Metadados do trabalho

“A Contação De Histórias E A Cocriação Psicodramática: Entrelaçamentos Entre Fazeres Da Psicologia E Da Educação”.

Bruna Vasconcelos Gonçalves

RESUMO

As práticas da psicologia psicodramática alinhadas à educação, na infância, devem dialogar com caminhos que possibilitem a mobilização da espontaneidade e da criatividade para que processos educativos, construtivos e transformadores possam ser desencadeados. Entre os recursos condizentes com tal perspectiva, encontram-se as histórias lúdicas. Com elas, surgem papéis que são jogados na brincadeira espontânea da criança (criação, reconhecimento, imitação e interpretação). No mais, pelo viés psicodramático educacional, a partir da contação de histórias, o foco também pode ser direcionado às relações das crianças e nos papéis que são evidenciados, permitindo-se o desabrochar do “como se”. Atravessado por tal entendimento, o presente trabalho buscou, através do livro “A árvore de borboletas chamada família”, publicado em 2020, de minha autoria, alinhar as potências das práticas psicológicas psicodramáticas às potências de possíveis desdobramentos enquanto permeados por práticas educacionais, sejam em contextos escolares e clínicos. Com uma história que transborda os limites do livro, buscou-se abrir caminhos para que a leitora, protagonista desta escrita, pudesse de fato protagonizar sua experiência familiar. E, assim, até mesmo construir uma nova história, potencializando-se canais de criatividade, de espontaneidade e de cocriação.          

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Como citar este trabalho

GONÇALVES, Bruna Vasconcelos. “A Contação de Histórias e a Cocriação Psicodramática: Entrelaçamentos Entre Fazeres da Psicologia e da Educação”.. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2023 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/574-a-conta%C3%A7%C3%A3o-de-hist%C3%B3rias-e-a-cocria%C3%A7%C3%A3o-psicodram%C3%A1tica-entrela%C3%A7amentos-entre-fazeres-da-psicologia-e-da-educa%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 16 out. 2025.

“A Contação de Histórias e a Cocriação Psicodramática: Entrelaçamentos Entre Fazeres da Psicologia e da Educação”.

1. INTRODUÇÃO

 

       A vida é movimento e a ação da psicologia psicodramática deve nortear-se nas possibilidades de movimentações que despertem o ato criativo e a força para agir das pessoas que cruzam seu caminho. Os processos que envolvem o psicodrama, sejam no âmbito escolar e/ou clínico, podem trazer à tona descobertas, desafios. A busca é para que todos os envolvidos possam experienciar, sentir o aprendido enquanto acréscimo em suas relações socioemocionais/socioeducacionais.

       Nas práticas que abrangem o público infantil não é diferente. As práticas psicodramáticas, na infância, devem dialogar com caminhos que possibilitem a mobilização da espontaneidade e da criatividade para que processos educativos, construtivos e transformadores possam ser desencadeados.

        Dentre os caminhos interventivos, o psicodrama possibilita o trabalho a partir da imaginação da criança. O brincar e o imaginar, inclusive, traduzem formas de expressão do mundo interno (FILIPINI, 2014). Jogos dramáticos, construção de desenhos, criação e contação de histórias possibilitam à criança expressar-se e desenvolver capacidades condizentes com suas demandas sócio-afetivo-cognitivas. De acordo com Filipini (2014, p.54), através do “como se”, por exemplo, fantasias podem ser acolhidas e, assim, "a criança transita com liberdade entre o como é e o como se".

      No decorrer das minhas andanças enquanto psicóloga psicodramatista infantil, atuante na área escolar e clínica, cruzei com a conexão em criar e contar histórias. A cada experiência compartilhada de uma narrativa, animava-me a ideia de trazer a mesma enquanto um recurso que inserisse o que rodeava as crianças, em seus vários contextos. Diante dessa inquietação mobilizadora, em 2016, surgiu a história do livro “A árvore de borboletas chamada família”, publicado em 2020, de minha autoria. Este, busca abordar de maneira lúdica e leve uma temática para lá de especial, a família. Com a historinha, elementos essenciais como a importância do amor, do respeito às diferenças, da existência da empatia na formação de uma família puderam aparecer a partir da protagonista, uma linda borboletinha azul.

      Com o livro em mãos e suas tentativas de ensinamentos, outro caminho tornou-se essencial para mim, enquanto psicodramatista. A partir dele, não se caberia induzir respostas prontas, mas permitir-se espaço para que cada criança leitora pudesse de fato protagonizar sua experiência familiar. E, assim, até mesmo construir novas histórias, potencializando-se canais de criatividade e de espontaneidade. Desse modo, debrucei-me sobre a possibilidade de que em minhas atuações pudessem existir, para além das fronteiras institucionais (âmbito escolar, âmbito clínico) um fazer em comunicação com percursos que se baseiem completamente, de acordo com Moreno (1975/2006) no ato criativo, posto que para o psicodrama educacional e clínico a ação dramática é vista como eixo-força do método. Experimenta-se no fazer psicodramático o que a vida sempre nos convida: a capacidade para agir.

      A pretensão deste artigo é apresentar algumas reflexões teóricas do ato criativo de elaborar e contar histórias a partir da experiência vivenciada no processo de tornar o(a) leitor(a) protagonista, dando-se espaço que uma nova história, um novo desdobramento possa surgir, despertando-se o cocriar.  Nesta direção o artigo traz como centralidade o experienciado a partir do livro mencionado acima, pautando-se nos seguintes eixos: “Das ações psicodramáticas com crianças e a possibilidade de contação de histórias”; “O relato da experiência”; “O processamento teórico da experiência: a possibilidade de cocriar e assim transformar” e as “Considerações finais”.

2. DAS AÇÕES PSICODRAMÁTICAS COM CRIANÇAS E A POSSIBILIDADE DE CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS

  O psicodrama voltado para crianças busca intervir a partir da fantasia das mesmas, de modo que demandas socioemocionais possam ser cuidadas, acessando-se o campo simbólico. A sua estrutura prática considera contextos, etapas e instrumentos do psicodrama clássico, assim como considera o brincar como uma grande forma de expressão do mundo interno das crianças. Tudo que rodeia a criança em seus vários ambientes, faz-se presente e relevante. Com jogos, desenhos, até mesmo construções de histórias há a possibilidade de que a criança se expresse e desenvolva capacidades sócio-afetivas-cognitivas. Ao brincar, inclusive, a criança percebe que está lidando com fatos diferentes daquele do cotidiano. (MORAIS, 1980, apud FILIPINI, 2014, P.71).

   Por meio de histórias lúdicas podem surgir papéis que são jogados na brincadeira espontânea da criança (criação, reconhecimento, imitação e interpretação). Com elas, pelo viés psicodramático, o foco é direcionado às relações das crianças e nos papéis que são jogados. Espontaneidade e criatividade no “como se”.  

    No intervir psicodramático, ao cruzar com infâncias, a atuação não alcança fronteiras, psicologia e educação dialogam, independentemente dos espaços institucionais. Afinal, em concordância com Maria Alicia Romaña (2019), educadora argentina, pioneira do psicodrama pedagógico na América Latina e que formou os primeiros educadores psicodramatistas brasileiros, a educação deve ser voltada para a vida, para desenvolver a espontaneidade-criatividade, com base na experiência e não para o saber e a memorização de conteúdos. Ou seja, a aprendizagem, para além de escolas, clínicas e quaisquer outras instituições deve pautar uma prática educativa e, por sua vez, o processo de produção criativa do conhecimento. Nesta perspectiva, as potências de contações de histórias para a infância e a psicologia psicodramática que dialogam com práticas educacionais têm sido foco de pesquisas e debates.

   As narrativas lúdicas são capazes de oportunizar o “sonhar”, da mesma ordem do “fantasiar”, fazendo-se presentes e populares no âmbito infantil, seja em sua forma lida, narrada ou assistida. Os contos de fadas, a exemplo, existentes desde a antiguidade, atualmente referem-se a histórias direcionadas às crianças, contendo personagens encantados de origem folclórica, como fadas, sereias, animais falantes, anões, elfos, bruxas e uma infinidade de outros personagens mágicos. Além disso, podem ser reconhecidos pela problemática lançada em seus enredos que, na maioria das vezes, é solucionada pelo(a) protagonista da história, que, de diferentes formas, a depender do conto, será́ capaz de “triunfar sobre o mal” (SCHENEIDER & TOROSSIAN, 2009, p. 135, apud GOMES & DA SILVA, p.101).

  Vale frisar que nem sempre os contos de fadas tiveram tal teor. No decorrer dos anos, os contos foram passando por transformações relacionadas às alterações socioculturais da sociedade. Porém, mesmo com mudanças, estudiosos consideram que as fantasias inconscientes ainda são projetadas nos contos. E, por essa razão, eles podem ser considerados como “representações de acontecimentos psíquicos” (RADINO, p. 26, apud GOMES & DA SILVA, p.103).

  Em “Ainda e sempre psicodrama”, Perazzo (1994) cita que Salles Gonçalves (1988) situa a fantasia como campo de trabalho do psicodrama. Para ele, o método psicodramático reverbera a encenação do desejo e a imaginação criativa (p.45). Por esse viés, a partir da imaginação nasce toda forma de existir e reverbera a aprendizagem psicodramática a qual dá-se em relação, pois o ser é ser e imagina e aprende em relação com o outro.

  Atravessado por tal entendimento, o presente trabalho buscou, a partir do livro “A árvore de borboletas chamada família”, alinhar as potências das práticas psicodramáticas às potências da ação criativa de narrativas lúdicas que se aproximam de contos. Os entrelaçamentos entre psicologia e educação, ganharam vida nas cri(ações) de Lua Clara(nome fictício), criança que deu vazão para que um recurso utilizado, à princípio em andanças da psicologia escolar/educacional, criasse asas, ocupando um outro território, o clínico, desviando-se de barreiras, construindo-se pontes entre os mesmos, inclusive para o bordar da cocriação, a partir de um livro publicado.

3. RELATO DA EXPERIÊNCIA

 3.1. Descrição de uma experiência:

    Quando nossa caminhada começou Lua Clara tinha 9 anos, bastante comunicativa e bem acessível. Sempre disponível a viver novas experiências, no setting terapêutico. Faz-se importante pontuar que os atendimentos eram realizados, semanalmente, por vídeo chamada, inicialmente em decorrência da pandemia e posteriormente em detrimento de sua mudança para Brasília.

   De acordo com a mãe, apresentava demandas de segurança, respiratórias, carência afetiva, realizava acompanhamento para crescimento, dificuldades para dormir e aparente desatenção nas atividades pedagógicas. Caso fosse permitido, queria sempre dormir na cama da cuidadora. Era uma garota que sabia explorar bastante o lúdico, permitindo-se criar histórias, adentrava com facilidade no mundo do simbólico. Realizamos diversas trocas para que o vínculo pudesse ser fortalecido e que assim, pudéssemos ter trocas mais profundas sobre suas relações familiares. Os pais eram separados e a mãe acreditava ser importante investigar como a filha sentia tal contexto.

    A mãe era brasileira e o pai argentino. Lua Clara demonstrava ter afinidade com ambos. Os dois lhe pareciam pessoas interessantes com quem tinha aprendizados. Com a mãe, descobria um universo de conhecimentos sobre saúde, corpo e autoconhecimento. Com o pai, descobria o universo da música e da culinária.

     Lua ainda tinha uma irmã mais velha com quem dizia sempre aprender muitas coisas sobre livros. A princípio era seu grande referencial, desejando sempre realizar o que esta sugeria nas brincadeiras. Sua irmã mostrava-se sempre dominante, querendo decidir sobre quaisquer escolhas.

      A história “A árvore de borboletas chamada família”surgiu como uma possibilidade de recurso psicodramático em que Lua Clara poderia exercer o protagonismo, trazendo à tona suas emoções e sentimentos, diante de seu contexto familiar.             

3.2. O borboletear de Lua Clara

  Sempre muito receptiva às propostas que lhe eram apresentadas, com a sugestão da leitura do livrinho não foi diferente. Lua Clara mostrou-se bastante empolgada para conhecer a história. Leu atentamente, prestando atenção a cada detalhe. Ao final da historinha antes mesmo de ser questionada já iniciou suas observações e entendimentos sobre a mesma.

   Ao seu ver, a história narrava a importância de que tudo e todos se cuidassem para que ficassem bem. Assim como as pessoas, as árvores, as borboletas, toda a natureza só podiam existir e crescer existindo uma “corrente do bem”. Quando a árvore passou a ser cuidada e não só pela borboleta azul, mas também pelas outras borboletas que vieram em sua direção, ela pôde voltar a ter vida.

   Lua Clara, logo após tais comentários ainda explicou que já tinha vivido algo parecido com a árvore quando sentia medo de dormir só ou quando achava que não tinha amigas na escola, em Aracaju, durante o período de aulas online. Sentia-se triste, sem cor, sem muita vida.

   Diante do descrito, Lua Clara foi convidada a adentrar na história, a partir do “como se” sendo entrevistada enquanto a árvore. Ao ser indagada do por quê, no início da história estar tão triste sem folhas e flores, respondeu: “-Estou perdida, só”. E o que aconteceu?, indaguei. Lua como a árvore, disse: “-Ah, sei lá! Olho para as outras árvores elas parecem que são felizes, que conversam, que se ajudam, mas que não me veem. Ainda bem que apareceu a borboleta azul”.

   Com o aparecimento, em sua fala, da protagonista da história, propôs-se a movimentação de que a garota pudesse ser entrevistada também no papel da borboleta. Ela adorou a ideia. “-Borboleta azul, o que será que estava acontecendo com a árvore para ela estar tão triste?”. Lua Clara, enquanto borboleta respondeu: “-Acho que ela parou de se enxergar e as folhas e flores começaram a morrer”. Perguntou-se: “-Será que nenhuma árvore ao redor percebeu o que estava acontecendo e não ofereceram ajuda?”. “-Acho que perceberam sim e tentaram ajudar, mas a árvore estava acreditando tanto que estava só que não conseguia ver e ouvir nada”. Prosseguiu-se a conversa: “-Que bom então que ela conseguiu ver você e as outras borboletas. Por quê será que isso foi possível?”. A resposta foi quase imediata: “-Acho que porque no início as duas se pareciam. A borboleta azul primeiro pensou que conseguiria fazer tudo sozinha, que não precisaria de mais nada para ajudar a árvore. Só que depois ela percebeu que devia pedir a ajuda de outras borboletas, até para ela mesma que estava se sentindo só”.  

   Na continuidade do diálogo, indagou-se: “O que será que a árvore e você, borboleta azul, puderam aprender juntas?”. Lua Clara, dando voz à borboleta, respondeu: “-Que somos diferentes e parecidas, ela grande e insegura, eu pequena e cheia de confiança, mas as duas precisavam aprender a pedir ajuda. Quando a árvore foi ajudada, conseguiu ver que existiam outras árvores perto, daí voltou a brilhar e florir. Quando a borboleta azul aprendeu a pedir ajudar, pôde descobrir que existiam borboletas que ela nem imaginava, de tudo que é jeito, cada uma diferente e especial também.

    Após as entrevistas, questionou-se o porquê as borboletas teriam nomeado a árvore de família. Lua Clara prontamente explicou que a árvore tinha raízes e que quando era regada podia nascer flores, folhas. Falou também que ela tinha muitos galhos de onde cada folha e flor poderia aparecer de tamanhos e formas diferentes, assim como é a família de cada pessoa. Pais, mães, avôs, avós, irmãos, irmãs, primos e primas, todos viriam de um mesmo lugar, mas também seriam diferentes e teriam que se respeitar para se amarem. Diante de um depoimento tão bonito, foi proposta que a garota desenhasse a sua árvore de borboletas chamada família.

   Lua Clara adorava desenhar, sendo bem minuciosa nos detalhes, gostando de explorar cores. Cada borboleta desenhada tinha um formato de asas. Cada uma tinha uma cor e tamanho diferenciado. No desenho, relatou incluir poucas pessoas da família paterna por ter pouco contato, visto que moravam na Argentina, mas fez questão de representar o nome da avó na língua natal da mesma, “abuelita”.

  Durante a sua construção, a árvore foi explorada em toda sua extensão. Lua Clara, fez questão de pontuar que colocaria dois tios, cada um em um galho no tronco, pois todos os espaços eram importantes, não apenas a copa das árvores. Todos os familiares estariam felizes, cada um em seu lugar.

 

 

    A partir da construção da árvore e do posicionamento das borboletas ao redor da borboleta Lua Clara, buscou-se viabilizar a construção de um átomo familiar (técnica psicodramática em que se visa conhecer os vínculos afetivos familiares, a partir de construções representativas). Quando convidada a ouvir o coração e conversar com cada borboleta, a criança enfatizou que não queria mudar ninguém de posição, gostando do desenho exatamente do jeito que estava. Apesar dessa constatação, a garota foi se situando da aproximação afetiva da mãe e da irmã a qual não era compatível com a distância física apresentada na imagem. No encontro seguinte, deu-se continuidade à elaboração da história, dessa vez, utilizando-se de almofadas para a reconstituição do átomo familiar da criança. Por meio dessa proposta, a paciente pôde experimentar a posição de cada borboleta que constituía sua família, inclusive, conectando com seu próprio posicionamento diante de cada ente.

     Com essa proposta que se alinhava com a experiência lúdica de leitura do livro, senti imensamente que  “A árvore de borboletas chamada família” enquanto cri(ação) psicodramática e educacional poderia transbordar em um projeto em comum disparador de espontaneidade e criatividade não só com Lua Clara mas com tantos(as) outros(as) meninos(as) que cruzassem o fazer clínico. Um projeto psicodramático, à priori desenvolvido para propostas interventivas no âmbito escolar fortaleceria e bordar-se-ia nas andanças do setting terapêutico.

 

4. PROCESSAMENTO TEÓRICO DA EXPERIÊNCIA: A POSSIBILIDADE DE COCRIAR E ASSIM TRANSFORMAR

    A espontaneidade e a criatividade são essenciais em processos criativos que partem da realidade concreta para desencadear práticas educativas de ensino-aprendizagem assim como para subsidiar práticas clínicas através do psicodrama. A força e a leveza do borboletear de Lua Clara são exemplos de conquistas do saber quando é dada a liberdade para criar a partir de sua perspectiva e percepção.

   Para Martín (1984), o conceito de espontaneidade possui grande projeção teórica e terapêutica na psicologia moreniana. De acordo com o autor, o referido termo é um dos elementos que fazem parte do núcleo do psicodrama. A espontaneidade moreniana, para Bustos (1979) escapa ao princípio da inércia e, possivelmente, reinventa o conceito de inconsciente. A espontaneidade, portanto, tem caráter fluente, não fixo, sendo, por essa razão, um estado. A vontade consciente a rege, não sendo movida apenas por condições internas, depende de uma correlação com outro ser criador. Posto como estado, a espontaneidade permanece no âmbito do instituinte, com momentos de instituído.

  Enquanto momentos de instituído, encontram-se as conservas culturais, tradições e interdições, que apesar de se apresentarem enquanto obstáculos do fluir da espontaneidade originam-se da própria, são as energias transformadas em conserva. Ainda para Moreno (MARTIN, 1984) existem duas classes de energia, a que se conserva e a que permanece, que se gasta e desaparece no momento de existir. Ou seja, o psicodrama situa a espontaneidade em um contexto de constante movimento, e tentativas de rupturas com consequentes transformações de realidades.

  Para a abordagem psicodramática, desse modo, afirma-se que a capacidade criadora que impulsiona as transformações que se dão no mundo é ativada pela espontaneidade. Sendo assim, esta aparece como um desencadeante que não se transforma absolutamente em um produto acabado. Mas, abre portas para o aprender enquanto experiência pautada na cocriação. Com isso, pautadas pelo movimento, teoria e prática psicodramática são caminhos para se pensar o homem, a educação e a sociedade.

    Com o recurso da contação de uma história que poderia ter infinitos desdobramentos pôde-se acolher, abranger e reverberar o mundo e as próprias histórias de Lua Clara. Sua voz e criações ganhavam potência e força, sua formatação familiar espontaneamente fluía em seus traços, formas e cores de borboletas, dando-se vazão à possibilidade de se sustentar o conforto de se ter a sua família, com todas as suas nuances.

    Cada pessoa-borboleta tinha a forma, a cor, o tamanho, o afastamento-aproximação de si que desejava, bem como suas dimensões. Inclusive, a diversidade pôde estar presente enquanto integração. “O Brasil e a Argentina de mãos dadas”. Na descrição das afinidades com referências familiares paterna e materna relatou, com carinho, ser um pouco dos dois lados, não havia como o verde e o amarelo do Brasil e o azul claro e branco da Argentina, não fazerem parte de si mesma.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

  Entre os objetivos de seus trabalhos, Moreno (1975/2016) propõe uma “revolução criadora” capaz de recuperar a espontaneidade em ambientes afetivos e no sistema social. Para tanto, juntamente com o espontâneo (catalisador psíquico) o pesquisador trabalhou com a criatividade (substância que capacita o sujeito a agir) por sempre ocorrerem de forma conjunta, apesar de não serem processos semelhantes. Como ponto de partida de ambos encontram-se as conservas culturais, pois a partir destas pode haver uma verdadeira revolução criadora, motivada pelo fator da espontaneidade.

  Lua Clara, a partir de suas falas, desenhos e relatos tornava “A árvore de borboletas chamada família” uma nova história. A autora e a criança tornavam-se cocriadoras. Tornavam-se complementares criativamente, proporcionando-se um encontro de espontaneidades. Por caminhos que não eram pré-estabelecidos, podiam viver qualquer acontecer, qualquer desfecho daquela obra. As duas deram novos nomes aos personagens, um novo enredo ao que era já era escrito e, assim, puderam borboletear juntas.

   Em parceria, no borboletear, vivenciou-se a autoafirmação de Lua Clara com relação à autoestima. Tornou-se presente a ampliação de sua rede social, apresentando-se mais segura para fazer novas amizades. Ela pôde construir recursos para lidar com os medos durante o sono, para a ampliação do repertório alimentar, para o reconhecimento de um lugar autêntico diante da irmã. Pôde apresentar-se mais autônoma, mais atenta e dedicada aos estudos, superando-se em componentes curriculares que apresentava dificuldade, como matemática.

   Lua Clara, em seu lindo borboletear compartilhado, pôde abraçar um vínculo de maior segurança emocional com a mãe, um fortalecimento na relação com a irmã e a elaboração do compartilhar da saudade de pai que poderia ser próximo, mesmo quando distante, sendo um referencial afetivo masculino de cuidado e de proteção. Por sua vez, o livro tornou o borboletear um dialogar entre saberes e fazeres.

6. REFERÊNCIAS

BUSTOS, D. M. Psicoterapia psicodramática. São Paulo: Editora Brasiliense, 1979.

GOMES, L.S. & DA SILVA, C. Y. G. Da fantasia à realidade: os contos de fada no contexto escolar. Psic. da Ed., São Paulo, 49, 2º sem. de 2019, pp. 99-115.

GONÇALVES, B. V. A árvore de borboletas chamada família. Ilustradora: Cris Ferreira. Aracaju/SE. Criação Editora. 2020.https://hotmart.com/product/a-arvore-de-borboletas-chamada-familia/O50997956L  

FILIPINI, R. Psicoterapia psicodramática com crianças. São Paulo: Ágora, 2014.

KOHAN, W.O. (org.). Devir- criança da filosofia: infância da educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

MARTÍN, E.G. J.L Moreno: Psicologia do encontro. São Paulo, Livraria Duas Cidades ltda., 1984.

MORENO, J. L.; MORENO, Z. Psicodrama: Terapia de ação e Princípios da prática. São Paulo: Daimon, 1975/ 2006.

MORENO, J.L. Psicodrama. São Paulo: Editora Cultrix, 1975.

PERAZZO, S. Ainda e sempre psicodrama. São Paulo: Ágora, 1994.

RAMALHO, C. M. R. Psicodrama e Psicologia Analítica: construindo pontes. São Paulo, Iglu: 2011.

ROMAÑA, M. A. Psicodrama pedagógico: método de educacional psicodramático. Campinas: Papirus, 1985.

ROMAÑA, M. A. Pedagogia psicodramática e educação consciente: mapa de um acionar educativo/ Maria Alicia Romaña. Campo Grande, MS: Associação Entre Nós, 2019.

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