EIRMJG).
Eu entendo que... a autonomia docente a gente pode fazer aquilo que a gente quer, entre aspas, na sala de aula, mas seguindo algo maior, né, como eu sigo a... essa BNCC do município. Porque eu tenho que, até pra comprovar, assim, se algum pai vier cobrar alguma coisa, algum conteúdo, porque isso acontece muito. Ou a própria coordenadora, pra a gente poder apresentar: “eu tou seguindo isso aqui. Eu tou indo por um documento que é oficial”. (Professora do Grupo IV da Educação Infantil da Rede Municipal de Jaboatão dos Guararapes).
A Professora do Grupo IV EIRMJG compreendeu que a autonomia docente é a prática pedagógica vivenciada no âmbito da sala de aula ao longo do ano letivo escolar a partir das necessidades de aprendizagem dos/as estudantes. Entretanto, atender as necessidades de aprendizagem dos/as aluno/as não escapa da configuração curricular do município que, atualmente, atende à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), indicando que é necessário o documento oficial, prescrito, para fundamentar a comprovação do trabalho (“porque eu tenho que comprovar, assim, se algum pai vier cobrar alguma coisa, algum conteúdo, porque isso acontece muito”). O ethos da Professora apresenta a necessidade de comprovação do trabalho docente e pedagógico por fundamentação institucional, recorrendo a primeira e a terceira pessoa do singular (eu, a gente), e configurando esse como um ethos instituído.
O “ethos instituído” é um termo que se refere à credibilidade, autoridade e ética associadas à persuasão retórica e à influência sobre a percepção pública de suas ações, valores e comportamentos. Quando uma professora é considerada ter um ethos instituído, isso significa que ela é vista como confiável e respeitável devido ao seu comprometimento com valores éticos. Essa confiabilidade pode ser estabelecida por meio de práticas consistentes, conformidade com normas e regulamentos, e responsabilidade social.
O sentido da autonomia docente se realiza por meio de práticas colaborativas entre profissionais que trabalham em um mesmo contexto, tendo expressão no diálogo reflexivo, onde convicções pedagógicas e possibilidades de (re)organizá-las são aprendizados contínuos de reconstrução permanente da identidade profissional (Contreras, 2002). Desta forma, a autonomia docente se inscreve em um complexo de relações do cotidiano escolar, atuando de forma singular e ao mesmo tempo coletiva.
Eu acho que [a autonomia docente] vai muito disso aí. É... Tem um currículo, mas eu tenho a autonomia de trabalhar na minha sala da forma que eu acho adequada, pra o meu grupo, pra os meus alunos, da realidade deles. Essa autonomia, eu entendo autonomia docente dessa forma, sabe. É algo... Nessa turma é necessário ver isso aqui ao longo do ano e vira e mexe vem lá tudo arrumadinho, mas quando a gente bota o pé no chão, faz o planejamento diário, aí vem a autonomia do professor. Aí ele vai ter essa autonomia de como ele vai trabalhar esse conteúdo. Que… Que forma ele [o professor] vai dinamizar com as crianças. É... O que é que ele vai dar mais importância, mais ênfase. O que eles [os alunos] precisam aprender... Porque às vezes as crianças têm determinado tempo pra aprender, mas a gente ver que aquele grupo não alcançou. Então, a gente retoma, ver outras estratégias pra que eles [os alunos] venham alcançar. É... Eu acho que a autonomia docente parte desse princípio, sabe, da... do que ele [o professor] vai fazer em sala de aula. Ele tem autonomia com o seu grupo de fazer do jeito que ele achar melhor. (Professora do Grupo V da Educação Infantil da Rede Municipal de Paulista).
O ethos da Professora do Grupo V da Educação Infantil da Rede Municipal de Paulista (EIRMP) traz um sentido universo do discurso pedagógico quando se refere ao profissional docente no masculino (o professor), considerando a exemplificação de seu entendimento sobre autonomia docente a partir da terceira pessoa do singular (ele) que se sobrepõe ao “eu” da sua enunciação: “ele vai ter essa autonomia de como ele vai trabalhar”, “que forma ele vai dinamizar com as crianças”, “o que é que ele vai dar mais importância”, “do que ele vai fazer em sala de aula”, “ele tem autonomia com o seu grupo”. É interessante observar que a professora está a todo momento ressaltando o outro discursivo do gênero masculino para significar concepções que já realiza na prática (“quando a gente bota o pé no chão”), considerando a constituição de um ethos universal na configuração da autonomia de sua prática docente e pedagógica.
O termo “ethos universal” refere-se a princípios éticos, valores e normas que são considerados aplicáveis ou relevantes. Em outras palavras, o ethos universal sugere que existem elementos éticos que transcendem fronteiras culturais e são compartilhados pelos diferentes contextos do trabalho docente (“Eu acho que a autonomia docente parte desse princípio, sabe, da... do que ele [o professor] vai fazer em sala de aula. Ele tem autonomia com o seu grupo de fazer do jeito que ele achar melhor.”). Esses princípios éticos universais muitas vezes são considerados fundamentais para a promoção de uma determinada finalidade considerada enquanto ideal no procedimento do trabalho docente e pedagógico.
A avaliação educacional na educação infantil desempenha um papel fundamental no acompanhamento do desenvolvimento das crianças nessa faixa etária. No entanto, é importante entender que a avaliação na educação infantil difere significativamente da avaliação em níveis posteriores de ensino, como o ensino fundamental e médio. Entretanto, os aspectos avaliativos dos níveis posteriores não deixam de influenciar a organização do trabalho docente frente aos requisitos que atuarão enquanto necessários na formação da criança. O processo de desenvolvimento das crianças na educação infantil encontra no trabalho da professora o suporte pedagógico necessário para prosperar na formação escolar.
Com os ethos experiente, instituído e universal, podemos perceber que o estímulo à autonomia docente na escola perpassa um duplo movimento: ao mesmo tempo em que as avaliações externas impõem um padrão curricular em larga escala, mostra um paradoxo entre o que é comum ao currículo e uma forma única na apreensão dos resultados. Isso demonstra os limites e as possibilidades do desenvolvimento curricular na escola pública, apontando para a necessidade de uma análise sobre a regulação e a flexibilização do desenvolvimento curricular. Outro aspecto que condiz com o desafio da autonomia docente é quanto à flexibilização do conteúdo curricular, considerando a necessidade de os/as profissionais alcançarem a qualidade na escola pública (Felício e Possani, 2017).
A qualidade na escola pública é um tema crítico para garantir que todos/as os/as estudantes tenham acesso a uma educação de alto padrão, independentemente de sua origem socioeconômica ou local de residência. A qualidade da educação está intimamente ligada à qualidade dos/as professores/as. É fundamental que os/as professores/as sejam bem qualificados/as, tenham acesso a treinamento contínuo e sejam motivados/as para ensinar. De igual maneira, como vimos na fala das professoras, o currículo deve ser relevante para as necessidades dos/as alunos/as e deve ser atualizado para refletir as mudanças na sociedade e no mundo. Deve promover habilidades como pensamento crítico, resolução de problemas e criatividade.
Para que a qualidade da educação seja atendida, não basta apenas a melhoria nos aspectos de formação curricular dos sujeitos estudantes e da formação profissional docente, como também as escolas públicas devem ter recursos adequados, incluindo materiais didáticos, tecnologia, instalações seguras e bem conservadas, e financiamento suficiente para apoiar o ensino e a aprendizagem. Além das aulas regulares, as escolas devem fornecer apoio psicossocial para lidar com questões emocionais e sociais tanto dos/as alunos/as quanto das professores/as.
A implementação de sistemas de avaliação de desempenho para professores/as e alunos/as, bem como mecanismos de prestação de contas para as escolas e distritos escolares, têm criado uma responsabilidade com a melhoria contínua do trabalho pedagógico desenvolvido nas instituições públicas de ensino. Entretanto, avaliar o desempenho dos/as professores/as em relação aos padrões estabelecidos e garantir que eles/as sejam responsáveis por seu trabalho no ambiente educacional tem provocado efeitos de sofrimento e de angústia no contexto da identificação com o trabalho docente (Dias, 2019).
Os ethos das professoras significaram a autonomia docente como pertencente a um coletivo discursivo que se sobrepõe à prática individual da sala de aula. Os ethos apresentaram um certo sentido de ética profissional, seja compreendendo valores e crenças que guiam ações e decisões em um determinado grupo (ethos experiente), seja estabelecendo credibilidade e reputação de suas experiências quando citam o outro discursivo da profissionalidade docente (ethos instituído), gerando identificação global (ethos universal).
Nas enunciações das professoras foi possível perceber que em diversos momentos a recorrência ao outro discursivo foi uma tentativa de aplacar as suas angústias quanto à valorização do trabalho realizado na sala de aula. Também pudemos perceber a necessidade de se destacar no ambiente profissional para que essas profissionais conquistem a motivação de seguir em frente com as exigências da profissão, criando estratégias de resistência às tentativas de controle do trabalho pedagógico: a autonomia docente.
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