Refletir sobre a Educação de Jovens, Adultos e Idosos a partir da percepção dos professores que vivem o cotidiano é extremamente relevante, sobretudo quando há centralidade na realidade vivenciada e nos desafios enfrentados por eles nas suas ações pedagógicas diárias.
Quem são os/as professores/as que atuam na modalidade? Quais as suas experiências formativas e docentes? Em que medida consideram necessária a oferta em suas comunidades/contextos? Quais os desafios enfrentados no seu cotidiano pedagógico? Quais as bases teóricas que sustentam as suas práticas? O que consideram relevante para a garantia de um trabalho qualificado no campo da EJAI? Quais as principais contribuições de Paulo Freire para as suas práticas com os jovens, adultos e idosos? Estas são algumas questões que buscaremos refletir e problematizar neste estudo, na perspectiva de ampliar a compreensão, com base na percepção docente.
Essas problematizações tornam-se fundamentais, principalmente quando se busca uma escuta sensível daqueles/as que vivenciam diariamente a realidade, com seus desafios, angústias, mas, também, com as possibilidades e conquistas da EJAI, que historicamente foi silenciada, negligenciada e relegada a segundo plano. Uma modalidade que ocupou e ainda ocupa um não lugar na Educação.
Esse não lugar ocupado ao longo da sua história pode ser ilustrado nos indicadores atuais de pessoas com mais de quinze anos não alfabetizadas e/ou pouco escolarizadas no país e com os percentuais de analfabetismo funcional revelados pelo Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF[i]).
Gomes e Ferreira (2023), ao analisar os indicadores apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constataram que o país ainda tem um grande caminho para superar o desafio do analfabetismo. Este, que se constitui uma vergonha histórica, ainda persiste, considerando que em 2022 um percentual de 5,6% da população brasileira continua marginalizada, com o direito constitucional da leitura e da escrita negado, impedidas de participarem com autonomia dos bens culturais produzidos historicamente pela humanidade. Esses bens não poderiam, nem deveriam, ser patenteados, no entanto muitos brasileiros e brasileiras, sobretudo da classe trabalhadora, pretos e pardos e do Nordeste, são impedidos do acesso pleno a eles, o que continua representando um triste cenário de exclusão.
Já o INAF, ao analisar os níveis de alfabetismo[ii] no país, coloca em debate o significado de analfabetismo, que, considerando o relatório dos resultados preliminares (INAF, 2018, p. 4), “[...] não pode se restringir a uma visão binária de alfabetizado x não-alfabetizado e sim de um processo gradativo de aquisição e consolidação de habilidades”. Desta forma, os instrumentos utilizados na produção dos dados procuram contemplar a complexidade do conceito, tanto na dimensão das habilidades cognitivas quanto das práticas sociais de leitura e escrita nos contextos comunicativos vivenciados pelos sujeitos entre 16 e 64 anos.
Nesse sentido, os dados do INAF (2018) revelam que de cada 10 (dez) brasileiros/as, cerca de 3 (três) têm muita dificuldade para fazer uso social da leitura, da escrita e das operações matemáticas nos contextos comunicativos do cotidiano. O relatório preliminar revela que 29% da população brasileira de 16 a 64 anos de idade podem ser considerados analfabetos funcionais.
Os dados apresentados revelam a insuficiência de políticas públicas para a classe trabalhadora, não apenas – mas principalmente – no âmbito da Educação de Jovens, Adultos e Idosos. Destaca-se, assim, a urgência de se problematizar e buscar movimentos que garantam a qualificação da educação da classe trabalhadora em todos os tempos geracionais, considerando que quando há falha ou negligenciamento na educação para crianças as filas da EJAI são engrossadas, fortalecendo o processo de juvenilização, conforme sinalizam as pesquisas atuais.
Diante dessa realidade, faz-se relevante um estudo que dê centralidade à percepção dos/as professores/as da EJAI, a fim de melhor compreendermos esse triste mapa que o país ainda apresenta. Portanto, este artigo objetiva compreender a percepção dos/as professores/as da Educação de Jovens, Adultos e Idosos de cinco municípios do interior da Bahia sobre os desafios enfrentados e a realidade vivenciada no cotidiano pedagógico.
Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, utilizando como dispositivo de produção de dados a entrevista semiestruturada com professores/as do interior da Bahia. Estes interlocutores revelam nas suas narrativas as percepções sobre a modalidade, compreendendo as vivências a partir de um olhar de quem tem “lugar de fala[iii]”.
Espera-se que este artigo contribua para melhor compreensão sobre os desafios e as possibilidades da Educação de Jovens, Adultos e Idosos e que fomente a ampliação do debate e das reflexões acerca da temática – que é tão necessária e urgente –, sobretudo nas instituições formativas, na perspectiva de mobilizar educadores e estudantes em formação, de modo a buscar um novo cenário para a Educação, principalmente no contexto da modalidade, para que possamos vislumbrar outras narrativas e outros dados mais animadores.
[i] Refere-se a um estudo para medir os níveis de Alfabetismo da população brasileira de 15 a 64 anos desde o ano de 2002, realizado pela ONG Ação Educativa e o Instituto Paulo Montenegro.
[ii] Na perspectiva defendida pelo Inaf, “Alfabetismo é a capacidade de compreender e utilizar a informação escrita e refletir sobre ela, um contínuo que abrange desde o simples reconhecimento de elementos da linguagem escrita e dos números até operações cognitivas mais complexas, que envolvem a integração de informações textuais e dessas com os conhecimentos e as visões de mundo aportados pelo leitor” (RELATÓRIO PRELIMINAR INAF, 2018, p. 4).
[iii] Conceito cunhado por Djamila Ribeiro (2017).
Perspectiva Metodológica da Pesquisa: os passos trilhados na investigação
Os caminhos metodológicos percorridos se abastecem na abordagem qualitativa de pesquisa, ancorando-se na entrevista semiestruturada como dispositivo para produção dos dados. Essa opção decorre de compreendermos ser a mais acertada para o nosso objeto de pesquisa, principalmente quando se refere a uma extensa amostra. Assim como Bortoni-Ricardo (2008, p. 34), acreditamos que a pesquisa qualitativa “[...] procura entender e interpretar fenômenos sociais inseridos em um contexto”. Convergindo com a concepção apresentada, Sampieri, Collado e Lucio (2006) defendem que a pesquisa qualitativa
[...] dá profundidade aos dados, a dispersão, a riqueza interpretativa, a contextualização do ambiente, os detalhes e as experiências únicas. Também oferece um ponto de vista “recente, natural e holístico” dos fenômenos, assim como flexibilidade (SAMPIERI; COLLADO; LUCIO, 2006, p. 5).
Por sua riqueza metodológica, os estudos qualitativos na área de educação vêm evoluindo significativamente na sua diversificação, nos fundamentos filosóficos, além dos métodos e procedimentos, conforme afirma André (1995).
Nessa perspectiva, a produção dos dados aconteceu no “[...] ambiente natural e cotidiano dos indivíduos” (SAMPIERI; COLLADO; LUCIO, 2006, p. 377) por meio de entrevista e teve o propósito de produzir informações fiéis daqueles/as que vivem cotidianamente a realidade docente da EJA nas suas instituições de ensino.
A entrevista, por constituir-se em dispositivo importantíssimo de produção de dados, pode ser considerada a melhor “[...] tentativa de captação do real, sem contaminações indesejáveis nem da parte do pesquisador nem dos fatores externos que possam modificar aquele real original” (HAGUETTE, 1992, p. 75). Enfim, o ator social pode manifestar seu ponto de vista, deixando emergir, portanto, o fenômeno em sua completude.
Neste contexto, a entrevista possibilitou um contato direto e grande interação com os sujeitos da pesquisa, facilitando a ampliação das informações devido às grandes formas de comunicação existentes no momento da entrevista, na qual as pesquisadoras tiveram que dispor de grande sensibilidade na escuta e estimular o fluxo das informações, pois, segundo Lüdke e André (1986, p. 36):
[...] há toda uma gama de gestos, expressões, entonações, sinais não verbais, hesitações, alterações de ritmo, enfim, toda uma comunicação não verbal cuja captação é muito importante para a compreensão e a validação do que foi efetivamente dito.
Assim, possibilita maior compreensão do significado atribuído pelos agentes aos eventos e ações vivenciadas no cotidiano do contexto pesquisado. Triviños (2010) defende que a entrevista é um dos principais dispositivos de produção de dados, porque, além de valorizar a presença do investigador, oferece todas as condições para que o informante alcance a liberdade e espontaneidade necessárias, o que enriquecerá a investigação. E foi neste prisma que as entrevistas foram realizadas.
Por todas as razões supramencionadas, a entrevista foi o dispositivo escolhido para a pesquisa em tela. Estas foram realizadas com professores que atuam na modalidade da Educação de Jovens e Adultos de cinco municípios do interior da Bahia. Com um roteiro pré-definido, buscamos conhecer os sujeitos, suas percepções e desafios enfrentados no cotidiano docente da Educação de Jovens, Adultos e Idosos. No primeiro bloco de questões, solicitamos informações de cunho pessoal, de modo a melhor caracterizar os colaboradores. No segundo bloco, buscamos informações sobre as percepções dos docentes sobre a oferta, os desafios enfrentados, a prática pedagógica, dentre outras, no intuito de aglutinar informações relevantes que contribuam para melhor compreensão do objeto.
Os sujeitos pesquisados constituem um total de 41 (quarenta e um) professores da EJA, no entanto, algumas questões não foram respondidas por todos, o que provocou uma variação no número de participantes nas questões realizadas: de 38 (trinta e oito) a 41 (quarenta e um), os quais serão melhor caracterizados na seção seguinte.
A Educação de Jovens, Adultos e Idosos sob a percepção dos professores: quem são? O que pensam? O que vivem no cotidiano pedagógico?
Refletir sobre a Educação de Jovens, Adultos e Idosos sob o olhar dos professores e das professoras que buscam cotidianamente ressignificar suas práticas e lutam diuturnamente para que a modalidade da EJAI ocupe o lugar que merece em todas as instâncias políticas, curriculares, legais e pedagógicas é necessário e urgente.
É necessário porque pouco se discute a EJAI sob o olhar de quem faz a docência, de quem vive a realidade diária, com seus desafios e conquistas, quem ouve as narrativas dos estudantes e os segredos revelados das lutas vividas nessa sociedade perversa, desigual e opressora. Quem celebra as conquistas com os estudantes e sofre com eles as situações de desemprego, fome, gravidez precoce ou indesejada, trabalho escravizado, violências das mais diversas naturezas e tantas outras situações que os professores testemunham.
É urgente porque precisamos reconfigurar a realidade da EJAI, transformar os pactos de exclusão e violência em pactos de conquistas, de solidariedade, de justiça social e, para isso, é de fundamental relevância ouvir o que os professores têm a nos dizer. Para tanto, é imprescindível que iniciemos pelos sujeitos, por aqueles que fazem a EJAI no cotidiano escolar e não escolar, assim como nos convida Freire. É preciso escutá-los sensivelmente, ouvir suas reflexões, suas percepções, seus apelos e suas ideias visando à construção de uma nova narrativa para a modalidade que foi historicamente, e continua sendo, negligenciada, silenciada e que ocupa um não lugar na Educação. A Educação de Jovens, Adultos e Idosos necessita ocupar lugar de centralidade nas discussões, precisa ocupar lugar na ordem do dia das pautas de discussões da Educação, visto se tratar de uma dívida social gigantesca e os professores precisam ser ouvidos.
É nesse sentido que este trabalho se consolida, ou seja, trazer os professores para a cena, para o seu lugar de protagonismo nas discussões. Para isso, é imprescindível partir das suas vidas e vivências: quem são? Quais as suas experiências? Quais os desafios enfrentados? Quais as suas principais bases teóricas? Estas e tantas outras questões se nutrem de sentido quando se busca um trabalho com foco nas narrativas docentes. E é nessa direção que esta seção de análise se constitui.
Na intenção de atender a primeira questão, tentar conhecer o perfil dos professores participantes e suas experiências formativas e docentes, de modo que possamos conhecer os sujeitos e, posteriormente, compreender as suas percepções a partir das narrativas apresentadas. Inicialmente buscamos mapear o sexo dos/as professores/as pesquisados/as. Quanto ao sexo, os dados evidenciam e reafirmam a feminilidade da docência. A grande maioria (73,2%) é formada por mulheres, enquanto apenas 26,8% constitui-se por homens. Estes dados são reveladores considerando o importante papel das mulheres no processo de formação da base acadêmica, em todos os tempos geracionais, tanto no que se refere às crianças da Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental quanto aos jovens, adultos e idosos da modalidade da EJAI. Para além do sexo, também nos interessou saber sobre a faixa etária dos/as professores/as e os dados evidenciam que é bastante diversa, permitindo-nos observar que a idade entre 30 e 39 anos e entre 40 e 49 anos contempla o maior número de docentes, ambos com 30%, seguidos da faixa etária entre 50 e 59 anos com 22/5% e de 25 a 29 anos com 12,5%. Quanto às idades de 18 a 24 e mais de 60 anos, os percentuais são muito tímidos. Assim, a faixa etária da grande maioria dos/as professores/as pesquisados/as encontra-se entre 30 e 49 anos de idade. Nesse sentido, além da identificação da idade, fez-se importante saber da formação acadêmica dos/as professores/as da EJAI. Nesse sentido, foi observado que 76,3% dos/as pesquisados/as já possuem curso superior, no entanto, há 23,7% que ainda não possuem a formação inicial ou superior. Ademais, não podemos afirmar se esta formação está concentrada na área de atuação na modalidade da Educação de Jovens e Adultos. Quanto ao tempo de experiência na docência, foi possível observar que a experiência docente dos/as entrevistados/as é bastante diversa. 23,7% dos/as professores/as da EJAI estão iniciando a carreira (1 a 3 anos de experiência), o mesmo percentual, 23/7%, possui de 4 a 7 anos na educação, 18,4% possuem de 8 a 11 anos e 15,8% de 20 a 23 anos de atuação na docência. Este quadro se modifica quanto analisamos os dados do tempo de atuação na modalidade, uma vez que a experiência na docência da EJAI para 50% dos docentes ainda está se consolidando, considerando que estão iniciando o processo, ou seja, possuem de 1 a 3 anos de experiência. Este dado se revela preocupante, analisando as particularidades dos sujeitos, currículos e contextos inerentes à EJAI. O trabalho com a modalidade em tela é muito desafiador e necessita de ampla preparação, formação inicial e continuada, além de um exercício constante de autoformação, com o propósito de contemplar as especificidades e subjetividades dos sujeitos inseridos.
Após análise desses dados breves sobre quem são os/as professores/as colaboradores/as da pesquisa, debruçamo-nos sobre as suas percepções acerca de alguns pontos fundantes no que se refere à modalidade e a sua prática. A partir deste ponto, em que já refletimos brevemente sobre a primeira questão que marca a seção (quem são?), focaremos nossa atenção nos dois últimos questionamentos: o que pensam? O que vivem no cotidiano pedagógico? Estas questões serão problematizadas à luz das narrativas dos/as professores/as entrelaçadas com as reflexões teóricas mobilizadas neste estudo.
A primeira questão levantada refere-se à oferta de turmas da EJAI na comunidade em que residem, por meio da seguinte pergunta: “Em sua concepção, considera necessária a oferta de turmas de Educação de Jovens, Adultos e Idosos na sua comunidade? Justifique”. Essa questão foi respondida por todos/as os/as entrevistados/as, que revelaram na totalidade das narrativas que sim, a oferta da EJAI é necessária e urgente. Destacaram, principalmente, os desafios enfrentados pelas pessoas não alfabetizadas ou pouco escolarizadas em uma sociedade que exige cada vez mais o domínio do sistema de escrita, as necessidades básicas que impediram estes sujeitos do acesso e/ou permanência na escola na infância ou adolescência, a educação e alfabetização como um direito constitucional; além disso, os extratos das falas revelam que este direito está diretamente relacionado à conquista nas dimensões básicas da vida cotidiana: prática, científica e de poder.
Além dos pontos mencionados, os/as professores/as entrevistados/as, ao narrarem sobre a necessidade da oferta de turmas de Educação de Jovens, Adultos e Idosos na sua comunidade, apresentam denúncias e anúncios e convidam-nos à reflexão e ao debate, conforme pode ser observado nas narrativas a seguir:
“Sim, muito necessário. Pois isso irá fazer com que as pessoas da comunidade tenham acesso ao ensino escolar perto de casa, muitos hoje não sabem se querem ler ou escrever seu próprio nome, pois tiveram que deixar a escola por diversas razões de vulnerabilidade social, e estudar na cidade fica inviável pela distância e também não há escola que garanta esse ensino da EJAI, que contemple os alunos do campo que vêm de uma outra realidade”.
“Sim, pois além de se tratar de um reparo social, é algo extremamente necessário, sem contar que as pessoas da EJAI são seres humanos que anseiam e necessitam de uma educação reparatória e de qualidade”.
“Sim. Porque existe um alto índice de analfabetismo e devido às condições socioeconômicas, existe a necessidade básica e a melhoria das condições de vida social, e essa melhoria só se dará por meio da Educação”.
A primeira narrativa traz duas denúncias: a primeira diz respeito à problemática grave do analfabetismo no país, provocado pela negação do Estado à classe trabalhadora do nosso país, principalmente aqueles/as residentes no campo, nas periferias, nas comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas, que, historicamente, vêm tendo o direito à educação negligenciado. Conforme revelam os dados atuais do IBGE (2022), o nosso país continua com um perceptual vergonhoso de pessoas não alfabetizadas (5,6%). Quando analisados os dados por idade e cor, a desigualdade se revela ainda mais chocante: quanto maior a idade, maior também o percentual de analfabetismo; no que se refere à cor, o percentual de pessoas pretas ou pardas não alfabetizadas é absurdamente maior que o das pessoas brancas (GOMES; FERREIRA, 2023). Isso demonstra que o analfabetismo ainda se constitui um grande desafio a ser superado, principalmente para as pessoas da classe trabalhadora, com mais de 60 anos, autodeclaradas pretas ou pardas.
Esta realidade perversa dialoga com a reflexão apresentada por Arroyo (2005), ao destacar que as pessoas da classe trabalhadora:
[...] repetem histórias longas de negação de direitos. Histórias coletivas. As mesmas dos seus pais, avós, de sua raça, gênero, etnia e classe social. Quando se perde essa identidade coletiva, racial, social, popular dessas trajetórias humanas e escolares, perde-se a identidade da EJA e ela passa a ser encarada como mera oferta individual de oportunidades pessoais perdidas (ARROYO, 2005, p. 30).
A segunda denúncia refere-se a não oferta da modalidade da EJAI na comunidade. Esta narrativa soma-se a várias outras que problematizam esta realidade em muitos municípios e/ou comunidades campesinas. Várias turmas de Educação de Jovens, Adultos e Idosos do campo, no intuito atender às necessidades, sobretudo das pessoas não alfabetizadas ou pouco escolarizadas, estão sendo fechadas, agregando todos os níveis e todos/as os/as estudantes nas escolas da cidade ou nas instituições maiores, com o processo de nucleação.
Diante desta realidade revelada, alguns questionamentos são necessários no intuito de ampliarmos o debate e buscarmos, coletivamente, movimentos de luta para que os jovens, adultos e idosos do campo tenham o direito à escolarização na modalidade garantido, sem negar os seus contextos e suas necessidades: quem são as pessoas não alfabetizadas ou pouco escolarizadas do campo? Em que trabalham? Como vivem? Quais os seus interesses e necessidades? Até que ponto os adultos e idosos terão possibilidade de deslocamento para a cidade? Como são constituídas as turmas da EJAI na cidade? O currículo dialoga com as necessidades dos estudantes do campo? Estas e outras tantas questões são importantes para problematizarmos e refletirmos se o Estado não está negando, mais uma vez, a estes homens e mulheres o direito à escolarização? Há oferta, porém sem as condições efetivas de permanência, uma vez que não são estudantes apenas, mas, antes disso, são trabalhadores.
Em perspectiva semelhante, a segunda e a terceira narrativas também trazem denúncias: a reafirmação da vergonha nacional do analfabetismo e a oferta qualificada da EJAI como uma reparação social. De fato, o país carrega uma dívida gigantesca com os jovens, adultos e idosos não alfabetizados ou pouco escolarizados. Estes tiveram esse direito constitucional negado por um sistema social cruel que não possibilitou a um grande número de pessoas da classe trabalhadora o acesso e permanência aos bancos escolares. Sobre esta reflexão, Santiago (2016), ao prefaciar a obra Analfabetismo e Alfabetização, de Maria Reneude de Sá, assim contribui:
[...] o analfabetismo e a alfabetização de adultos, marcas históricas da educação brasileira e, de modo particular, na população pobre e negra, cuja concentração ainda ocorre nas regiões Norte e Nordeste. [...] Desafiada pela concepção de educação permanente na perspectiva freiriana e pelo princípio constitucional do direito à educação, confrontados com a realidade malvada que insiste em produzir demandas para a educação de jovens e adultos. [...] Mas é desafiada e esperançosa que faço o convite àqueles e àquelas que têm como utopia a vida numa sociedade com justiça social, humanizada e humanizadora. Portanto, homens e mulheres que carregam a possibilidade de mobilização, reflexão e intervenção na realidade (SANTIAGO, 2016).
A autora convida-nos ao esperançar na perspectiva freiriana, a fim de buscar possibilidades de intervenção pautadas na alfabetização que liberte, que promova autonomia aos homens e mulheres, possibilitado a intervenção no mundo, uma vez que ao não garantir o acesso e/ou permanência dos sujeitos na escola, nega-se o acesso à língua escrita, roubando destes sujeitos da classe trabalhadora a sua humanidade. Os sujeitos não alfabetizados tiveram, sim, a sua humanidade usurpada, porquanto não foi possibilitado a estes usufruírem dos bens culturais produzidos historicamente pela humanidade, conforme anuncia Freire:
A desumanização, que não se verifica apenas nos que tem sua humanidade roubada, mas também ainda que forma diferença nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais. É distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoa, como “seres para si”, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta que gera violência dos opressores (FREIRE, 2005, p. 30).
A apropriação da leitura e da escrita se constitui como a chave, como passarela para a construção de novas trajetórias e novas narrativas para a classe trabalhadora, conforme revela a professora entrevistada: “Através da educação as pessoas enxergam o mundo de outra forma; é através dela que construiremos novos caminhos”. Estes novos caminhos precisam ser construídos, precisam ser urgentemente garantidos, porque estamos tratando de direito e não de favor ou esmola.
Diante disso, questionamos aos/as professores/as quais os principais desafios enfrentados por eles/as na atuação com a Educação de Jovens, Adultos e Idosos e as respostas foram muito impactantes, pois foram declarados os mais diversos, dentre os quais apareceram com maior recorrência: a evasão escolar, a falta de investimento e de formação inicial e continuada, a distância para muitos estudantes, a prática pedagógica de modo a contemplar as expectativas e contextos dos estudantes, o cansaço por serem trabalhadores, a heterogeneidade, a juvenilização das turmas, a insuficiência de materiais didáticos específicos, a rigidez institucional, a violência, a falta de política pública que respeite os direitos dos estudantes, falta de merenda adequada para o público trabalhador, de transporte adequado, de acessibilidade, a permanência, dentre tantos outros pontos que também foram mencionados. As narrativas, a seguir, evidenciam alguns desafios enfrentados pelos/as docentes entrevistados/as:
“Os principais desafios enfrentados são a permanência, porque não basta só o desejo de estudar. A questão da sobrevivência impede muitas vezes a permanência do aluno dentro da escola”.
“Buscar um ensino qualificado e trabalhar com conteúdos significativos, embasados em temas conectados à realidade social do estudante”.
“A heterogeneidade das turmas na questão da idade, de nível de aprendizagem, do tempo que ficaram fora da escola, a evasão ou a baixa frequência (todos trabalham o dia todo, ou são donas de casa), a falta ou insuficiência de material didático específico (os que vêm ou são muito resumidos, ou com a linguagem difícil para a modalidade), e falta de formação específica para os educadores, a questão da autoestima de muitos que acham que não vão acompanhar os estudos, e, além disso, pela instituição não trabalhar somente com a EJA, muitas vezes as atitudes tomadas priorizam o ensino dito ‘regular’”.
Estas narrativas são reveladoras, denunciadoras e desafiadoras, considerando que a Educação de Jovens, Adultos e Idosos ainda tem um longo caminho a percorrer, na perspectiva de sanar ou dirimir todas as problemáticas que a atravessam. Esse cenário de fragilidade revelado a partir dos desafios apontados pelos/as docentes possibilitam-nos muitas reflexões e questionamentos sobre a permanência, significação dos conteúdos, temas conectados com a realidade, formação continuada, diversidade da turma, dentre tantos outros apontados.
Em face desses pontos levantados, que são tão amplos, são necessários e urgentes estudos mais específicos que possam apontar cada um dos desafios elencados e seus atravessamentos, na intenção de apresentar proposições, de modo a contribuir para que as problemáticas identificadas sejam pauta de discussões e debates propositivos em busca da construção de novas narrativas para o cenário da EJAI. Novas narrativas com menores desafios, abrindo possibilidades para uma Educação mais qualificada e que atenda às necessidades dos jovens, adultos e idosos pouco escolarizados ou não alfabetizados.
Em face dos desafios apresentados, indagamos os/as professores/as sobre qual a base teórica que sustenta as suas práticas e as respostas foram voltadas, na sua grande maioria, à perspectiva freiriana de educação. Mesmo percebendo certa timidez em definir a Pedagogia Libertadora, os extratos das falas, com algumas categorias conceituais de Paulo Freire, já anunciam que muitos deles buscam, na sua prática cotidiana, trazer nuances desta epistemologia que é basilar para o trabalho com pessoas jovens, adultas e idosas. As narrativas revelam o diálogo, o conhecimento da realidade, o amor/amorosidade como pilares de sustentação das práticas pedagógicas. E muitas respostas são diretas na perspectiva da base do trabalho a partir da teoria de Paulo Freire, conforme pode ser observado:
“Eu sustento meu trabalho de forma emancipatória, de aprendizado de querer que outro aprenda e que eu aprenda também; essa troca de saber, de carinho, de olhar no olho do aluno, e ver que está brilhando quando aprende algo, isso é muito gratificante e não tem preço, e estar sempre conectado e baseado na prática docente de Paulo Freire. Junto com meus colegas baseamos muito no cenário crítico que vivemos; buscamos sempre nos basear em um novo entendimento da relação entre a problemática educacional e a problemática social para que possamos resgatar esses alunos e apoiá-los e incentivá-los de forma emancipatória acolhedora, além do respeito às suas culturas, vivências, realidades e é assim que seguimos firmes pensando no bem viver de cada um”.
“Em uma base metodológica que baseia-se no diálogo, e em levar em consideração os conhecimentos de mundo do educando, onde as suas vivências são ponto de partida para o ensino-aprendizagem”.
“No diálogo, na compreensão. Preciso entender quem são meus alunos e compreender as necessidades deles”.
“Na pedagogia da significação por fazer sentido trabalhar com o mundo real deles”.
As narrativas são nutridas de sentido e revestidas dos ideais freirianos. É perceptível a defesa de uma prática dialógica, significativa, em que a vida dos/as estudantes e os conhecimentos prévios construídos sejam evidenciados. Em face dessas reflexões, é importante destacar a grande relevância do legado de Paulo Freire para a Educação de Jovens, Adultos e Idosos. Este se constitui como principal referência no Brasil e, quiçá no mundo, para compreendermos a modalidade, os sujeitos, seus contextos, trajetórias e questões sociais, políticas e econômicas que a atravessam, sobretudo quando se pensa no início do processo de escolarização nesse tempo geracional.
A teoria epistemológica de Freire tem uma importância gigantesca para a Educação, principalmente para a modalidade da EJAI. E como materializá-la? Como concretizar nos espaços formativos uma educação libertadora, humanizadora, emancipadora, libertária? Freire (2005) afirma que a centralidade da sua teoria está pautada na dialogicidade, fundamentada em outras categorias conceituais basilares para a educação libertadora: o amor, a humildade, a fé, a esperança, sendo o diálogo princípio e matriz condutora da educação humanizadora; logo, não podemos negá-la, sob a pena da negação de qualquer busca de autonomia. Nas palavras de Freire (2005, p. 52), “Não podemos esquecer que a libertação dos oprimidos é libertação de homens e não de ‘coisas’. Por isto, se não é autolibertação – ninguém se liberta sozinho –, também não é libertação de uns feita por outros”. O diálogo não é um ato solitário, mas solidário, pois implica o coletivo, o conjunto, a comunicação entre pares [e ímpares]. Nesse sentido, destacamos as palavras de Freire ao anunciar que: “O diálogo, que é sempre comunicação, funda a co-laboração. Na teoria da ação dialógica, não há lugar para a conquista das massas aos ideais revolucionários, mas para a sua adesão” (FREIRE, 2005, p. 149).
Diante das reflexões apresentadas, perguntamos, também, o que os/as docentes consideram fundamental para a garantia de um trabalho qualificado na EJAI, a partir das suas experiências no âmbito da docência, e as respostas fornecidas com maior recorrência pautaram-se na relação dialógica, na disposição, no acolhimento, na dedicação, na formação, no comprometimento, no investimento, nas atividades inclusivas, nas políticas públicas, no planejamento, nos materiais didáticos, dentre outros, conforme pode ser observado a seguir:
Projeto político pedagógico voltada para esses alunos que respeite e valorize a realidades desses sujeitos, garantia do estudo de qualidade, políticas de acesso e permanência, políticas sociais, culturais. Porque além do acesso desses alunos nas escolas, as políticas públicas educacionais precisam garantir a permanência deles na sala de aula. As aulas precisam ser dialogadas e não apenas depósito de conteúdo, [...] então, os professores precisam desenvolver o seu trabalho junto com eles [...]. Então, o projeto político pedagógico precisa sair do papel, os professores juntos com os supervisores, secretária entre outros, precisam dar as mãos e se juntar, se unir pra fazer valer cada vez mais esse ensino que é tão lindo”.
“Valorização dos conhecimentos prévios e a realidade social de cada um. Porque eles precisam perceber que os conhecimentos populares que eles têm são úteis e a realidade social porque cada sujeito é carregado por marcas históricas e isso reverbera no seu processo de aprendizagem”.
“Trabalhar na perspectiva de que os estudantes são agentes da sua história e da sua formação porque isso os empodera e faz com que percebam a importância do saber produzido por parte deles”.
“Abranger as necessidades dessas pessoas desde o material didático até as suas mínimas necessidades enquanto alunos e trabalhadores. A formação ou preparação de educador é um fator importante na perspectiva de ensino da EJAI”.
“Fundamental mesmo é se colocar no lugar do outro. Alfabetizar sem infantilizar. Trabalhar de forma que o público-alvo em questão se sinta acolhido e contemplado com o trabalho em sala”.
Todos os pontos elencados pelos/as docentes são, de fato, importantes para a qualificação do trabalho junto com os jovens, adultos e idosos inseridos na modalidade. Para além de práticas pedagógicas que atendam o público nos seus contextos e trajetórias de vida, existem outras necessidades que transcendem a dimensão pedagógica, ocupando outras instâncias, conforme a narrativa da professora: “Abranger as necessidades dessas pessoas desde o material didático até as suas mínimas necessidades enquanto alunos e trabalhadores”. “[...] além do acesso desses alunos nas escolas, as políticas públicas educacionais precisam garantir a permanência deles na sala de aula”. E mais, que essa permanência possibilite a aprendizagem significativa e qualificada.
Concordamos com as reflexões apresentadas nas narrativas de que muito desse processo diz respeito às práticas em sala de aula com os jovens, adultos e idosos, como declaram as docentes: “As aulas precisam ser dialogadas e não apenas depósito de conteúdo, [...] então, os professores precisam desenvolver o seu trabalho junto com eles [...]” (P EJAI); “Valorização dos conhecimentos prévios e a realidade social de cada um. Porque eles precisam perceber que os conhecimentos populares que eles têm são úteis e a realidade social” (P EJAI); “Trabalhar na perspectiva de que os estudantes são agentes da sua história e da sua formação porque isso os empodera” (P EJAI); “Fundamental mesmo é se colocar no lugar do outro. Alfabetizar sem infantilizar. Trabalhar de forma que o público-alvo em questão se sinta acolhido” (P EJAI).
Todos os pontos destacados são, sem dúvida, relevantes e merecem um olhar cuidadoso por parte dos/as docentes e instituições formativas: o diálogo, a valorização dos conhecimentos prévios, a não infantilização e valorização da autonomia dos/as estudantes são dimensões extremamente importantes para o trabalho na modalidade da EJAI, segundo podemos refletir a partir das provocações de Freire (2005):
Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegará pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela (FREIRE, 2005, p. 31).
Com base nessas reflexões, buscamos também a percepção dos/as entrevistados/as sobre o legado de Paulo Freire para a Educação e o que consideram essencial para o contexto da EJAI. Diante deste questionamento, as narrativas foram muito reveladoras, como podemos verificar a seguir:
“O legado de Paulo Freire mostra a educação como ferramenta libertadora e emancipadora, principalmente para os estudantes da EJA”.
“Articular minha prática educacional à realidade concreta dos alunos para a sala de aula, atrelada sempre ao mundo do trabalho deles e as vivências cotidianas”.
“Devemos ter uma educação oposta à opressão para que, assim, venhamos ser transformadores da realidade social que é tão injusta, sobretudo com os menos favorecidos”.
“A prática docente emancipatória, a compreensão da realidade dos alunos, o diálogo, a troca de conhecimento, a importância da alfabetização dos adultos e a formação crítica de cada educando”.
“Todos os aspectos associados às ideias de Paulo Freire são importantes, mas na minha opinião o respeito pelas diversidades e o diálogo como um fator fundamental para relação social”.
Os extratos das falas dos/as professores/as revelam certa familiaridade e compreensão da teoria de Freire para o fazer pedagógico no âmbito da Educação de Jovens, Adultos e Idosos. Destacam categorias e reflexões relevantes da epistemologia do autor em discussão. Nas suas narrativas destacam, dentre outros aspectos, que a EJAI é “[uma] educação voltada para as classes menos favorecidas da sociedade” (P EJAI), além disso que “[...] é possível aprender independentemente da idade” (P EJAI) e perceber a educação como “[...] ferramenta libertadora e emancipadora” (P EJAI), visto que “Todo mundo tem direito ao acesso e permanência a educação” (P EJAI). Todas estas reflexões estão nutridas das ideias freirianas, as quais fecundam movimentos de luta, de enfrentamento e de diálogo formativo em prol da consolidação da educação libertadora que tanto buscamos. Nesse viés, consoante de Freire (2005, p. 31), reafirmamos que “A mudança só pode acontecer através da Educação Libertadora”, pois, conforme ele mesmo defende, um dos principais objetivos da educação é compreender melhor a realidade de modo que possa agir sobre ela, intervir efetivamente, uma vez que “[...] através de sua permanente ação transformadora da realidade objetiva, os homens, simultaneamente, criam a história e se fazem seres histórico-sociais” (FREIRE, 2005, p. 107).
Diante de todo este cenário, interessou-nos, também, saber quais as considerações dos/as professoras no que se refere à modalidade, considerando as suas vivências formativas e profissionais, e estes assim discorreram:
“A EJAI, para mim é algo fundamental para o desenvolvimento do país e tem que ser como uma forma de reparação social. Pois se hoje existem várias pessoas que não sabem ler, isso se dá pela falta de políticas públicas para incluir essas pessoas nas escolas”.
“A EJA necessita de um olhar mais humano e específico do poder público; mesmo com os desafios, é um trabalho extremamente prazeroso e necessário”.
“O currículo da EJA não pode caminhar alheio da realidade. Para isso ele precisa estar dialogando, [...] conectado com suas vivências e culturas”.
“A experiência na área em destaque foi um grande avanço e me fez pensar e querer ir adiante, pois desde o início da história do nosso país que as conquistas foram à base de lutas, movimentos sociais, mas sempre tivemos grande parcela da população esquecida nos direitos, nas vantagens, nos benefícios. Os negros, os pobres, os analfabetos, as mulheres, e também o homem do campo. Falar do direito à educação é para todos, não para alguns, nem para maioria. É para todos, homens, mulheres, crianças, adolescentes, pobre, rico, da cidade e também do campo. Dar direito a quem tem, não excluir, mostrar seu lugar na sociedade, seus direitos, seus deveres. [...] Mostrar a cada um que somos únicos, e fazemos toda diferença na sociedade. Enfim, a educação é base, transforma e é por meio dela que as pessoas se tornam o que são”.
Desse modo, é possível perceber que a EJAI permanece com muitos desafios a serem superados, necessitando, de fato, de amplo empreendimento em todas as dimensões, mas, sobretudo, de políticas públicas efetivas que garantam efetivação do processo. Nesse sentido, Oliveira (2015) destaca os desafios atuais, considerando a negligência histórica a esta modalidade. Entre outros desafios apresentados, elucidamos os quatro principais que dialogam com as reflexões presentes nas narrativas dos/as entrevistados/as, quais sejam: a) superação dos níveis de analfabetismos no país; b) atendimento às especificidades dos sujeitos e contextos da EJA em situação de exclusão e vulnerabilidade social; c) efetivação/qualificação nas ações pedagógicas de modo que busque garantir a permanência; e d) garantia da formação de professores.
Estes desafios fazem parte da realidade e precisam da superação urgente, de modo que se possa garantir a “[...]os negros, os pobres, os analfabetos, as mulheres, e também o homem do campo” (P EJAI) e tantos outros o direito a uma educação digna, qualificada e com uma prática que dialogue com os sujeitos, ou seja, é imprescindível garantir “[...]direito a quem tem, não excluir” (P EJAI), uma vez que “[...] sempre tivemos grande parcela da população esquecida nos direitos, nas vantagens, nos benefícios” (P EJAI).
Portanto, o olhar dos/as professores/as da EJAI, suas percepções e reflexões sobre os desafios do cotidiano pedagógico muito contribuem para melhor compreensão da realidade. Os dados aqui revelados são extremamente relevantes, por estarem nutridos de verdades, de vivências e de sentimentos de quem vive o cotidiano. Em face disso, é possível afirmar que as narrativas e dados aqui declarados se constituem como um grito de denúncia de uma Educação que foi [e continua sendo] forjada como inferior, pequena, invisibilizada, que ocupou historicamente e continua ocupando um não lugar, em todas as suas dimensões.
Após todas as reflexões e apontamentos deste estudo, que buscou compreender a percepção dos/as professores/as da Educação de Jovens, Adultos e Idosos de cinco municípios do interior da Bahia sobre os desafios enfrentados e a realidade vivenciada no cotidiano pedagógico, alguns achados são possíveis, a partir dos dados produzidos no campo empírico junto com os interlocutores, em articulação com algumas bases teóricas priorizadas.
Quem são os/as professores/as sujeitos da pesquisa? O que pensam? O que vivem no cotidiano pedagógico? Quais as suas percepções sobre os contextos da Educação de Jovens, Adultos e Idosos? Que reflexões são construídas a partir das provocações levantadas? Quais os desafios enfrentados na sua prática? Todas estas questões foram problematizadas ao longo do estudo e, depois de todo processo de análise e tratamento dos dados produzidos, podemos afirmar que a realidade vivenciada pelos/as professores/as é revestida de desafios que precisam ser debatidos e problematizados na intenção de buscar estratégias de enfrentamento com intervenções efetivas que promovam a superação dos desafios postos.
Os dados revelam denúncias de uma Educação que, mesmo com todo histórico de negação sofrido ao longo da sua trajetória, ainda não ocupa lugar de centralidade, muito pelo contrário, a EJAI continua ocupando um menor lugar na Educação; continua sendo negligenciada pelo Estado, por não garantir o mínimo de dignidade humana que se pode esperar: a alfabetização para todos e todas.
As fragilidades apresentadas nas narrativas dos/as professores/as são o reflexo de uma sociedade cruel que nega direitos básicos aos sujeitos, principalmente aqueles/as que tiveram interrompido ou negado o direito da escolarização na infância, que nega a possibilidade do acesso à língua escrita e todos os bens culturais produzidos, que impede a homens e mulheres o direito de construírem dignamente suas histórias e de as escreverem.
Esse cenário de fragilidades observado nas narrativas dos/as professores/as, que estão diretamente conectadas com os desafios do cotidiano pedagógico, evidencia a necessidade e urgência da oferta da modalidade nas comunidades e bairros periféricos, a permanência, o trabalho pedagógico conectado com a realidade social dos estudantes, a heterogeneidade das turmas, a insuficiência de materiais didáticos, de formação específica para a EJAI, dentre outros desafios narrados.
Quanto à base pedagógica do trabalho, verificamos que a grande maioria busca realizar um trabalho ancorado na teoria de Paulo Freire, sobretudo destacando o diálogo, a amorosidade, a reflexividade crítica e a valorização dos sujeitos e seus contextos. Em face dessas respostas, os/as entrevistados/as revelaram que consideram fundamental para uma prática qualificada um trabalho que seja revestido pela relação dialógica, disposição, acolhimento, dedicação, comprometimento, planejamento, dentre outros.
Portanto, em consonância com o cenário de complexidade apresentado, as narrativas dos/as professores/as evidenciam a urgência de um olhar mais cuidadoso e respeitoso para/com a modalidade. A Educação de Jovens, Adultos e Idosos é um direito de todos/as, independentemente da idade, sexo, classe social, região... Logo, precisa ocupar lugar de centralidade, considerando todo o histórico de negação. Sabemos que se trata de muito mais que reparação social, mas também é necessário que esta reparação aconteça. Estamos falando de justiça social, de equidade, para que possamos ter, em um futuro próximo, narrativas diferentes, com mais “boniteza” e dignidade.
[1] Refere-se a um estudo para medir os níveis de Alfabetismo da população brasileira de 15 a 64 anos desde o ano de 2002, realizado pela ONG Ação Educativa e o Instituto Paulo Montenegro.
[1] Na perspectiva defendida pelo Inaf, “Alfabetismo é a capacidade de compreender e utilizar a informação escrita e refletir sobre ela, um contínuo que abrange desde o simples reconhecimento de elementos da linguagem escrita e dos números até operações cognitivas mais complexas, que envolvem a integração de informações textuais e dessas com os conhecimentos e as visões de mundo aportados pelo leitor” (RELATÓRIO PRELIMINAR INAF, 2018, p. 4).
[1] Conceito cunhado por Djamila Ribeiro (2017).
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