Metadados do trabalho

Da Fala Egocêntrica Como Fenômeno Argumentativo E Problematológico

Isabel Cristina Michelan de Azevedo; Jameson Thiago Farias Silva

O presente artigo propõe uma leitura do fenômeno da fala egocêntrica – tal como descrito por Lev Vigotski – como um fenômeno argumentativo e problematológico, embora mobilizado por um único locutor empírico. Esta investigação teórica parte do pressuposto de que não apenas a enunciação é polifônica, mas o é também a própria atividade psicológica implicada no ato de fala. A linguagem, nesta esteira, seria um instrumento de pensamento e o problema da relação pensamento-linguagem é o problema de considerar certas modalidades do discurso concreto, nomeadas de egocêntricas, como ferramentas para colocar problemas e encaminhá-los. Assim, partindo de uma concepção da clínica psicológica como um setting de fala egocêntrica e de pressupostos teóricos da Problematologia de Michel Meyer, pretende-se fornecer subsídios metodológicos tanto para a melhor compreensão do fenômeno linguístico, monologal, da fala egocêntrica, quanto das funções egocêntricas e problematizantes do discurso.

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AZEVEDO, Isabel Cristina Michelan de; SILVA, Jameson Thiago Farias. Da Fala Egocêntrica como Fenômeno Argumentativo e Problematológico. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2023 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/581-da-fala-egoc%C3%AAntrica-como-fen%C3%B4meno-argumentativo-e-problematol%C3%B3gico. Acesso em: 16 out. 2025.

Da Fala Egocêntrica como Fenômeno Argumentativo e Problematológico

Tomando como ponto de partida uma analogia entre língua e arte, Vigotski (1999) ilustra certa crítica artística e certa psicologia da arte que buscarão, na obra tematizada, o seu “conteúdo”; nesta perspectiva intelectualista da arte e da linguagem, a forma nunca diz o que diz, mas designa sempre uma outra coisa: a arte como forma específica de conhecimento, como modo de expressão de uma ideia, de um significado, tal qual a ciência, a prosa ou a geometria. A este divórcio entre a ideia da obra e sua forma externa, Vigotski opõe certa noção da arte como procedimento, noção esta que encontrará seu ponto alto no formalismo de Chklovski. Enquanto o intelectualismo ignora o problema da especificidade formal da arte, o formalismo considerará a arte, justo, exclusivamente como forma.

Em relação à linguagem, a formulação dessas ideias, iniciada nos primeiros anos de estudos acadêmicos em Gomel, está associada aos estudos dos trabalhos de Humboldt, Potebnia e Shpet também relativos às relações entre língua e arte, mais especificamente, entre a atividade e o desenvolvimento da língua, além dos estudos psicológicos sobre a reação estética e às relações entre pensamento e linguagem (Veresov, 1999). Vigotski assume como diretriz a ideia humboldtiana de que a linguagem é dinâmica e responsável pela mediação entre fenômenos externos e impressões internas, tornando-se um processo cuja atividade tem como finalidade a constituição do pensamento. Isso porque, para Humboldt, “[...] o processo da linguagem na sua mais ampla extensão, não [se dá] meramente na relação desta com a fala e com o estoque de seus elementos de palavras, como sua criação imediata, mas também na sua relação com a capacidade de pensar e sentir” (Humboldt, 2006: 5).

Em seguimento a essas ideias, Potebnia explicava que a vida real de uma palavra se realiza quando é produzida na fala por se tornar um ato de pensamento. Assim, o pensamento é tanto uma atividade interna e totalmente subjetiva quanto um algo externalizado com certa objetividade. Desse modo, quando a palavra é expressa se torna um objeto externo e um meio para objetivar seu pensamento, embora o pensamento nunca possa ser considerado totalmente pronto ou acabado - por isso, concebia que a palavra é um meio para transformar impressões e produzir um pensamento novo. Essa concepção colaborou com a visão de Vigotski de que o pensamento não está corporificado na palavra, mas é realizado e formado a partir dela, ou seja, o pensamento não encontra simplesmente sua expressão na fala, ele encontra sua realidade e forma (Naumova, 1993). No livro Pensamento e Linguagem, Potebnia insiste que a forma interna de cada uma das palavras dirige o nosso pensamento de forma diferente, por isso o atributo dominante de uma palavra funciona na nossa consciência como uma representação parcial ou como um sinal do objeto que se quer representar (Potebnja, 1976 como citado em Fizer, 1986).

O conceito de Potebnia a respeito da palavra, concebida “[...] como um microcosmo de pensamento, como um instrumento do mundo interior construído do homem, foram posteriormente refletidas tanto no primeiro livro de Vigotski, Psicologia pedagógica, quanto no último, Pensamento e linguagem [no original: Thinking and Speech]” (Veresov, 1999, p. 49, tradução nossa), escrito por Vigotski em 1934.

Ao frequentar palestras e encontros acadêmicos com Shpet na Universidade de Moscou, na década de 1920, Vigotski pode refletir acerca dos meios para combinar os sentidos individuais e os significados sociais. Shpet afirmava que um fenômeno cultural é objetivo, mas dele também participa uma atitude consciente ou inconsciente de construção de sentido. Ocorre assim uma co-significação que decorre da articulação entre as realizações históricas e as respostas/experiências subjetivas (Veresov, 1999). Também é relevante retomar que a discussão acerca da forma interna da palavra, realizada por Shpet, apoiada em Humbolt e Hegel, considerava que a “palavra” é o princípio de constituição da relação do homem com o mundo, por isso colabora com a compreensão do indivíduo e da sua expressão na linguagem, bem como apoia a noção de conhecimento tomada como compreensão, por isso se considera que ele produz fundamentos para uma ciência da compreensão. Como, para Shpet, a compreensão humana muda o status da própria realidade, por ser a realização dinâmica do sentido através da forma interna da palavra como signo, a interpretação pode ser entendida como meio de compreensão. Pode-se afirmar, assim, que a forma interna da palavra se constitui como um conjunto de regras por meio das quais o pensamento assume forma expressiva e como meio para dar à consciência conhecimento do mundo objetivo (Poole, 2013). Potebnia tratou especificamente das relações entre arte e palavra, enquanto Shpet aprofundou a noção de forma interna da palavra em associação com o ambiente cultural, e ambos contribuíram com a construção dos fundamentos básicos da teoria da consciência humana por Vigotski. 

Entendemos que, de um lado, Vigotski propunha uma crítica que, levada a seu extremo, não estabelece diferença entre prosa e verso, entre discurso cadenciado e não-cadenciado; por outro, a crítica que centra a atenção no fato de que a arte perde o seu efeito estético caso se lhe destrua a forma. O por-assim-dizer formalismo vigotskiano recusa prontamente as abordagens que leem como idênticas, por exemplo, distintas versões da despedida de Heitor e Andrômaca, seja na poesia da Ilíada ou cantada ao som de um instrumento ou narrada em prosa num artigo científico ou adaptada para uma película cinematográfica etc. etc. visto expressarem o “mesmo”, a “mesma coisa”. Também recusa as abordagens que organizam as emoções humanas em tabelas e que interpretam a tristeza de Púchkin ao relatar a separação de um amor exclusivamente a partir dos versos iâmbicos que compõem o texto, ou atribuem a alegria e comicidade de seu Conde Nulin ao uso do troqueu, ou identificam que a tristeza produzida por uma música reside tão só no uso que faz de escalas dóricas e frígias. Ambas as abordagens deixam de tematizar a relação necessária, a interfuncionalidade, entre o procedimento, a forma, e o conteúdo que agencia. 

Embora dialogue com a recusa do intelectualismo desenvolvida pela teoria formalista, Vigotski é crítico ao afirmar que o formalismo “mostra-se totalmente incapaz de revelar e explicar o conteúdo psicossocial historicamente mutatório da arte e a escolha do tema, do conteúdo ou do material condicionado àquele conteúdo” (Vigotski, 1999, p. 79). É de fato a discussão psicológica e a fortiori linguística da obra vigotskiana que tomamos por referência neste artigo, mas o recurso à psicologia da arte realizada pelo autor tem seus porquês: a primeira fase da obra de Vigotski é estética, inteiramente voltada à crítica artística e literária, e sua relação inicial com o formalismo e mesmo com a linguística se dá nesse contexto; mais importante, é aqui que reside, a partir de Vigotski, o princípio metodológico para uma psicologia (da arte, mas não só) que fuja ao mesmo tempo do idealismo metafísico e do materialismo ingênuo - afinal, o problema da relação forma-conteúdo presente na arte espelha outro problema caro à teorização vigotskiana, o da relação forma-conteúdo do pensamento ou, noutros termos, o da relação pensamento-linguagem: o sonho se recusa a ser narrado e encadeado logicamente pelo sujeito em vigília; uma questão aritmética, embora possa ser expressa em prosa cotidiana, parece pedir uma “gramática” muito sua; ou seja, a relação entre o conteúdo da consciência e a forma que assume não é análoga à relação mecânica entre um recipiente e o líquido que envasa (Vigotski, 1933/2013). 

A linguagem, para Lev Vigotski (1924/2011), será um instrumento de pensamento, do mesmo modo que os dedos da mão são instrumentos matemáticos quando uma criança se defronta com uma questão aritmética que não é capaz de dar conta imediatamente; usa os dedos para somar sete e dois, por exemplo; quando a soma aritmética excede a quantidade de dedos que possui, a criança, para resolver a equação, precisa dos dedos de um colega, usar os dedos de seus pés, criar um sistema de contagens usando objetos, dentre outras possibilidades de ação. O adulto que interroga a tela de projeção durante os momentos duvidosos do filme, grita com a TV durante uma partida esportiva, faz rabiscos e grafismos pouco legíveis durante uma aula complexa e amarra um cordão colorido em seu indicador para lembrar de tirar as roupas do varal também ilustrariam esta relação entre signo e consciência, para o autor. Não se trata da questão da referencialidade, nem do problema da estruturação do mundo pela estrutura da língua - onde estaríamos, de partida, com Humboldt, Potebnia ou Sapir, mas não com Vigotski. Colocar o problema da relação pensamento-linguagem, em Vigotski, é considerar certas modalidades do discurso concreto como ferramentas para colocar problemas e encaminhá-los. É nesses termos que Vigotski discutirá o fenômeno da fala egocêntrica, em especial nas suas teses defectológicas (1924/2011, 1929/2012a, 1924/2012b e 1931/2012c).

O termo defectologia (ru. дефектология), hoje, poderia ser traduzido por educação inclusiva, um tema que muito mobilizou Vigotski na primeira metade da década de 1920. Os problemas de bases da defectologia vigotskiana consistiam na adequação de alunos portadores de dificuldades específicas de aprendizado, como a cegueira e a surdo-mudez, a espaços de aprendizagem que demandam a visão, a audição e a fala, por exemplo. A partir desses problemas, Vigotski pensará o desenvolvimento não só na esfera filogenética, da adaptação da espécie, nem pelo plano do desenvolvimento biológico de um organismo específico, mas pela apropriação, por parte desse organismo, de uma história de signos e instrumentos técnicos mais antiga do que ele.

As pesquisas linguísticas do conceito vigotskiano de fala egocêntrica costumam abordar do fenômeno o seu caráter regulador (da ação que o acompanha), seu não-endereçamento a um interlocutor, a assimilação fonética e sua tendência à abreviação, além do etapismo fala socializada linguagem interior (Morato, 1991, 2000; Junefelt, 2007; Morais & Sasso, 2016), o que leva tais análises a definir o fenômeno não só como monologal, mas como monológico, e a opor a comunicação e a subjetivação operadas pelos atos discursivos como funções distintas e isoladas - a fala egocêntrica não parece ser considerada a partir de sua função instrumental, ignorando a análise vigotskiana dos processos psicológicos “pela necessidade”. 

Assim, o presente artigo propõe a seguinte consideração: ler o fenômeno da fala egocêntrica como uma conversação argumentativa e problematológica que teria como proponente e oponente o mesmo locutor empírico, numa abordagem do fenômeno que não o considere um “tipo” específico de fala, mas um efeito da linguagem, sempre dialógica - ainda que nem sempre dialogal: Pedro fala a João sobre querer largar o seu trabalho; escuta de João que deveria manter seu vínculo com a empresa pois, em seu campo de atuação, está difícil encontrar um emprego que pague tão bem – temos aí uma conversação dialogal (pois implica dois locutores) e dialógica (pois implica dois enunciadores, dois pontos de vista); num cenário em que João se pergunta se deveria largar o trabalho e, no instante seguinte, renuncia ao pedido de demissão, temos um monólogo, um texto monologal mas, ainda assim, dialógico (pois a tensão dos dois pontos de vista permanece). Propomos a fala egocêntrica como um fenômeno de natureza semelhante ao do segundo caso.

A premissa diretriz aqui é a de que o pensamento, assim como a enunciação, é uma atividade dialógica; ao estender as noções de polifonia e de intertextualidade – caras ao campo da literatura pós-Bakhtin e às teorias da enunciação – à fala egocêntrica, é possível sustentar que não apenas a enunciação é polifônica, mas o é também a própria atividade psicológica implicada no ato de fala - não mais uma entidade mental unitária, mas pluralidade discursiva.

A partir da compreensão vigotskiana do fenômeno da fala egocêntrica, intentamos revisar o espaço clínico psicológico, o setting terapêutico, como um espaço comunicacional entre analista e analisando, decerto, mas a fortioti como um espaço de agenciamento da fala egocêntrica do analisando. Logo, a função do terapeuta não seria de escuta do discurso de seu interlocutor, não seria a de encarnar um papel actancial pré-determinado, mas de corte da comunicação. Ou seja: o terapeuta assume uma função primária, não ser um tu, um alocutário, não o genérico acolhimento do eu do outro, mas explicitar para o outro, com este outro, os muitos enunciadores, os muitos eus, que compõem dialogicamente o (problema tematizado pelo) sujeito clínico.

Pode-se questionar nossa proposta a partir do destaque de alguns pontos: há elementos de polifonia no discurso de um analisando, mesmo egocêntrico? Como se apresentam? É possível analisar tal discurso egocêntrico como um fenômeno dialógico e mesmo argumentativo? Entendemos que, se para Vigotski pensar é falar consigo mesmo com um objetivo dado, é traduzir um problema do plano do corpo para o plano do discurso (1924/2011), há um percurso ou estrutura para esse diálogo consigo. Isso pode ser produzido ou potencializado por outrem, bem como pode ser produzido ou potencializado pelo próprio sujeito.

Pretendemos, assim, ampliar a compreensão do fenômeno da fala egocêntrica para além da sua topografia habitual de “falar sozinho” e entendê-lo como um efeito subjetivante da linguagem. Isso nos interessa porque nos leva a operacionalizar o espaço clínico como zona de fala egocêntrica. Queremos discutir também o que deve ser a fala do analisando para que opere egocentricamente, isto é, para que use da linguagem como ferramenta que coloque e encaminhe problemas. Em contraparte, nos inquietamos com a atitude do analista, enquanto alocutário do discurso do analisando, para que a fala deste opere egocentricamente. Embora teórico, este artigo busca organizar procedimentos metodológicos para a resolução dessas inquietações. 

Na sequência deste texto, será encontrada uma articulação das ideias de Vigotski com as teorias da enunciação e a Problematologia de Michel Meyer, pretendendo tanto confrontar o autor com um conjunto de problemas exteriores à sua psicologia (visando extrair de sua obra consequências não explicitadas textualmente) quanto deslocar e desenvolver, a partir desta articulação, algumas categorias de análise do campo da argumentação, espraiando tais teses prontamente aos estudos linguísticos, à clínica e, mesmo, à prática pedagógica.

 

Vigotski, a instrumentalidade da linguagem e a relação signo-psiquismo

Antes de sistematizar as pistas linguísticas para uma análise de intervenções e relatos dentro de um contexto clínico, o cotejo com o texto russo se faz necessário para explicitar a especificidade desta relação instrumental entre o pensamento e a linguagem, em Vigotski. Para tanto, tomaremos algumas colocações pontuais feitas pelo autor em seu A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal (ru. Дефектология и учение о развитии и воспитании ненормального ребенка).

Sobre a linguagem, em específico a linguagem egocêntrica operada pela criança nos experimentos promovidos por Vigotski, este autor ressalta que “é uma importante função do discurso interior, uma vez que ela planeja o comportamento” (1924/2011, p. 865). Linguagem egocêntrica, fala egocêntrica, é tradução de эгоцентрическая речь; ora, речь, aquilo que a criança utiliza para planejar a sua conduta (“планирует его поведение”, 1934/1983, p. 168) não é a linguagem reificada da gramática ou do cognitivismo clássico, não é a linguagem-objeto a que o saussuriano chama de langue, mas é discurso concreto. Salientamos que mesmo fala, embora se apresente como uma melhor equivalência à речь do que o opaco linguagem, não é a equivalência perfeita de речь, visto que, no contexto da discussão vigotskiana, речь também poderia apontar para qualquer outra atividade linguageira capaz de operar egocentricamente, como a escrita.

Quanto ao caráter instrumental desta linguagem, tomamos o já citado exemplo vigotskiano da criança que utiliza das mãos como recurso auxiliar na resolução de uma questão. As mãos, “que não possuem relação direta com a pergunta, adquirem significado de instrumento assim que a execução da tarefa pelo caminho direto se mostra impedida para a criança” (1924/2011, p. 864). A instrumentalidade adquirida pelas mãos da criança é comparável ao uso da palavra pelo sujeito diante de um problema, isto é, é comparável à própria fala egocêntrica. Adquirir significado de instrumento (“значение орудия”, 1934/1983, p. 166) é tornar-se ferramenta em sentido literal: орудия é o genitivo de орудие, орудие труда – isto é, ferramenta de trabalho. A fala, egocêntrica, torna-se ferramenta, seja no sentido de ser instrumento seja no sentido de ser a condição material sem a qual uma atividade não pode se dar. Não mais ferramenta de comunicação, mas de pensamento, consequentemente de conhecimento de si.

Por fim e na esteira da discussão sobre a linguagem como instrumento (de quê?), a concepção vigotskiana de pensamento. Se linguagem dá ao brasileiro-falante-de-português a ideia imediata de código, de sintaxe, pensar nos dá a ideia de mente. Para um russo, no entanto, речь é discurso, ato concreto de fala, enquanto мышление é a capacidade de entender e resolver problemas – logo, fazemos notar, o problema da relação pensamento-linguagem, para nós e para um russo, são dois problemas distintos. Por um lado, temos a questão do enquadramento das representações mentais pela gramática de sua língua; por outro, mais afeito à discussão vigotskiana, a questão dos efeitos do ato de falar, escrever etc. na resolução de problemas, na percepção do mundo, no modo como lembramos e, mesmo, nos desenvolvemos.

Ao definir o pensar como um usar da linguagem e se afastar da concepção piagetiana da linguagem egocêntrica, Vigotski segue a fórmula de Claparède – ainda hoje uma referência central para a psicologia funcionalista e um dos grandes antecedentes da chamada Escola Nova, o genebrino formula uma teoria da consciência e da aprendizagem na qual atrela a ação a uma necessidade, uma intenção. Esta relação funcional entre uma conduta e o problema a que supre é presença constante em Vigotski, que concebe os processos psicológicos como atividades: entendê-las em sua estrutura e gênese é entender os problemas a que tais atividades remetem. Afirmará: pensamos quando “procuramos compreender em palavras”, quando “traduzimos a operação do plano das ações para o plano verbal à medida que aprendemos a adaptarmo-nos, conforme deparamos com dificuldades em nosso comportamento” (ca. 1924/2011, p. 866). . Podemos esquematizar essa citação da seguinte maneira: longe de ser a mobilização de uma substância metafísica a ocupar um corpo e um mundo materiais, um imperium in império, pensar é:

  1. deparar-se com “dificuldades em nosso comportamento” (трудности в нашем поведении);
  2. traduzir a operação “do plano das ações para o plano verbal” (из плана действий в план вербальный) e
  3. aprender (научиться), adaptar (приспособление, adaptação),

sendo [a] a situação problemática que torna necessário este uso específico do discurso a que chamamos de pensamento, e sendo [b] e [c] os efeitos concretos e interrelacionados deste discurso.

 

Esta discussão geral sobre a instrumentalidade da linguagem em Vigotski ganha corpo na análise que o autor realizou acerca dos métodos tradicionais para o estudo do desenvolvimento dos conceitos na criança.

Os métodos para o estudo do conceito podem ser divididos em dois grandes grupos: os métodos da definição e os métodos de estudo da abstração (Vigotski, 2009, p. 151ss). Os métodos da definição buscam investigar os conceitos já formados na criança a partir da definição verbal que ela dá de seus conteúdos; já os métodos de estudo da abstração visam aos processos psicológicos que fundamentam o processo de formação de conceitos, a exemplo dos experimentos que pedem à criança que generalize o elemento comum a uma série de impressões concretas. O primeiro conjunto de métodos, explica Vigotski, estuda bem mais o produto que o processo de formação dos conceitos, bem mais a experiência verbal da criança que o seu pensamento propriamente dito; já o segundo grupo simplifica o processo de abstração ao ignorar o papel da palavra no processo de formação dos conceitos. Em todo caso, os métodos tradicionais “caracterizam-se igualmente pelo divórcio da palavra com a matéria objetiva; operam ou com palavras sem matéria objetiva, ou com matéria objetiva sem palavras” (Vigotski, 1934/2009, p. 153). É necessário um método que estude não os conceitos prontos, mas o processo de sua formação, a realidade viva a que o conceito se correlaciona e, claro, a modalidade específica de relação do sujeito com a palavra através da qual o conceito surge.

Vigotski (1934/2009, 1926/2010) chama de imagem sincrética a articulação primária, primitiva, infantil entre atividade de pensamento e discurso no que toca à competência designativa. A imagem sincrética se assemelha bem mais a um amontoado instável de elementos mistos do que a um conceito autêntico. Os objetos que compõem este embrião-de-conceito são escolhidos ao acaso por intermédio de “provas” que se substituem mutuamente à medida que novos elementos passam a compor a imagem sincrética, sendo revestidos de um significado comum por uma semelhança nada objetiva que entre eles se estabelece nos sujeitos. 

Os usos do embrião-de-conceito instauram uma nova série sincrética e representa um grupo de objetos anteriormente unificado na percepção da criança ou do comentador, mas todos esses elementos juntos não guardam nenhuma relação interna entre si. Assim, não há diálogo possível no registro sincrético, pois tal modalidade conversativa demanda certa estabilidade que não encontrará, aqui, seus instrumentos. Essa imagem estável, este signo-instrumento argumentativo será, justo, o conceito, instrumento que ainda não existe, no sincretismo infantil. O que vai caracterizar a conduta e o pensamento humanos é o conceito em sua forma autêntica, verbal: o papel decisivo do conceito científico para a tomada de consciência, entendida como o emprego voluntário das funções discursivas na tradução do acontecimento problemático para o plano verbal (Vigotski, 1926/2010, p. 532ss).

É possível conceber, a partir de Vigotski (1933/2013), certa relação dialética da argumentação, do ato de argumentar, com o que chamará de conceito científico. O processo de formação dos conceitos no sujeito é idêntico ao processo de solução de algum problema que se coloca para este sujeito; o oponente de uma situação argumentativa, assim sendo, é não apenas um locutor empírico que encarna um papel actancial, mas o interlocutor necessário desta ontogênese do conceito – “ensinar” se torna menos expor proposições, delimitar fórmulas e explicitar os elementos componentes daquela conversação específica, e mais criar condições e problemas concretos para o argumentar, para o uso desses instrumentos de pensamento e para a conquista de uma realidade pública para além da experiência empírica individual e do palavreado através do qual, cotidiana e espontaneamente, o sujeito lida com o mundo.

Tal qual o estabelecimento de um acordo consensual entre debatedores, a solução de um problema previamente posto deve necessariamente possuir como processo constituinte uma cadeia dialógica e a fortiori argumentativa, ainda que tal solução seja produzida num monólogo solitário, numa introspecção silenciosa ou pela fala egocêntrica da criança. Assim como o pensar, para Vigotski, seria a interiorização do discurso egocêntrico, agora silenciado (1924/2011; 1934/2012d, cap. ii), o conceito científico é atividade argumentativa reificada, introjetada: a conversação argumentativa como sendo tanto o espaço privilegiado para a formação dos conceitos quanto a relação de comunicação operada com esta modalidade linguística específica que é o conceito (1934/2012d, cap. vii; 1933/2013).

Entendemos, então, que o conceito científico vigotskiano – ou, melhor dizendo, a cientificidade do conceito para Vigotski – não está nele, não está em sua veracidade; o conceito científico não estabelece com outros termos uma relação tipológica, de oposição, no sentido de que um termo x designado como verdadeiro é científico em si e outro termo y, falso, não o é; o conceito científico é aquilo mesmo que possibilita a argumentação – é um uso da linguagem que torna o sujeito permeável à experiência, e uma linguagem ela mesma que é flexível e adaptável à experiência. Na classificação que Vigotski faz dos conceitos (os vários tipos sincréticos, os vários tipos espontâneos e o conceito científico ele mesmo) é importante ver que Vigotski descreve os termos a partir do uso que o sujeito faz dessas noções – ou, em termos fenomenológicos, da relação sujeito-mundo que o conceito estabelece. A própria questão piagetiana, representacionista, sobre o período em que acontece a aquisição da argumentação pela criança pode ser posta como incorreta e mal colocada. Sob a ótica vigotskiana, enunciativa, não é a criança que, de posse da linguagem, aprende a argumentar; é a própria linguagem que é argumentativa.

A fim de aprofundar essa proposição, optamos por tomar a argumentação a partir dos trabalhos de Michel Meyer, visto que a análise das necessidades sugerida por Vigotski (1933/2008) é, a sua própria maneira, uma problematologia das funções psicológicas e de seu processo de desenvolvimento - aí incluso o discurso. Neste sentido, faz-se necessário, ao articular Vigotski com os estudos linguísticos, buscar interlocutores que não apenas considerem o caráter argumentativo dos enunciados, mas que considerem, de maneira mais ou menos direta, que falar, escrever, argumentar equivale a responder, e responder é suscitar uma questão (o que não equivale a, necessariamente, responder de modo explícito a uma sentença interrogativa). Para Meyer (1998, 2007), a linguagem é a manifestação da diferença entre a questão e a resposta, uma relação estruturante do próprio pensamento, e a comunicação se dá ao colocar em curso a diferença problematológica, particularizada por meio da linguagem.

 

Argumentação e Retórica em Meyer

Tomemos um exemplo habitual nos textos de Meyer: ao falar que “Napoleão foi o vencedor de Austerlitz”, o termo Napoleão condensa uma série de respostas que pressupomos quando o utilizamos. Os interrogativos desaparecem nas respostas que, por serem respostas, os anulam; mas se alguém perguntar “Quem foi Napoleão?” ou “O que aconteceu em Austerlitz?”, suscitará outras respostas (e termos): Napoleão é “quem venceu Austerlitz” e é “quem se casou com Josefina”. Ao dizer de modo significativo “O marido de Josefina foi o vencedor de Austerlitz”, marca-se a substituibilidade como critério da significação, mas o porquê de remetermos a Josefina ou a Austerlitz não está na equivalência lógica de um termo a com o termo b: encontra-se na pergunta, no problema, na questão que (nos) colocamos num contexto determinado (Meyer, 2003).

A partir de sua problematologia, Meyer também recusa – ou melhor, desloca – as discussões habituais sobre polifonia. O que lhe importa: os quem, quê, onde etc. recobrem e/ou recalcam o outro. Nesse ato, o locutor responde a uma dita questão incluindo em sua própria resposta o dizer de outros. Por exemplo: “Parece que sua mulher saiu com o mordomo” é dizer “Alguém disse que sua mulher…”; e em “Que o ano vindouro seja frutuoso pra você” é dizer “Eu desejo que o ano vindouro…” etc. Tudo isso pode ser explicado sem recorrer à polifonia linguística, pois o importante na análise problematológica não é a pluralidade de locutores; os diversos enunciadores de um discurso representam a presença expressa de alternativas de resposta que tem sua expressão com base nos interrogativos.

Essa reflexão pode ser sintetizada em sua lei básica da retórica: r¹→q¹·q², portanto r². Quando o enunciado-resposta é tomado inicialmente, infere-se um enunciado-questão que lhe é correlato; como r²→q²·r¹ (inversamente, da resposta se infere a questão remetida que encaminha ao enunciado de partida). Temos ainda que r¹→r² (o que Meyer chamará de α, relação argumentativa entre o enunciado-resposta original e o enunciado possível que dele se apreende) e r¹=r² (o β, relação retórica, figurativa entre os enunciados). Insistimos neste ponto: numa leitura retórica, r¹=r²; numa leitura argumentativa, r¹ é argumento de r²; se o locutor diz “Está frio” querendo dizer “Vista o seu casaco” estará operando retoricamente; se diz “Está frio, logo vista o seu casaco”, estará argumentando. Uma enunciação supõe que alguém se expresse e se dirija a outra pessoa – ou, em se tratando da fala egocêntrica, que um enunciador se dirija a outro enunciador, ambos mobilizados pelo mesmo locutor; r¹ não é necessariamente = r², mas o dizer de r¹ = o dizer de r². A retórica assimila r¹ a r² figurativamente, o que permite ao orador prescindir da ligação real que une r¹ a r².

Em síntese: uma resposta pode ser uma locução que de fato responde a uma pergunta formulada, mas pode não sê-lo; a resposta pode também responder diretamente ao núcleo da questão e aos termos que são utilizados, mas pode atingi-lo de maneira analógica, metafórica. A partir disso e da lei da retórica meyeriana, a resposta a um enunciado pode ser externa mas também interna, pode ser direta mas também indireta, e quatro relações podem ser desdobradas do enunciado-resposta com base na interrogatividade:

  • direta externa, pois não é figurativa, e a pergunta à qual responde é prévia à resposta - ex. “que horas são?”, “seis em ponto!”;
  • alguém que, instado por um amigo a ir ao cinema, lhe responde “tenho de estudar”, dá a ele uma resposta indireta externa, pois responde ao convite formulado de seu amigo mas não responde francamente “não”; dá no mesmo, porém: seu locutor a entende pois r¹→q¹·q²;
  • dizer a um sujeito que ele “é uma cobra venenosa” após flagrá-lo em joguetes e manipulações é uma resposta indireta (pois metafórica) e interna (pois nenhuma questão prévia foi levantada pelo interlocutor, e é o locutor que coloca a questão a que seu enunciado remete);
  • por fim, a negação freudiana, o “eu não tenho nada contra você, mas...”, é uma resposta direta e interna; a questão de minha hostilidade não se constata mas, ao dizê-la, eu a ponho.

Como já dito, o processo de formação dos conceitos no sujeito e o processo de solução de algum problema que se coloca para este sujeito são uma e a mesma sequência argumentativa ou, como dirá Vigotski (1934/2012d, 1933/2013), uma e a mesma cadeia predicativa. No caso da fala egocêntrica, monologal, esta cadeia predicativa, embora argumentativa e venha a mobilizar mais de um enunciador engajado numa “conversação”, é agenciada por um único locutor empírico que não fala visando à comunicação com um outro específico, mas que dele pode tomar elementos linguísticos para construir seu discurso interior.

Num primeiro movimento metodológico, sugerimos que o analista direcione sua atenção às questões internas que seu analisando coloca ao falar, ao estabelecer associações entre as palavras e as relações individuais e sociais. A partir dessa explicitação das questões, é possível corroborar a hipótese de que a fala egocêntrica é dialógica a partir da problematologia: é dialógica pois, no monólogo característico da fala egocêntrica, os enunciados e as questões a que remetem assumem a forma de um diálogo.

Num segundo movimento, podemos identificar que há alguns tipos de recursos retórico-argumentativo que fazem com que a fala opere egocentricamente (isto é, uma fala que, submetida a um problema, se dirige na direção da forja de um conjunto de conceitos – conceito, aqui, entendido no sentido vigostkiano). As concepções de retórica, que Meyer (1998b, 2007b) descreve em seu tríptico, são o guia para a identificação desses recursos, no sentido de balizarem, indiretamente, uma tipologia das questões e respostas:

i. dialética (questões e respostas que tomam por objeto um fato, uma factualização, e sobre este fato debatem uma contradição – procuramos saber se uma proposição é verdadeira, se um fato ocorreu efetivamente, e sua resolução é o acordo, a adesão);

ii. pragmática (questões e respostas que debatem o sentido e a qualificação de algo – debate-se não mais a verdade de um fato, mas sua interpretação, sua “estética”, sendo a sua resolução a credulidade);

iii. comunicativa (questões e respostas que buscam o reconhecimento daquilo que devemos admitir ou recusar – o objeto de debate é a demarcação da identidade e da diferença dos comunicadores, sendo a sua resolução o reconhecimento de si e do outro numa norma ética, num papel político ou, nos termos de Rajagopalan (2003, 2010), o estabelecimento de “bandeiras de lealdade”).

Retomemos a conversa hipotética entre Pedro e João proposta na introdução deste artigo: Pedro deseja pedir demissão, e o anuncia a João buscando algum tipo de aconselhamento; escuta de seu amigo João motivos x e y para que permaneça no emprego que o faz infeliz. Até aqui, temos um texto dialogal (pois implica dois locutores) e dialógico (pois implica dois enunciadores); em acréscimo: tomando as concepções de retórica formuladas por Meyer, teríamos aí uma conversação dialética – visto que os dois locutores (e os enunciadores) se confrontam, se embatem, assumem pontos de vista distintos e, cada um a sua própria maneira, cede ou tenta fazer ceder a posição de seu outro discursivo.

Posteriormente, podemos conceber Pedro se perguntando a mesma questão (“devo largar o meu emprego?”) para logo após renunciar a questão que coloca (“mas o salário é tão bom…”); teríamos, então, um monólogo interno, um texto monologal mas, ainda assim, a tensão dos dois pontos de vista permanece – mas agora sob a forma de crise de consciência. Como também posto já em nossa introdução, a fala egocêntrica se assemelha a este registro discursivo. Não coincide com ele, contudo.

Numa segunda situação hipotética em que Pedro ainda compartilha com João seu desejo de demissão, agora escutamos de João uma certa aquiescência e acolhimento de Pedro. Ao invés de contrapor Pedro, João diz “certo, então você está pensando em submeter seu currículo para aquela outra empresa que comentou?” ou algo do tipo. Aqui, ainda há multiplicidade de enunciadores, de pontos de vista, mas eles não necessariamente concorrem ou competem. Na cogestão da conversa que caracteriza toda interação retórica, os enunciadores num registro retórico e pragmático partem de um mesmo ponto, aceitam um mesmo pressuposto – largar o emprego, sim; e após isto? como isso se dará? etc. Numa versão monologal desta retórica pragmática, notamos um sujeito usando da linguagem como instrumento para colocar e encaminhar um problema que o acomete. Onde queremos chegar? Aqui: a fala egocêntrica, linguística e funcionalmente, consistiria num discurso monologal, dialógico e pragmático.

Numa variação comunicativa da interação Pedro-João, teríamos Pedro expondo seus planos e João, talvez, compartilhando que vem pensando e planejando o mesmo em relação a seu próprio trabalho, que se solidariza com o drama de Pedro etc.. A versão monologal desta retórica seria a assunção por parte de Pedro de que irá de fato largar o seu emprego.

Enquanto na retórica dialética há o avanço da conversação no sentido de estabelecer um acordo entre os distintos pontos de vista, na retórica pragmática os enunciadores trabalham no sentido de qualificar e especificar o problema em questão; na retórica comunicativa, por fim, há menos um embate lógico, de logos, mas ético – o que está em questão nesta retórica é menos o que o sujeito fala e mais a imagem de si que projeta ao falar.

O próprio Meyer (1998b, 2007b) dirá que essa tripartição é bem mais um esquema didático que uma taxonomia rígida, e pode ocorrer de maneira híbrida, seja no sentido de que uma conversação pode passar de um registro retórico para outro seja porque um mesmo enunciado pode, por vezes, mobilizar mais de um desses registros. Em todo caso, mesmo híbrida, a caracterização dos registros retóricos é facilmente distinguível – por exemplo, um sujeito que posta um conjunto de stories em seu Instagram referentes à invasão do Congresso, do Planalto e do Supremo Tribunal Federal brasileiros no dia 08 de Janeiro de 2023; nas postagens, qualifica a invasão como terrorismo e barbárie e de pronto recusa a anistia dos envolvidos: estará aí mobilizando uma retórica ao mesmo tempo dialética (pois assume um ponto de vista contrário ao do bolsonarista que dirá da invasão como resultante de “infiltrados do PT”, em especial no caso em que o bolsonarista veja sua postagem e a ela explicitamente se contraponha), pragmática (pois a sequência de postagens qualificará e detalhará cada vez mais a invasão terrorista para os que partilham de sua concepção do fato) e comunicativa (pois, ao dizê-lo, se apresenta como um sujeito específico, portador de uma posição política específica e valores específicos; um ethos específico, enfim - a defesa da democracia, a sustentação de ideais republicanos etc.).

Em todo caso, podemos esquematizar as seguintes possibilidades retóricas, sempre dialógicas: se a argumentação é dialogal e dialética, teríamos aí um debate público, um confronto de ideias, uma assembleia na qual os constituintes decidem se irão votar em a ou em b; se a argumentação é monologal e dialética, temos a crise de consciência, temos aquele traço regular da estrutura do psiquismo a que os freudianos chamarão de supereu; se é dialogal e comunicativa, temos a manifestação política, o compartilhamento de vivências; se é monologal e comunicativa, temos o discurso de aceitação, a auto-afirmação, a tomada de posição, o discurso político; se a argumentação é dialogal e pragmática, temos a tempestade de ideias, a orientação acadêmica, a intervenção analítica, a sala de aula; se a argumentação é monologal e pragmática, teremos enfim a fala egocêntrica.

Atualizando a questão operacional postulada em nossa introdução, perguntamos mais uma vez: qual deve ser a atitude do analista-alocutário para que a fala do analisando-locutor opere egocentricamente? Guardadas as proporções: qual deve ser a atitude do docente para que a fala de seu alunado opere egocentricamente? A partir do exposto, somos capazes de produzir as seguintes pistas metodológicas, organizadas em três proposições gerais sobre a natureza do setting terapêutico e três modalidades de intervenção do analista em relação a seu analisando. 

a. Proposição i: o objeto primário de análise e intervenção do analista é a fala, o discurso de seu analisando;

b. Proposição ii: o setting terapêutico, nos termos vigotskianos, deve ser entendido como um espaço privilegiado para a mobilização da fala egocêntrica por parte do analisando; em termos meyerianos, seria um espaço retórico em que prevalece o discurso monologal, dialógico e pragmático do analisando;

c. Proposição iii: o setting é, por parte do analista, um espaço de “recusa da comunicação”; mais especificamente, de recusa do emprego de uma retórica dialética, antagônica.

A partir de tais considerações, temos que, para o analista há ao menos três tipos de intervenção possíveis.

d. A intervenção (i) consiste em evidenciar, para o analisando, os muitos enunciadores que compõem o seu discurso, e de que maneira ele a eles se vincula;

e. A intervenção (ii) consiste em apontar termos vagos na expressão que o analisando faz de seu problema e no abandono das categorias gerais por meio das quais o analisando o expressa, se expressa; por fim,

f. A intervenção (iii) consiste em instigar, a partir de uma retórica pragmática, a criação de novos modos de expressão do problema por parte do analisando; a partir da cadeia predicativa montada por seu discurso, o analisando forjaria termos adequados à dinâmica concreta do problema que apresentada.

A argumentatividade presente na fala egocêntrica não visa o estabelecimento de um acordo entre diferentes pontos de vista, mas a caracterização concreta, estética, do que está fora-de-questão. No setting terapêutico, a passagem de uma fala para outra, de uma questão, interna ou externa, para a questão seguinte implica o avanço dessa fala egocêntrica em direção ao mapeamento da situação a que o discurso toma como problema. A partir disto, constata-se uma suposta estrutura retórica da fala egocêntrica: esse tipo de fala parece utilizar questões e respostas pragmáticas para complexificar o problema a que se submete.

Não estamos de modo algum sustentando que a fala egocêntrica repele sentenças dialéticas ou comunicativas, mas apenas que não se sustenta nelas – a criança em busca de um brinquedo perdido pode (se) perguntar “onde está o meu carrinho?”, responder logo após com um “já sei, deve estar na caixa de plástico embaixo da cama!” e, ao se dirigir para lá, constatar que estava errada, lançando um “não, o carrinho não está aqui; eu peguei pra brincar mais cedo”. Embora dialéticas, embora os enunciadores assumam a dinâmica argumentativa clássica ao defenderem diferentes pontos de vista, não seriam estes os enunciados a fazer avançar a fala em seu sentido egocêntrico, resolutivo - recolocam a fala egocêntrica em seus trilhos, sim, mas a especificação e a caracterização pontual do problema e de suas dinâmicas é produzido pela interlocução pragmática.

O que importa dizer é que a clínica vigotskiana teria por objetivo explicitar e intervir na dinâmica material que produz o sintoma – sendo a clínica um espaço linguageiro, o trabalho realizado consistiria num trabalho com a linguagem e através da linguagem. Fazemos notar que termos como ansiedade, depressão, pânico, burnout etc. são categorias práticas, sistemas funcionais, mas não necessariamente conceitos no sentido vigotskiano. A mulher em relação abusiva diante de seu cônjuge, o professor sem o reconhecimento de seus pares numa reunião de colegiado, uma telefonista incessantemente observada pelo sistema de registro de suas ligações e o negro que antecipa todas as discriminações possíveis ao adentrar num lugar que o desconhece manifestarão signos-sintomas similares e receberão todos a alcunha de ansiosos, embora o problema que os envolve seja distinto tanto do ponto de vista de suas dinâmicas sociais concretas quanto na expressão discursiva deste problema no setting terapêutico - ansiedade aí é termo que não só não revela a dinâmica concreta que produz o sofrimento como a esconde, a recalca. A fala egocêntrica é o discurso que, voltado ao problema que o origina, o mapeia, o coloca.

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