Os professores que atuam nas escolas buscam constantemente transformar sua prática pedagógica a fim de favorecer à aprendizagem dos estudantes. No entanto, essa mudança, por vezes, ocorre de forma pontual, por meio de tentativas de como fazer o estudante aprender determinado assunto, com uso de recursos manipuláveis e jogos, sem muito sucesso nos resultados, geralmente por ausência de um planejamento que considere o estudante como um todo. De fato, ao fazer dessa forma, não ocorre uma reflexão das concepções sobre os processos de aprendizagem e as interações necessárias para que o ensino seja mobilizador.
Muitas vezes, os professores partem do senso comum para estabelecer uma relação com os estudantes por deconhecerem a importância do afeto na sua formação. Isso ocorre porque possuem o entendimento de que a afetividade é apenas uma ação emocional, sem relação direta com o desenvolvimento cognitivo. Há, portanto, a necessidade de que a afetividade seja compreendida como elemento fundamental para o desenvolvimento humano, a partir de práticas mobilizadoras da ação do estudante no processo de aprendizagem. E para que isso ocorra, torna-se fundamental o papel que o professor desempenha nesse momento ao organizar um planejamento voltado para a promoção dessas ações.
Para isto, é preciso que ocorra um trabalho voltado para a interação entre os estudantes e entre eles e o professor, em que linguagem, afetividade e emoções estejam relacionadas, a fim de promover uma aprendizagem efetiva. No entanto, para que esse formato se institua como prática, é preciso romper com o conteudismo que faz parte do cotidiano escolar, que mede a aprendizagem pela quantidade de acertos em uma prova, e passar a vê-la como um processo de interação social que visa à aquisição de habilidades que possibilitam ao estudante se relacionar na sociedade.
É importante pontuar que a formação inicial dos professores não é suficiente para que todos os aspectos ligados ao ensino e à aprendizagem sejam compreendidos pelos licenciandos. Por isso, a formação continuada dos professores pode contribuir para esse debate e para uma reflexão de como ensinar para o desenvolvimento integral do estudante, em que aspectos cognitivos e afetivos sejam percebidos como indissociáveis.
Assim, o presente artigo propõe uma discussão sobre cognição e afetividade no ensino, baseando-se nas teorias de Henri Wallon e Lev Vigotsky e nas concepções presentes na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), buscando compreender a importância dos estudos sobre as interações sociais, a afetividade e as emoções no processo de formação de professores, a fim de prepará-los para a promoção um ensino mobilizador de aprendizagem significativa.
Os estudos sobre a cognição e afetividade são importantes temas de discussão para a formação continuada de professores, de forma a contribuir para o ensino que considere os aspectos cognitos e afetivos nesse processo. Nesse artigo, apresentam-se as teorias de Wallon e Vigotsky sobre afetividade, as concepções sobre o tema na BNCC e como a formação continuada, baseada nesses estudos, podem instrumentalizar o professor para promover o desenvolvimento integral do estudante.
A afetividade é considerada por Henri Wallon como “a capacidade do ser humano de ser afetado por fatores externos e internos e de reagir com atividades externas ou internas de acordo com a situação.” (MAHONEY; ALMEIDA, 2005, p. 19). Dessa forma, segundo Mahoney e Almeida (2005, p. 20), para Piaget, o ser humano é afetado pelo meio e pelas demais pessoas, produzindo emoções, sentimentos e paixão e as emoções representam a afetividade exteriorizada, a primeira ligação entre o ser humano e o meio social.
Wallon foi o precursor dos estudos sobre a relação indissociável da cognição e da afetividade. Sua teoria, conhecida como teoria psicogenética da pessoa completa defendia que o ser humano não poderia ser considerado em apenas um dos seus aspectos, pois a aprendizagem está centrada nos campos afetivo, motor e cognitivo. Para ele (WALLON, 1995, p.14), os fatores biológicos e sociais não podem ser dissociados porque são complementares na formação do ser humano desde seu nascimento e, por isso, não poderia ser possível o psíquico sem as relações recíprocas.
Além disso, Borges, Almeida e Mozzer (2014, p.141), salientam que Wallon defendia a ideia de indivíduo enquanto ser social, em que as condições biológicas e sociais contribuem para a aprendizagem, pois percebia o meio como propulsor do desenvolvimento e o orgânico como base e a participação de outro indivíduo é condição para a sobrevivência, durante toda a vida, porque é nesse processo de interação que se constitui a formação da personalidade e das funções cerebrais.
Corroborando, Wallon destaca que:
O eu e o outro constituem-se, então, simultaneamente, a partir, de um processo gradual de diferenciação, oposição e complementaridade recíproca. Compreendidos como um par antagônico, complementam-se pela a própria oposição. De fato, o Outro faz-se atribuir tanta realidade íntima pela consciência como o Eu, e o Eu não parece comportar menos aparências externas que o Outro (WALLON, 1975, p.159)
Com isso, percebe-se que é no encontro das atitudes emocionais com o outro, seja de consonância ou de oposição, que se estabelecem as relações interpessoais, promotoras do caminho de aprendizagem.
Por outro lado, Wallon também destaca a integração dos domínios motor, cognitivo, afetivo e a formação do eu como pessoa na origem do psiquismo e suas transformações. O primeiro engloba os movimentos do corpo, as reações posturais; o segundo, a capacidade de reter informações, registrar e analisar; o terceiro, responsável pelas emoções e sentimentos; e o último é a consolidação da integração desses domínios (MAHONEY; ALMEIDA, 2005, p.18).
Mahoney e Almeida (2005, p. 18) também aponta que para Wallon essa integração entre os domínios acontece diferentemente no decorrer do desenvolvimento humano, pois um domínio pode se sobrepor a outro nos diferentes estágios de desenvolvimento, classificados por Wallon como impulsivo-emocional, até 1 ano de idade; sensório-motor e projetivo, de 1 a 3 anos; personalismo, de 3 a 6 anos; categorial, de 6 a 11 anos; e puberdade e adolescência, de 11 anos em diante, sendo este último o estágio em que o conjunto afetivo está em maior evidência.
A afetividade, portanto, fica no centro dominante a partir da segunda etapa do ensino fundamental, percorrendo todo o ensino médio, quando se pensa no caminho que o estudante faz na educação básica; ele vivencia todos os estágios nesse período, o que torna a escola um importante meio social na formação de sua personalidade.
Vale destacar que Wallon (RAMOS, 2020, p. 44) concebe a “dimensão afetiva como categoria fundamental para a aprendizagem, estabelecendo a diferença nos conceitos de afeto e emoção, sendo esta a manifestação da vida afetiva, de caráter biológico”. Ramos (2020, p. 46) ainda salienta que, para Wallon, a afetividade é mais ampla e envolve fatores biológicos e psicológicos, emoções e sentimentos, que se manifesta no decorrer do desenvolvimento do ser humano, quando da introdução dos elementos simbólicos, como a linguagem.
Assim, a afetividade surge como uma resposta orgânica, a partir das emoções, e em contato com o outro e o meio social do qual faz parte, fazendo surgirem transformações que contribuem para a formação da pessoa. É nesse processo que se desenvolve a cognição, tendo a linguagem como seu principal fator, sem estabelecer linearidade, pois, como já citado, em cada estágio ocorre a prevalência de um ou outro domínio, e que resulta nos movimentos de integração.
Assim como Wallon, Vigotsky percebe a afetividade como importante fator de desenvolvimento do ser humano, mesmo que seu foco fossem os processos cognitivos, que eram denominados por ele como funções mentais e/ou consciência. Seus estudos eram centrados nas relações entre pensamento e linguagem, na importância dos processos de ensino e aprendizagem para o desenvolvimento do ser humano, nas questões relacionadas aos processos metacognitivos e na mediação entre sujeito e objeto de conhecimento. Oliveira (1992, p. 75-76) destaca que para Vigotsky as funções mentais se apresentam interrelacionadas a outras funções e a consciência está organizada dinamicamente nas relações entre afeto e intelecto, que se influenciam mutuamente.
Oliveira (1992, p. 76) ainda salienta que Vygotsky:
Coloca que o pensamento tem sua origem na esfera da motivação, a qual inclui inclinações, necessidades, interesses, impulsos, afeto e emoção. Nesta esfera estaria a razão última do pensamento e, assim, uma compreensão completa do pensamento humano só é possível quando se compreende sua base afetivo-volitiva.
De fato, Vygotsky aponta que somente se aprende aquilo que temos de interesse, que nos motiva, que mexe com nossas emoções. Ele afirma (VYGOTSKY, 1987, p. 348 apud OLIVEIRA, 1992, p. 83) que, “quando associado a uma tarefa que é importante para o indivíduo, (...), o pensamento realista dá vida a experiências emocionais muito mais significativas do que a imaginação ou o devaneio”. A mobilização das emoções alavancam o processo de ação, numa relação com o outro, seus pares ou não, e promovem a formação da consciência, que hoje chamanos de processos cognitivos.
Ademais, pode-se perceber que ao se relacionar no meio social, regulado pela linguagem, o ser humano perfaz um processo de análise e recodificação das informações, de acordo com as aprendizagens já realizadas, atingindo à abstração ou generalização das ideias, que sofrerão alterações a cada mudança de estágio. É um processo contínuo de mudanças até a formação completa do ser humano.
Assim, as pesquisas promovidas por Vigotsky contribuem para a reflexão sobre o processo interativo que ocorre no meio social, numa relação entre a afetividade e a cognição, que produz conhecimento e desenvolvimento do ser humano como um todo.
As discussões sobre cognição e afetividade e sua abordagem em sala de aula perpassam pelo currículo estabelecido pelas instituições de ensino. Em 2018, tivemos a publicação da BNCC (BRASIL, 2018, p. 7), que é um documento normativo que estabelece as aprendizagens essenciais a serem desenvolvidas na educação básica, a fim de promover a formação humana integral e a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.
Para isto, assume a “visão plural, singular e integral” do ser humano, “como sujeitos de aprendizagem” e “promove uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades ” (BRASIL, 2018, p. 14), reconhecendo o compromisso com a formação integral, nas dimensões intelectual, física, social, afetiva, ética, moral e simbólica.
Podemos perceber que o texto da BNCC traz uma visão de que o ensino não pode se apresentar dissociado dos interesses dos estudantes e isso corresponde a considerar os aspectos afetivos que os mobilizam a aprender e estabelecer um planejamento que busque alcançar esse objetivo.
Vale destacar que a BNCC enfatiza, em várias passagens de seu texto, a importância da interação no processo de ensino, em que ocorrem “as expressões de afetos, a mediação das frustrações, a resolução de conflitos e a regulação das emoções (BRASIL, 2018, p. 37) ”, em práticas colaborativas de interação com os pares e com professores. Nesses momentos, professor e estudantes estabelecem uma relação consensual ou não nos debates “dos problemas investigados como das intervenções propostas, (...) valorizando a diversidade de opiniões de grupos sociais e de indivíduos sem quaisquer preconceitos”, fundamentados na solidariedade e na ética. “ (BRASIL, 2018, p. 534)
O documento normativo também observa que, no processo de formação humana integral, cabe ao professor proporcionar experiências que garantam as aprendizagens essenciais para a análise da realidade, a busca de soluções para os problemas e a tomada de decisões pautadas na ética e na moral. Para esta finalidade, deve “promover uma aprendizagem colaborativa, desenvolvendo nos estudantes a capacidade de trabalharem em equipe e aprenderem com seus pares” (BRASIL, 2018, p. 465), por considerar que é no processo da relação com o outro, na troca de opiniões, na reconstrução dos modos de pensar e agir, que a aprendizagem se efetiva.
Dessa forma, podemos inferir que a BNCC orienta para a formação continuada de professores para que possam refletir sobre sua prática pedagógica, a fim de que os aspectos cognitivos e afetivos sejam observados no processo de ensino e possam contribuir para a aprendizagem. Somado a isso, está o fato de o mesmo documento apontar as relações entre os estudantes como importantes nesse processo, reforçando a necessidade de maior preparação do professor no momento das aulas.
Os estudos de Wallon e Vigotsky, além do que está posto na BNCC, leva-nos a perceber a indissociabilidade entre cognição e afetividade, ratificando que a aprendizagem não ocorre exclusivamente por aspectos cognitivos, e sim pela integração dos conjuntos de domínio com o meio, nas relações entre pares e com a sociedade.
É nesse processo que o papel do professor torna-se fundamental, como mediador das ações que poderão possibilitar o desenvolvimento da pessoa numa progressão de estágios, pois é na escola que as emoções se expressam e se transformam, na relação com o outro, tendo a linguagem como forma de representação. Assim, para Borges, Almeida e Mozzer (2014, p. 143) o professor precisa compreender as emoções como parte do processo de aprendizagem, percebendo o conhecimento e a afetividade como inseparáveis, canalizando as expressões emocionais para serem facilitadoras do processo.
Neste artigo, não há o propósito de culpar a formação inicial de professores por não apresentar uma ementa de discussão sobre cognição e afetividade no ensino, geralmente abordados apenas no componente curricular de Psicologia da Aprendizagem, em um único semestre, não garantindo o melhor entendimento por parte do futuro professor.
O que se pode observar é que existe a necessidade da contínua formação do professor, especialmente ao que se encontra na sala de aula, pois as mudanças sociais, políticas, econônicas e tecnológicas promoveram uma verdadeira revolução educacional e, enquanto professor, é preciso estar sempre atualizado, a fim de melhor planejar suas aulas e posssibilitar a aprendizagem dos estudantes.
Na atualidade, é possível encontrar uma infinitude de cursos de formação continuada, com diversas temáticas, todos muito importantes para a reflexão do trabalho docente. No entanto, muitos são os professores que sentem dificuldade em estabelecer uma relação do modo como ensina com os processos cognitivos e a afetividade, geralmente por terem tido uma formação que não contemplava essas abordagens. Muitos são aqueles que tiveram, enquanto estudantes, apenas acesso a um ensino cujo foco era o desenvolvimento cognitivo, e, por vezes, acabam reproduzindo as mesmas concepções de que o bom estudante é o que atinge as maiores notas.
A mudança de concepções sobre o ensino pede a reflexão do seu papel enquanto professor e da escola enquanto ambiente social. Para Nóvoa (2002, p. 38), “a formação contínua deve contribuir para a mudança educacional e para a redefinição da profissão docente”, e, por isso, essa formação deveria ocorrer entre pares, no próprio ambiente de trabalho. E muito mais importante é ter garantido o momento de reflexão sobre o seu papel na vida de seus estudantes.
A reflexão sobre as concepções apresentadas na BNCC, por Wallon e Vigotsky podem contribuir para a formação do professor e seu modo de se relacionar em sala de aula. Para Wallon, a escola possui papel de destaque no desenvolvimento da afetividade, reconhecendo a função do meio social na sua constituição e tendo o professor como ser que “educa e aprimora o aluno como pessoa humana (BORGES, ALMEIDA, MOZZER, 2014, p. 143).”
Segundo Mahoney e Almeida (2005, p. 15), é importante conhecer a teoria de desenvolvimento de Wallon, com seus estágios de desenvolvimento e comprender como as relações afetivas interferem no processo de ensino e de aprendizagem, positiva ou negativamente. Dessa forma, pode contribuir para que o professor compreenda como pode estimular os estudantes, criando condições para a aprendizagem de novos conceitos.
Corrobora com isso a teoria interacionista de Vigotsky, que destaca as interações entre os estudantes, em que há trocas afetivas e de conhecimento, mediadas pela linguagem, e que contribuem para a promoção das aprendizagens. Assim, partindo da teoria de Wallon, o professor poderá ser capaz de refletir sobre suas ações e usar isso a favor da aprendizagem. Isso fica evidente quando o professor analisa e media o melhor formato de interação em sala de aula, observando como as trocas ocorrem e como os estudantes se influenciam, positiva ou negativamente, buscando inibir os que apresentam comportamento negativo e reforçando os comportamentos que colaboram positivamente. (LIRA, 2021, p. 26)
Nessa perspectiva, o exercício da docência não pode se resumir ao desenvolvimento cognitivo, pois o estudante é um ser completo, que possui domínios cognitivos, afetivos e sociais, mediados pela linguagem e pela construção de significados no decorrer do seu processo de desenvolvimento.
Além disso, não se pode compreender o professor como transmissor do conhecimento historicamente construído, pois seu papel fundamental é compreender o estudante na sua integralidade, nos aspectos cognitivos e afetivos e suas relações na construção do conhecimento, e promover um ensino que estimule esse desenvolvimento, com um planejamento que torne a aprendizagem mais dinâmica e significativa para os estudantes.
Assim, cabe ao professor conhecer o contexto (social, econômico, familiar) em que seus alunos se encontram e conhecer também seus interesses e necessidades pessoais para oferecer um ensino mais interessante para eles. Se, ao contrário disso, o professor não compreender as singularidades dos indivíduos e da sua comunidade como um todo, ou se tratar todos da mesma maneira, sem considerar suas particularidades, ou ainda, se esperar de todos um comportamento único e padronizado, desprezará o importante papel da afetividade na construção do conhecimento, oferecendo um ensino empobrecido e consequentemente dificultando o processo de aprendizagem de seus alunos. (LIRA, 2021, p. 28)
Enfim, não é possível conceber a docência sem considerar como os estudantes são constituídos, seus interesses, aptidões, desejos, que regulam suas emoções e se expressam na sala de aula nas interações com colegas e professores. Portanto, cabe ao professor buscar a sua formação continuada dentro desta perspectiva, reconhecendo a afetividade como indissociável no processo de ensino e de aprendizagem.
De forma a contribuir para as discussões deste artigo, foi realizada a coleta de dados com professores que atuam com a disciplina de Matemática numa escola da rede estadual do interior da Bahia, a fim de analisar suas percepções sobre a afetividade no processo de ensino e a influência da formação docente para sua visão sobre a relação entre cognição e afetividade.
Assim, foi elaborado um questionário em formato Google Forms, contendo 19 perguntas, contemplando perfil, formação, profissão e percepções sobre afetividade no processo de ensino. O questionário foi disponibilizado aos professores por meio de link de acesso, sem solicitação de identificação inicial, de forma a preservar o anonimato do participante. No próprio documento online, foi apresentado o objetivo da recolha de dados e que a participação seria voluntária, podendo não respondê-lo, se assim escolhesse.
Dentre as questões apresentadas, a de número 16, cuja pergunta era “Como você percebe a relação entre a afetividade e a aprendizagem dos estudantes?” não obteve a resposta dos participantes, por ter apresentado erro em sua configuração, o que impossibilitou que os professores pudessem respondê-la devidamente, sendo, assim, desconsiderada na análise.
Na unidade de ensino selecionada, há, no quadro de professores, 7 docentes que atuam com Matemática e, destes, 5 contribuíram na coleta de dados, correspondendo a 71% de participação. Entre os participantes, 4 são do sexo masculino, o que corresponde a 80%. Para facilitar a análise dos dados, será utilizada a nomenclatura P1 a P5 para identificar a fala de cada um dos participantes.
Dos professores participantes, 80% possuem formação inicial em Matemática, ocorrida entre os anos de 2000 e 2012, conforme o Tabela 1.
Tabela 1: Ano de conclusão da graduação
Professor(a) |
Ano de Conclusão |
P1 |
2000 |
P2 |
2012 |
P3 |
2007 |
P4 |
2012 |
P5 |
2020 |
Fonte: Autoria própria
Isso é importante saber porque o contexto histórico influencia no currículo adotado que estabelece o quê e como deve ser ensinado, estabelecendo a construção de saberes diferentes. Assim, a licenciatura concluída em 2000, anterior à publicação da BNCC, promove uma formação diferente daquela cuja conclusão se deu em 2020, quando as dicussões sobre as relações em sala de aula já possuíam importantes reflexões do papel docente.
Em relação à formação continuada em nível de especialização, 4 professores sinalizaram terem realizado cursos na área da educação com foco na educação matemática. Podemos perceber que há uma preocupação dos professores em aprofundar na formação em sua área, com destaque para as que contribuam para o fazer pedagógico em sala de aula, mas sem tratar sobre a afetividade nesse processo, o que pode sinalizar a invisibilidade do tema nos debates educacionais.
Outro ponto importante na coleta de dados refere-se ao tempo em que os professores atuam em regência de classe, conforme Tabela 2. Considerando a informação anterior de que a formação inicial dos participantes teria o ano 2000 como primeiro referencial, é importante destacar que 60% atuam há mais de 20 anos em regência, o que contribui para influenciar na sua atuação. Por outro lado, apenas um docente apresentou tempo de regência abaixo de 10 anos.
Tabela 2 – Tempo em regência de classe
Tempo |
Quantidade |
1 a 10 anos |
1 |
11 a 20 anos |
1 |
21 a 30 anos |
1 |
31 a 40 anos |
2 |
41 a 50 anos |
0 |
Fonte: Autoria própria
Outro ponto a observar em relação às informações sobre o tempo em regência de classe e a formação inicial é a de que 60% dos professores realizaram a graduação em matemática após início de seu exercício docente, o que possivelmente interfere na sua prática pedagógica, influenciando nas decisões que tomam no planejamento das aulas e na forma de ensinar.
Além dos dados referentes ao perfil pessoal e profissional dos participantes, ponto fundamental da coleta corresponde à questão principal deste artigo, referente à cognição e afetividade no ensino da matemática e a formação continuada dos professores. Para isto, foi perguntado ao professor se sua formação inicial contemplou os temas cognição e afetividade no ensino, obtendo como resposta que somente o professor cuja formação inical foi concluída em 2020 teve os temas abordados, o que demonstra a atualidade da discussão no ensino superior. A ênfase dada aos aspectos cognitivos permearam a formação da maior parte dos professores, ficando os aspectos afetivos sem visibilidade no seu processo de formação, o que pode contribuir para a não percepção da importância da afetividade no trabalho em classe.
Dantas (1992, p. 90) define a afetividade como uma fase do desenvolvimento do ser humano desde seu nascimento, que mantém uma reciprocidade com a inteligência, influenciando-se mutuamente, mesmo que diferentemente durante os vários estágios de vida, compreponderância de um ou outro, mas sempre integrados. Assim, no processo de ensino, o reconhecimento da relação entre cognição e afetividade pode favorecer o trabalho realizado pelo professor.
Em relação às perguntas relacionadas à questão de pesquisa, os particpantes, ao serem questionados sobre como são considerados os aspectos cognitivos e afetivos no momento de planejamento, demonstram que a centralidade do entendimento sobre o processo de ensino ainda permanece nos aspectos cognitivos, conforme registros a seguir:
“De acordo com o nível de conhecimento prévio de cada turma”. (P1)
“Instrumentos de coleta de dados socioeconômicos dos estudantes. Análise individual das características de cada aluno. Ciência da condição heterogênea da classe. Promoção de atividades diagnósticas”. (P4)
“Toda abordagem sobre uma temática, tem-se o uso inicial do material didático como recurso orientador, uma vez que se considera toda seleção de conteúdos factuais e procedimentais. Depois, tenta-se adequar a realidade da turma, onde são considerados objetivos de aprendizagens, metodologia, quais recursos usar e como tornar o ensino mais contextualizado que possa se sobressair sobre uma perspectiva que vá além do ensino que só traga exemplos. Contudo, toda turma ela traz um cenário diferente que o professor precisa respeitar e flexibilizar o seu planejamento para que de forma geral consiga desenvolver o seu trabalho”. (P5)
Vale destacar que a pesquisa não tem o objetivo de julgar a postura profissional do professor, mas de compreender se este percebe ou não as relações constituídas entre a cognição e a afetividade no processo de ensino, de forma a trazer à visibilidade a necessidade de mobilizar ações de formação continuada que possibilitem ao profissional perceber a afetividade nesse processo de ensinar e de como as relações afetivas contruídas em classe contribuem para a aprendizagem.
É importante salientar que os aspectos cognitivos também são fundamentais para o processo de ensino e de aprendizagem, não se tratando de uma discussão em prol de que um aspecto seja mais favorecido que outro, mas, sim, de que sejam trabalhados em conjunto, indissociáveis. Rosso (1998, p. 89) aponta que “todas as formas de conhecimentos, como também a construção das estruturas mentais, dependem direta ou indiretamente da experiência do indivíduo com o meio físico ou social”, evidenciando que os conhecimentos prévios dos estudantes devem ser o ponto de partida do processo de ensino.
Buscando um aprofundamento sobre a questão abordada anteriormente, foi perguntado aos professores quais aspectos são considerados mais importantes no momento de planejamento, a fim de reconhecer se os aspectos cognitivos são considerados no planejamento. Nas respostas obtidas, podemos identificar que apenas um dos participantes demonstra preocupação quanto aos aspectos cognitivos, enquanto os demais citam apenas questões relacionadas à cognição entre os considerados no seu planejamento.
Esse resultado retrata a pouca compreensão do professor sobre a indissociabilidade entre a cognição e a afetividade, por ser esta a mobilizadora do interesse em aprender. Piaget destaca isso ao dizer que o afeto influi na inteligência, pois considera que “sem afeto não haveria interesse, nem necessidade, nem motivação; e conseqüentemente, perguntas ou problemas nunca seriam colocados e não haveria inteligência. A afetividade é uma condição necessária na constituição da inteligência” (PIAGET, 1962, p. 32 apud ULLER; ROSSO, 2019, p. 200).
Isso fica evidente na pergunta seguinte, quando os professores são questionados sobre suas percepções sobre a afetividade no processo de ensino, em que demosntram compreender a afetividade como algo externo, observável e fora do processo de ensinar e aprender. O P4, por outro lado, evidencia que “no processo de ensino, principalmente na área de exatas, não é comum que o professor estabeleça relações de afetividade com a turma. Na maioria das vezes, a relação afetiva nem sequer é construída”. Sua resposta destaca que possui compreensão sobre a afetividade como um estímulo interno que ocorre nas relações estabelecidas em sala de aula, ao mesmo tempo que aponta a dificuldade na contituição das relações em sala de aula devido à prevalência dos aspectos cognitivos.
Sobre isso, Piaget (1989, p. 69-70) apud Rosso (1998, p. 81) destaca que “a afetividade constitui a mola das ações das quais resulta, a cada nova etapa, esta ascensão progressiva, pois é a afetividade que atribui valor às atitudes e lhes regula a energia”. Portanto, não é possível dissociar a afetividade da cognição, pois esta fornece os meios e define os fins, enquanto a primeira mobiliza a cognição a buscar novos saberes.
Quando questionados sobre a formação continuada de professores sobre os temas cognição e afetividade, 80% indicaram a pouca realização de formações sobre os temas, reconhecendo a necessidade de “aprimoramento contínuo” (P5), inclusive destacando ser “ainda insuficiente nos programas de licenciatura” (P4). Percebemos que existe uma preocupação grande por parte do corpo docente de formação continuada que abranja a aquisição de novos processos metodológicos como forma de melhorar o ensino. No entanto, a afetividade ainda não obteve uma visibilidade devida nos cursos.
Em relação ao questionamento “Você considera que sua atuação docente poderia ser melhor se possuísse formação sobre afetividade no ensino? Por quê?”, os participantes da pesquisa sinalizaram reconhecer a importância da formação sobre o tema ao afirmar que “tudo começa com o afeto, se existe amor pelo outro, existe interesse em seu sucesso” (P2), “porque teríamos conhecimento teórico fundamentados para atuar na prática docente sobre o tema” (P4) e “a todo momento nos encontramos com situações singulares que vão além da nossa competência básica docente, uma vez que tem-se diversas circunstâncias que dificultam identificar o que nossos alunos estão passando” (P5).
Podemos averiguar que os professores apresentam um entendimento controverso do que representaria a formação sobre afetividade no processo de ensino, pois se referem à afetividade como algo externo, sem a percepção de que o professor também faz parte do processo de construção das relações que deverão compor uma sala de aula.
Romper com concepções tão enraizadas não é nada fácil, pois são fruto das formação pessoal e profissional do professor. A BNCC (BRASIL, 2018, p. 14) destaca que é necessário quebrar “com visões reducionistas que privilegiam ou a dimensão intelectual (cognitiva) ou a dimensão afetiva”, pois o estudante deve ter uma formação humana global.
Além disso, Nóvoa (2002, p. 59) infere que a formação continuada pode contribuir para provocar as rupturas necessárias no ensino, promovendo o desenvolvimento profissional dos professores. Para ele:
(...) falar de formação contínua é falar de uma autonomia contextualizada da profissão docente. Importa valorizar paradigmas de formação que promovam a preparação de professores reflexivos, que assumam a responsabilidade do seu próprio desenvolvimento profissional e que participem como protagonistas no desenvolvimento das políticas educativas” (NÓVOA, 2002, p. 59)
Portanto, promover a formação continuada de professores pode estabeleccer um caminho de construção de uma visão integrada dos aspectos cognitivos e afetivos no processo de ensino, fortalecendo as relações entre estudantes e professores e entre seus pares, em prol de uma educação de qualidade.
Os professores percebem, no decorrer de sua atuação profissional, a necessidade de estarem aperfeiçoando sua prática, geralmente por meio de formações que tratam de novas metodologias ou estão relacionadas ao processo de aprendizagem. O objetivo é melhorar enquanto professor, incluindo inovações na forma de ensinar.
No entanto, por vezes, não compreendem que o principal fator da aprendizagem não se encontra na metodologia e, sim, nas relações afetivas construídas pelos estudantes entre seus pares e entre estes e o professor, cuja mediação é imprescindível.
Dessa forma, torna-se importante ao professor conhecer as teorias que tratam sobre a cognição e a afetividade no ensino, por meio da formação continuada a fim de garantir a discussão entre pares, cujo processo não é muito diferente daquele que ocorre na sala de aula, entre os estudantes.
As teorias defendidas por Wallon e Vigotsky são bases fundamentais nesse processo de formação, por possibilitarem ao professor compreender como planejar aulas que promovam o desenvolvimento integral do estudante, estimulando-o na troca de experiências, na construção dos processos cognitivos significativos para seu progresso enquanto estudante e ser humano social.
Por fim, é necessário destacar que a BNCC propõe que o ensino ofertado aos estudantes também possua a base na afetividade, por reconhecer não ser possível separar o cognitivo do afetivo, pois o ser humano é um todo e precisa ser tratado como uma pessoa completa, e daí ser imprescindível o trabalho docente a partir dessa perspectiva, a fim de garantir um ensino que promova de fato a aprendizagem.
O grande desafio do professor é manter o equilíbrio entre a racionalidade e a emoção, de forma a ser um mediador do processo de ensino que visa auxiliar o estudante a estabelecer suas relações com o mundo do qual faz parte, compreendendo e intervindo para promover a melhoria do seu próprio ser e de sua interação com o meio social e ambiental.
Assim, o professor deverá estar preparado para compreender como favorecer esse processo, levando em consideração os fatores biológicos, afetivos e sociais que constituem o ser humano e os modos de sua aprendizagem.
A partir dos dados coletados com os professores de uma escola da rede estadual do interior da Bahia, pudemos perceber que a compreensão sobre a importância da afetividade no processo de ensino possui uma lacuna que necessita de intervenção, pois os professores não se percepem fazendo parte das relações que ocorrem em sala de aula, tratando os aspectos afetivos como algo externo a suas atitudes em classe.
Além disso, a formação do professor não contemplou estudos sobre a afetividade, o que pode ocasionar sua dificuldade em reconhecer sua influência e importância nas relações necessárias ao processo de ensino e de aprendizagem. Ele, o professor, teve sua formação centrada no desenvolvimento intelectual, sem valorização das relações afetivas, o que provavelmente pode estar sendo reproduzido em sua vida profissional.
Dessa forma, romper com as concepções internalizadas em seu processo de formação perpassa por uma reconstrução de conceitos que não é um processo fácil de ser gerido. A formação continuada, portanto, poderia contribuir para facilitar esse processo de reanálise de sua atitude frente às relações afetivas em sala de aula. Isso porque, no espaço escolar, as relações ficam mais estreitas devido ao contato diário entre estudantes e entre estes e os professores, contribuindo para a reflexão da prática docente.
Ademais, a formação de educadores poderá contribuir para a desconstrução da dicotomia entre cognição e afetividade, possibilitando o entendimento de que o estudante é um ser global, cujo desenvolvimento não pode contemplar o aspecto cognitvo e desconsiderar o afetivo ou vice-versa, pois ambos são indissociáveis. Não se pode formar um sujeito integral sem considerar os dois aspectos e suas relações no processo de ensino e de aprendizagem.
Por fim, este artigo não possui a pretensão de considerar a formação continuada como a solução definitva dos problemas relacionados à compreensão do professor sobre a importância da afetividade no processo de ensino, pois estaríamos cometendo um erro grave. O que propomos é uma reflexão sobre como a formação continuada poderá contribuir para o entendimento da afetividade no processo de ensino e melhoria da prática pedagógica dos professores, especialmente para aqueles cuja formação inicial não contemplou as discussões sobre os aspectos afetivos.
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