1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Educar para a diversidade tem sido um dos grandes e complexos desafios contemporaneidade. Principalmente se tomarmos por base as grandes leis, a exemplo da Declaração dos Direitos Humanos, a educação é uma vivência inerente à existência humana, entendimento que contribuiu para o seu reconhecimento como direito fundamental, necessário à continuidade do processo de humanização. Aprender a ser e conviver torna-se imperativo na longa e árdua jornada humana no momento presente e na posteridade.
No entanto, mesmo observando o excerto acima o que vivenciamos na prática é muito diferente e contraditório. Vivemos na era das incertezas, da sociedade do conhecimento, da pluralidade veloz de informações e tecnologias, bem como de problemas sociais que afetam os direitos humanos em escala mundial, como o caso das seculares guerras identitárias que têm gerado o terrorismo, a expatriação, a xenofobia, a transfobia, homicídios e até suicídios por conta da condição étnica. Atos de violências a negros, indígenas e outras etnias da população brasileira são cometidos cotidianamente dentro e fora das escolas.
Considerando essa realidade, a escola deste século XXI precisa caminhar em direção a se (re)conhecer como instância primordial, ao lado da família, responsável por educar as pessoas para a diversidade das relações humanas interpessoais e intrapessoais, considerando o “outro” como um ser que merece respeito, que nos complementa e nos humaniza, considerando sua singularidade e diferença. Educar para a diversidade inclui o respeito a dignidade de toda pessoa humana. Esse é um desafio que a educação no estado da Bahia nos propõe!
Neste ângulo, nascer e viver na Bahia nos demonstra o quanto esse pedaço do Brasil, majoritariamente negro, ainda é alvo de preconceitos, discriminação e racismo; a despeito da rica contribuição dos povos originários e dos africanos à nossa cultura brasileira, compondo um rico mosaico de etnias e saberes. Na educação básica como um todo, bem como no ensino superior nos cabe conhecer esse aporte histórico e situar a escola nessa dinâmica de uma educação para a diversidade, contemplando as pautas da educação inclusiva, gênero, campo, educação de jovens e adultos, e a que nos interessa tratar, as relações étnico-raciais.
Diante disso, buscamos neste artigo apresentar práticas educativas antirracistas em duas escolas do campo de Riachão do Jacuípe na Bahia. Ensejamos atos antirracistas descolonizadores do saber/pensar/ser/viver centrados na legislação (Brasil, 2003, 2008; Bahia, 2022) e na pedagogia griô (Pacheco,2006,2015). A primeira prática antirracista é fruto do projeto interdisciplinar Batuques de Ancestralidade e a segunda resulta do projeto E-books da Pedagogia Griô Contação de Histórias. O contexto socio-geográfico de realização da pesquisa é o distrito de Chapada, município de Riachão do Jacuípe que dista 183 km da capital da Bahia, Salvador. Chapada faz parte do semi-árido do território baiano de identidade Bacia do Jacuípe.
No projeto Batuques de Ancestralidade tematizamos as vivências identitárias de jovens estudantes numa escola pública de ensino médio, na zona rural, distrito de Chapada de Riachão do Jacuípe, Bahia. Objetivamos discutir atos de currículo através de ação descolonizadora do saber/ser/viver centrada na pedagogia griô. O referido projeto teve sua estreia no segundo semestre do ano de 2019, atravessou a auge da pandemia Covid 19, persistiu contexto pandêmico de 2020, 2021,2022, em 2023, vem adquirindo formas virtuais e híbridas de se aquilombar produzindo conhecimentos voltados para a legitimação da diversidade campesina expressa no trabalho com as relações étnico-raciais positivas.
Já com o projeto E-books da Pedagogia Griô Contação de Histórias, foi realizado em 2022, em uma escola publica municipal de ensino infantil e fundamental no referido distrito. O projeto resulta de uma demanda dos educadores do campo da localidade que desejam reforçar a valorização da cultura e dos saberes locais por meio da leitura e da escrita e da participação da comunidade local. Capacitados pela Escola de Formação Griô em Lençóis (BA), nos comprometemos em aprender, contar e recontar para/com as crianças estórias oriundas das produções antirracistas de escritores baianos.
Nesse sentido, estamos referendados pela legislação educacional antirracista, (Brasil 2003; 2008); pela legislação educacional estadual baiana, (DCRB, 2020;2021) pelas práticas em educação étnico-racial (Gomes, 2012); pela Pedagogia Griô (Pacheco, 2006; 2015). Essas referências serão abordadas no primeiro momento do desenvolvimento do texto na tentativa de refletir sobre os caminhos da educação antirracista e sua busca por legitimidade e efetivação do cotidiano das escolas.
Metodologicamente, de uma pesquisa-ação nasceu este estudo, tendo como lócus duas escolas públicas do campo, sendo uma da rede estadual baiana, e outra da rede municipal sambas situadas no distrito de Chapada. Os sujeitos participantes foram crianças com idade entre 6 e 8 anos e jovens estudantes entre 15 e 19 anos. O estudo foi qualitativo, tipo descritiva de inspiração etnográfica, com análise de conteúdo e o instrumento de coleta de dados os diários de campo e o grupo focal. (BARDIN 2009, MINAYO, 2010). As análises aqui terão como base reflexiva as narrativas estudantis durante o contato os velhos griôs da comunidade de Chapada.
Passemos então a conhecer e refletir sobre as ações educativas antirracistas das experiencias dos projetos citados com um olhar generoso, não menos crítico, para as vivências dos estudantes nos caminhos da ancestralidade, do axé, da vida como ela é em sua inteireza.
2. REFLETINDO SOBRE A EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: ENTRE AS LEIS E AS VIVÊNCIAS INFANTO-JUVENIS
Nesta seção do artigo, abordaremos sobre a educação antirracista, temática central deste estudo, dividindo em dois blocos para facilitar a compreensão do pensamento e do percurso do leitor. O primeiro tratará do aspecto legal. O segundo abordará sobre as vivências de protagonismo das crianças e jovens jacuipenses campesinos.
2.1 Educação antirracista: o que diz a legislação?
No Brasil, as iniciativas de luta por uma educação plural e inclusiva advêm de um longo percurso que começa nos episódios antiescravistas na segunda metade do século XIX, adentram o século XX com a organização de movimentos em favor do negro e demarca espaço no sentido de propor ações afirmativas e políticas públicas para a população negra (Ministério da Educação, 2013). No final do século passado, algumas conquistas estabelecidas em normas jurídicas como a Constituição Federal de 1988 e a Lei Federal nº 9.394/96 viabilizaram a instituição das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), defendendo a inclusão de políticas educacionais direcionadas aos afrodescendentes.
Atualmente, vivenciada a primeira década do século XXI, percebemos que desse intenso e enriquecido processo de luta de movimentos negros, da sociedade civil organizada, dentre outros, resulta a Lei Federal nº 10.639/03 (BRASIL, 2003), que altera a LDB nº 9.394/96 (BRASIL,1996) e torna obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira em todos os estabelecimentos de ensino do país. A referida Lei assim prescreve:
Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil
[...]
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra. (BRASIL, 2003).
A vigência dessa lei abriu caminhos efetivos para a educação da população brasileira no que tange ao direito dos negros à reparação e ao reconhecimento de sua história e cultura constituinte da nossa nação. A partir disso, no ano subsequente, o Ministério da Educação (MEC) avançou nessa discussão sobre a questão racial, criando a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), logo após Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), hoje, lamentavelmente, extinta. Essa secretaria, juntamente com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), surge com o desafio de promover o desenvolvimento de políticas de inclusão educacional, considerando a diversidade de culturas existentes, em parceria com os estabelecimentos de ensino e os movimentos sociais.
Como fruto dessa mobilização, é criado outro marco importante para o avanço da luta pelo direito à diversidade na educação. Amparadas no Parecer CNE/CP nº 03/2004 (BRASIL, 2004a) e na Resolução CNE/CP nº 01/2004 (BRASIL, 2004b), ambos do Conselho Nacional de Educação em seu Conselho Pleno, foram instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Ministério da Educação, 2004). Essas diretrizes representam um avanço no sentido de deixar claro que as mudanças precisam vir principalmente da escola e da sociedade. Tais diretrizes têm como princípios elementares: Consciência Política e Histórica da Diversidade, ampliando os conhecimentos curriculares pertencentes à diversidade da história humana; Fortalecimento de Identidades e de Direitos, o que implica o reconhecimento das diferenças, especificidades no contexto da igualdade dos direitos para todos; Ações Educativas de Combate ao Racismo e as Discriminações visando a estabelecer meios e medidas de combater a discriminação racial e os racismos.
Com supedâneo nessas diretrizes, o governo federal vem, ao longo dos anos, investindo em pesquisas e encontros de capacitação, dentre outros, que resultam em publicações veiculadas nacionalmente no intuito de ampliar a discussão e suscitar as mudanças necessárias para a organização didático-pedagógica no cotidiano das práticas educativas nos estabelecimentos de ensino brasileiros.
Um exemplo claro disso foi a publicação e reprodução em larga escala para as escolas dos livros e Superando o racismo na escola (Ministério da Educação, 2005a), Educação antirracista: caminhos abertos pela lei federal nº 10.369/03 (Ministério da Educação, 2005b), Orientações e ações para a implementação da educação das relações étnico-raciais (Ministério da Educação, 2006), bem como a Coleção Educação para Todos que, entre os anos 2005 a 2012, dos seus 36 volumes, 7 foram dedicados à temática da implementação da Lei nº 10.639/13 em todo o território nacional. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2013).
Para reforçar o comprometimento das referidas diretrizes, no ano de 2009 foi elaborado o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, sendo este reeditado no ano de 2013. Esse plano amplia o diálogo de implementação da educação das relações étnico-raciais. O plano, que contém 6 eixos, pretende transformar as ações e programas de promoção da diversidade e de combate à desigualdade racial na educação em todo o país, adotando políticas públicas de âmbito estadual e municipal, para além do âmbito federal. O destaque desse plano se refere à operacionalização das ações de combate ao preconceito, propondo uma política educacional em que se destacam as orientações para políticas de formação para gestores e profissionais de educação, bem como política de material didático e paradidático. Para tanto:
As instituições devem realizar revisão curricular para a implantação da temática, quer na gestão dos projetos político-pedagógicos, quer nas coordenações pedagógicas e colegiados, uma vez que possuem a liberdade para ajustar seus conteúdos e contribuir no necessário processo de democratização da escola, da ampliação do direito de todos e todas à educação e do reconhecimento de outras matrizes de saberes da sociedade brasileira. (Ministério da Educação, 2013, p. 38).
Faz-se necessário destacar neste marco normativo o recente Plano Nacional de Educação (PNE) sancionado em 25 de junho em 2014, através da Lei Federal nº 13.005/15. Esse plano reafirma uma educação antirracista pautada, dentre outras diretrizes, na: “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação” (BRASIL, 2014), conforme o inciso III, do artigo 2º. Mais adiante, na mesma Lei, há outra regra, consistente na Meta nº 7 que visa a fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades e menciona, outra vez, a educação para as relações étnico-raciais:
Estratégia 7.25. Garantir nos currículos escolares conteúdos sobre a história e as culturas afro-brasileira e indígenas e implementar ações educacionais, nos termos das Leis nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e 11.645, de 10 de março de 2008, assegurando-se a implementação das respectivas diretrizes curriculares nacionais, por meio de ações colaborativas com fóruns de educação para a diversidade étnico-racial, conselhos escolares, equipes pedagógicas e a sociedade civil. (BRASIL, 2014, p. 65).
Em consonância com o prescrito no novo PNE, estão o Plano Estadual de Educação do Estado da Bahia (PEE), em vigor através da Lei Estadual nº. 10.330/06 (BAHIA, 2006), tendo esta sofrido alteração posteriormente, o Plano Municipal de Educação de Riachão do Jacuípe, Lei Municipal nº 845/2015 (RIACHÃO DO JACUÍPE, 2015). Este último diploma normativo insere de maneira genérica, porém determinada, a necessidade do trabalho com a diversidade humana nas escolas, adotando a seguinte estratégia:
2.18) assegurar que a questão da diversidade cultural, religiosa, de gênero, etnia, ética e orientação sexual, seja objeto de tratamento didático-pedagógico e integre o currículo dos estudantes como eixos de estudo com base na política nacional do livro didático. Para tal ensejo, os docentes devem estar aptos e capacitados com a devida orientação pedagógica. (RIACHÃO DO JACUÍPE, 2015, p. 11 – grifo nosso).
Dando prosseguimento, ainda no ano de 2013, em decorrência das inúmeras campanhas e eventos mundiais em prol dos direitos humanos, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) editou a Resolução nº 68/237, de 23 de dezembro de 2013. Referido ato instituiu a Década Internacional de Afrodescendentes entre os anos de 2015 e 2024, que começou em 1º de janeiro de 2015, com término previsto para 31 de dezembro de 2024, e com o tema: “Afrodescendentes: reconhecimento, justiça e desenvolvimento”. Todos os países do mundo foram convocados a envidar esforços para reconhecer os feitos da cultura negra, bem como combater o preconceito contra essa etnia. Assim, a campanha consiste em:
promover o respeito, a proteção e a realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de afrodescendentes, como reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Década será uma oportunidade para se reconhecer a contribuição significativa feita pelos afrodescendentes às nossas sociedades, bem como propor medidas concretas para promover sua inclusão total e combater todas as formas de racismo, discriminação racial, xenofobia e qualquer tipo de intolerância relacionada. (UNESCO, 2015a, p.1).
Pretende-se com essa campanha envolver principalmente os estabelecimentos de ensino mundiais em uma grande corrente para disseminar práticas de educação étnico-racial, de respeito e alteridade para com todos os povos, em especial, os negros. Através dos princípios de reconhecimento, justiça e desenvolvimento, pretende-se que toda a população, sobretudo dos países que integram as Nações Unidas, juntamente com os afrodescendentes, possam superar as desigualdades sociais seculares e juntos promovam uma cultura de paz e alteridade. (UNESCO, 2015a).
Em sintonia com a Década da Afrodescendência no mundo, foi realizado o Fórum Mundial de Educação, em maio de 2015, na Coreia do Sul. Teve como produto de profícuas discussões a Declaração de Incheon, nome da cidade-sede do referido evento. A temática principal foi a Educação 2030: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos.
A Declaração de Incheon reafirma todos os propósitos e intenções dos documentos oficiais anteriores expostos nesta seção. Já não se pode mais, neste século XIX, admitir a intolerância contra qualquer povo, mormente os já subjugados e massacrados há séculos, como é o caso do povo negro. Assim, tendo como base um dos objetivos de desenvolvimento do milênio (ODM) e dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), que implicam assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos, a Declaração de Incheon proclama:
Nossa visão é transformar vidas por meio da educação ao reconhecer seu importante papel como principal impulsionador para o desenvolvimento. [...] com base nos direitos humanos e na dignidade; na justiça social; na inclusão; na proteção; na diversidade cultural, linguística e étnica [...] comprometemo-nos, em caráter de urgência, com uma agenda de educação única e renovada, que seja holística, ousada e ambiciosa, que não deixe ninguém para trás. (UNESCO, 2015b, p.1 – grifo nosso).
Soma-se a essas legislações o Documento Curricular Referencial da Bahia (DCRB) que é o normativo estadual que visa orientar os Sistemas, as Redes e as Instituições de Ensino da Educação Básica do Estado, na elaboração dos seus referenciais curriculares e/ou organização curricular escolar, por meio dos seus Projetos Políticos Pedagógicos (PPP). O DCRB (2020) é o primeiro documento que a Bahia produz, a muitas mãos, para contemplar todas as etapas e modalidades da educação básica. Recentemente destacamos o volume 3, dedicado as modalidades de ensino, a saber: Educação do Campo, Educação Escolar Quilombola, Educação Escolar Indígena, Educação Especial e Educação de Jovens e Adultos.
No tocante a modalidade educação do campo, o referido documento sinaliza a juventude campesina como sujeitos de direitos. Direito a uma educação no/do campo de qualidade e contextualizada no fortalecimento das identidades, sobretudo na última etapa da educação básica que é o Ensino Médio. A educação do campo nesse sentido corrobora com uma educação para a diversidade, o que inclui o reconhecimento do pertencimento étnico-racial das comunidades campesinas. Por isso o referido documento defende:
uma formação para a juventude que eleve sua capacidade teórica de compreensão, interação e intervenção do/no mundo; que propicie o domínio da cultura em suas formas mais avançadas, a fim de que enriqueçam sua existência como seres humanos em condições de construírem objetivamente suas vidas, sendo capazes de transformar o que precisa ser transformado. Compreende-se que neste momento histórico, é fundante atuar nas condições existentes, dominando todas as ferramentas necessárias para oferecer a melhor escola, o melhor ensino e a melhor educação, a fim de proporcionar as condições adequadas para a superação do modo de produção capitalista, sobretudo no campo. (DCRB, 2022, p.43-44).
Portanto, com base nas normativas até agora apresentadas, nota-se uma linha do tempo que exprime a evolução de uma política para a diversidade, reputando a educação para as relações étnico-raciais uma pauta urgente para uma educação de qualidade e mais humanitária. Apesar disso, o processo de implementação da Educação das relações étnico-raciais que começou em 2003, mesmo após anos, ainda está vigente. Em linhas gerais buscamos, nesta seção, dissertar sobre a legislação educacional em favor da promoção de uma educação para a diversidade, sobretudo antirracista na escola, tendo em vista o alinhamento das normativas legais com as necessidades de mudanças nos currículos escolares
A despeito do progresso das leis sob a tônica dos diversos movimentos sociais em prol da população negra, será que, de fato, as escolas estão cumprindo na íntegra o previsto nesses documentos normativos? Estão as escolas efetivamente vivenciando uma pedagogia antirracista? Nos parágrafos subsequentes, será dissertada a evolução dessas práticas por meio de uma tríade metodológica experimentada por crianças e jovens, centrada na pedagogia griô.
Nesse interim, a partir de então passaremos a contextualizar experiências vivenciadas por crianças e jovens na comunidade de Chapada dentro do projeto Batuques de Ancestralidade e do projeto E-books Pedagogia Griô Contação de Histórias. Essas experiências compartilhadas irão responder ao questionamento da problemática citada no parágrafo anterior.
2.2 Atos antirracistas protagonizados por jovens campesinos
1ºAto - Cine-afro na escola
Com o projeto “Batuques de Ancestralidade”, seguimos no propósito de fomentar uma segunda experiência de educação antirracista mobilizando toda a comunidade escolar em torno de uma proposta de cinema com os jovens. Assim, em 2019, nasceu a ação do Cine-afro, cuja ideia consistiu em usar produções cinematográficas para discutir sobre a temática da educação étnico-racial. A dinâmica consistia em dois momentos importantes. No primeiro momento havia a exibição dos filmes na sala de projeção da escola. No segundo momento fazíamos uma roda de conversa entre os estudantes e pessoas convidadas para serem mediadores do debate. Ao todo foram apresentadas cinco películas majoritariamente produções brasileiras e locais. Em destaque relataremos a experiência de uma das exibições mais comentadas com jovens líderes de classe das 1ª, 2ª, 3ª séries do ensino médio e na modalidade de educação de jovens e adultos.
Travessias Negras, documentário produzido pelo cineasta baiano Antonio Olavo no ano de 2017, conquistou a atenção de nossos estudantes pelo realismo e proximidade do assunto com o público. A cada um dos cinco episódios exibidos numa duração de 1h30min a intenção foi contribuir no aprofundamento da discussão sobre a temática das relações raciais no Brasil. O mediador desse debate foi um jovem negro estudante de Psicologia de uma universidade pública na Bahia. Esse diálogo de jovem para jovens frutificou numa das trocas de conhecimento mais ricas a respeito da educação antirracista.
Nas sessões de grupo focal os estudantes atribuíram sentidos à experiência com o documentário, o que resultou na análise de duas categorias. A primeira, travessias negras do outro e de si, trata das narrativas dos estudantes a respeito das travessias dos jovens do documentário. São travessias que retratam histórias de superação e dilemas vividos no cotidiano da população negra. Os jovens estudantes se viram na pele e nas falas apresentadas em cada episódio. A trama tecida nos fios das narrativas dos jovens do documentário se encontrou com as narrativas dos nossos jovens estudantes, então telespectadores.
A exibição do filme foi impactante pois eles puderam perceber na realidade como as trajetórias estudantis até a universidade puderam se desenvolver bem apesar de todas as dificuldades, o que a partir da minha percepção das falas foi expressamente evidente em seus imaginários, suscitando expectativas quanto ao próprio futuro de otimismo quanto ao sucesso profissional via escola. (Pedro Lucas, mediador, estudante de psicologia, 19 anos).
O filme demonstrou onde os nossos sonhos podem nos levar. Mesmo com as dificuldades aqueles jovens contaram suas histórias de vida em seus estudos que me emocionaram e me fizeram lembrar que eu tou aqui nessa escola e um dia vou ser que nem um deles, estudante de universidade e um bom profissional. (Líder de classe, 3ºano da EJA, 35 anos)
Achei esse filme o máximo porque ele me fez lembrar o quanto as pessoas negras ainda sofrem para estudar e entrarem na universidade. Vi como as famílias apoiam seus filhos para estudar e ser gente na vida (Líder de classe 1ºA, 15 anos)
Esse documentário marcou porque me lembra quem eu quero ser. Nunca ninguém na minha família entrou na universidade. Por ser pobre e negra sempre me disseram onde deveria estar na cozinha dos outros. Foi numa das cozinhas do filme que vi uma mãe abraçar uma filha pelo sucesso dela faculdade. [choro] Eu mesmo atrasada na escola, sonho em um dia entrar na faculdade pra e ver meus filhos lá estudando ganhando diploma da universidade. (Líder de classe 5ª/6ª séries da EJA, 28 anos).
É notório o tom subjetivo e pessoal, tal como vidas espelhadas o curso que se segue no documentário Travessias Negras. Nele, a intenção é fazer valer a voz e a identidade desse grupo formado por negros e negras lutadores e vencedores. O potencial da linguagem cinematográfica nos leva crer que este recurso na prática pedagógica, de aula se destaca como uma das metodologias capazes de contribuir na formação e socialização dos jovens no contexto escolar, podendo ser abordadas questões culturais e sociais. Acreditamos que o cinema sempre tem um caráter formativo independente. (NAPOLITANO, 2009).
Como se vê nos depoimentos acima a análise e interpretação de filmes proporcionam ao sujeito uma abordagem mais crítica da realidade que o circunda e uma apropriação mais significativa da cultura audiovisual.
Na segunda categoria de análise, cine-afro na escola: desafios aos jovens depreendemos que o cinema utilizado como prática pedagógica em favor de uma educação antirracista é possível, dentro de uma vivência dialógica que oportuniza cada jovem a se projetar nas telas do cinema, não como mero telespectador, mas como crítico de uma história do outro e de si mesmo. Os jovens perceberam vida para além das telas e debateram, na conjuntura do possível, questões presentes no documentário e na vida deles. Foi uníssono o comentário da maioria que concordou que a película trouxe anseios, tensões, preocupações, sonhos, esperanças nessa etapa de vida estudantil.
O sonho com a universidade é partilhado pela maioria e o desejo de alcançá-la, rompe a fronteira do racismo e do preconceito. A presença de discussões como esta no contexto escolar reforça uma pedagogia antirracista preconizada pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08 (Brasil 2003, 2008), como ilustra a fala seguinte: “a mediação de jovem para jovem foi produtiva porque pude perceber de forma concreta o quanto as questões étnicas impactam nos ideais formativos e emocionais daqueles jovens em desenvolvimento.” (Pedro Lucas, mediador, estudante de psicologia, 19 anos).
Ademais, uma educação étnico-racial que preza pelas narrativas cinematográficas carrega o potencial de valorizar a função social da escola que é colaborar na formação de identidades. (GOMES, 2012) Em se tratando de identidades negras, a experiência fílmica pode afirmar e projetar a história dos negros para além de suas mazelas e subalternidade. A ousadia de pensar uma educação assim, nos faz vincular a uma educação que se inspira na pedagogia griô, onde o conhecimento é para a vida, vida em comunidade. (PACHECO, 2015).
Correa (2017) corrobora nesse aspecto afirmando que o cinema é uma arma em favor da pedagogia antirracista, porque se devidamente utilizada, se transforma em um artefato cultural cujos efeitos de quem o contempla e forma uma rede de praticantes/pensantes do cotidiano escolar e social. Esses praticantes/pensantes, a juventude e comunidade escolar que abraçaram o cine-afro, foram despertados nessa experiência a fazer uma educação menor, cujo (s) artefato (s) da vez foi o documentário Travessias Negras, somado a outras três películas também importantes como “ Besouro”, “ Faces da Negritude do Sisal”, e a série da Netflix “ Olhos que condenam”.
2ºAto - Roda de memórias e partilhas com os mestres griôs
Nesse percurso vivencial, ainda em 2019, diferentes realidades geracionais se entrecruzam: a juventude e os mestres griôs da comunidade local. Com o projeto “Batuques de Ancestralidade” em no intento de uma educação antirracista (Brasil 2003, 2008; Ministério da Educação 2004; 2013; Munanga, 2005; Gomes 2012; Hampatê Bà, 2010), mobilizamos toda a comunidade escolar. Em destaque relataremos a experiência com a 3ª série do ensino médio, que fez juntamente com os professores de Ciências Humanas uma pesquisa com os griôs de Chapada e como produto construíram um álbum cultural. Nesse processo de convivência identitária, de mediação de saberes pela pedagogia griô fomentamos uma educação contextualizada e comunitária.
Assim sendo, buscamos tematizar, aqui, os sentidos atribuídos pelos jovens diante da vivência com os mestres griôs chapadense, tendo esta como ponto culminante de expressão sociocultural na prática pedagógica do espaço escolar investigado. Por meio da sessão de grupo focal realizada com cinco estudantes da 3ª série do ensino médio do colégio supracitado e com entrevista semi-estruturada com líderes de classe, tomando como base a análise de conteúdo de Bardin (2009) e a análise temática (Minayo, 2010), encontramos os seguintes destaques categóricos: eu acredito em griôs; descobertas juvenis sobre a cultura comunitária.
Na categoria “eu acredito em griôs” os jovens adentraram na pesquisa de inspiração etnográfica e foram a busca da localização, quem eram, o que faziam/fazem os mestres griôs. Ainda na sala de aula tiveram discussões com os docentes sobre o sentido da palavra griô. Identificaram oito mestres griôs na comunidade: Seu Tuta (sambador de chula), Seu Ladinho (político e historiador), Ambuque (capoeirista), Seu Goinha (vaqueiro), Dona Priquita (parteira), Seu Chiquinho (dono de armazém e batedeira de sisal), Dona Zifinha (rezadeira), Dona Maria Amanda (dona de casa de farinha). Todos estes moradores do povoado que abriram as portas de suas casas, locais de importância para demonstrar a cultura que aprenderam com seus mais velhos.
Para os jovens estudantes os griôs são: “os gritadores do nosso sertão” (Naiana, 17 anos), “os contadores de nossa história” (Jean, 17 anos) “os nossos mais velhos” (Raquel, 18 anos) “aqueles senhores e senhoras que vivem a cultura popular”(Denver, 19 anos) “ os guardadores da palavra, dos dons e da sabedoria de seu povo” (Hiasmin, 17 anos). Os sentidos atribuídos os griôs convergem para a ideia de guardião/guardiã do patrimônio cultural no sentido material e imaterial. É marcante também a referência de griô à geração mais idosa e à tradição oral. Griô é o abrasileiramento de griot, palavra francesa que diz respeito os genealogistas, contadores de histórias, narradores, músicos poetas populares, importantes agentes de cultura. (PACHECO, 2006; 2015).
Ademais, em confirmação ao dito anterior, historicamente o termo griô tem origem no holocausto da escravidão, em que os “negreiros” portugueses percebiam que nos portos de embarque de escravos haviam homens com vestes e gestos diferentes que gritavam a história de seus povos; eles faziam isso para que aquelas pessoas escravizadas, prestes a embarcar a terras desconhecidas, jamais se esquecessem de sua ancestralidade. A estes homens altivos, os portugueses deram o nome de “gritadores”, daí griot no francês. (CAIRES, 2015).
No Brasil o termo se identifica com o nascedouro da Pedagogia Griô “Declarei ter vindo à África pra vivenciar a tradição Griô e pedir permissão para a tradução e uso do termo Griô no Brasil, que foi abrasileirado desde 1998 nas caminhadas do Velho Griô em Lençóis, Bahia, diz Márcio Caires.” (CAIRES, 2019). Assim os griôs ativos caminham de aldeia em aldeia mantendo viva a linha de cultura de seus povos. São culturas de transmissão oral, mas, nem por isso, menos complexas e profundas que a cultura escrita. A riqueza da tradição oral nos transmite um saber ancestral que vai passando de geração a geração em um repertório de culturas, ofícios e saberes diversos.
A segunda categoria aborda as descobertas juvenis sobre a cultura comunitária. Essa relação entre juventude e cultura vem sendo observada em pesquisas que apontam para a diversidade de crenças e movimentos culturais no contexto escolar, componente necessário para a formação da identidade. Carvalho (2012) Nesse aspecto, os jovens demonstram perceber que o contato com os mestres griôs dentro e fora da escola, permitiu a descoberta de uma nova função de escola, a função social; que os fez duplamente enxergar, a dinâmica cultural da comunidade e a contribuição étnica de negros e índios para a formação da comunidade local. Por um lado, a vivência com os griôs em seus lugares de pertença, agregou o elemento historicidade. Por outro na sala de aula com os griôs possibilitou a construção do vínculo afetivo-cultural, tão necessário para a formação da identidade étnico-racial. O produto final que foi a construção do álbum cultural proporcionou o fortalecimento das identidades, através da valorização dos próprios ancestrais e o reconhecimento de si no outro. Eis o que afirma a estudante:
Com os Griôs, os jovens têm muito a aprender sobre crenças, fé, amor, amizade, superação e acima de tudo conhecimentos que dinheiro nem estudo algum poderá oportunizar. Me arrisco a afirmar que é somente através desses projetos que nós conseguimos isso. A escola nos dá a oportunidade de conhecer mais sobre a nossa cultura local, coisas e pessoas que às vezes nos passam despercebidas, mas que são pessoas tão fantásticas, que infelizmente nosso preconceito sobre aquela pessoa não nos permite perceber isso. Esse projeto nos oferece a busca pelo saber, o desejo de quebrar paradigmas de que o povo preto só serve para o trabalho, digo isso porque todos os nossos Griôs entrevistados são pretos, e quem teve o prazer de ver de perto o nosso livro consegue perceber a inteligência depositada ali, mesmo sem estudo, sem diploma, sem formação, o que temos ali é advindo de uma ancestralidade de importância sem igual. (Hiasmin, 17 anos).
Assim sendo, a busca pela ancestralidade torna-se o elo que estabelece vínculos entre a juventude e os mestres griôs. Mais do que isso, a escola do campo sendo um dos espaços para a construção desses saberes, favorece a um projeto de emancipação humana, que reconhece que precisamos romper com o discurso ambíguo racista que não se assume racista. Como nos sugere Gomes (2012), precisamos enfrentar essa lógica hegemônica presente de que vivemos num paraíso racial, ignorar essa ambiguidade não nos levará a lugar algum. É preciso combatê-la! Isto já está sendo feito, quando vivenciamos nas novas práticas antirracistas a tessitura de novas identidades juvenis do/no campo mais empoderadas, cientes do elo ancestralidade-identidade, alteridade-resistência.
3º e 4º atos Roda de Diálogos negros e Roda de contação de histórias
O Projeto “Batuques de Ancestralidade no atravessou o período pandêmico 2020/2021 produzindo virtualmente rodas conversas e grupos de estudos sobre antirracismo e no ano de 2022 retoma seu formato presencial e começa, após adesão docente interdisciplinar, através um processo de sensibilização com os estudantes. Acompanhando o calendário temático da diversidade para a educação para as relações étnico-raciais da rede estadual de ensino, ocupamos nossa agenda com rodas de diálogo a começar pelo “Julho das pretas” onde a ocasião favoreceu a pesquisa por conhecer o movimento empoderado de mulheres negras de projeção latino- americana que deram exemplo de luta por uma sociedade antirracista.
A partir dessa iniciativa, esse calendário foi o marco para mobilizar ações que tem como objetivo trazer informações sobre datas que marcaram a história do povo negro no Brasil e no mundo. Assim, os estudantes orientados pelos docentes, puderam mergulhar na história de vida de personalidades negras, sobretudo mulheres, durante os meses de julho, agosto. O levantamento de informações, dados, imagens, desenvolveu o gosto pela pesquisa e surpreendeu os estudantes pela ausência de conhecimento e repertório sobre as lutas do povo brasileiro por igualdade racial e de gênero. e respeito pela vida.
Paralelamente, na escola municipal organizamos também o 4º ato antirracista que foi a Roda de Contação de histórias com as crianças em parceria com as coordenadoras, as professoras, os mestres griôs contadores de história da comunidade. A nossa oficina objetivou promover contação de duas histórias afro-indígenas valorizando a formação identitária das crianças no contexto escolar. Desenvolvemos conforme orientação da pedagogia griô, em momentos de rodas, porque assim são contadas as histórias e estórias no tempo para os nossos ancestrais. Primeiro roda de abertura e de integração preparando o grupo para a contação da história. Depois fizemos a contação da história com a mestre griô vovó Lizi, numa grande roda. Logo após fizemos roda de diálogo com as crianças sobre o entendimento das histórias trazendo com elas palavras geradoras e questionamentos da estória. Em seguida, a roda da partilha, onde as crianças produziram e apresentaram reconto através desenhos e os conhecimentos produzidos com a história. Por último fizemos uma roda de despedida da mestre griô encerrando com canto popular.
Considerando o relato desses dois atos antirracistas, cada um em sua especificidade de ensino, podemos perceber o movimento producente da educação do campo local em desenvolver uma metodologia de trabalho diferenciada e insurgente. De um lado histórias de personalidade negras e indígenas são contadas para os jovens. De outro, estórias de personagens são também contadas revelando as histórias dos povos africanos e originários da nossa terra. Crianças e jovens puderam compreender os caminhos que os nossos ancestrais fizeram. Conheceram suas lutas, seus feitos, a vida e a morte. Mais do que isso vivenciaram a formação identitária construindo o conhecimento com protagonismo e engajamento, como se lê adiante:
Gostei muito da chegada da vovó Lizi, ela veio nos contar a história da cobra Saturi. O jeito dela contar foi diferente e me deixou só olhando pra ela. Não dava nem vontade de piscar o olho. (Estudante do 1º ano, 6 anos, EF).
Tudo foi legal, a vovó contando histórias, a gente ouvindo, eu disse a gente ouviu caladinho, e prestando atenção em tudo. Amei a Saturi e amizade dela com a menina. Eu achava que cobra tinha que matar. Depois eu penso agora que não por que elas podem ser nossas amigas. Elas são também a natureza. (Estudante, 2º ano, 7 anos, EF).
A sala cheia de livros, a cabaça do Chico Rei, a cobra gigante, a vovó sentada e pulando com a gente contando as estórias, a gente desenhando e contando tudo do nosso jeito... parece um sonho! Um rei negro? Quilombo? Nunca tinha visto. Ah, eu quero saber mais disso ai! (Estudante masculino, 2º ano, 8 anos, EF).
Fiquei muito impressionada com as histórias das mulheres que conheci. A princípio achei que seria mais uma das pesquisas chatas que fazemos, mas depois vi que não. A forma como foi realizada, foi bacana. A gente tinha que defender a personalidade pesquisada e expor na roda e dialogando com os outros estudantes. Me lembro do esforço que tive de fazer para perder o medo e atrair os olhares dos colegas para o que eu estava falando. Me lembro também de uma grande roda no pátio da escola onde eu como líder estudantil tive que expor para todas as turmas da escola o que eu tinha entendido com as pesquisas, e me trouxe muita responsabilidade, eu me senti gigante. Entendi que eu não ‘tava’ só reproduzindo uma fala, a minha fala ia dar um “toque” no outro e todos viram a importância de conhecer os fatos e o que as pessoas fizeram. Lembro que me marcou a história de Tereza de Benguela, Luiza Mahin, Dandara, Aquatune e tantas outras mulheres que lutaram por uma sociedade sem racismo e mais humana. (Maria Alice, 3ª série EM. 17 anos).
Considerando as representativas falas dos estudantes, podemos entender que o acesso à leitura contextualizada e a aprendizagem da vivência dos conhecimentos proporcionou o entendimento de que a História é herdada e continuada por várias gerações. História de uma luta que produziu um grande número de datas que merecem ser lembradas. Essa prática da roda dialógica faz parte dos aspectos metodológicos do modelo de ação pedagógica da pedagogia griô. O que tornou significativo o ato de aprender uma “nova história” foi a roda de estudantes, que com o diálogo mediado pelos próprios estudantes, possibilitou a construção de vínculos e aprendizagem durante todo o ciclo do projeto. (PACHECO, 2006).
Nessa etapa de sensibilização, a roda de representou o empoderamento dos estudantes por meio da palavra. O poder de palavra precisou ser partilhado com todos em todos momentos e a mediação e controle do tempo coube às lideranças estudantis. Ter essa responsabilidade de mediar falas, assumir o poder de fala, validar a fala do outro, experimentar a dúvida, administrar as contradições e conflitos de ideias e posicionamentos, a construção e desconstrução de grupos, fez com que os estudantes se sentissem responsáveis pela criação das aprendizagens e com autonomia buscar novas formas de produzir conhecimentos, centrado na dialogicidade e na vivência identitária. Afinal, conhecer a história de vida de símbolos nacionais, heróis, heroínas e personalidades negras só afirma o desenvolvimento das identidades dentro de uma educação antirracista.
Além disso, esse processo de sensibilização dos projetos por meio das pesquisas, caracterização de cenário e figurinos e da roda de diálogo com os estudantes possibilitou também o acesso a história do povo negro, afro-brasileiro, afro-ameríndio, de outras fontes que não somente os livros didáticos. O leque de possibilidades orientado pelos professores e o estímulo à busca de outros recursos como os digitais e a tradição oral, permitiu com que os estudantes investigassem e enxergassem que as estórias e histórias contadas sobre os povos “subjulgados” quase sempre é contada do ponto de vista dos “vencedores”. Logo, estamos fadados ao perigo de conhecer um único lado da história, e assim vivenciamos por muito tempo o perigo de ter conhecido uma história única. Com a educação antirracista a lógica se inverte, porque vamos a busca de “outras versões” da história e reconstruímos o elo com a ancestralidade guerreira e resistente do povo negro, dos povos originários de nossa terra. Sobre isso, Chimamanda Adichie, reforça:
Todas essas histórias fazem de mim quem eu sou. Mas insistir somente nessas histórias negativas é superficializar minha experiência e negligenciar as muitas outras histórias que me formaram. A história cria estereótipos. E estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem um história tornar-se a única história. [...]Histórias tem sido usadas para expropriar e tornar malígno. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar”, pondera. “Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida.” (ADICHIE, 2019, p. 13).
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, procuramos tematizar sobre as práticas educativas antirracistas em duas escolas do campo em Riachão do Jacuípe, Bahia. Em todas as experiências relatadas aqui objetivamos dissertar sobre uma proposta descolonizadora do saber/pensar/ser/viver, e de fortalecimento das identidades campesinas, centrada na pedagogia griô (Pacheco, 2006,2015). Essa pedagogia da roda da vida nos apresentou um propósito diferenciado e um jeito novo de caminhar na trilha de uma educação para a diversidade.
De uma pesquisa-ação realizada nas escolas de ensino fundamental e médio, fruto dos projetos interdisciplinar Batuques de Ancestralidade e E-books Pedagogia Griô Contação de Histórias, os resultados demonstraram que as práticas pedagógicas alinhadas ao protagonismo étnico-racial, promoveram quatro atos de currículo insurgentes e decolonizantes, a exemplo das rodas de diálogo sobre as personalidades negras, as rodas de contação de histórias, as rodas afro-dialógicas embaladas nas experiências fílmicas, nas rodas de memórias e produção partilhada no encontro com os mestres griôs da comunidade campesina chapadense.
Assim, a cada ato curriculante decolonizado, o fortalecimento das identidades juvenis se potencializou na vivência da ancestralidade e às aprendizagens sobre reverência, referência aos mais velhos e antepassados; ao mesmo tempo (re)afirmação de identidades negras e indígenas, que somatizam o desafio de uma educação no/do campo para a diversidade, sobretudo, para relações étnico-raciais cada vez mais positivas.
Ressaltamos que ao propor uma educação antirracista no contexto da educação básica precisamos levar em conta o repertório de conhecimento que as crianças e os jovens já trazem, bem como investir em uma problemática de natureza interventiva, capaz de provocar mudança no modo ser e de viver deles. Acreditamos que as nossas experiências foram significativas, porque se converteram em vivências na construção de vínculos que geraram saberes escolares e comunitários.
Ademais, é envolvente a fala da jovem Hiasmin: “acredito que é de suma importância a existência desses e de outros griôs, pois assim garantimos a perpetuação das nossas culturas, que nos só temos acesso com o contato direto a eles”, bem com a fala insurgente e curiosa da criança “um rei negro? Quilombo? Nunca tinha visto. Ah, eu quero saber mais disso ai!”Nisso consiste a pedagogia griô, o que inspirou a dinâmica dessa experiência riquíssima no contexto escolar. Quando fizemos o movimento de ir até os griôs, de trazê-los para a escola, (re)elaborar o conhecimento aprendido e devolver para a comunidade em forma de álbum do patrimônio imaterial, promovemos uma compreensão e de como as suas experiências vividas no contexto escolar determinam a constituição de suas identidades.
Essas crianças e jovens que advém de uma realidade campesina no interior da Bahia, admitem que acreditam em griôs, e que estes são cruciais para a formação identitária de uma comunidade. Mais do que isso, todos os estudantes aprenderam a inserir nos espaços pedagógicos da escola e da comunidade as questões da ancestralidade, guiadas pelos velhos griôs, para que as gerações presentes e vindouras apreciem, perpetuem e (re) inventem a cultura popular no centro da roda educação e da vida.
Portanto, consideramos a nossa caminhada inconclusa, nem tudo foi dito, nem tudo que projetamos foi alcançado. Muitos são os limites e desafios e serem enfrentados, para que uma educação do campo antirracista viva plenamente seu o potencial militante e transformador. As políticas públicas para a educação na diversidade, ainda não andam no compasso da qualidade de vida que as populações carentes merecem, principalmente com as escolas do campo.
Dentro das escolas essa temática disputa seu lugar de legitimação com outras tantas demandas consideradas “mais urgentes”. Não obstante, as nossas escolas acreditam e seguem adiante na crença vivificante de uma prática pedagógica com atos de currículo criados na perspectiva crítica, insurgente e reflexiva, advogando em favor de relações étnico-raciais positivas, emancipatórias, capazes de empoderar crianças e jovens estudantes a sonharem seus projetos de vida, para além dos muros do racismo, do preconceito e da discriminação. Vidas pulsando em axé e sua plenitude é o que buscamos, para que não haja mais apagamentos das nossas histórias e sim a continuidade delas com a bênçãos dos nossos ancestrais.
Gratidão e pedidos de bençãos aos meus ancestrais espirituais e aos meus ancestrais encarnados. A benção vovó Ana Maria de Jesus, rezadeira centenária. A benção minha mãe Antonia, parteira. A benção mestre Lílian Pacheco. A benção meus filhos Pedro Lucas e Analuz, a benção vovó Lizi e todos/todas os mestres griôs do distrito de Chapada. Gratidão afetuosa às escolas participantes dos projetos de educação antirracista na comunidade de Chapada em Riachão do Jacuípe, Bahia.
Mestre em Educação e Contemporaneidade (UNEB). Licenciada em Pedagogia e Especialista em Educação e Pluralidade Sócio-Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Especialista em Psicopedagogia (FACINTER- IBPEX). Especialista em Coordenação Pedagógica (UFBA). Docente do Curso de Licenciatura em Pedagogia da Faculdade Regional de Riachão do Jacuípe (FARJ). Atuou como coordenadora pedagógica da rede municipal e na Secretaria Municipal de Educação, Esporte, Cultura e Turismo (SMEECT) da cidade de Riachão do Jacuípe, Bahia. Educadora griô formada pela Escola de Formação Griô, Lençóis, Bahia. Atualmente é coordenadora pedagógica do Colégio Estadual Dídimo Mascarenhas Rios, integrando na rede estadual no Núcleo Territorial de Educação 15 (NTE15), da Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC). Contatos de e-mail: alisecosta@gmail.com e ana.santos3994@enova.educacao.ba.gov.br.
REFERÊNCIAS
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