Este artigo é fruto de reflexões realizadas no curso de Especialização em Justiça Restaurativa (JR) da Faculdade Madre Thaís (FMT) em Ilhéus-Bahia. No município de Ilhéus, as primeiras iniciativas para conhecimento da JR e suas práticas datam de 2018, com a realização do Curso de Facilitadores em Círculos de Construção de Paz (CCP), ofertado pela Universidade Corporativa TJBA (UNICORP/Brasil), objetivando em especial, formar facilitadores para atuar no projeto “Justiça Restaurativa: um olhar sobre crianças e adolescentes do município de Ilhéus” idealizado pela juíza da Vara da Infância e Juventude, Dra. Sandra Magali Mendonça.
Assim, os facilitadores formados começaram a atuar na aplicação de Círculos de Construção de Paz em escolas públicas municipais e também em outros espaços que formam a rede de colaboração com a educação, como o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), o Centro de Referência à Inclusão Escolar (CRIE). Outrossim, outros sujeitos envolvidos no curso levaram a iniciativa para outros espaços, no judiciário, casas de acolhimento de menores, universidades e outros. Nesta primeira formação conheci a Justiça Restaurativa, suas práticas e procedimentos, e, tornei-me desde então facilitadora de CCP.
Após essa primeira formação, surgiram outras iniciativas, no intuito de disseminar a JR e capacitar mais pessoas na aplicação de práticas restaurativas na região. Nesse sentido, ainda em 2018 foi ofertada formação pelo Instituto Terre des homes, capacitando facilitadores de Ilhéus e cidades circunvizinhas. No ano seguinte, em 2019, é implementado o curso de Especialização em JR na FMT, que surge com o propósito de alavancar a disseminação da JR, capacitando facilitadores para atuação em diversos espaços. Ingressei como aluna, com vistas a aprofundar o conhecimento na área e aprimorar minha prática de facilitadora.
O curso teve boa receptividade na cidade de Ilhéus em razão de muitos atores em várias áreas da cidade e na região estarem envolvidas com JR, a partir das práticas restaurativas que vem sendo desenvolvidas na cidade não apenas no Judiciário. Justamente pelo fato de a JR ter chegado ao espaço escolar, como professora, tive a oportunidade de conhecê-la e atuar como facilitadora. Nesse contexto percebo a potencialidade das práticas restaurativas na educação escolar.
Com a eclosão da pandemia da Covid-19, o mundo começou a enfrentar uma situação de emergência sanitária a partir de março de 2020, que conduziu ao fechamento de estabelecimentos comerciais, educacionais, dentre outros, com vistas a promover o distanciamento social, a fim de combater a contaminação pelo vírus. Nesse contexto, as aulas do curso foram suspensas imediatamente, sendo retomadas no mês de junho de 2020, na modalidade de ensino remoto. Essa nova experiência levantou desafios à formação e requereu de discentes e professores/as enorme esforço para dar continuidade aos estudos.
A Justiça Restaurativa vem se destacando no mundo desde a década de 1970, quando se tem registro das primeiras práticas, no entanto, sabe-se que as práticas hoje reconhecidas por esse termo, são milenares e trazem em si uma gama de conhecimentos de povos ancestrais na forma como resolviam seus conflitos quando expressavam-se de forma violenta na comunidade.
Apesar de ter surgido no judiciário, a literatura aponta que as práticas restaurativas vêm sendo muito realizadas no espaço escolar principalmente como um meio de prevenção e tratamento de situações conflitivas que por vezes, reverberam em violência. Dentre elas, há um destaque para os Círculos de Construção de Paz, que nos foi apresentado por Kay Pranis no Brasil, em 2010, e desde então vem sendo muito disseminado em várias esferas e espaços, inclusive na educação, em espaços escolares (Meirelles; Yazbek, 2014). Através dos Círculos é possível promover a discussão respeitosa de temas difíceis de serem abordados, como é o caso das desigualdades raciais no Brasil.
Os Círculos de Construção de Paz têm se mostrado como uma importante estratégia para a promoção do diálogo no ambiente escolar, permitindo que os sujeitos expressem a sua verdade. Nesse sentido, a realização de uma proposta que proporcione a discussão das questões étnico-raciais, que envolve o racismo, o preconceito racial, a discriminação, as visões eurocêntricas na escola e na sociedade, pode proporcionar aos estudantes uma mudança de pensamento e consequente de atitudes nos espaços em que convive, dentre eles, a própria escola.
O cenário de enorme desigualdade racial no Brasil e diversas situações de expressão do racismo econômico, social, político e epistêmico nos conduz a compreender como urgente tratar dessa questão com adolescentes e jovens no espaço escolar, em especial na escola pública, que concentra a população mais vulnerável e marginalizada do país. Assim, diante da trajetória enquanto professora da Educação Básica e facilitadora de Círculos de Construção de Paz surge o questionamento: De que maneira as questões étnico-raciais podem ser abordadas através dos Círculos de Construção de Paz em contexto escolar? Responder essa questão é o objetivo central deste artigo. Para isto recorro a uma revisão bibliográfica que permitirá dialogar na busca de respostas para tal questão.
Dessa maneira, este artigo encontra-se dividido em quatro partes. Na primeira, trazemos uma contextualização acerca da importância do trato das questões étnico-raciais em espaço escolar. Na segunda parte, realizo um breve histórico das Justiça Restaurativa e enfatizo a prática restaurativa do CCP. Em seguida, discuto como a abordagem das questões étnico-raciais na escola podem ser exploradas por meio da prática de Círculos de Construção de Paz, e ao final teço algumas considerações do caminho de construção do estudo realizado.
1 A IMPORTÂNCIA DE DISCUTIR QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS NA ESCOLA
A escola pode ser considerada "um lugar da reprodução das desigualdades sociais, de gênero e raça, de produção da pobreza e da exclusão, mas também instrumento de superação das desigualdades sociais, construção da democracia e dos direitos humanos" (Schilling, 2004, p. 61 apud Santana, 2011, p.81). Vale salientar também que
À medida que cresce a diversidade nas escolas, aumenta a consciência de que é preciso implementar uma pedagogia sensível à cultura. Infelizmente, as iniciativas que promovem competência cultural, ensino intercultural e pedagogia multicultural muitas vezes se limitam à discussão de alimentos, vestimentas e danças. Além disso, se restringem a certos meses do ano escolar, ou a aspectos específicos do programa (Evans; Vaandering, 2018, p. 60).
Diante desse quadro, percebe-se que há uma urgência em trazer para a escola discussões atinentes às questões étnico-raciais como meio de fomentar a reflexão acerca das enormes desigualdades raciais que existem no Brasil, transpassando a visão simplista de abordagem da diversidade apenas de maneira folclorizada e que não proporciona mudança de mentalidade.
Passos e Santos (2018) trazem uma abordagem crítica acerca da realidade das desigualdades sociais em nosso país, mostrando através de vários estudos o quanto as diferenças de ordem social e econômica estão diretamente ligadas ao racismo estrutural, o qual aponta para a enorme diferença de oportunidades entre brancos e negros em nosso país. Por isso, questões relacionadas às diferenças étnico-raciais precisam ser trazidas para o cotidiano da escola, a fim de que os sujeitos possam refletir sobre sua condição, principalmente a população negra, maioria nesse país.
Considerando o entendimento de Evans e Vaandering (2018), primeiramente é preciso pensar que quanto mais o espaço escolar torna-se inclusivo, os sujeitos que nele convivem tem maiores possibilidades de aprendizagem, por outro lado, quando uma escola não prioriza tratar questões de discriminação racial ou étnica, mesmo que de forma não intencional, os estudantes tendem a sentirem-se desconectados e consequentemente não será incomum a incidência de comportamentos violentos.
Precisamos destacar que vivemos numa sociedade racista. Neste trabalho, conceituamos racismo conforme (Almeida, 2020, p. 32), quando afirma que “o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”. No entanto, podemos afirmar que impera nessa sociedade o mito da democracia racial que
[...] pode ser compreendido, então, como uma corrente ideológica que pretende negar a desigualdade racial entre brancos e negros no Brasil como fruto do racismo, afirmando que existe entre estes dois grupos raciais uma situação de igualdade de oportunidade e de tratamento. Esse mito pretende, de um lado, negar a discriminação racial contra os negros no Brasil, e, de outro lado, perpetuar estereótipos, preconceitos e discriminações construídos sobre esse grupo racial (Gomes, 2005, p. 57).
Uma breve incursão social nos prova que o racismo é sim parte constituinte da sociedade brasileira. Nesse sentido, percebemos que em nosso país o fator racial é responsável por grande parte das desigualdades socioeconômicas e epistêmicas a que estão sujeitas pessoas negras e indígenas, por exemplo. Assim, o racismo constitui “um processo em que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas” (Almeida, 2020, p. 34).
O reconhecimento do racismo, e principalmente do seu caráter estrutural na sociedade brasileira, é relevante e urgente no contexto das discussões atuais. Almeida (2020) enfatiza que sem esse reconhecimento as práticas racistas são cada vez mais normalizadas e reproduzidas pelas pessoas e instituições, dentre elas a escola. Assim, é relevante que se crie mecanismos para contrapor a lógica racista estabelecida e naturalizada em nossa sociedade. Uma possível mudança “depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas” (Almeida, 2020, p. 52). Tais posturas e práticas precisam permear a escola, a fim que esta não mais reproduza o racismo, mas sirva como espaço de enfrentamentosf e transformação.
A filósofa e ativista Djamila Ribeiro (2019) insiste no reconhecimento do racismo como uma forma eficaz para combatê-lo, isto porque, “é impossível não ser racista tendo sido criado numa sociedade racista. É algo que está em nós e contra o que devemos lutar sempre” (RIBEIRO, 2019, p.38). Portanto, o reconhecimento do racismo no cotidiano constitui um passo importante para seu rompimento.
Ressalte-se ainda que na ordem da implementação de políticas públicas na educação brasileira, a Lei n. 10.639/03 que alterou a Lei 9394/96, dispõe sobre a obrigatoriedade de se incluir a história e cultura das populações negras nas escolas públicas e privadas. Anos depois, a Lei n. 11.645/08 veio acrescentar a inclusão do tratamento da história e cultura da população indígena do Brasil. Estudos apontam que mesmo diante da promulgação dessas leis, ainda temos no país um avanço tímido nesse sentido, principalmente no que diz respeito ao tratamento das questões étnico-raciais no cotidiano escolar, isso por vários fatores, como a falta de formação do professor, seja inicial ou continuada, falta de material didático específico e outros.
O tratamento das questões-étnico raciais na escola mostra-se urgente por ser este um espaço de construção do conhecimento e também de socialização, onde os sujeitos convivem grande parte da vida e assimilam valores que carregam para suas relações sociais. Nesse sentido, Gomes (2013) aponta o fato de que as metodologias utilizadas pela escola para a discussão de questões relacionadas a diversidade étnico-racial ainda ocorrem de forma pontual, geralmente concentradas num período específico do ano, a saber o mês de novembro, por ser este relacionado a data da Consciência Negra, previsto na Lei nº 10.639/03. Considerando esse contexto, é perceptível que há uma necessidade de refletir, e desenvolver ações voltadas ao combate ao racismo, valorização da diversidade étnico cultural e desconstrução da visão eurocêntrica na escola.
Assim, observa-se que embora exista um esforço da escola em implementar ações para discussão dessas questões do racismo e suas expressões, ocorrem de forma pontual e sem a preocupação em se ouvir os estudantes, suas vivências e reais necessidades, realidade a ser problematizada, haja vista que a questão racial engendra diversas formas de violência e impacta na formação de crianças, jovens e adolescentes, que se relacionam neste espaço educativo. Deste modo, agregar os pontos de vista dos adolescentes, considerando seus posicionamentos e ouvindo suas percepções pode ser uma importante estratégia para fortalecer as relações desses sujeitos com a escola e comunidade.
Dessa maneira, a complexidade do tratamento das questões étnico-raciais, impulsiona a pensar em ações que possam contribuir para desenvolver um pensamento antirracista no ambiente escolar, ressaltando que
O racismo estrutura as desigualdades sociais e econômicas no Brasil e incide perversamente sobre a população negra, determinando suas condições de existência por gerações. Ao se constituir como um elemento de estratificação social, o racismo se materializa na cultura, no comportamento e nos valores dos indivíduos e das instituições, perpetuando uma estrutura desigual de oportunidades sociais para 53,6% da população brasileira (Passos; Santos, 2018, p. 2).
Diante desse cenário nada otimista, percebe-se que há uma necessidade urgente de promover discussões antirracistas na escola que contemplem as desigualdades raciais, com vistas a promover discussões que possam conduzir ao reconhecimento do racismo na prática cotidiana dos indivíduos como primeiro passo para seu enfrentamento e superação.
- A JUSTIÇA RESTAURATIVA E OS CÍRCULOS DE CONSTRUÇÃO DE PAZ
Na história da humanidade, vários povos buscaram formas de resolver os seus conflitos. Alguns desses povos utilizavam um modelo de resolução de conflitos que compreendia o envolvimento da comunidade, num processo em que todas as partes envolvidas pudessem ser ouvidas e chegar juntas a um consenso na busca do bem-estar de todos. Assumpção e Yasbek (2014) apontam que o povo Navajo é um exemplo desse modelo. Quando uma pessoa cometia um dano, eles enxergavam que toda a comunidade era afetada, e por isso, a fim de reconectar as coisas procuravam envolver na resolução desse dano, o ofensor, parentes próximos dele a fim de apoiá-lo, integrantes da comunidade e a vítima, assim, juntos buscavam uma alternativa para corrigir o ato ofensivo levando em consideração as necessidades de todos que tenham sido afetados, acreditando que essa era a melhor forma de restaurar os relacionamentos e a vida em comunidade. Assim, temos representada a essência da Justiça Restaurativa (JR), a qual compreende “a conexão interpessoal, o sentido de pertencimento e a dimensão coletiva como elementos constituintes de uma comunidade” (Assunpção; Yasbek, 2014, p. 44).
Nesse sentido a JR pode ser compreendida enquanto uma justiça comunitária, pois esta “valorizava muito a manutenção dos relacionamentos e a reconciliação” (Zehr, 2018, p. 112). Assim, para o autor, dentro de uma visão restaurativa, “o crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam a reparação, reconciliação e segurança” (Zehr, 2018, p. 185). Orsini e Lara (2013), apontam que internacionalmente o reconhecimento de tais práticas teve início em fins da década de 1970 e início da década 1980, no Canadá e Nova Zelândia, sendo elas fruto de estudos de tradições ancestrais que utilizavam como premissa o diálogo pacificador para a resolução de conflitos na comunidade. Pode-se também afirmar que
Na origem da Justiça Restaurativa, a prática antecedeu a teoria, quer consideremos a linha evolutiva a partir da década de 1970 ou de práticas ancestrais. Nesse percurso pode-se dizer que, mais do que uma teoria ainda em formação, a Justiça Restaurativa é uma prática ou, mais precisamente um conjunto de práticas restaurativas em busca de teoria (Assumpção; Yazbek, 2014, pp. 44-45).
Nessa perspectiva, Zehr (2020) afirma que a JR não é algo novo ou criado por um determinado povo, mais que isso, as práticas hoje assim denominadas já eram praticadas há muito tempo seguindo valores próprios das comunidades. O autor elenca algumas práticas que podem ser consideradas totalmente restaurativas, a saber: os encontros entre vítima e ofensor, as conferências de grupos familiares e os círculos ou abordagens circulares. Essas práticas apresentam em comum o fato de seguirem princípios da JR na sua formatação e aplicação, embora possam na prática ser realizadas sob moldes diferenciados.
Para além do uso das práticas restaurativas no sistema criminal, estas também vêm sendo muito realizadas no espaço escolar nos últimos anos, principalmente como um meio de prevenção e tratamento de situações conflitivas das quais emergem processos violentos. Evans e Vaandering (2018, p. 28) afirmam que “mais recentemente, no entanto, a JR foi adotada também como forma de cultivar ambientes escolares saudáveis”. Para as autoras
Os princípios e práticas de justiça restaurativa na educação têm fundamento em duas crenças principais: os seres humanos têm valor; os seres humanos estão interconectados entre si e com o mundo.
Independentemente das características visíveis de alguém ou de suas ações, essa pessoa é valiosa simplesmente porque é um ser humano que vive e respira. As pessoas florescem quando estão em bom relacionamento com os outros e com o ambiente. As pessoas são interconectadas (Evans; Vaandering, 2018, p.38, grifos das autoras).
Dessa maneira, o uso de práticas restaurativas na educação pode ser considerado como um importante elemento para o estabelecimento de relacionamentos que corroborem para um ambiente de diálogo, paz e interconexão entre os diversos sujeitos. Esta lógica contrapõe modelos hegemônicos de relacionamentos sociais, pois “Na sociedade ocidental somos constantemente incentivados a medir uns aos outros e a formar grupos que acolhem alguns e marginalizam outros” (Evans e Vaandering, 2018, p. 41). As autoras concebem a JR na perspectiva da educação dentro de uma estrutura relacional, assim
Os processos de justiça restaurativa foram concebidos para facilitar uma convivência em que todos são tratados com valor e dignidade, independente da raça, etnia, religião, nacionalidade, habilidades, condição econômica, linguagem, tipo físico, gênero ou orientação sexual. Por exemplo, os processos circulares permitem que todos no círculo tenham a oportunidade de falar a partir de sua própria experiência. No círculo ninguém é mais importante que os outros e a perspectiva de todos é respeitada (Evans; Vaandering, 2018, p. 38).
Dentre as práticas restaurativas, há um destaque para os Círculos de Construção de Paz, principalmente no Brasil onde se constituem numa das práticas restaurativas mais conhecidas. Cabe destacar
[...] a vinda de Kay Pranis ao Brasil, em outubro de 2010, na ocasião do lançamento da publicação em português do seu livro “Processos Circulares”. Kay Pranis, uma das pioneiras no desenvolvimento e implementação da justiça Restaurativa no Canadá e nos Estados Unidos, com importante atuação nos âmbitos Judicial e Comunitário, desenvolveu a metodologia do Círculo de Paz e vem capacitando facilitadores ao redor do mundo (Meirelles; Yazbek, 2014, p. 122).
Desde então a aplicação dessa metodologia vem se disseminando em nosso país, nos mais variados espaços e com muitas intencionalidades. Considerando o seu surgimento, “Os círculos de Construção de Paz descendem diretamente dos tradicionais Círculos de Diálogo comuns aos povos indígenas da América do Norte. Reunir-se numa roda para discutir questões comunitárias importantes é algo que faz parte das raízes tribais da maioria dos povos” (Pranis, 2019, p. 19). Assim, me refiro a uma metodologia carregada de conhecimentos ancestrais que vem sendo utilizados para fortalecimento de vínculos nas comunidades a fim de unir as pessoas e tratar suas questões. Pranis (2019) mostra que os círculos de construção de paz trazem em si um conjunto de conhecimentos comunitários de gerações antigas, de povos autóctones, os quais valorizavam os dons individuais das pessoas bem como as suas necessidades e diversidades, sendo focados no respeito à dignidade de todos, considerando que todos tem algo a contribuir, percebendo que há uma conexão entra tudo e todos, ofertando apoio para que as pessoas possam se expressar, garantindo assim oportunidade igualitária para que todos se expressem. Nesse sentido, podemos compreender os Círculos de Construção de Paz enquanto uma prática circular de JR que tem uma estrutura particular e que visa atender a objetivos próprios, de maneira que
[...] se valem de uma estrutura para criar possibilidades de liberdade: liberdade para expressar a verdade pessoal, para deixar de lado as máscaras e defesas, para estar presente como um ser humano inteiro, para revelar nossas aspirações mais profundas, para conseguir reconhecer erros e temores e para agir segundo nossos valores mais fundamentais (Pranis, 2019, p. 25).
Considerando que toda a estruturação do círculo deve atender a um propósito, sua realização deve contemplar criteriosamente alguns direcionamentos a fim de garantir o sucesso de sua aplicação. Boyes-Watson e Pranis (2011) ressaltam os elementos essenciais para a realização dos círculos: uma cerimônia de abertura, a peça de centro, discussão de valores e orientações, o uso do objeto da palavra, as perguntas norteadoras e a cerimônia de encerramento. Nesse contexto, há uma intencionalidade especial no fato de dispor todos os participantes de maneira circular, pois “um círculo enfatiza igualdade e conectividade” (Boyes-Watson; Pranis, 2011, p. 38).
Pranis (2019) afirma que devido a imensa aplicabilidade dos círculos de construção de paz, a depender do seu objetivo eles podem ser classificados em variados tipos: círculos de diálogo, compreensão, restabelecimento, sentenciamento, apoio, construção de senso comunitário, resolução de conflitos, reintegração, celebração. Dessa maneira, ao planejar o uso da prática de círculos, é importante se ter de forma clara o que se pretende, para melhor definir seus objetivos e escolher mais apropriadamente a maneira como organizar os seus elementos constituintes. Nesse sentido, os círculos de diálogo apresentam uma enorme contribuição para aplicação no espaço escolar, dada as suas peculiaridades. Pranis (2019, p. 29) nos explica que
Num Círculo ou Roda de Diálogo os participantes exploram determinada questão ou assunto a partir de vários pontos de vista. Não procuram consenso sobre o assunto. Ao contrário, permitem que todas as vozes sejam ouvidas respeitosamente e oferecem aos participantes perspectivas diferentes que estimulam suas reflexões.
Dessa maneira percebe-se que a aplicação de círculos de diálogo no ambiente escolar pode ser uma importante estratégia para ouvir os sujeitos, perceber como pensam e promover momentos de reflexão a fim de tratar de variados temas, dos mais simples aos mais complexos, como o racismo e os diversos tipos de preconceito com os quais nos deparamos nas relações sociais, por exemplo.
- A ABORDAGEM DAS QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS NA ESCOLA POR MEIO DOS CÍRCULOS DE CONSTRUÇÃO DE PAZ
Abordar as questões étnico-raciais com estudantes é uma forma de pensar e discutir a própria sociedade, sua história, presente e futuro. Observando isso, a prática dos Círculos de Construção de Paz, surge como uma estratégia que possibilita aos estudantes, sujeitos sociais, falarem a sua verdade, expressarem como se enxergam nessa sociedade tão excludente e refletir sobre as questões que dizem respeito a diversidade racial, os preconceitos, o racismo, suas consequências em suas vidas e em suas realidades sociais. Nesse sentido,
Os círculos de paz oferecem um modo de reunir as pessoas para conversas difíceis e para trabalhar e vencer conflitos e dificuldades. O processo do Círculo é uma maneira de formar o quadro mais abrangente possível sobre nós mesmos, o outro, e as questões em pauta, possibilitando que todos caminhem juntos de modo benéfico (Pranis, 2019, p. 91).
Portanto, para tratar de questões tão urgentes e atuais como são aquelas relacionadas a diversidade étnico-racial, e suas implicações em nosso país, a aplicação dos Círculos de Paz mostra-se muito pertinente, pois de forma simples, porém abrangente, oportuniza a todos refletirem sobre si mesmos, o que pensam, e ao mesmo tempo conduz os participantes a repensarem sobre suas posturas, num ambiente que proporciona o não-julgamento, a liberdade e a reciprocidade.
Para Boyes-Watson e Pranis (2011), os círculos se diferenciam de outros processos de diálogo uma vez que sua preocupação está centrada na formação de relacionamentos, construção de valores e diretrizes para aproximação entre os envolvidos. Essa prática mostra-se pertinente para a discussão das relações étnico-raciais uma vez que “converge em liberar as emoções, sejam elas positivas e/ou negativas. Seria, portanto, um convite à manifestação das sensações e dos sentimentos reprimidos socialmente para um espaço de conexão e compartilhamento” (Silva; Almeida, 2021, p.7). Conversar sobre questões de desigualdade, especialmente envolvendo o racismo e suas consequências pode ser em certa medida um processo dolorido, “porque tratar de racismo é tratar daquilo que nos toca cotidianamente, da dor presente no outro e em nós mesmos! Da dor que podemos causar ou impedir” (Meinerz, 2017, p. 67).
A metodologia de aplicação dos círculos de construção de paz, permitem uma gama de possibilidades no diálogo com os estudantes que podem conduzir a reflexões do início ao fim. Para além de realizar análises, há a possibilidade de que cada participante reflita sobre si, sobre a forma como se vê diante do contexto racial e de demonstrar suas experiências, vivências, expectativas. A oportunidade de ouvir uns aos outros conduz a uma reflexão de realidades próximas, levando ao entendimento de que as questões étnico-raciais falam de mim, do que eu vivencio e não apenas do que vemos em realidades distantes disseminadas na mídia, por exemplo.
Cada etapa do círculo possui extrema riqueza, desde a abertura que pode ser realizada com rituais da cultura dos povos subalternizados em nossa sociedade e muitas vezes desconhecidos/silenciados no ambiente escolar. A cerimônia de encerramento pode explorar esse mesmo aspecto. A etapa de construção de valores pode incentivar a criação de ambientes que pensem mais em justiça e igualdade. Todo o círculo emana respeito, valor primordial para o rompimento da desigualdade racial e o racismo.
O centro do círculo abre um mundo de possibilidades para que se explore a criatividade, valores, objetos relacionados a diversidade. O círculo abre a oportunidade para aprender ouvindo uns aos outros, não há um detentor do saber com fórmulas prontas, mas é no exercício de ouvir que a aprendizagem e a transformação podem acontecer, o círculo tem essa potencialidade, pois “a partilha de histórias fortalece o sentido de conexão, promove a reflexão acerca de si próprio e empodera os participantes” (Pranis, 2019, p. 56).
No que diz respeito a questão racial, é importante que se exercite o reconhecimento identitário, pois a ordem social vigente, branca, hegemônica, eurocêntrica, estabelece por vezes implícita, outras explícitas, um modelo/padrão que domina as mentes e corpos, levando a rejeitar quem se é e a buscar uma forma única de ser. Assim, o círculo possui um incrível potencial nesse processo de desconstrução porque
Contar a nossa história é um processo de reflexão sobre nós mesmos. Ao contar nossa própria história se esclarece nosso modo pessoal de compreender aquilo que nos aconteceu, por que e como aquilo nos afetou, e como vemos a nós mesmos e aos outros. Nosso modo de construir essa história, que molda nossa visão da realidade, fica mais transparente para nós mesmos quando falamos em voz alta para os outros (Pranis, 2019, p. 57).
Falar é uma maneira de romper o silenciamento acerca das relações raciais que permeiam o cotidiano, na escola, em casa, na rua onde moramos, compreende uma forma de trazer à tona a discussão de questões que permanecem veladas na sociedade e que por isso reproduzem as desigualdades e consequentemente, as violências, em suas mais variadas expressões. Ademais, é importante destacar a importância do círculo dentro da própria cultura afro-brasileira,
A questão do círculo, da roda, da circularidade tem uma profunda marca nas manifestações culturais afro-brasileiras, como a roda de samba, a roda de capoeira, as legendárias conversas ao redor da fogueira... No candomblé, os iniciados rodam/dançam durante alguns rituais ou festas. Com o círculo, o começo e o fim se imbricam, as hierarquias, em algumas dimensões, podem circular ou mudar de lugar, a energia transita num círculo de poder e saber que não se fecha nem se cristaliza, mas gira, circula, transfere-se (Trindade, 2006, p. 98 apud Miranda, 2020, p.162).
Nesse sentido, estar em círculo é um convite à ancestralidade, este exercício já remonta a uma conexão cultural com a cultura negra e da mesma forma, a cultura indígena que valoriza a disposição circular. A própria existência da JR e suas práticas remontam a ações desses povos ancestrais realizadas quando se encontravam em círculos.
Mediante o exposto, compreende-se os círculos de construção de paz como uma metodologia eficaz para a abordagem das questões étnico-raciais na escola, dado os vastos benefícios que garante. A realização dessa prática restaurativa com os estudantes poderá proporcionar momentos de reflexão com potencial para mudanças na forma como eles se enxergam, no reconhecimento de sua identidade e também proporcionar transformação em como veem e tratam o próximo, além disso possibilitando maior percepção crítica do mundo.
REFLEXÕES DO PERCURSO REALIZADO: TECENDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Nesse artigo tive como objetivo mostrar a pertinência de abordar as questões étnico-raciais através dos Círculos de Construção de Paz em contexto escolar. A realização desse estudo proporcionou uma reflexão no contexto de uma sociedade que ainda apresenta muita dificuldade em reconhecer o racismo, o qual engendra diversas formas de violência no país, atingindo em especial populações mais vulneráveis, como as pessoas negras e pobres e as populações indígenas.
No levantamento bibliográfico proposto, percebemos que as relações raciais no Brasil ainda carecem de discussões e avanços, principalmente no espaço escolar, que reúne sujeitos com enorme diversidade e onde as desigualdades raciais e sociais são notórias. Nesse contexto, a realização de CCP se mostra como uma metodologia importante no contexto da educação, haja vista que também se constitui numa prática educativa diferenciada que permite a alteridade, escuta do outro, escuta sensível, acolhimento. Tais potencialidades reforçam a relevância da aplicação dos CCP dentro das escolas, pois apesar desse espaço ser um terreno fértil para conflitos considerando que reúne sujeitos com enorme diversidade, a aplicação dos círculos mostra grande potência no trato desses conflitos, atuando na prevenção dos diversos tipos de violência que emergem quando os conflitos não são tratados adequadamente.
Dado esse contexto, os CCP constituem uma ferramenta com enorme potencial para lidar com questões societárias que ensejam conflitos, como a questão racial, a qual está presente cotidianamente dentro do espaço escolar. Ao propiciar o diálogo entre os pares e a reflexão individual e coletiva, pode promover o reconhecimento identitário dos estudantes e ainda o despertamento para o caráter racista que nos permeia individual, institucionalmente e ainda de modo estrutural. Essa metodologia pode servir como um meio eficaz para o rompimento do silenciamento que o racismo cria e reproduz, e ao proporcionar isto, traz uma imensa contribuição ao reconhecimento identitário dos estudantes e de sua condição racial, superando a negação que permeia essa realidade. Ademais, sabemos que a escola é um ambiente em que a presença de conflitos sempre ocorrerá, todavia, a metodologia dos CCP proporciona o diálogo e a negociação entre os sujeitos, mostrando-se fundamental para a criação e manutenção de um ambiente de convívio saudável.
Diante o exposto, espera-se que este trabalho possa subsidiar estudos futuros para aqueles que se interessem na temática, tão urgente e necessária. Enfatizamos que estudos relacionando as práticas restaurativas com o trato das questões étnico-raciais no Brasil é ainda incipiente, sendo por isso importante que produções como a que é apresentada possa ganhar notoriedade, especialmente entre os educadores.
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