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“Quarto De Despejo: Diário De Uma Favelada” De Maria Carolina De Jesus: Cidadania, Direitos E Possibilidades Educacionais

Lucas Campos Ferreira; Fernanda Cristina de Paula; Samuel Mascarenhas Barros Gusmão

"Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada" é um livro singular, escrito por Carolina Maria de Jesus. Lançado pela primeira vez em 1960, esta obra proporciona um impressionante relato autobiográfico que delineia a vida de Carolina, uma mulher negra, mãe solteira e residente de uma favela na cidade de São Paulo. O objetivo deste trabalho é apresentar o potencial educacional da obra literária de Carolina Maria de Jesus. Potencial enquanto instrumento didático, particularmente, para refletir a questão dos direitos fundamentais e territoriais, atentando-se para o contexto histórico em que a obra foi escrita e está inserida. Desta forma, a obra foi analisada a partir da articulação de  categorias que englobam o direito, literatura e território, buscando transcender para perspectivas que vão além do exposto nos escritos e que nos permitem desenvolver diferentes olhares referentes ao ensino-aprendizagem sobre cidadania e direitos fundamentais.

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FERREIRA, Lucas Campos; PAULA, Fernanda Cristina de; GUSMÃO, Samuel Mascarenhas Barros. “Quarto de despejo: Diário de uma favelada” de Maria Carolina de Jesus: cidadania, direitos e possibilidades educacionais. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2023 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/629-quarto-de-despejo-di%C3%A1rio-de-uma-favelada-de-maria-carolina-de-jesus-cidadania-direitos-e-possibilidades-educacionais. Acesso em: 16 out. 2025.

“Quarto de despejo: Diário de uma favelada” de Maria Carolina de Jesus: cidadania, direitos e possibilidades educacionais

 

   Este trabalho insere-se no projeto de pesquisa em andamento na Universidade Vale do Rio Doce – Univale, localizada em Governador Valadares/MG com o título: “Direito, literatura e reinvenções simbólicas do território: diálogos em tempos neoliberais”, coordenado pelo Prof. Dr. Bernardo Gomes Barbosa Nogueira, com apoio da Univale/FPF.

       O presente trabalho acadêmico tem como objetivo apresentar o potencial educacional da obra literária de Carolina Maria de Jesus. Potencial enquanto instrumento didático, particularmente, para refletir a questão dos direitos fundamentais e territoriais, atentando-se para o contexto histórico em que a obra foi escrita e está inserida.

      Para tanto, adotar-se-á como método uma análise da obra  articulando categorias que englobam o direito, literatura e território, buscando transcender para perspectivas que vão além do exposto nos escritos.

       Carolina, ficou conhecida na década de 1960 após a escrita e publicação de seu diário, esse tem como título “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, a obra conta a história de suas labutas e batalhas travadas sendo mulher negra, moradora de área periférica e mãe solteira. O texto conta o abandono e negligência estatal acerca dos seus direitos e garantias fundamentais, direitos esses garantidos na Carta Magna, entretanto não são concretizados por grande parte da sociedade.

       Assim, diante do exposto, a obra de Carolina destaca a marginalização e a subcidadania vivida por grande parte da pátria verde-amarela, no passado, nos fornecendo importantes levantamentos para pensar as subcidadanias vividas contemporaneamente.

       Para tanto tem-se na primeira seção uma breve síntese de contextualização da vivência literária da autora, sobretudo na favela do Canindé, lócus de onde se passa o enredo da; em seguida, apresentam-se reflexões acerca do território da favela como cidadania mutilada, e por último, reflete-se sobre aspectos constitucionais dos direitos fundamentais.

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA OBRA

        Como mencionado outrora, a obra literária trata-se do diário de Carolina Maria de Jesus enquanto moradora da favela do Canindé, com seus registros, pode-se compreender as lutas e sofrimentos vividos por parte dos moradores de comunidade periféricas, não somente no passado, quanto atualmente, tendo em vista que ainda hoje, incontáveis brasileiros têm seus direitos basilares negados.

            O nome “Quarto de Despejo” vem de uma metáfora feita pela autora, onde a favela é retratada como o quarto de despejo da sociedade, local onde as pessoas marginalizadas, as pessoas que são forçadas a se manterem invisíveis se encontram, sendo despejados às margens da sociedade, para que assim, não participem dos ciclos sociais, e para que suas vidas e histórias se mantenham as escondidas.

            Desse modo, o texto de Carolina é extremamente importante para expor e denunciar as chagas sociais vividas por uma enorme parcela da população brasileira. Alguns dos direitos violados retratados na obra envolvem, saúde, educação, moradia, alimentação, dentre outros, por sua vez, direitos da personalidade da pessoa humana constantemente são alvejados, exemplo disso é a honra, honra essa que encontra-se constantemente atacada, isso por Carolina incessantemente ser vítima de racismo, preconceitos, além disso, é submetida a uma condição laboral desumana, e mesmo trabalhando de sol a sol, Carolina não consegue os recursos necessários para a sobrevivência de sua família, através de seus escritos, é exposto que mesmo com o labor excessivo, ainda sim, encontra-se em falta de itens básicos para subsistência.

            Através dos escritos de Carolina, percebe-se o formalismo existente nos Direitos e Garantias fundamentais, tendo em vista que, tanto antes da constituição de 1988, quanto posteriori a sua vigência, incontáveis pessoas, principalmente moradores da favela, tem seus direitos basilares violados e apagados, direitos esses garantidos na Carta Magna e em tratados internacionais, porém, mesmo estando expressos, na realidade, por negligência estatal muitas pessoas não possuem acesso a esses.

            Por diversas vezes Carolina retrata suas mazelas e das pessoas que moram em sua região, em muitos momentos é aponta-se na obra, a falta de itens básicos para a subsistência, dentre os itens, destaca-se o alimento, devido a falta de comida acaba tornando-se “comum” a prática de sobreviver com as doações de instituições de caridade, igrejas, e enquanto não ocorre as doações, torna-se necessário revirar e buscar alimentos no lixo, porém muitas vezes, esses encontram-se estragados ou com algum tipo de bactéria, assim surge a enfermidade.

… Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Gente na favela é considerado marginais. Não mais se vê corvos voando às margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituiram os corvos. (JESUS,  1960, p. 46).

          Percebe-se, que a negligência estatal abrange até mesmo a água que é consumida pelos moradores do Canindé, além disso, o diário aponta que até mesmo o ar daquele território não é próprio para o consumo. Que as larvas se desenvolve nas aguas. (...) Até a água... que em vez de nos auxiliar, nos contamina. Nem o ar que respiramos, não é puro, porque jogam lixo aqui na favela. (CAROLINA, 1960).

            Assim, através das denúncias presentes em seu diário, percebe-se o menosprezo estatal pela vida dos moradores da favela do Canindé, onde para o Estado, não importa as histórias vividas e a subcidadania que os moradores do “quarto de despejo” se encontram. Assim, o diário faz reflexões acerca da vida e da morte. Quero ver como é que eu vou morrer. Ninguém deve alimentar a ideia de suicídio. Mas hoje em dia os que vivem até chegar a hora da morte, é um herói. Porque quem não é forte desanima (CAROLINA, 1960).

3 TERRITÓRIO FAVELA: CIDADANIAS MUTILADAS

       No interior das Ciências Sociais, a importância da dimensão espacial enquanto agente social (ou seja, que tem um papel nas dinâmicas sociais) já é consolidada. Dentro deste escopo, destacamos a importância do conceito de território que, neste caso, remete a uma porção de espaço, dotada de características particulares e dominada por determinadas relações de poder (RAFFESTIN, 1993). Quando Maria Carolina de Jesus diz que a favela é um quarto de despejo da cidade. podemos aventar que há agentes detentores de poder (políticos, elite financeira - podemos depreender pela leitura da obra) que despeja na favela tudo o que macularia a cidade, criando, portanto, uma porção de espaço físico característico; dito de outra maneira, consolidando, assim um território. A questão é que território criado não é inerte, ele tem papel na manutenção diária da vida das pessoas que nele vive; o que, no caso em questão, fomenta a mutilação de cidadanias.

         O renomado geógrafo Milton Santos, em diferentes obras, desenvolve debate sobre a cidadania ou o ser cidadão no Brasil. Particularmente ao analisar a questão racial no Brasil, atenta para a existência de cidadanias mutiladas:

Poderíamos traçar a lista das cidadanias mutiladas neste país. Cidadania mutilada no trabalho, através de oportunidades de ingresso negadas. Cidadania mutilada na remuneração, melhor para uns do que para outros. Cidadania mutilada nas oportunidades de promoção. Cidadania mutilada na localização dos homens, na sua moradia. Cidadania mutilada na circulação. Esse famoso direito de ir e vir, que alguns imaginam existir, mas que na verdade é tolhido para uma parte significativa da população. (SANTOS, 1996, p. 134 - grifos nossos)

        Para Santos (1996), ser cidadão é ser tão forte quanto o Estado, na medida em que o indivíduo tenha deveres, mas, também direitos tão atavicamente garantidos que ele teria poder para afrontar e enfrentar o Estado. Ter a cidadania mutilada, é ter os direitos mutilados, é viver desigualmente a condição de cidadão. Logo, o que o autor coloca é que ser negro, no caso, no Brasil, é cumular uma série de mutilações na cidadania.

      A lista de mutilações apresentadas por Santos (1996) é maior que a apresentada no excerto acima; ela inclui também mutilação no campo da saúde, da educação e no livre exercício da individualidade (sem sofre com o comportamento enviesado da polícia e da justiça em relação às pessoas negras). Esta lista de mutilações da cidadania são amplamente observáveis na obr “Quarto de Despejo”, onde a metáfora do quarto remete à própria favela e, podemos colocar, à mutilação dos direitos.

      Um ponto a se atentar sobre a discussão de cidadania empreendida pelo geógrafo Milton Santos neste texto é a co-incidência, não fortuita, entre ser negro e a cidadania mutilada em função da localização da moradia. Essa incidência dupla depõe sobre diferentes, mas, intrínsecos processos e fenômenos históricos e socioespaciais: (1) o acesso à propriedade privada do negro no Brasil, (2) a expansão do mercado imobiliário urbano concomitante ao crescimento das favelas, (3) e à mutilação estrutural da cidadania na favela.

     Historicamente, o povo negro teve o acesso à terra negado por diferentes estratégias políticas e jurídicas. A Lei de Terras de 1850, criada em um Brasil que se vê forçado (por pressões externas de países do centro do capitalismo) a abolir a escravatura, é uma estratégia política para impedir, na prática, o acesso à terra por parte dos negros e proletariado. Antes da Lei, as terras não tinham preço, o que conferia, por exemplo, valor a uma fazenda era o número de indivíduos escravizados que ela detinha. Após a Lei, as terras passam a ter preço, estrategicamente definidos como exorbitantes para evitar a possibilidade de compra por parte de ex-escravizados ou imigrantes europeus pobres. (MARTINS, 2010). Com isso, a população negra, ex-escravizada, se vê compelida a ser mão-de-obra barata no campo e/ou viver em moradias excluídas do mercado formal imobiliário nas urbes (ou seja, a favela).

      Já entre as décadas de 1950 e 1970, o Brasil conheceu um movimento migratório vertiginoso do campo para a cidade. O êxodo rural é impulsionado pela Revolução Verde (revolução técnico-científica no campo agrário) de um lado e a forte industrialização de certas regiões do país, de outro. Assim, diante da substituição de mão-de-obra por máquinas, na zona rural, os migrantes buscam como alternativa a mudança para grandes centros urbanos, onde a abertura de indústrias se torna promessa de emprego. Carolina Maria de Jesus, em seu diário, expressa os sonhos (não realizados) de estabilidade financeira e dignidade de moradia quando migrou do interior de Minas Gerais para a capital São Paulo.

       Neste contexto de êxodo rural e industrialização, o que se observou foram cidades não preparadas para receber um contingente considerável de pessoas; dito de outra forma, sem capacidade ou vontade política de: criação de moradias populares acessíveis à migrantes de baixa renda,  expansão de escolas públicas, expansão do sistema de saúde, expansão de infraestrutura urbana básica como água potável, esgoto tratado, calçamento de vias, iluminação pública, sistema de transporte coletivo (KOWARICK, 1983). Dessa forma, o que se observa em diferentes cidades brasileiras é o crescimento de aglomerados urbanos em áreas desvalorizadas pelo mercado imobiliário e, potencialmente, perigosos, como morros íngremes (e os riscos de escorregamento de terra) ou fundos de vale (e o risco de enchentes) como era o caso da favela do Canindé, favela onde Carolina Maria de Jesus morava à época de escrita de seu diário.

       A favela de então, da época do diário de Carolina Maria de Jesus não é, necessariamente, a favela de hoje. Muitas transformações urbanas, funcionais, desenvolvimento de tecnologias, de atividades vem se somar e alterar, de forma geral, esse tipo de território. Ainda assim, o que o diário de Carolina depõe, o que a literatura acadêmica aponta, o que Milton Santos enfatiza é: como ter emprego razoável e, por consequência (visto vivermos em um regime econômico de mercado), ter melhor acesso à saúde, educação, moradia se morar no “quarto de despejo” corresponde à ausência de infraestrutura, atentado à salubridade, ausência ou educação formal de baixa qualidade. Pensando a partir do ferramental conceitual de Santos (1996), o que Carolina Maria de Jesus denúncia é que a viver na favela é uma luta tão constante e extenuante que não há tempo, energia ou condições materiais para algo além do sobreviver; o cotidiano da favela engendra a continuidade da cidadania mutilada.

       Além das condições indignas e insalubres da favela, a autora denuncia também o descaso do Estado, de pessoas que teriam poder para mudar a condição de vida daqueles que moram na favela e também do olhar preconceituoso e enviesado que os moradores do asfalto tinham (têm) em direção aos habitantes da favela, o que nos remete à afirmação de Santos (1996, p. 133-134):

É neste sentido que me pergunto se a classe média é formada de cidadãos. Eu digo que não. Em todo o caso, no Brasil não o é, porque não é preocupada com direitos, mas com privilégios. O processo de desnaturação da democracia amplia a prerrogativa da classe média, ao preço de impedir a difusão de direitos fundamentais para a totalidade da população e o fato de que a classe média goze de privilégios, não de direitos, que impede outros brasileiros de ter direitos. E é por isso que no Brasil quase não há cidadãos. Há os que não querem ser cidadãos, que são as classes médias,  e há os que não podem ser cidadãos, que são todos os demais [...].

    Diante do exposto, observamos que a obra de Carolina Maria de Jesus reflete um cotidiano marcado pelas consequências nefastas de diversos processos históricos, econômicos e socioespaciais que resultam na ausência ou em um processo deletério de direitos fundamentais e da desconsideração da personalidade do povo periférico (e majoritariamente negro).

 

4  VIOLAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO POVO PERIFÉRICO

          Existem muitas teorias possíveis que explicam os direitos fundamentais. Há dois exemplos: teorias históricas que explicam como os direitos fundamentais surgiram e teorias sociológicas que discutem como os direitos fundamentais desempenham um papel no sistema social (ALEXY, 2015).

            Partindo da premissa histórica as três principais dimensões de direitos fundamentais originou em grandes marcos históricos, que se exprimiram inspirados na revolução francesa, no qual, o slogan revolucionário do século XVIII, resumiu os direitos fundamentais em três princípios: liberdade, igualdade e fraternidade.

            Após essa descoberta do método de generalização e universalidade, o próximo passo era encontrar maneiras de incorporar os direitos e materiais relacionados àqueles postulados na ordem jurídica favorável de cada ordenamento político. Na ordem institucional, os direitos fundamentais foram expressos em três dimensões diferentes, mostrando claramente um processo cumulativo e qualitativo. Esse processo tem como bússola uma nova universalidade: a universalidade material e concreta, em vez da universalidade abstrata e, de certa forma, metafísica dos direitos encontrada no jusnaturalismo do século XVIII (BONAVIDES, 2011).

            A primeira dimensão,  possuía a afirmativa de que o ser humano só pode ser livre em um estado livre. Esta afirmação trivial indica que os direitos humanos surgem diretamente das instituições políticas que governam as pessoas e, portanto, dependem exclusivamente do sistema jurídico da sociedade como um todo. Entretanto, esta primeira condição exige o cumprimento de dois princípios: a) a liberdade de um Estado. O princípio da autodeterminação diz que os indivíduos que o compõem devem ter a capacidade de decidir livremente sobre sua própria sorte; b) a supremacia da lei significa que os indivíduos devem decidir livremente sobre o sistema legal de direitos humanos usando regras gerais e impessoais (VASAK, 1982).

            Neste contexto, surgem os direitos fundamentais, como a vida, a liberdade, a propriedade e a igualdade, são apoiados por um conjunto de liberdades, incluindo as liberdades de expressão coletiva (como a liberdade de imprensa, manifestação, reunião, associação etc.) e os direitos de participação política, como o direito de voto e a capacidade de votar. Isso mostra a conexão íntima entre os direitos (SARLET, MARINONI, MITIDIERO, 2019).

            Após a evolução do direito fundamental de primeira dimensão, surgem os direitos fundamentais de segunda dimensão com os efeitos da industrialização e os sérios desafios sociais e econômicos que a acompanham, juntamente com as doutrinas socialistas e o reconhecimento de que a formalização dos princípios de liberdade e igualdade não garantia sua efetiva fruição, resultaram, ao longo do século XIX, na emergência de movimentos reivindicatórios significativos e na gradual aceitação de direitos. Isso levou a um reconhecimento crescente de que o Estado deveria desempenhar um papel ativo na busca pela justiça social. O que diferencia esses direitos é o fato de serem de natureza positiva, indo além da mera prevenção da interferência estatal na esfera pessoal da liberdade, mas também buscando proporcionar o "direito de participar do bem-estar social" (SARLET, MARINONI, MITIDIERO, 2022).

            Assim, o equilíbrio entre os direitos humanos e o poder político só pode ser alcançado através da imposição de restrições tanto às entidades políticas quanto aos direitos individuais. Uma perspectiva desse tipo, fundamentada em um potencial conflito subjacente entre os direitos humanos e a autoridade política, parece arriscada, especialmente quando há o desejo de que os direitos humanos sejam estabelecidos como princípios jurídicos concretos. Isso se deve ao fato de que, conforme observado, em situações de discordância, os direitos humanos são representativos do direito desprovido de coerção, enquanto, em contrapartida, o poder político sempre carrega consigo a capacidade de coerção e, em certos momentos, de direito. Como resultado, em cenários de conflito, os direitos humanos frequentemente são relegados (VASAK, 1999).

                 Com essa nova perspectiva, não é apenas proteger-se contra o Estado, mas também desenvolver um papel de exigências que o próprio Estado deve assumir para garantir tais direitos.

            Nessa segunda dimensão dos direitos fundamentais, o princípio da igualdade de fato é reforçado por direitos a prestação e reconhecimento de liberdades sociais como o direito de sindicalização e greve. Os direitos de segunda geração são referidos como direitos sociais por se relacionarem com demandas de justiça social em vez de serem direitos coletivos. Na maioria das vezes, os titulares desses direitos são indivíduos singulares (MENDES, BRANCO, 2020).

            Os direitos de segunda dimensão, ainda, compreende os direitos que visam garantir o bem-estar e a igualdade, exigindo ao Estado que faça ações sociais benéficas. Aqui encontramos direitos como trabalho, seguro social, subsistência digna, atendimento médico e previdenciário (BULOS, 2015).

            Ainda que oficialmente anunciados por um Estado que preza pela liberdade e regulamentados pelo poder legislativo, os direitos fundamentais não teriam relevância se não fossem adequadamente assegurados. Em outras palavras, se aqueles que possuem esses direitos não tivessem à disposição recursos para buscar correção diante das violações das quais fossem alvo. Essas salvaguardas podem ser categorizadas em dois grupos distintos: as garantias sistematizadas e aquelas que não seguem uma estrutura específica (VASAK, 1983).

            Dessa maneira, surge historicamente um novo paradigma legal para a emancipação humana, em adição aos princípios de liberdade e igualdade. Possuindo um conteúdo profundamente humano e de alcance universal, os direitos da terceira geração estão tendendo a se solidificar no final do século XX. Estes direitos não são direcionados exclusivamente para proteger os interesses individuais, de grupos ou de estados específicos. Seu propósito principal é a humanidade como um todo, em um momento significativo de sua afirmação como um valor supremo em termos de existência concreta. Especialistas em direito e juristas os enumeram com familiaridade, destacando o fascínio que têm como culminação de uma evolução de tradições ao longo de muitos anos, seguindo a realização dos direitos fundamentais (BONAVIDES, 2011).

            Portanto, a principal característica distintiva destes direitos tridimensionais é a sua natureza transindividual (ou metaindividual) , que é frequentemente mal definida e incognoscível. Isto aplica - se especialmente ao direito ao ambiente e a uma elevada qualidade de vida.

              Esgotado as principais premissas históricas, é necessário fazer uma análise socio-literária para vislumbrarmos as diversas violações das dimensões e princípios basilares constitucionais na obra “Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada”. 

            A vida como um direito para a dogmática constitucional é a principal fonte de todos os outros bens jurídicos. De nada seria válido a CF/88 garantir todos os outros direitos fundamentais, por exemplo, a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não alcançasse a vida humana nesses desses direitos e bens jurídicos fundamentais (DA SILVA, 2004).

            Diferentemente da dogmática constitucional, o que se verifica na obra (Quarto de Despejo), é que para a autora e os cidadãos da favela do Canindé, se tem somente o direito de existir, pois o direito à vida só se cristaliza quando há junção de saúde de qualidade, alimentação, moradia, educação etc.

            Prova disso é quando Carolina (a autora), estava extremamente nervosa, pois, seu árduo trabalho de carregar diversos quilos de papéis e andar quilômetros para conseguir encontrar algo a deixava extremamente cansada, ela queria ficar descansando, no entanto, não poderia se dar ao luxo de descansar apenas um dia sequer, porque a remuneração era incompatível com suas necessidades básica e tinha três filhos ainda pequenos para nutrir. Por pior, estava sem comida em casa.

Eu não ia comer porque o pão era pouco. Será que é só eu que levo esta vida? O que posso esperar do futuro? Um leito em Campos do Jordão. Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos (JESUS, 1960, p.28).

            No dia 17/05/1958, posterior surge em ordem cronológica a primeira vontade que Carolina Maria de Jesus tem de  morrer, acontece a seguinte cena:

Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os pobres estão mal colocados, para que viver? Será que os pobres de outro País sofrem igual aos pobres do Brasil? Eu estava discontente que até cheguei abrigar com o meu filho José Carlos sem motivo (JESUS, 1960, p.28).

            A cena, destarte, se repete em diversas partes do livro, o início dessas violações começa desde o primeiro dia do diário, mas como Carolina sempre pensando no seus filhos não expressa essas ideias, porém, chega um instante que o sofrimento permeia a vida da autora, então, começa a deixar evidente uma mistura de vontade e medo  de morrer por falta de condições para continuar existindo:

Não dormi por estar exausta. Pensei até que ia morrer. Eu tenho impressão que estou num deserto (JESUS, 1960, p.104).

Os filhos estão com receio de eu morrer. Não me deixam sozinha. Quando um sai, outro vem vigiar-me (JESUS, 1960, p.135)

Hoje eu fui me olhar no espelho. Fiquei horrorizada. O meu rosto é quase igual ao de minha saudosa mãe. E estou sem dente. Magra. Pudera! O medo de morrer de fome! JESUS, 1960, p.151).

Fiz o almoço, depois fui escrever. Estou nervosa. O mundo está tão insipido que eu tenho vontade de morrer (JESUS, 1960, p.155).

            O “direito à vida” para a autora acaba se tornando uma completa luta pela existência:

Quero ver como é que eu vou morrer. Ninguém deve alimentar a ideia de suicídio. Mas hoje em dia os que vivem até chegar a hora da morte, é um heroi. Porque quem não é forte desanima (JESUS, 1960, p.52).

            A luta pelo direito à vida, ou melhor, o direito de existência, não se permeia apenas na vida da autora, mas também com os moradores da favela do Canindé. Isso se concretiza quando a autora conversa com um catador, cujo nome é desconhecido, e pergunta-lhe o porquê de não guardar o dinheiro que ganhava. O catador com afeição mais depressiva já vista pela autor e disse:

— A senhora me faz rir! Já foi o tempo que a gente podia guardar dinheiro. Eu sou um infeliz. Com a vida que levo não posso ter aspiração. Não posso ter um lar, porque um lar inicia com dois, depois vai multiplicando.

Ele olhou-me e disse-me:

— Porque falamos disso? O nosso mundo é a margem. Sabe onde estou dormindo? Debaixo das pontes. Eu estou doido. Eu quero morrer! (JESUS, 1960, p.159).

            Mesmo o direito à vida sendo um direito de status positivus, ou seja, aquele direito que permite o indivíduo cobra determinadas atuações do Estado, sob a ótica de melhorar as condições sociais, garantindo pressupostos basilares para acepilhar as conjunturas sociais e devendo o Estado, de fato, agir no sentido indicado pela Constituição Federal, isto é, agindo de maneira incisiva nos direitos sociais, simetricamente para garantir o direito positivo de receber algo, o chamado ações fáticas positivas (ou na terminologia alemã positive faktische Handlungen), que consiste no oferecimento de prestações de serviços sociais que os indivíduos do corpo coletivo social não podem adquirir em qualquer mercado, por exemplo, saúde, uma boa e nutritiva alimentação e educação de qualidade. No entanto, não é desta forma que realmente funciona no cotidiano da autora e de diversos brasileiros que estão na margem, ou melhor, dentro do poço socioeconômico camumbembe. Funciona ao inverso estabelecido pela carta normativa federal brasileira, deixando esses indivíduos hipossuficientes fora dos objetivos futurísticos da república federativa do Brasil, que é a construção da erradicação da pobreza, a redução da desigualdade social e regionais.

As violações não permanecem somente no direito à vida, mas se estendem para outras nuances dos direitos fundamentais. Estende-se para o direito fundamental à saúde, alimentação, moradia, educação etc.

            É entendido como direito à saúde aquilo que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como um direito fundamental e uma responsabilidade do Estado, conforme disposto no artigo 196, C.F/88. Além disso, delineou as prioridades a serem seguidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em oito cláusulas no artigo 200, reconhecendo a aplicação do conceito abrangente de saúde.

            Desse modo, é dever do governo não apenas prover medicamentos, mas também garantir tratamentos completos, que incluam exames e procedimentos cirúrgicos, sempre que se façam necessários para assegurar a efetivação do direito fundamental à saúde.

            No entanto, esse conceito não é aplicado para a autora, nem para muitos cidadãos que viviam na favela do Canindé. Prova disso é quando os agentes de saúde passaram um “filme” informando para não consumirem água do rio e nem terem contato com ela, pois, ela estava causando a “doença do caramujo” (ou cientificamente conhecida como esquistossomose). Logo após esse fato os agentes de saúde voltaram para recolher fezes dos moradores para realizar exames, visto que, o jornal havia informado um número de 160 casos positivos da doença. A autora, então, exclama:  “Será que eles vão dar remedios? A maioria dos favelados não há de poder comprar” (JESUS, 1960, p.61). A indagação é respondida 30 dias depois, quando oficialmente o Departamento de Saúde confirmou esse número de casos, mas não deu remédio, comprovação disso é o seguinte trecho (JESUS, 1960, p. 85):

O Departamento Estadual de saúde publicou que aqui na favela do Canindé há 160 casos positivos de doença caramujo. Mas não deu remedio para os favelados. A mulher que passou o filme com as demonstrações da doença caramujo nos disse que a doença é muito difícil de curar-se. Eu não fiz o exame porque eu não posso comprar os remédios [...].

             A titularidade do direito social à saúde não é estendida a todos, mas exclusivamente às pessoas que requerem a assistência do Estado para atender às suas necessidades individuais. Isso visa a assegurar os fundamentos e requisitos essenciais para a efetiva concretização do que é conhecido como liberdade genuína (DIMOULIS, 2014). Contudo, isso não é absoluto, uma vez que, é uma obrigação de fazer do estado o fornecimento de medicamentos e tratamento médico, garantindo a liberdade genuína, assim, coisas como esse se torna uma utopia para os cidadãos da favela do Canindé, e para muitos cidadãos brasileiros.

             O artigo 6º da Constituição Federal garante o direito à alimentação. O direito à alimentação vai além da mera disponibilidade de alimentos e engloba também preocupações relacionadas à qualidade, segurança alimentar, acessibilidade econômica e adequação nutricional. Esse direito está fundamentado na ideia de que o Estado tem a responsabilidade de adotar medidas que assegurem que todas as pessoas tenham acesso a alimentos saudáveis e nutritivos, independentemente de sua condição financeira.

            Porém, o tal direito é incompatível com os relatos de Carolina, visto que, para a aquisição de alimentos necessitava de uma adequada remuneração, algo que não era garantida para à autora, muito menos, para os cidadãos que estão no contexto da obra. A qualidade e saúde alimentar para os indivíduos supracitados era impossível de experimentar.

Não havia papel nas ruas. Passei no Frigorifico. Havia jogado muitas linguiças no lixo. Separei as que não estava estragadas. (...) Eu não quero enfraquecer e não posso comprar. E tenho um apetite de Leão. Então recorro ao lixo (JESUS,1960, p. 78-79).

As segundas-feiras eu não gosto de perder. Saio cedo porque encontra-se muitas coisas no lixo (JESUS, 1960, p.95).

            Sobre comida nutritiva é utópico, é um sonho para todos os cidadãos da favela, e até mesmo para a autora. Diversas vezes se encontra no Diário, Carolina, tendo que catar osso, pois não havia dinheiro para comprar carne. Pegando, também, verduras que muitas das vezes estavam em estado de degradação.

            Entende-se essa condição aos cidadãos. Carolina, conhecia um rapaz que vendia ferro no mesmo lugar que ela vendia. Ele era jovem. Catava carne no lixo. Em um certo dia ele ofereceu alguns pedaços de carne, e para não o chateá-lo, a autora aceitou. Tentou persuadi-lo a não consumir aquela carne podre, optando por comer os pães duros que estavam roídos pelos ratos. Ele recusou a sugestão, informando que não havia se alimentado nos últimos dois dias. Então, ele acendeu o fogo e assou a carne. A fome era tão intensa que ele não conseguiu esperar o cozimento completo; ele apenas a aqueceu e a devorou (JESUS, 1960).

No outro dia encontraram o pretinho morto. Os dedos do seu pé abriram. O espaço era de vinte centímetros. Ele aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé parecia leque (JESUS, 1960, p. 34).

            Em cenários com este apresentado a falta ou a inadequação da alimentação é uma ameaça diretamente ao próprio direito à vida. Por essa razão, o acesso a uma alimentação apropriada, reconhecido como um direito tanto a nível individual como coletivo é uma obrigação do Estado, entretanto, não se concretiza ao longo da obra, mas a promoção da alimentação saudável é um papel crucial na promoção da interconexão e indivisibilidade dos direitos fundamentais e direitos humanos. Esse aspecto é essencial para assegurar uma existência digna e saudável.

             Portanto, a obra ainda nos dá apoio para apontar outras diversas violações, porém, já é visível que nem todos os direitos conferidos pela Constituição Federal brasileira são efetivados para o povo periférico, e que são extremamente carente de efetivações através de políticas públicas. Que o palácio funciona como uma área de recepção. A Prefeitura desempenha o papel de uma sala de refeições, e a cidade é como um jardim. Enquanto isso, a favela é comparável a um quintal ou um quarto de despejo onde o lixo é descartado. E aquilo que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo (JESUS, 1960).

         Nesta obra, a autora não apenas compartilha suas experiências pessoais, mas também lança uma visão esclarecedora sobre as condições de vida das camadas mais marginalizadas da sociedade brasileira naquela época e diversas violações aos direitos mais basilares. Seu diário acabou por se tornar um documento de considerável importância para a compreensão das complexas questões sociais e raciais no Brasil, enriquecendo o diálogo sobre desigualdade e exclusão. "Quarto de Despejo" emerge como um marcante testemunho da tenacidade humana diante das adversidades e, assim, nos convida à reflexão acerca das persistentes injustiças sociais.

           Assim, como outrora destacado, percebe-se que através do seu diário, Carolina faz denúncias acerca de diversas questões que estão impregnadas na sociedade brasileira, assim fazendo reflexões sobre as estruturas de dominação que vigoram na pátria verde-amarela, desse modo, em seus escritos, temas como o racismo estrutural, violações de direitos basilares e a territorialidade da favela são abordados.

         Através da obra de Carolina, percebe-se que o território da favela e da periferia acabam por sua vez sendo alvos de estereótipos, esses muitas vezes alimentados pelo racismo e pelo preconceito, assim, tratam o território da favela como se esse fosse naturalmente degradado e as pessoas que ali vivem fossem naturalmente violentas, entretanto, em seus escritos, Carolina denuncia e expõe que a favela é criada e mantida dessa forma, mantida pela força elitista e burguesa, que utiliza-se dos meios de informações e das ações políticas, para que assim, mantenha o território da favela como o “quarto de despejo” da sociedade, dessa maneira, a estrutura de dominação busca manter as histórias, personalidades e os direitos dos que ali vivem apagados, deixando-os como subcidadãos e mantendo-os à margem da sociedade, utilizando o Estado para negligenciar os direitos das pessoas que ali vivem.

 

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