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Enlaces E Atravessamentos Em Torto Arado: Literatura, Direito E Poder

Angela Vitoria Andrade Gonçalves da Silva; Bernardo Gomes Barbosa Nogueira; Samuel Mascarenhas Barros Gusmão

Este artigo científico tem como principal objetivo a análise da obra "Torto Arado," de Itamar Vieira Júnior, à luz do contexto influenciado pelo neoliberalismo, no qual as metas de mercado prevalecem. Simultaneamente, busca compreender o papel do Direito na regulação social e a crescente diminuição da importância da experiência literária na sociedade contemporânea. A pesquisa investiga a viabilidade de identificar, por meio da literatura, a influência do neoliberalismo nas narrativas, especialmente nas disputas por poder e territórios simbólicos vulneráveis, com o intuito de evidenciar a capacidade crítica da literatura em dar voz às vozes silenciadas pelo neoliberalismo, frequentemente respaldadas pelo sistema jurídico. Para alcançar esse propósito, a pesquisa adota uma abordagem ampla. Inicialmente, contextualiza o ambiente atual, caracterizado pela predominância do pensamento neoliberal, destacando a importância da literatura como um espaço propício para o encontro de perspectivas diversas. Em seguida, realiza uma análise estrutural da obra "Torto Arado" por meio de uma abordagem descritiva, permitindo a exploração das histórias, conflitos e narrativas presentes na obra. Finalmente, ao identificar os conflitos na trama, a análise examina como a relação de poder, caracterizada pela verticalidade entre os personagens, influencia a interação dos sujeitos com o mundo ao seu redor.

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SILVA, Angela Vitoria Andrade Gonçalves da; NOGUEIRA, Bernardo Gomes Barbosa; GUSMÃO, Samuel Mascarenhas Barros. ENLACES E ATRAVESSAMENTOS EM TORTO ARADO: LITERATURA, DIREITO E PODER. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2023 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/609-enlaces-e-atravessamentos-em-torto-arado-literatura-direito-e-poder. Acesso em: 16 out. 2025.

ENLACES E ATRAVESSAMENTOS EM TORTO ARADO: LITERATURA, DIREITO E PODER

As obras literárias acentuam as tonalidades da realidade cotidiana, manifestando, a partir de narrativas, silenciadas ou não, experiências e estórias capazes de transcender o individuo de si. Transcender de si em direção ao Outro, perpassando e atravessando outras realidades, territorios, espaços e lugares, que talvez, seriam impossíveis de conhecer considerando a fronteira do tempo e espaço - físico. Pelas narrativas, ficcionais ou não, sujeito tem a oportunidade de experienciar conflitos para além de seu horizonte material. Dessa maneira, pela literatura se retrata a vida em sociedade e suas vissitudes.

Da mesma forma que uma construção de conhecimento social, o Direito também existe a partir de um reflexo da realidade, uma área do conhecimento criada pela sociedade e para a sociedade, debruça-se sobre uma série de problemáticas e impasses cotidianos, tocando desde relações particulares às relações públicas.. Pelo Direito se exerce a regulamentação de direitos básicos, políticas públicas, desempenhando uma função de pacificação social. O Direito como Direito Civil. Direito Trabalhista. Direito Constitucional. Direito Administrativo. Direito Penal. Todos esses segmentos são estruturados a partir de institutos jurídicos criados para viabilizar a solução de contigências no caso concreto, que muitas vezes pode ser narrados e retrados pela literatura.

Contudo, o que se verifica nos dias atuais é um terreno inóspito à Literatura e suas contribuições para ser. A sociedade atual, permeada pela racionalidade neoliberal, tem sido caracterizada por um tempo de excesso, aceleração e produção, onde, muitas vezes, a solução de problemas sociais são relegados ao seio da família e da religião, criando uma reação imunológica a crítica.Trabalho, família  e fé passam a ser os únicos remédios para a pobreza. O Estado, no lugar de intervir buscando políticas de redistribuição de renda, passa a intervir na gestão do sujeito em prol do desenvolvimento do livre mercado. As relações  utilitárias e as trocas tornam-se, assim, o centro das relações sociais.

Ao mesmo tempo, a relação do indivíduo, que não se relaciona livre de interesses, com o mundo em sua volta se modifica. Essa relação, vezes possessórias, vezes de propriedade, vezes de mera detenção, são manifestações de relações de poder que se estruturam como plano de fundo da sociedade. Por essa via, compreendendo o território para além de seu aspecto material, formado ainda por trocas e relações simbólicas e imateriais (HAESBAERT, 2011), considera-se ainda que pelas narrativas, constrói-se distintas territorialidades, denunciando aquilo que o discurso hegemônico e neoliberal negligência, a exemplo do romance Torto Arado.

O trabalho em questão objetiva uma análise crítica da obra "Torto Arado", de Itamar Vieira Junior, no contexto da influência do neoliberalismo nas narrativas literárias que abordam disputas de poder e territórios, muitas vezes simbólicos, como veículo para dar voz a experiências silenciadas pela ideologia neoliberal e, em alguns casos, legitimadas pelo Direito. Inicialmente, será apresentado o cenário atual, caracterizado pela predominância da racionalidade neoliberal, enfatizando a relevância da Literatura como um espaço potencial para a exploração do "Outro". Em seguida, será realizada uma análise estrutural da obra "Torto Arado" por meio de uma abordagem descritiva, a fim de elucidar suas histórias, conflitos e narrativas.

Seguindo a metodologia conhecida como "Direito na Literatura", será conduzida uma investigação com o propósito de identificar como as relações de posse descritas na obra refletem uma disputa de poder, que abrange tanto dimensões materiais quanto simbólicas. Ao identificar os conflitos que permeiam a trama, avaliaremos de que forma a relação de poder, frequentemente de natureza vertical, entre os personagens, impacta a forma como os indivíduos se relacionam com o mundo à sua volta.

Por meio dessa análise literária, pretendemos evidenciar a criação de territórios simbólicos vulneráveis, que retratam as diferentes facetas do neoliberalismo na sociedade contemporânea. O cerne deste trabalho reside em demonstrar o caráter inextricável do território, entendido como uma dimensão que abarca tanto aspectos materiais quanto simbólicos, revelando as complexas relações de poder entre grupos dominantes e dominados. A literatura emerge como um espaço propício para a expressão e denúncia dessas dinâmicas sociais.

  1. NEOLIBERALISMO E LITERATURA: É PROBIDO FECHAR OS OLHOS

 

Para compreender a estruturação da sociedade atual, é necessário compreender, antes de tudo, os efeitos da racionalidade neoliberal. Ao dizer racionalidade neoliberal, reconhece-se os efeitos do neoliberalismo para além de uma ação política. O neoliberalismo, como racionalidade, para Dardot e Laval (2016) se afirma como a “nova razão do mundo”, razão global uma vez que

"faz mundo" no sentido de que ela atravessa todas as esferas da existência humana sem se reduzir à esfera propriamente econômica. Não é a esfera econômica que tende a absorver espontaneamente todas as outras esferas, como poderíamos pensar, mas uma extensão da lógica de mercado e do modelo empresarial para um conjunto de reformas públicas, de dispositivos de gestão, de práticas comerciais (ANDRADE, OTA, 2015, p. 284)

Essa racionalidade vai além de ações políticas. A razão neoliberal passa a articular “moral e psicologia, economia e direito, política e educação, religião e teologia política, propondo um tipo de individualização baseado no modelo da empresa” (SAFATLE; DA SILVA JUNIOR; DUNKER, 2021, p.12). 

O habitante desse novo arranjo de sociedade é o sujeito do desempenho e produção, empresário de si mesmo. O sujeito do desempenho “deseja liberdade e prazer no ofício empreendedor, surge a figura do trabalhador produtivo e morto, perdendo gradativamente o sentido da experiência com o outro pela barbarização dos laços sociais” (HABOSWKI, CONTE, 2021, p. 2). Esse sujeito perde a experiência com o Outro em favor do trabalho, isso porque o Outro representa uma negatividade a essa positividade absoluta.

O sujeito de desempenho é mais rápido e mais produtivo. Em prol da produtividade, em uma organização social que crê que nada é impossível, o sujeito do desempenho passa a ser agressor e vítima ao mesmo tempo, entrando em guerra com si mesmo.

O sujeito de desempenho está livre da instância externa de domínio que o obriga a trabalhar ou que poderia explorá-lo. É senhor e soberano de si mesmo. Assim, não está submisso a ninguém ou está submisso apenas a si mesmo. É nisso que ele se distingue do sujeito de obediência. A queda da instância dominadora não leva à liberdade. Ao contrário, faz com que liberdade e coação coincidam. Assim, o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho'. O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. O explorador é ao mesmo tempo o explorado (HAN, 2015., p. 29-30)

Para otimizar o desempenho, é comum que se restrinja a interação com outros, pois esta pode ser percebida como prejudicial, potencialmente reduzindo a produtividade. Nesse processo de otimização, são frequentemente sacrificados elementos que não podem ser diretamente convertidos em trabalho, tais como o sono, momentos de lazer, rituais pessoais e até mesmo narrativas. Nesse contexto, é comum a proibição de "fechar os olhos", simbolizando a recusa em permitir pausas. A aceleração implacável tende a destruir a narrativa e o ritmo na vida das pessoas, e com isso, a própria subjetividade é erodida. Isso ocorre porque a subjetividade absoluta se manifesta na forma de conclusão, e a narrativa é uma manifestação dessa conclusão. Portanto, a narrativa tem sido alvo de sucessivos ataques no contexto das políticas neoliberais.

Agora, considerando esse contexto e explorando a interseção entre Direito e Literatura, antes de definirmos o conceito de Literatura como uma arte, ciência e disciplina, é importante destacar a relevância de seu desfrute e acesso. Conforme observado por Antônio Cândido (1995), o acesso à literatura como arte e o prazer que ela proporciona são encarados como uma questão de direitos humanos. Quando falamos de direitos humanos, pressupomos que esses direitos são fundamentais tanto para o indivíduo quanto para a sociedade em geral. Isso significa que todos devem ter acesso a bens essenciais, como moradia, saúde, alimentação e educação. Contudo, a discussão ganha uma dimensão adicional quando se trata do acesso e da democratização do capital cultural, conforme abordado por Pierre Bourdieu (1998). Nesse contexto, é relevante considerar a literatura como uma necessidade básica, e seu acesso deve ser garantido como parte integrante dos direitos humanos fundamentais.        

Longe de representar um consenso, a concepção de direitos humanos está intrinsecamente relacionada com uma ordem de lutas e experiências históricas. Exprimindo um movimento de reinvindicações, os direitos humanos expressariam “uma espécie de processos que se situam entre o mundo normativo (das leis, das normas, da imperatividade e das coisas que servem para que a gente viva em sociedade, a mediação social) e o mundo real, das demandas, necessidades e interesses reais da sociedade e dos indivíduos.” (LEMOS, UFJF, 2021)[1].

O gozo e o acesso a direitos, mínimos, implicam no reconhecimento, ou não, do indivíduo, como cidadão. Ser cidadão implica em reconhecer seu status como detentor de direitos a ter direitos onde “significa viver numa estrutura onde se é julgado pelas ações e opiniões e de um direito de pertencer a algum tipo de comunidade organizada” (ARENDT, 2013, p. 330). Os direitos, especialmente, os sociais, ao contrário da afirmação jusnaturalista, não compreendem direitos imanentes a condição humana, mas sim fenômenos sociais, enquanto resultado de lutas históricas. Nesse sentido,

As demandas sociais, que prefiguram os direitos, só são satisfeitas quando assumidas nas e pelas instituições que asseguram uma legalidade positiva. [...] Mas há uma verdade parcial no pensamento dos jusnaturalistas, ou seja, a afirmação de que o direito é, de certo modo, algo que antecede - e é mais amplo - que o direito positivo, ou seja, o direito estatuído nas Constituições, nos códigos etc. Os direitos têm sempre sua primeira expressão sob a forma de expectativas, de direito, ou seja, de demandas que são formuladas, em dado momento histórico determinado, por classes ou grupos sociais. (COUTINHO, 1999, p.44)

Nesse contexto, a noção de cidadania, manifestaria o “resultado de uma luta permanente, travada quase sempre a partir de baixo, das classes subalternas, implicando um processo histórico de longa duração.” (COUTINHO, 1999, p.42). Dessa maneira, assim como a categoria das mediações normativas sociais conquistadas, o espectro de abrangência do conceito de cidadania compreende uma luta “de baixo para cima”. Os direitos humanos sociais, expressam-se em uma gama de variantes, como: o trabalho digno (art. 23 da DUDH), o repouso e ao lazer (art. 24 da DUDH), instrução e educação (art. 26 da DUDH), acesso e fruição da cultura (art. 27 da DUDH).

Nessa esteira, a expressão literária, em seus diversos gêneros, é identificada como manifestação universal de toda humanidade, respeitadas as individualidades e particularidade de cada cultura. A “literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita” (CANDIDO, 1995, p. 177).

Esse direito é formador da personalidade humana, possuindo, no mínimo, três faces: papel de construção de objetos autônomos; forma de expressão social; forma de conhecimento, consciente e inconsciente. Toda obra literária, com suas três faces, possui inegável poder humanizador. “Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade” (CANDIDO, 1995, p. 188). Em sua outra dimensão, a literatura ainda desnuda e evidencia situações de restrições de direitos. Assim,

a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis  da cultura. A distinção entre cultura popular e cultura erudita não deve servir para justificar e manter uma separação iníqua, como se do ponto de vista cultural a sociedade fosse dividida em esferas incomunicáveis, dando lugar a dois tipos incomunicáveis de fruidores. Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável (CANDIDO, 1995, p. 193)

Em razão do seu potencial transformador, o ócio e a literatura não podem ser, mas são, frequentemente, negados na contemporaneidade.  A aceleração e o excesso fragmentam o tempo disponível aos livros. As escolas e grades curriculares se voltam ao mercado e aos saberes profissionalizantes. O desempenho e a produtividade totalizaram a vida. A literatura é constantemente atacada e colocada para além da linha abissal.

Nas palavras de Compagnon (2009)

A própria literatura - a literatura que é considerada "viva" - parece, por vezes, duvidar de seus fundamentos frente aos discursos rivais e às novas técnicas, não somente - velha querela - as ciências exatas e sociais, mas também o audiovisual e o digital. Desde a modernidade a literatura entrou na "era da suspeita" (COMPAGNON, 2009, p. 22)

Contudo, a despeito de poder se dizer tudo e nada[2], é inegável o poder da literatura de instruir seu leitor deleitando. Ao lado desse poder, Compagnon (2009) ainda considera que a literatura pode agir como remédio, libertando o “o indivíduo de sua sujeição às auto-ridades, pensavam os filósofos; ela o cura, em particular, do obscurantismo religioso” (COMPAGNON, 2009, p 33).

Literatura ao mesmo tempo sintoma e solução do mal estar na civilização, dota o homem moderno de uma visão que o leva para além das restrições da vida cotidiana. Mas todo remédio pode envenenar: ou ele cura, ou intoxica, ou então cura intoxicando, tal como o "remédio no mal" do belo título de Jean Starobinski. Fica-se doente de literatura como Madame Bovary ou des Esseintes. Se a literatura liberta da religião, ela mesma se torna um ópio, isto é, uma religião de substituição, segundo a visão marxista da ideologia, pois tal é a ambivalência de todo substitutivo (COMPAGNON, 2009, P.  36)

Como instituição livre, a literatura ainda funciona como um contrapoder que não se submete ao padrão hegemônico.

As coisas que a literatura pode procurar e ensinar são pouco numerosas mas insubstituíveis, prognosticava ainda Italo Calvino: a maneira de ver o próximo e si mesmo, [...] de atribuir valor às coisas pequenas ou grandes, [...] de encontrar as proporções da vida, e o lugar do amor nela, e sua força e seu ritmo, e o lugar da morte, a maneira de pensar e de não pensar nela (COMPAGNON, 2009, p. 45)

A literatura permite a transcendência de si em direção ao outro. Nesse sentido, a literatura deve “ser lida e estudada porque oferece um meio - alguns dirão até mesmo o único - de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida” (COMPAGNON, 2009, p. 46).  A literatura torna o sujeito sensível, sensível a pluralidade e as diversas realidades, mesmo distante fisicamente.

A literatura não é uma explicação do mundo, mas a possibilidade de vivenciar o outro do mundo. Seria necessário ainda perguntar em que consiste precisamente isso que Blanchot chama de outro do mundo. De que maneira o mundo desdobrado se revela na literatura? Como as duas versões do mundo se diferenciam? Um possível caminho para delimitar uma resposta a essas questões é a distinção entre real e imaginário. O fora está em Blanchot diretamente associado a uma concepção de imaginário. A escrita é para ele a própria experiência da realidade imaginária. Nela, tudo se torna imagem, ou seja, tudo se desdobra em outra versão. Ao se exteriorizar, a palavra literária constitui o outro do mundo, que está tão colado a este quanto o imaginário ao real. (LEVY, 2011, p. 27)

A literatura possui uma capacidade peculiar de desconcertar, perturbar, desorientar e desafiar mais intensamente do que os discursos filosóficos, sociológicos ou psicológicos, devido ao seu apelo às emoções e à empatia (COMPAGNON, 2009, p. 57). Através da literatura, o sujeito tem a oportunidade de explorar territórios da experiência que são frequentemente negligenciados por outros discursos. A literatura desvincula o sujeito das abordagens convencionais de compreender a vida, tanto a sua própria quanto a dos outros. Através da literatura, o pensamento se torna um exercício de exploração de possibilidades e experimentação, em vez de uma busca por verdades universais ou regras gerais. A literatura também coloca em destaque a alteridade e a vivência do Outro, muitas vezes silenciado, bem como questões jurídicas do mundo real. Isso será evidenciado posteriormente com a análise da obra "Torto Arado", incluindo suas dificuldades e as narrativas que ela apresenta.

  1. TORTO ARADO: FAMILIA, TERRITORIO E PODER

O livro Torto Arado narra a história de duas irmãs, Bibiana e Belonísia, que viviam de “morada” na Fazenda Água Negra de propriedade da família Peixoto. Na história, as personagens principais, ora narradoras, ora personagens, vivem e crescem em um contexto em que a família provém de uma descendência escrava, vivendo em um regime próximo a servidão nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil. Os trabalhadores que viviam na propriedade rural poderiam somente colher parte de seu plantio, sem, contudo, erguer casas de tijolos, para diminuir a possibilidade de permanência no local.

A obra oscila entre 3 narradoras – Bibiana, Belonísia e Santa Rita Pescadeira, a cada parte a trama focaliza um problemáticas diversas. A primeira parte do livro se chama Fio de Corte, com foco principal no acidente com a faca que mutila a língua de uma das irmãs, que passa a viver sua vida com uma profunda ligação e dependência afetiva, narrando a história das famílias sobre o ponto de vista de Bibiana. A segunda parte – Torto Arado, homônimo ao livro, e conta a história pelo ponto de vista de Belonísia, com foco em sua relação com Tobias. Nessa parte também são demonstrados alguns abusos físicos e psicológicos que as mulheres sofrem ali naquela localidade. No terceiro e último momento da obra, intitulado Rio de Sangue, quem narra é uma entidade chamada Santa Rita Pescadeira, momento de enlace da trama.

Belonísia, mutilada pela faca, perdeu parte da habilidade com fala e as pessoas no entorno passaram a não compreender mais o que saia de sua boca. Inconformada, ela decide que irá treinar uma palavra para começar a recuperar a fala, a partir da palavra que naus gosta: arado. Mas, mesmo após treinar várias vezes a palavra arado, a protagonista não consegue pronunciar corretamente, e a palavra sai “torta”, ininteligível, de sua boca, razão que endossa o título do romance Torto Arado.

            Além disso, durante diversos momentos a obra expõe as diversas mazelas e injustiças sofridas pelos moradores de Água Negra, exemplo disso está  trabalho análogo a escravidão, onde para a família Peixoto (latifundiários donos da fazenda) os que habitam naquele território não passam de mão de obra barata, destaco que a expressão “barata” torna-se um eufemismo, tendo em vista que os habitantes de Água Negra se quer são remunerados com  pecúnia, muito pelo contrário, esses ganham o direito de se estabelecerem nas terras da fazenda e terem sua pequena plantação para a própria subsistência, entretanto não se trata de um ato generoso dos capitalistas-latifundiários tendo em vista que para permanecerem na terra os moradores deveram se submeter às exploratórias regras impostas pela família Peixoto.

Como mencionado outrora, as regras envolviam tanto o modo em que as casas serão construídas, quanto uma jornada de trabalho insalubre e exaustiva, onde a colheita era destinada aos donos da fazenda juntamente com seus lucros, além disso, até mesmo a pequena plantação no quintal das casas que seria destinada a subsistência das famílias que ali eram exploradas, uma parte dos frutos vindos dessas também era recolhido pelos latifundiários, relevante dizer que não era somente uma parte, mas sim a melhor parte do que foi produzido.

O texto revela diversas vezes a indignação dos moradores com a ganância e exploração realizadas pela família Peixoto,

 

‘Elas falavam da visita dos patrões às roças da fazenda. Queriam saber se eles haviam chegado por aqui, se tinham levado as batatas do nosso quintal também. “Mas as batatas do nosso quintal não são deles”, alguém dizia, “eles plantam arroz e cana. Levam batatas, levam feijão e abóbora. Até folhas para chá levam. E se as batatas colhidas estiverem pequenas fazem a gente cavoucar a terra para levar as maiores” – disse Santa [...] “Que usura! Eles já ficam com o dinheiro da colheita do arroz e da cana”. Poderiam muito bem comprar batata e feijão no armazém ou na feira da cidade.’ (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p.45)

A obra evidencia que os latifundiários que realizavam esses saques, se quer moravam na região, muito pelo contrário, moravam na capital, assim, a terra era apenas mais o meio de obtenção de lucro, explorando-a e explorando os que ali residiam, onde os moradores de Água Negra eram forçados a submeterem aos abusos, crueldades e usuras, para que desse modo pudessem garantir sua sobrevivência.

“A família Peixoto queria apenas os frutos de Água Negra, não viviam na terá, vinham da capital apenas para se apresentar como donos, para que não os esquecêssemos, mas, tão logo cumpriam sua missão, regressavam.” (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p.54)

 

            Através da obra “Torto Arado”, pode-se fazer uma análise a respeito das moradias dos trabalhadores de Água Negra, moradia que por sua vez deveria seguir as regulamentações dos latifundiários donos da fazenda, tais habitações eram cedidas por parte da família Peixoto para que os trabalhadores habitassem na fazenda e ali trabalhassem, fazendo clara referência as praticas de trabalhos análogos a escravidão, com isso é possível fazer uma análise a cerca do território simbólico que envolvem essas moradias, onde perde-se o conceito de lar, lazer, descanso, e passa a ser apenas uma habitação construída e regida por regras exploratórias vindas da elite latifundiária, feita meramente com o intuito de manter o indivíduo em uma constante e permanente situação de trabalho e exploração. Com isso a obra revela que tais praticas são oriundas da colonização e do período de escravidão do Brasil.

“Aquela fazenda sempre teria donos, e nós éramos meros trabalhadores, sem qualquer direito sobre ela. Não era justo ver tio Servó e os filhos crescendo espantando os chupins das plantações de arroz. Não era justo ver meu pai e minha mãe envelhecendo sem, trabalhando de sol a sol, sem descanso e sem qualquer garantia de conforto em sua velhice.” (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p. 79)

Para acrescentar a breve contextualização da obra, foi possível identificar uma série de críticas sociais e problemas jurídicos que podem ser avaliados pela crítica pelas lentes do Direito e Literatura, quais sejam: a precariedade das relações de trabalho como tecnologia de poder, as relações (de luta) de poder a partir da terra, e a negação de direito por razões gênero, raça, ou mesmo da condição de ser humano.

Dentre as várias problemáticas que são tratadas sob a ótica do Direito na Literatura, a que mais salta aos olhos é a relação dos personagens com a terra, logo a maneira em que as relações possessórias são construídas e delineadas pelas relações de poder da trama, o que se passa no momento analisar.

  1. DIREITO NA LITERATURA: RELAÇÕES POSSESSORIAS EM TORTO ARADO

No Brasil, a primeira publicação brasileira a se dedicar a relação entre o direito e a literatura é a de Aloisio de Carvalho Filho, publicando a obra intitulada Machado de Assis e o problema Penal em 1959. O estabelecimento de uma produção contínua e sistemática no contexto brasileiro se deu de maneira tardia, mas vem ganhando espaço no ambiente acadêmico pelo destaque que se confere a interdisciplinaridade, cruzando o caminho do direito às demais áreas do conhecimento.

Esse cruzamento, propicia a fundação de um espaço crítico, sendo possível questionar seus fundamentos, pressupostos, funcionamento e legitimidade, especialmente no que tange

a possibilidade da aproximação dos campos jurídico e literário favorece ao direito assimilar a capacidade criadora, crítica e inovadora da literatura e, assim, superar as barreiras colocadas pelo sentido comum teórico, bem como reconhecer a importância do caráter constitutivo da linguagem. (TRINDADE; GUBERT, 2008, apud, KARAM, 2017, p. 832).

A partir do desenvolvimento da análise de conceitos literários e linguísticos François Ost (2004) destaca três correntes de aproximação do Direito e Literatura, são elas: direito da literatura, direito como literatura e direito na literatura.

A corrente do direito da literatura apresenta matiz essencialmente jurídico, pois se atém à legislação aplicável a obras literárias enquanto produto intelectual, e restringe-se às discussões jurídicas que, relativas a diferentes esferas do direito, incidem sobre as liberdades e garantias individuais – os limites e a liberdade de expressão face à censura e ao direito à intimidade –, os direitos autorais e a propriedade intelectual, os crimes de imprensa, as leitura, entre outras.18 Assim, nessa corrente, estamos diante do texto literário como objeto da ciência jurídica. Já o direito como literatura concentra-se em abordar as qualidades literárias dos textos jurídicos. Observa-se, aqui, uma inversão: os textos jurídicos tornam-se objeto da ciência literária, visto que conceitos oriundos deste campo – assim como dos campos da linguística, sobretudo da análise do discurso, e das ciências da comunicação – são adotados como instrumentos para a leitura e intepretação dos textos legais, em especial no que se refere às decisões judiciais. (KARAM, 2017, 832-833)

Por fim, é importante mencionar a corrente acadêmica conhecida como "Direito na Literatura", que representa um dos enfoques mais relevantes no contexto da pesquisa jurídica no Brasil. Essa abordagem se dedica à análise das representações literárias relacionadas à justiça e ao direito, englobando as instituições, procedimentos e atores do campo jurídico. Além disso, essa corrente também abrange temas relacionados ao universo jurídico presentes em obras literárias, destacando-se a ênfase nas funções que tradicionalmente são atribuídas à literatura (KARAN, 2017, p. 834).

Quando se estabelece uma relação entre o Direito e a Literatura, é possível observar que esta última possui a capacidade de conduzir o mundo jurídico para territórios que talvez não fossem imaginados anteriormente. Enquanto a função do direito é principalmente a de estabilizar as expectativas sociais em busca da segurança jurídica, o que muitas vezes resulta na cristalização do tempo e na supressão das emoções e afetos (TRINDADE; GUBERT, 2008, p. 22), a literatura desempenha uma função heurística. Ela busca criar, inovar, criticar, suspender, surpreender, perturbar, chocar, desorientar e, em última instância, emocionar.

[...] o direito produz sujeitos de direito, conferindo-lhes direitos e obrigações convencionadas, bem como investe pessoas em papéis normatizados cujo comportamento exemplar deve servir como estatuto das condutas e padrões esperados dos demais indivíduos na vida em sociedade, como, por exemplo [...]a mulher honesta [...] de outro, a literatura cria personagens literários, cuja ambivalência de sua natureza combina, geralmente, apenas com a ambiguidade das situações singulares que lhe são colocadas, de maneira que sua identidade é o resultado de sua trajetória experimental em busca de si mesmo. (TRINDADE; GUBERT, 2008, p. 22-23)

O direito cria máscaras que engessam a existência, que sustentam o as relações cotidianas – “homem médio”; “bom pai”; “mulher honesta”, papeis esses que não são os mesmos na literatura.

A partir da abordagem do "Direito na Literatura", uma corrente de estudo que analisa como o Direito é representado na Literatura, observamos que a literatura proporciona um terreno mais profundo e fecundo para a exploração de temas relacionados ao campo jurídico. Isso, por sua vez, possibilita uma crítica refinada que desafia elementos estabelecidos no âmbito do Direito, permitindo que sejam visualizados em contextos diferentes, contribuindo para a desestabilização das concepções jurídicas sedimentadas. Esse processo de desestabilização ocorre devido às características intrínsecas da literatura.

Tomando como exemplo a obra "Torto Arado" de Itamar Vieira Junior, podemos identificar como as representações das relações possessórias na obra refletem uma disputa, tanto em termos materiais quanto simbólicos, pelo poder. No âmbito do Direito, a subárea que regula essas relações é o Direito Civil, com destaque para os Direitos Reais.

Conforme Tartuce (2012), a posse é considerada um direito real e autônomo em relação à propriedade. O possuidor possui a capacidade de utilizar, usufruir e dispor do bem sem uma relação direta de subordinação com o proprietário, o que diferencia do detentor. O Código Civil de 2002, no artigo 1198, define o detentor como alguém que, estando em uma relação de dependência em relação a outro, mantém a posse em nome deste e em cumprimento de suas ordens ou instruções. Essa relação de dependência é nitidamente evidenciada na obra de Itamar Vieira Junior.

Na família de Bibiana e Belonísia, e em todos que vivem na Fazenda Água Negra, não era permitido estabelecer raízes permanentes, sendo autorizado apenas a construção de casas de pau a pique ou taipa, conforme as ordens do latifundiário. As habitações de taipa reforçavam essa relação de vulnerabilidade e dependência, refletindo, do ponto de vista do Direito Real, uma relação de detenção.

No que diz respeito ao "direito à terra" na obra de Itamar Vieira Junior, Karam e Macedo Junior (2022) destacam a representação de uma vida "semiescrava, disfarçada com um verniz de liberdade" em "Torto Arado" (KARAM; MACEDO JUNIOR, 2022, p. 668).Em trecho específico da obra, pontua-se as regras para fazer morada, conforme se vê:

Podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse o tempo de presença das famílias na terra. Podia colocar roça pequena para ter abóbora, feijão, quiabo, nada que desviasse da necessidade de trabalhar para o dono da fazenda, afinal, era para isso que se permitia a morada. Podia trazer mulher e filhos, melhor assim, porque quando eles crescessem substituiriam os mais velhos. Seria gente de estima, conhecida, afilhados do fazendeiro. Dinheiro não tinha, mas tinha comida no prato (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 41).

A relação de poder e subordinação é reforçada ao longo da obra, conforme se identifica da narrativa de Bibiana, que destaca

Àquela altura, a terra da Fazenda Caxangá, que havia rendido fartura de frutos por toda a sua vida, estava retalhada. Cada homem com desejo de poder havia avançado sobre um pedaço e os moradores antigos foram sendo expulsos. [...] Os homens investidos de poderes, muitas vezes acompanhados de outros homens em bandos armados, surgiram da noite para o dia com um documento de que ninguém sabia a origem. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p.22).

Essa abertura do Direito na Literatura nos mostra que podemos ir além e ressignificar a  relação do sujeito com a sociedade atual a partir de outra interseção: a Geografia e a Literatura, comprendendo que a relação do sujeito com o mundo, leia-se conceitos geográficos, é estruturada por sua subjetividade,  o que se passa a delinear a frente.

  1. GEOGRAFIA E LITERATURA: DA CAPTURA DA SUBJETIVIDADE A CRIAÇÃO DE TERRITORIOS VULNERÁVEIS

Conforme mencionado, o romance de Itamar Vieira Junior (2019), possui dois momentos: um que narra a vida daqueles que vivem na Fazenda Agua Negra e a relação de poder que marca a trama, que na maioria das vezes - mas não exclusivamente - relacionado ao poder político do Estado; outro, um despertar de parte daquele grupo, que trabalha em condições aviltantes, para os direitos que lhes são cotidianamente negados. Interessante pontuar que mesmo que todos sejam prejudicados com a gestão predatória da Família Peixoto com a terra, nem todos se  exsurgem contra essa exploração.

Em uma das passagens da ficção, um dos personagens principais, o curandeiro e patriarca, Jose Alcino, conhecido como Zeca Chapéu Grande, instado por seu filho Zezé do porquê das condições que viviam, em uma terra que semeavam, cuidavam, colhiam, e que os ditos donos sequer visitavam, respondeu: “Trabalhe mais e pense menos”. Na passagem, verifica-se uma captura da subjetividade do sujeito a partir da relação de poder e submissão que o trabalhador tem para com os “donos do capital”, conforme se destaca:

Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dali retirávamos nosso sustento. [...] Meu pai retirou o chapéu, o calor fazia minar de seu corpo um suor grosso que lhe lavava o rosto, escorrendo pela fronte e pelas têmporas. [...] "Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento", apertou os olhos, olhando para a cova diante de seus pés, "aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente para trabalho: 'Moço, o senhor me dá morada?'" De pronto seu olho se ergueu para meu irmão: «Trabalhe mais e pense menos. Seu olho não deve crescer para o que não é seu". [...]” (JUNIOR, 2023, p. 185) – grifo nosso.

A dinâmica de poder traça os contornos da narrativa, ditando o que pode ou não ser expresso, o que pode ou não ser compartilhado. A Família Peixoto, mesmo estando ausente fisicamente, exercia influência sobre a psique dos habitantes locais, impondo limites ao que era considerado admissível em termos de pensamento, conformando o que Bourdieu (1989) caracteriza como dominação simbólica.

Para o sociólogo, o poder simbólico, como instrumentos de comunicação e conhecimento, exerce uma relação estruturante com o mundo, determinando uma concepção homogênea de tempo, espaço e causas. O poder simbólico vale-se de construções simbólicas como instrumento de dominação e as

ideologias, por oposição ao mito, produto coletivo e coletivamente apropriado, servem interesses particulares que tendem a apresentar como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo. A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções (BOURDIEU, 1989, p.10)

No entanto, para além do acesso a recursos culturais, como exemplificado pela presença de automóveis Ford Rural, habitações de alvenaria e instituições educacionais, conforme observado na obra do geógrafo Itamar Vieira Júnior, o poder simbólico se consolida através da crença. Nas palavras de Bourdieu (1989, p. 15), o que confere poder às palavras e aos discursos, com a capacidade de manter ou subverter a ordem estabelecida, é a fé na legitimidade daqueles que as proferem, uma crença cuja gênese não reside na competência intrínseca das próprias palavras. O poder simbólico, operando sem um gasto visível de energia, é capaz de exercer uma dominação efetiva. Apesar da presença de capatazes na Fazenda Água Negra, encarregados de supervisionar a produção, o que se destaca é precisamente aquilo que ocorre no nível do inconsciente, sem a necessidade da presença física dos proprietários de terras.

Essa relação que se delimita para além de questões corpóreas e materiais conformam o analisado por Heasbaert (2004) que o território se forma a partir de relações de poder concreto e simbólico, de dominação e apropriação. Para o autor

o território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão próximo de terra-territorium quanto de terreo- territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com dominação (jurídico- política) da terra e com a inspiração do terror, do medo – especialmente para aqueles que, com esta dominação, ficam alijados da terra, ou no “territorium” são impedidos de entrar. Ao mesmo tempo, por extensão, podemos dizer que, para aqueles que têm o privilégio de usufrui-lo, o território inspira a identificação (positiva) e a efetiva “apropriação” (HAESBAERT, 2004, p. 1)

Imerso em uma relação de dominação dentro de um contexto específico de espaço e tempo, o território se manifesta de maneira abrangente, estendendo-se desde uma dominação política e econômica mais palpável e funcional até uma apropriação mais subjetiva e cultural-simbólica (HAESBAERT, 2004, p. 95-96). A diversidade de maneiras de perceber o território destaca o que o autor define como "territorialidades", que envolvem disputas constantes na interação entre aqueles que são dominados e aqueles que detêm o poder.

Nessa perspectiva, por ser um conceito multidimensional - e relacional, Heasbaert (2009) destaca três dimensões de território, são elas

- política (referida às relações espaço-poder em geral) ou jurídico-política (relativa também a todas as relações espa-ço-poder institucionalizadas): a mais difundida, onde o território é visto como um espaço delimitado e controlado, através do qual smbólico-cultural: prioriza a dimensão simbólica e mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo, como o produto da apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido; econômica (muitas vezes economicista): menos difundida, enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas, o território como fonte de recursos e/ou incorporado no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho, como produto da divisão "territorial" do trabalho, por exemplo (HEASBAERT, 2009, p.40) - grifo nosso.

Em todas as dimensões destacadas pelo geógrafo, tem-se conceitos relacionais de território que tangenciam relações de poder. Essas relações ocorrem de maneira simultânea, seja por meio de suportes materiais ou não. Na abordagem integralista, o território é concebido como algo que só pode ser entendido por meio de uma perspectiva que integra as diversas dimensões sociais, bem como a relação da sociedade com a natureza (HAESBAERT, 2009, p. 70).

Contrariamente à narrativa amplamente divulgada, o neoliberalismo não se limita à intervenção na atividade econômica, mas também interfere diretamente nas configurações dos conflitos sociais e nas estruturas individuais. Mais do que um modelo econômico, o neoliberalismo refere-se a uma engenharia social que atua nas dimensões que produzem conflito, buscando bloquear qualquer pressão, associação ou instituições que questionem a noção de liberdade, resultando na desestabilização da ideia de conflito (SAFATLE; DA SILVA JUNIOR; DUNKER, 2021, p. 25).

Uma das formas de intervenção do neoliberalismo ocorre no nível psicológico e simbólico, moldando os afetos, desejos e necessidades dos sujeitos sob sua influência. O que se busca, nesse contexto, é a internalização de predisposições psicológicas que promovem uma maneira de se relacionar consigo mesmo, com os outros e com o mundo, baseada na aplicação generalizada de princípios empresariais de desempenho, investimento, rentabilidade e posicionamento em todos os aspectos da vida (SAFATLE; DA SILVA JUNIOR; DUNKER, 2021, p. 30).

Assim, estamos diante de uma captura simbólica que se desenrola em relações de poder simbólicas e imateriais, moldando a existência de diversas territorialidades, que, à semelhança da vida em sociedade, são marcadas pela exploração, dominação e sujeição dos dominados pelos dominantes. No romance, embora não haja menção explícita a princípios empresariais de investimento e desempenho, o que se observa é a manipulação da psique por meio de outra ferramenta: o medo.

O personagem Sr. José Alcino, conhecido como Zeca Chapéu Grande, nasceu três décadas após a declaração da emancipação dos escravos negros, em meio aos canaviais onde sua mãe, Donana, trabalhava, vivendo em condições de extrema pobreza. Para ele, dominado pelo medo da miséria e pela gratidão aos "donos da terra", trabalhar incessantemente, de domingo a domingo, sem remuneração, direitos ou garantias, era considerado um privilégio que garantia sua sobrevivência, a de sua esposa e filhos. Não havia motivo para questionar as correntes invisíveis que o mantinham cativo, revelando, assim, a interligação entre poder e território.

 

[2] Para Derrida a literatura seria uma estranha instituição. Estranha por não se limitar e não se prender a nenhuma amarra. Estranha por não se permitir engessar, sendo o locus da liberdade, uma liberdade sem censura, onde pode se dizer tudo. Contudo, a “liberdade de dizer tudo é uma arma política muito poderosa, mas pode Imediatamente se deixar neutralizar como ficção. Esse poder revolucionário pode tornar-se muito conservador. O escritor pode, igualmente, de fato ser considerado irresponsável. Ele pode, eu diria até que deve, às vezes, reivindicar certa irresponsabilidade, pelo menos no tocante a poderes ideológicos, de tipo zhdanoviano, por exemplo, que tentam cobrar dele responsabilidades extremamente determinadas perante os órgãos sociopolíticos e ideológicos. Esse dever de irrespon-sabilidade, de se recusar a responder por seu pensamento ou por sua escritura diante de poderes constituídos, talvez seja a forma mais elevada de responsabilidade” (DERRIDA, ano, p. 53)

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A análise realizada revelou a natureza inseparável do território, considerado como uma entidade composta tanto por dimensões materiais quanto simbólicas. Esta análise expôs as dinâmicas de poder existentes entre grupos dominantes e dominados, destacando como a literatura se torna uma ferramenta de expressão e denúncia desse fenômeno. As relações possessórias apresentadas na trama de Itamar Vieira Junior desempenham um papel fundamental ao evidenciar a riqueza resultante da interseção de três áreas do conhecimento aparentemente distintas: Literatura, Direito e Geografia.

Por meio da literatura, torna-se possível para o sujeito não apenas se aproximar do Outro, vivenciando cenários que seriam inacessíveis de forma isolada, mas também compreender as nuances da dominação neoliberal e as categorias jurídicas que a promovem ou a combatem. No entanto, é importante reconhecer que a denúncia é apenas uma das múltiplas funções que a literatura pode desempenhar como instituição, uma característica que não deve obscurecer a riqueza e a complexidade da disciplina em sua totalidade.

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