Introdução
O presente artigo é fruto, em grande medida, de reflexões sobre o preocupante cenário de destrutividade ambiental dinamizado, de modo crescente e desenfreado no atual momento histórico do sistema do capital em crise estrutural (MÉSZÁROS, 2011), assim como deriva do processo de constituição do escopo teórico de pesquisa[i] de mestrado em desenvolvimento realizada no Programa de Pós-graduação em Serviço Social (PROSS) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). O artigo objetiva apresentar alguns elementos que se inserem no debate analítico acerca da relação sociedade/natureza no contexto da crise contemporânea do capital eclodida na década de 1970, traduzida como estrutural, enquanto uma determinante central do presente quadro de destrutividade ambiental.
O debate da destrutividade ambiental ou da “questão ambiental”[ii] emerge das transformações societárias marcadas pela crise estrutural do capital, cujos desdobramentos afetam todos os aspectos da vida social, especialmente a relação sociedade/natureza[iii]. Desde fins da década de 1960, a humanidade se depara com elevados índices de degradação ambiental. Cotidianamente, os diversos veículos de comunicação mundiais trazem como pautas, expressões do processo devastador da natureza que impactam o equilíbrio dos ecossistemas essenciais à vida e aprofundam as desiguais condições de vida das classes sociais na ordem social capitalista. Algumas das manifestações destrutivas são evidentes como as mudanças climáticas, aquecimento global, desmatamento, aumento da produção de lixo, incêndios florestais, enchentes, poluição de rios e manguezais.
Partimos do pressuposto de que a relação sociedade/natureza adquire contornos particulares no capitalismo em razão de ser um modo de produção que carrega tendências de expansão infinita mediante a degradação da natureza e exploração do trabalho (MARX, 1996). Desta forma, é um modo de produção e reprodução material insustentável ecológica e socialmente. A ciência e a tecnologia seguem os ditames desse sistema e apresentam soluções inócuas à destrutividade ambiental, pois não colocam em xeque seus determinantes históricos e sociais essencialmente destrutivos. É, portanto, a lógica destrutiva e incontrolável do sistema do capital que subordina aos seus imperativos de autovalorização as principais fontes da riqueza social: a natureza e o trabalho (transformadas em mercadorias, repositórios lucrativos). (MARX, 1996).
Em acordo com Mészáros (2011) adverte-se que o cenário de crise estrutural, o qual apresenta dificuldades para o capital valorizar-se, põe em relevo o fato de que este sistema não separa “avanço” da destruição, “progresso” de desperdício. Da produção ao consumo as relações capitalistas operam destruição, tendo a obsolescência programada enquanto regra geral de tudo que se produz. Este contexto aprofunda suas contradições inerentes e seu ethos predatório, colocando em movimento mecanismos que pressupõem crescimento através do aceleramento da devastação da natureza com uma exacerbada extração de recursos naturais (renováveis e não-renováveis) promovendo efeitos dramáticos em decorrência da crescente geração de dejetos industriais, resíduos e diversos poluentes que são produzidos num ritmo incompatível com a capacidade que a natureza dispõe para se renovar e poder oferecer as condições necessárias a manutenção da reprodução humana.
Considerando que a crise estrutural do capital vem apresentando um curso profundamente destrutivo, um agravamento indescritível da barbarização da vida, a realização de reflexões como a que propomos aqui são necessárias para captar elementos importantes que contribuem para a compreensão da realidade social e do desafio contemporâneo configurado pela “questão ambiental”, pois diz respeito ao nosso lugar de vida. (MÉSZÁROS, 2011). Metodologicamente, as discussões delineadas decorrem de uma pesquisa bibliográfica, de abordagem qualitativa e se sustentam no método materialista histórico e dialético, pois é o único capaz de traduzir teoricamente o movimento real da realidade, as determinações da crise estrutural do capital e da dimensão ambiental.
Pretendemos que este artigo sirva como instrumento crítico para estudantes e profissionais de Serviço Social e demais estudiosos/as da temática, de modo a fomentar o aprofundamento do debate e enriquecer a produção do conhecimento na perspectiva marxiana e marxista. Para alcançar o objetivo proposto, além desta introdução e considerações finais, o artigo está estruturado em dois itens: o primeiro resgata elementos substanciais para demonstrar como a destrutividade ambiental é parte constitutiva do sistema do capital. O segundo oferece uma discussão acerca de alguns aspectos da crise estrutural do capital enquanto etapa histórica que intensifica o modo destrutivo da relação sociedade/natureza operada sob o controle do capital.
[i] Especificamente sobre a relação entre Estado brasileiro e destrutividade ambiental no contexto do governo Bolsonaro (2019-2022), oferecendo uma análise de algumas ações do governo federal que impactaram a política ambiental, sob a orientação da Prof. Dra. Carla Alessandra da Silva Nunes.
[ii] Entendida como o “[...] conjunto das manifestações da destrutividade da natureza -cujas raízes encontram-se no desenvolvimento das relações de propriedade – e seus desdobramentos sociopolíticos” (SILVA, 2008, p.64-65).
[iii] A concepção de sociedade adotada aqui corresponde a apresentada por Netto e Braz (2006, p.37, grifado no original; suprimimos): “[...] não é simplesmente o agregado dos homens e mulheres que a constituem, não é um somatório deles, nem algo que paira acima deles; por outro lado, os membros da sociedade não são átomos, nem mônadas, que reproduziriam a sociedade em miniatura. Não se pode separar a sociedade dos seus membros: não há sociedade sem que estejam em interação os seus membros singulares, assim como não há seres sociais singulares (homens e mulheres) isolados, fora do sistema de relações que é a sociedade. O que chamamos de sociedade são os modos de existir do ser social; é na sociedade e nos membros que a compõem que o ser social existe: a sociedade, seus membros, constitui o ser social e dele se constitui. “Por natureza entendemos o conjunto dos seres que conhecemos no nosso universo, seres que precederam o surgimento dos primeiros grupos humanos e continuam a existir e a se desenvolver depois desse surgimento. Ela se compõe de seres que podem ser agrupados em dois grandes níveis: aqueles que não dispõem da propriedade de se reproduzir (a natureza inorgânica) e aqueles que possuem essa propriedade, os seres vivos, vegetais e animais (a natureza orgânica). A distinção entre os níveis inorgânico e orgânico, contudo, não significa a existência de uma “dupla natureza” – de fato, a natureza é uma unidade, articulando seus diferentes níveis numa totalidade complexa” (NETTO; BRAZ, 2006, p.35, grifado no original).
1.1 - A relação metabólica sociedade/natureza
O presente item visa apontar alguns elementos sobre a relação sociedade/natureza, orientados em categorias como natureza, trabalho, capitalismo, mercadoria e falha metabólica enquanto mediação fundamental para demarcar o debate sobre como a natureza no contexto da crise estrutural do capital é, de maneira crescente e aprofundada, submetida a condição de mercadoria, resultando cada vez mais em destrutividade ambiental e humana e inquietações acerca da sustentabilidade da vida no planeta.
Tomando como referência a perspectiva dialética marxiana compreendemos que a história das sociedades humanas é marcada por diferentes modos de produção, cada um com sua forma de riqueza[i] e especificidade na maneira de se relacionar com a natureza. A relação sociedade/natureza é insuprímivel, independente do modo de organização da sociabilidade humana. Nos termos de Netto e Braz (2006, p.35, grifado no original)
Toda e qualquer sociedade humana tem sua existência hipotecada à existência da natureza - o que varia historicamente é a modalidade da relação da sociedade com a natureza: variam, ao longo da história, os tipos de transformação que, através do trabalho, a sociedade opera nos elementos naturais para deles se servir, bem como os meios empregados para nessa transformação. Vale dizer: modificam-se, ao longo da história da humanidade, as formas de produção material e, por conseguinte, as condições materiais de existência nas quais vivem os homens. Mas é invariável o fato de que a reprodução da sociedade dependa da existência da natureza (a natureza, porém, pode existir e subsistir sem a sociedade.
Toda a história da sociedade está entrelaça com a história natural (MARX, 2004), o pressuposto fundamental da existência da sociedade compreende a organização dos corpos humanos, que demandam, primeiramente de comida, bebida, abrigo, vestuário etc., possível em relação com a natureza. Nesta dinâmica, os avanços civilizatórios da sociedade, com organizações sociais cada vez mais complexas, de modo algum significa o rompimento com o ser natural, ainda que possam figurar níveis de afastamento das barreiras naturais, o ser social pressupõe o ser natural e com este vive em constante interação para manter-se vivo (MARX, 2004; LUKÁCS, 2013). A sociedade sempre terá uma base natural, pois
Praticamente, a universalidade do homem aparece precisamente na universalidade que faz da natureza inteira o seu corpo inorgânico, tanto na medida em que ela é 1) um meio de vida imediato, quanto na medida em que ela é o objeto/matéria e instrumento de sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza enquanto ela mesma não é corpo humano. O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem que ficar num processo contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do homem está interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza. (MARX,2004, p.84, grifado no original).
O referido e clássico autor[ii] nos oferece importantes elementos sobre a complexa relação sociedade/natureza, na qual a natureza possui um estatuto elementar no processo de constituição e reprodução do ser social. Portanto, assevera que a natureza corresponde ao “corpo inorgânico” do homem na condição de ser “meio de vida imediato” e “objeto/instrumento da atividade vital”, matéria a ser transformada para a realização do seu metabolismo.
Em suas sínteses argumenta que a reprodução da vida é uma necessidade que abrange tanto o gênero humano como as demais espécies animais que a fazem em relação com a natureza, no entanto, o animal “[...] é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela.” (MARX, 2004, p.84). Significa que a atividade animal para atender às necessidades de sobrevivência e reprodução, é posta nos marcos puramente biológicos, no sentido de estar determinada pela herança genética e não produzir algo novo. Este fato não é atribuído ao desenvolvimento da espécie humana que ocorre a partir da especificidade de sua atividade vital, de características que garantem sua reprodução como espécie além dos limites estreitos das formas biológicas, ou seja, a transformação da natureza operada pelo homem para assegurar sua reprodução é realizada mediada pelo trabalho.
Segundo as reflexões de Marx (1996, p.297)
Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio domínio.
A interação entre sociedade/natureza realizada através do trabalho compreende ao metabolismo, isto é, ao processo por meio do qual o homem transforma matérias naturais em bens úteis a satisfação das suas necessidades físicas e naturais ao tempo que transforma qualitativamente a si. Segundo Foster (2010, p.222 -23) o metabolismo é um conceito chave que permeia a obra marxiana
[...] tanto para se referir à real interação metabólica entre a natureza e a sociedade através do trabalho humano [...] quanto, num sentido mais amplo (sobretudo nos Grundrisse), para descrever o conjunto complexo, dinâmico, interdependente, das necessidades e relações geradas e constantemente reproduzidas de forma alienada no capitalismo, e a questão da liberdade humana suscitada por ele –tudo podendo ser visto como ligado ao modo como o metabolismo humano com a natureza era expresso através da organização concreta do trabalho humano. O conceito de metabolismo assumia assim tanto um significado ecológico específico quanto um significado social mais amplo.
Da dinâmica da produção da riqueza material “[...] o trabalho é o pai, como diz William Petty, e a terra a mãe.” (MARX, 1996, p.172). “Ela [natureza] é a matéria na qual o seu trabalho se efetiva, na qual o [trabalho] é ativo, [e] a partir da qual e por meio da qual o [trabalho] produz.” (MARX, 2004, p.81). O trabalho, portanto, é atividade exclusivamente humana, fundante do ser social, criador universal de valores de uso, isto é, força produtiva de transformação consciente da natureza, necessário em toda forma de organização social na medida que transforma a natureza em produtos essenciais à reprodução da vida em sociedade.
Na dinâmica de constituição do ser social o crescente processo de humanização impulsionou objetivações[iii] para além do trabalho, relações sociais cada vez mais mediadas e complexas. O estabelecimento do modelo de produção capitalista traz novas determinações para a relação sociedade/natureza. As objetivações passaram a ser demarcadas por relações sociais (estabelecidas em intercâmbio com a natureza) baseadas na propriedade privada dos meios fundamentais ao processo de trabalho, resultando em desigualdades no acesso a natureza (a riqueza produzida socialmente).
Propriedade privada dos meios de produção, do produto do trabalho social e do acesso a natureza conformam os elementos definidores desta forma de produção material, inteiramente direcionada pela lógica mercantil. Ainda que tenha proporcionado um impulsionamento para o desenvolvimento das forças produtivas, um “[...] avanço civilizatório fundado na barbárie [...]”. (NETTO, 2012, p. 426), o modo de produção capitalista, sua forma social de propriedade e de realização do trabalho implica em destrutividade ambiental aprofundada na contemporaneidade comandada pela crise estrutural do capital, em razão de ser um sistema iminentemente expansivo, possuir uma dinâmica incessante em busca da autovalorização do valor, de modo que expandir é sua condição de sobrevivência, afirmando a “produção generalizada de mercadorias”, o que depende de um processo continuo de destruição da natureza e exploração do trabalho, na forma assalariada, para obter mais-valia.
Para tanto, para firmar a força de trabalho como mercadoria para a produção ilimitada de outras mercadorias o momento histórico desvelado por Marx (1996), denominado de “acumulação primitiva” foi crucial. Nas origens do capitalismo (mercantilismo - século XV ao final do século XVIII) este momento significou um processo extremamente violento de expropriação das terras camponesas e do acesso aos meios de produção, de subsistência dos trabalhadores do campo, promovendo a constituição de uma massa trabalhadora nas cidades, expulsa, expropriada do seu modo de vida, agora, disponível a exploração capitalista, possuindo somente sua força de trabalho para vender. Este movimento demarca o primeiro momento da separação entre natureza e trabalhador, devastação da natureza e apropriação privada dos recursos naturais até então comunais, especialmente a terra. As reflexões de Silva (2008, p.37) ressaltam esse dinâmica em que
A propriedade agrária, submetida aos desígnios do capital, se converte em mercadoria, objeto de especulação: é a natureza servindo aos propósitos da acumulação; moto contínuo, a relação proprietário e trabalhador resume-se à exploração manifesta na compra e venda da força de trabalho. Estão, assim, lançadas as bases da organização da produção capitalista.
O sentido da riqueza, neste modo de produzir a vida material, é o valor objetivado nas mercadorias. Diz Marx (1996, p.165): “a riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma imensa ‘coleção de mercadorias’ e a mercadoria individual como sua forma elementar”. Os processos de trabalho são organizados para produzir valores de uso direcionados à troca de mercantil. Um determinado produto suprir necessidades humanas não o faz ser uma mercadoria. Mercadoria possui dois aspectos constitutivos, é a unidade entre valor de uso e valor de troca, objetos úteis que atendem necessidades humanas e sociais, do “estômago ou da fantasia”, não para seu produtor, mas para outros cujo acesso se realiza mediante a circulação e realização da troca, antecedendo o consumo.
Valor de troca está relacionado à capacidade de intercâmbio entre mercadorias diferentes, numa dinâmica em que, abstraídas suas utilidades, enquanto valor de uso, é necessário equivalência para serem consideradas em seu valor, como produto do trabalho humano universal, “gelatina de trabalho indiferenciado”. Desse modo, o elemento comum e unificador interiorizado nas mercadorias é valor no sentido de que “[...] um valor de uso ou bem possui valor, apenas, porque nele está objetivado ou materializado trabalho humano abstrato [...]” (MARX, 1996, p.168).
Tudo na sociabilidade do capital é convertido em mercadoria. No curso da história, visto que toda mercadoria busca seu valor na corporalidade de apenas uma, a necessidade de um “equivalente geral” tornou-se latente e a forma dinheiro passou a funcionar como expressão material do valor, uma “[...] figura metamorfoseada das mercadorias, em que seus valores de uso específicos estão apagados [...]” (Ibidem, p.270).
O valor, portanto, enquanto substância que possibilita o intercâmbio entre mercadorias qualitativamente diferentes é o traço central do sistema do capital, cuja fonte é o trabalho. Nesse sentido, a força de trabalho, convertida em mercadoria fundamentalmente no período da “acumulação primitiva” apontado anteriormente, possui um valor de uso importante e peculiar nas engrenagens do capital, ao ser consumida e realizada pela concretização do trabalho, cria valor. (Ibidem, 1996).
Desta maneira, em função da sua lógica expansiva, concentradora e acumuladora de riquezas, o capital opera para além da criação de valor, necessita valorizá-lo, processo possível mediante a exploração da força de trabalho consumida para transformar a natureza, na busca incessante pela ampliação ou criação de nichos de mercado, desencadeando graves e evidentes problemas ambientais na atualidade. A destrutividade ambiental é própria dos processos de produção e reprodução do sistema do capital, direciona o esgotamento da natureza. Outro momento histórico que revela e acelera a dinâmica destrutiva desta forma social é a Revolução Industrial (meados do século XVIII) que inaugura
[...] um período em que a divisão campo-cidade transforma a cidade, de espaço periférico na organização da vida social, em lócus privilegiado da vida produtiva [...] cria, assim, as condições para a intensificação do consumo dos recursos naturais, com o consequente exaurimento do solo e a ruína das fontes naturais da riqueza. (ARAÚJO; SILVA,2021, p.161).
Nunes (2022) chama atenção para o fato de Marx (1996) já apontar essa tendência destrutiva no século XIX ao refletir sobre o problema da fertilidade do solo e o esgotamento dos seus elementos químicos. A agricultura componente fundamental da atividade humana ao longo da história, tem o solo como sua parte substancial, fonte de nutrientes essenciais e passa a ser submetido a um crescente processo de extração dos seus recursos em razão da expansão das indústrias capitalista com a incorporação de elementos tecnológicos, resultando nesta problemática. Portanto, a organização da vida social comandada pela lógica mercantil,
[...] promove a ruptura na ‘relação metabólica’, de que falava Marx, entre homem e natureza, como expressão da alienação material dos seres humanos do processo de transformação dos elementos naturais em bens sociais necessários à sua própria manutenção.” (SILVA, 2008, p.39).
Nesse sentido, importa sublinhar que
Marx empregou o conceito de ‘falha’ na relação metabólica entre os seres humanos e a terra para captar a alienação dos seres humanos dentro da sociedade capitalista das condições naturais que formaram a base da sua existência –o que ele chamou ‘a[s] perpétua[s] condição[ões] da existência humana imposta[s] pela natureza. (FOSTER,2010, p. 229).
Podemos compreender que Marx (1996) capturou as contradições do pretenso “progresso” advindo da modernidade, como seu modo de produção determinou uma forma de relacionamento entre sociedade e natureza que nega os limites impostos por esta. Portanto, as determinações que constituem a materialidade desse conceito decorrem da crescente alienação dos seres humanos em relação à natureza, constituindo-se um antagonismo cada vez mais ampliado entre campo e cidade. A separação entre campo e cidade firma a ruptura do metabolismo, degradando o trabalho e a natureza, de modo especial a terra. Conforme Marx (1996, p. 132-133, suprimimos; grifamos),
Com a preponderância sempre crescente da população urbana que amontoa em grandes centros, a produção capitalista acumula, por um lado, a força motriz histórica da sociedade, mas perturba, por outro lado, o metabolismo entre homem e terra, isto é, o retorno dos componentes da terra consumidos pelo homem, sob forma de alimentos e vestuário, à terra, portanto, a eterna condição natural de fertilidade permanente do solo. Com isso, ela destrói simultaneamente a saúde física dos trabalhadores urbanos e a vida espiritual dos trabalhadores rurais [...] E cada progresso da agricultura capitalista não é só um progresso na arte de saquear o trabalhador, mas ao mesmo tempo na arte de saquear o solo, pois cada progresso no aumento da fertilidade por certo período é simultaneamente um progresso na ruína das fontes permanentes dessa fertilidade. Quanto mais um país, como, por exemplo, os Estados Unidos da América do Norte, se inicia com a grande indústria como fundamento de seu desenvolvimento, tanto mais rápido esse processo de destruição. Por isso, a produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social ao minar simultaneamente as fontes de toda a riqueza: a terra e o trabalhador.
Os elementos expostos até aqui permitem afirmar que a centralidade do capital é o valor, ou melhor, a valorização do valor. O desenvolvimento das forças produtivas, o uso das técnicas e de todo aparato tecnológico estão submetidos aos ditames desse sistema propiciando a exploração do trabalho e uma exacerbada incorporação de natureza (recursos naturais/matérias primas) para produção de mercadorias, apartados de qualquer possibilidade que vise o atendimento das necessidades socialmente humanas (físicas e espirituais). Especificamente na cena contemporânea os alarmantes níveis de destrutividade ambiental chamam atenção de diversos segmentos sociais que disputam sua direção política, ainda que portem um interesse comum: salvar o planeta, hegemonicamente, não tocam nas determinações que estão no centro de tanta devastação.
Fato é que, o capitalismo se desenvolve estabelecendo um constante movimento de confronte com a natureza e com relações sociais que privam a “classe-que-vive-do-trabalho” do acesso a riqueza social. As classes sociais enfrentam e são atingidas desigualmente pelas consequências do aprofundamento do caráter incontrolável e destrutivo do sistema do capital conduzido por uma crise estrutural com um “alcance global”, escala “permanente” e desdobramentos “rastejantes”, conforme aponta a tese mezariana.
1.2- Acentuação da tendência da destrutividade ambiental no curso da crise estrutural do capital
No item anterior delineamos alguns elementos acerca da importância da natureza na constituição e reprodução do ser social, de modo a apontar como a relação sociedade/natureza sofre alterações com a consolidação da lógica de produção do sistema do capital, fundado na propriedade privada dos meios de trabalho e recursos da natureza, na produção de mercadorias e na exploração do trabalho, aprofundando suas tendências destrutivas e insustentáveis ecológica e socialmente.
Nas formações sociais anteriores ao capitalismo, a relação sociedade/natureza era orientada pela extração dos recursos naturais para, prioritariamente, produzir bens úteis para garantir a manutenção das sociedades, sendo possível manter certo equilíbrio nessa relação metabólica, pois retirava da natureza somente o necessário “[...] como também devolvia aos ecossistemas nutrientes na forma de excrementos humanos ou dejetos da atividade produtiva incorporados ao solo” (ARAÚJO; SILVA, 2021, p.154, suprimimos).
Essa relação era orientada para produzir valores de uso para satisfação das necessidades de produção e reprodução da vida material e espiritual, de tal maneira que os níveis de degradação da natureza presentes não configuraram uma problemática ameaçadora às condições de existência da humanidade e sustentabilidade do planeta, visto duas razões: o baixo desenvolvimento das forças produtivas e a produção direcionada para atender necessidades, não voltadas para o mercado. (SILVA,2008).
No modo de produção capitalista não existem limites na relação sociedade/natureza, com as condições próprias da natureza para se regenerar, pois o atendimento das necessidades sociais não é o fim último, mas sim, obter lucros, ampliar a reprodução do capital (criar nichos de mercado/supremacia do valor de troca sobre o valor de uso). Corrobora-se com Foladori (1997, p. 17) quando reforça a análise da relação sociedade/natureza nas formas sociais pré-capitalistas e a capitalista, diz o autor: Esta diferença, tão simples e geral, está na base do esgotamento dos recursos naturais a um ritmo nunca suspeitado na história da humanidade; porém também está na base da utilização irracional de qualquer forma de energia e/ou de materiais e seres vivos”.
O ritmo da expansão capitalista adquire plenitude na fase denominada por Mandel (1985) de capitalismo tardio, período marcado por uma “onda longa com tonalidade expansionista” em que a interação de fatores[iv] econômicos, políticos e sociais favoreceram um auge na obtenção da taxa de mais-valia (valorização do capital acumulado no período precedente) associado à incorporação da inovação tecnológica.
O intenso ritmo de desenvolvimento das forças produtivas neste contexto expansivo é significativo para desvelar o caráter destrutivo do capitalismo sobre o trabalho e a natureza, tendo em vista que a automação intensifica suas contradições: a socialização crescente do trabalho agregada à redução do emprego e à apropriação privada; a produção de valores de uso e a realização de valores de troca; o processo de trabalho e o de valorização (MANDEL, p. 138-139). As estratégias de internacionalização de capitais para obter lucros, promoveram uma acelerada interferência na dinâmica da natureza. De fato, “[...] o assombroso aumento da produtividade do capital o faz senhor e voraz devorador dos recursos humanos e materiais do planeta [...]” (SILVA, 2008, p.34).
Esse longo período de acumulação de capitais (pós Segunda Guerra Mundial) em que o capitalismo superou a crise anterior (crise de 1929) encontra limites na queda da taxa de mais-valia em meados dos anos de 1960. No início da década de 1970, começa a apresentar sinais do que Mészáros (2011) designa de crise estrutural do capital, tendo como estratégias demandadas para reorganizar a produção da vida material, o neoliberalismo[v], a reestruturação produtiva[vi] e a financeirização[vii].
Desse modo, as transformações macroeconômicas advindas da disposição do capitalismo para transformar suas crises[viii] em força propulsora ao seu crescimento resultaram em uma crescente dificuldade de valorizar-se, estabelecendo uma crise estrutural, cuja dinâmica crescente incorpora em seu metabolismo um momento histórico em que “[...] passamos da prática de destruição produtiva da reprodução do capital para uma fase em que o aspecto predominante é o da produção destrutiva cada vez maior e mais irremediável” (MÉSZÁROS, 2011, p. 267, grifos do autor).
Com esse cenário, a “questão ambiental” não poderia mais ficar de fora das preocupações dos grupos capitalistas, dos Estados nacionais, e de muitos segmentos da sociedade civil, adquirindo notoriedade e espaço na agenda geopolítica internacional, pois os níveis de destrutividade da natureza tornaram-se visíveis, comprometendo as condições da reprodução da vida sob o comando do capital. No entanto, como a destrutividade é uma característica estrutural do sistema do capital, o fato de a natureza apresentar sinais de finitude, de degradação dos seus recursos naturais, não significou que a acumulação capitalista foi freada, ao contrário, a natureza é subordinada, de maneira crescente, a condição de mercadoria para manter a lógica expansiva do capital.
A crise estrutural do capital desvela totalmente a essência destrutiva do sistema do capital, qualifica-se por apresentar um grau de intensidade e capilaridade muito maior que as crises anteriores do sistema do capital, em que havia e foram aproveitadas as possibilidades de deslocamento das contradições estruturais desse sistema de controle metabólico. Segundo Mészáros (2011, p.797), a crise estrutural refere-se a uma condição que “[...] afeta a totalidade de um complexo social em todas as relações com suas partes constituintes ou subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é articulada”. Por essa razão “põe em questão a própria existência do complexo global envolvido, postulando sua transcendência e sua substituição por algum complexo alternativo”.
Mészáros (2011, p. 796, grifos do autor) aponta quatro aspectos essenciais do modo de ser da crise estrutural:
(1) seu caráter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular (por exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de trabalho, com sua gama específica de habilidades e graus de produtividade, etc.); (2) seu alcance é verdadeiramente global (no sentido mais literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado a um conjunto particular de países (como foram todas as principais crises no passado); (3) sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir, permanente, em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises anteriores do capital; (4) em contraste com as erupções e os colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado, seu modo de se desdobrar poderia ser chamado de rastejante, desde que acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando a complexa maquinaria agora ativamente empenhada na ‘administração da crise’ e no ‘deslocamento’ mais ou menos temporário das crescentes contradições perder sua energia.
A crescente dificuldade de o sistema do capital valorizar-se é a razão de ser dessa crise que impõe mecanismos para manter os fluxos econômicos, novas formas perdulárias baseadas na exacerbação da exploração do trabalho e devastação da natureza. A utilização recorrente de práticas de acumulação predatórias é denominada por Harvey (2013) de “acumulação por espoliação” caracterizada pela
[...] mercadificação e a privatização da terra e a expulsão de populações; a conversão de várias formas de direitos de propriedade (comum, coletiva, do Estado etc.) em direitos exclusivos de propriedade privada; a supressão dos direitos dos camponeses às terras comuns [partilhadas]; a mercadificação da força de trabalho e de consumo; processos coloniais, neocoloniais e imperiais de apropriação de ativos (inclusive de recursos naturais); a monetização da troca e a taxação, particularmente da terra; o comércio de escravos; e a usura, a dívida nacional e em última análise o sistema de crédito como meios radicais de acumulação primitiva. (HARVEY, 2013 p.121).
Conforme as argumentações do autor esta forma de acumulação em curso, refere-se a uma atualização da tese da “assim chamada acumulação primitiva” apontada por Marx (1996) sinalizada anteriormente. Enfatiza que a “acumulação por espoliação” é um elemento inerente ao sistema do capital, essencial para seus processos de reprodução, operado de acordo com o momento histórico do capitalismo, especialmente em tempos de crise estrutural. Portanto, no bojo dos ajustes do sistema, tem sido uma alternativa crucial para enfrentar à lei tendencial à queda da taxa de lucro, imposta principalmente aos países de capitalismo periférico que dispõem de reservas significativas desses recursos naturais, como é o caso do Brasil, para manter o motor da acumulação e continuar a reprodução do capital.
O “esgotamento dos potenciais civilizatórios do capital” demarca a crise estrutural que se revela numa “crise de dominação em geral”, na existência de uma unidade entre destruição humana e a devastação imposta a natureza, posta em movimento nos diversos mecanismos para tentar reverter esse novo quadro de crise. Acerca dessa unidade, Mészáros (2011, p.801) ressalta:
A devastação sistemática da natureza contínua do poder de destruição- para os quais se destina globalmente uma quantia superior a um trilhão de dólares por ano – indicam o lado material amedrontador da lógica absurda do desenvolvimento do capital. Ao mesmo tempo ocorre a negação completa das necessidades elementares de incontáveis milhões de famintos: o lado esquecido e que sofre as consequências dos trilhões desperdiçados. O lado humano paralisante deste desenvolvimento é visível não só na obscenidade do ‘subdesenvolvimento’ forçado, mas em todos os lugares, inclusive na maioria dos países de capitalismo avançado. [...] Desse modo, ao manter milhões de excluídos e famintos, quando os trilhões desperdiçados poderiam alimentá-los mais de cinquenta vezes, põe em perspectiva o absurdo desse sistema de dominação.
A obsolescência programada, impulsionada pela ciência e tecnologia, é outro mecanismo destrutivo que o capitalismo opera na contemporaneidade, o qual não pode se desvencilhar sem que isso resulte em profundos entraves para sua reprodução. Diz respeito ao processo de encurtar a vida útil das mercadorias visando descartá-las precocemente, de modo a impulsionar o consumo restrito a uma parcela da população possuidora da mercadoria dinheiro, implicando em devastação e poluição na natureza unicamente para assegurar de forma acelerada o ciclo produtivo ampliado do capital. Assiste-se, portanto, “[...] a alocação de uma porção cada vez maior da riqueza social para a produção do desperdício institucionalizado.” (MÉSZÁROS 2011, p. 617; grifos do autor).
Na dinâmica imposta pela crise estrutural ( uma busca incessante para destravar a produtividade e obter mais-valia), a produção de mercadorias, dependente, cada vez mais de, de combustíveis fósseis e uso de elementos químicos altamente tóxicos, movimento que alinhado a generalização da descartabilidade, produz desequilíbrios significativos sobre o conjunto dos ecossistemas, dos quais destacamos alguns elementos das mudanças climáticas enquanto uma das expressões da “questão ambiental” mais discutida.
A relação sociedade/natureza mediada pelas relações mercantis e uso predatório dos recursos naturais incide diretamente no clima planetário, nos fenômenos como chuva, tempestades, furacões, enchentes, etc. De acordo com Simião (2021, p.118) na dinâmica das mudanças climáticas “[...] o aquecimento global, que se deve às emissões elevadas de gases poluentes na atmosfera, pelo aumento da queima dos combustíveis fosseis [...]”, ocupa lugar de destaque no movimento das consequências históricas que legitimou o sistema do capital amparado na intensa destrutividade ambiental na cena contemporânea.
Nas últimas décadas o padrão produtivo e o estilo de vida capitalista vêm alterando drasticamente o efeito estufa, importante fenômeno natural para manter o equilíbrio ambiental através do controle da temperatura. Assim, tem-se um quadro em que “[...] o acúmulo excessivo de gases de efeito estufa na atmosfera provoca o aquecimento elevado do planeta, colocando em risco o equilíbrio natural. Isso vem ocorrendo com muita velocidade pela poluição excessiva, super aquecendo o planeta.”. (Ibidem, p.119). Acerca da problemática Marques (IHU On-Line, 2021, grifado no original) argumenta:
Nos últimos quarenta anos, a taxa de aumento das concentrações atmosféricas de gases de efeito estufa -GEE resultantes de emissões antropogênicas desses gases quase dobrou, de 1,28 ppm (partes por milhão) em média por ano na década 1970-1979 para 2,4 pmm na década de 2010-2019. Esse aumento está ocasionando, como se sabe, aceleração do aquecimento global e intensificação das demais anomalias do sistema climático. Segundo um relatório da Organização Meteorológica Mundial, há 24% de chances de que pelo menos um ano até 2024 seja ao menos 1,5°C mais quente que a média do período pré-industrial (1850-1900) e essas chances aumentam com o tempo. Entre 2025 e 2030 é já muito alta a probabilidade de se atingir um aquecimento médio superficial global, terrestre e marítimo combinado entre 1,5ºC e 2ºC acima do período 1850-1900. [...] As taxas de defaunação, de desmatamento e, portanto, de extinções em massa de espécies animais e vegetais não têm precedentes na história de nossa espécie. Segundo a Plataforma Intergovernamental Científico-Política de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos -IPBES, ‘a taxa de perda das paisagens de florestas tropicais intactas triplicou em 10 anos, devido à indústria madeireira, à expansão agropecuária, ao fogo e à mineração (bem estabelecido)’. O balanço das 20 Metas de Aichi, incluídas no Plano Estratégico para a Biodiversidade para 2011-2020 adotado por quase 200 nações na COP10 da Convenção da Diversidade Biológica - CBD em Nagoya, é quase totalmente negativo. Richard Gregory, da Royal Society for the Protection of Birds, deu voz à comunidade científica ao declarar que esse balanço ‘representa um fracasso maciço, se não mesmo catastrófico, em todos os níveis.’.
Mudanças climáticas e perda da biodiversidade estão interconectadas[ix] e compartilham os mesmos fundamentos: a dinâmica insustentável do sistema do capital. As advertências científicas não têm resultado em mudanças nos processos produtivos, no sentido de o sistema do capital reconhecer o real sentido de limite. As iniciativas públicas e privadas para enfrentar a “questão ambiental” são pífias. Enfrentar as mudanças climáticas, por exemplo, se resume ao controle das emissões de carbono operacionalizado seguindo uma agenda de acordos e protocolos entre países centrais e periféricos pautados no mantra do desenvolvimento sustentável[x], ideologia que concretamente resulta “[...] em mais do mesmo, insustentabilidade ambiental e social [...]” (NUNES, 2022, p.143).
[i] “No modo de produção primitivo, era a propriedade comunal primitiva. No modo de produção escravista e feudal, era a propriedade privada do senhor de escravos e do senhor feudal. No modo de produção capitalista, ’a forma social’ desta riqueza é o capital” (LESSA; TONET, 2012, p. 28).
[ii] John Bellamy Foster em sua obra “A ecologia de Marx: materialismo e natureza” recupera as teorias marxianas apresentando seu sentido ecológico. Argumenta que Marx ao formular as categorias metabolismo, alienação, falha metabólica, corpos orgânico e inorgânico, refere-se à relação insuprimível entre sociedade e natureza, sobretudo as contradições desta relação na sociedade capitalista cujas imposições conduzem ao bloqueio da realização humana e destrutividade ambiental. A riqueza teórico-metodológica de Marx ao trabalhar com as referidas categorias, especialmente a “falha metabólica”, permitiu que "[...] Marx desenvolvesse uma crítica da degradação ambientalista que antecipava boa parte do pensamento ecológico de hoje.". (FOSTER, 2010, p. 202).
[iii] Para Marx (2004) objetivação refere-se ao processo no qual através do trabalho a força espiritual do homem se fixa no objeto.
[iv] O acordo fordista-keynesiano impulsionou avanços e reorganização na estrutura produtiva e na esfera do consumo (crescimento do poder de compra/ pleno emprego). Antunes (1995) oferece uma análise aprofundada desse processo.
[v] Trata-se de uma nova roupagem da “[...] concepção de sociedade (tomada como um agregado fortuito, meio de o indivíduo realizar seus propósitos privados) fundada na ideia da natural desigualdade entre os homens e uma noção rasteira da liberdade (vista como função da liberdade de mercado)” (NETTO; BRAZ, 2006, p.238).
[vi] Nova fase de acumulação do capital estruturada na incorporação do modelo de produção flexível toyotista, com processos produtivos de mercadorias baseados no Just in time.
[vii] A financeirização da economia (entrelaçamento do capital bancário com o capital industrial) assume papel predominante para recuperar as desejáveis taxas de lucros do capital com a hegemonia dos setores rentistas.
[viii] Conforme as análises de Netto e Braz (2006). As crise são elementos constitutivos do sistema de reprodução metabólico do capital. Portanto, fazem parte do seu funcionamento histórico que determinam que sejam inelimináveis, pois estão relacionadas ao seu modo de ser expansivo, acumulador e concentrador de riquezas.
[ix] “Embora as mudanças climáticas não tenham sido o principal causador da perda de biodiversidade até hoje, se não controlarmos o aquecimento para menos de 2°C, de preferência 1,5°C, é provável que se tornem a causa principal da perda de biodiversidade e da degradação dos serviços ecossistêmicos nas próximas décadas.” (WWF, 2022, p.16).
[x] “[...] trata-se de um discurso que propala a capacidade do sistema de compatibilizar “desenvolvimento econômico e preservação ambiental”, desde que indivíduos adotem posturas mais respeitosas para com a natureza. Sob o manto da responsabilidade socioambiental, os meios de comunicação enfatizam, cotidianamente, experiências bem-sucedidas, iniciativas empresariais “sustentáveis”, revelando uma ofensiva ideológica sem par, cujo fim é convencer a todos de que é possível superar a degradação ambiental sob o signo do capital. (SILVA; ARAÚJO; SANTOS, 2012, p.96).
Considerações finais
O percurso delineado até aqui se insere no complexo debate que envolve crise estrutural do capital e destrutividade ambiental ou “questão ambiental” (historicamente abordada com foco nos seus aspectos biofísicos pelas ciências naturais), sob uma perspectiva crítica. Podemos afirmar que a natureza cumpre papel fundamental no desenvolvimento das sociedades humanas. A relação sociedade/natureza, mediada pelo trabalho, possibilitou a aquisição e qualificação de conhecimentos e habilidades essenciais para transformar a natureza em objetos úteis à produção e reprodução da vida social.
A modernidade capitalista altera esse processo na medida que organiza a sociedade para a produção e valorização do valor, promovendo uma ilusão de que sociedade e natureza estão separadas e que é preciso dominá-la inteiramente enquanto sinônimo de “progresso”, no entanto, desconsidera seus limites e consequências que conduzem à finitude planetária e da espécie humana. No cenário da crise estrutural do capital nada deve escapar da lógica de produção e acumulação infinita: privatização e mercantilização são, cada vez mais, processos ampliados.
Nesse sentido, ressaltamos o estudo de Neto (2021) que apresenta uma análise acerca do “novo” marco legal do saneamento básico no Brasil disposto na lei nº 14.026/2020, inserido no âmbito das discussões do movimento de privatização das águas, demonstrando como a privatização desse bem natural, sob a forma de saneamento básico, é um mecanismo central para a valorização do capital, enquanto a perspectiva do direito (serviço público) é “lateralizada”, a “letra da lei” não apresenta avanços significativa para a população usuária.
O necessário debate público sobre a destrutividade ambiental não pode dissociar o Estado desse processo. Suas funções econômicas e políticas o conforma enquanto “administrador dos ciclos de crise” (NETTO, 2011, p.26) para assegurar a expansão, concentração e acumulação de riquezas pelo capital, apresenta, assim, uma tendência destrutiva em relação sua relação com a natureza e a sociedade (SILVA, 2022) respaldando ações que não priorizam o real atendimento de necessidades humanas e sociais.
A crise estrutural aprofunda os contornos destrutivos desse sistema. Decerto, que os impactos ambientais gerados pelos seus imperativos deflagram conflitos, acirram as lutas sociais, que expõem projetos societários distintos: de um lado o grande capital concebendo a natureza como mercadoria, fonte de enriquecimentos; do outro a classe trabalhadora, os mais empobrecidos, sobretudo, populações tradicionais que dependem diretamente dos ecossistemas com algum grau de preservação para sobreviver. O campo da destrutividade ambiental é mais um importante espaço de contrapor à barbárie do capital em crise e refletir sobre estratégias para a construção de uma sociedade emancipada que se organize regulando racionalmente o metabolismo que exerce com a natureza.
[1] Especificamente sobre a relação entre Estado brasileiro e destrutividade ambiental no contexto do governo Bolsonaro (2019-2022), oferecendo uma análise de algumas ações do governo federal que impactaram a política ambiental, sob a orientação da Prof. Dra. Carla Alessandra da Silva Nunes.
[1] Entendida como o “[...] conjunto das manifestações da destrutividade da natureza -cujas raízes encontram-se no desenvolvimento das relações de propriedade – e seus desdobramentos sociopolíticos” (SILVA, 2008, p.64-65).
[1] A concepção de sociedade adotada aqui corresponde a apresentada por Netto e Braz (2006, p.37, grifado no original; suprimimos): “[...] não é simplesmente o agregado dos homens e mulheres que a constituem, não é um somatório deles, nem algo que paira acima deles; por outro lado, os membros da sociedade não são átomos, nem mônadas, que reproduziriam a sociedade em miniatura. Não se pode separar a sociedade dos seus membros: não há sociedade sem que estejam em interação os seus membros singulares, assim como não há seres sociais singulares (homens e mulheres) isolados, fora do sistema de relações que é a sociedade. O que chamamos de sociedade são os modos de existir do ser social; é na sociedade e nos membros que a compõem que o ser social existe: a sociedade, seus membros, constitui o ser social e dele se constitui. “Por natureza entendemos o conjunto dos seres que conhecemos no nosso universo, seres que precederam o surgimento dos primeiros grupos humanos e continuam a existir e a se desenvolver depois desse surgimento. Ela se compõe de seres que podem ser agrupados em dois grandes níveis: aqueles que não dispõem da propriedade de se reproduzir (a natureza inorgânica) e aqueles que possuem essa propriedade, os seres vivos, vegetais e animais (a natureza orgânica). A distinção entre os níveis inorgânico e orgânico, contudo, não significa a existência de uma “dupla natureza” – de fato, a natureza é uma unidade, articulando seus diferentes níveis numa totalidade complexa” (NETTO; BRAZ, 2006, p.35, grifado no original).
[1] “No modo de produção primitivo, era a propriedade comunal primitiva. No modo de produção escravista e feudal, era a propriedade privada do senhor de escravos e do senhor feudal. No modo de produção capitalista, ’a forma social’ desta riqueza é o capital” (LESSA; TONET, 2012, p. 28).
[1] John Bellamy Foster em sua obra “A ecologia de Marx: materialismo e natureza” recupera as teorias marxianas apresentando seu sentido ecológico. Argumenta que Marx ao formular as categorias metabolismo, alienação, falha metabólica, corpos orgânico e inorgânico, refere-se à relação insuprimível entre sociedade e natureza, sobretudo as contradições desta relação na sociedade capitalista cujas imposições conduzem ao bloqueio da realização humana e destrutividade ambiental. A riqueza teórico-metodológica de Marx ao trabalhar com as referidas categorias, especialmente a “falha metabólica”, permitiu que "[...] Marx desenvolvesse uma crítica da degradação ambientalista que antecipava boa parte do pensamento ecológico de hoje.". (FOSTER, 2010, p. 202).
[1] Para Marx (2004) objetivação refere-se ao processo no qual através do trabalho a força espiritual do homem se fixa no objeto.
[1] O acordo fordista-keynesiano impulsionou avanços e reorganização na estrutura produtiva e na esfera do consumo (crescimento do poder de compra/ pleno emprego). Antunes (1995) oferece uma análise aprofundada desse processo.
[1] Trata-se de uma nova roupagem da “[...] concepção de sociedade (tomada como um agregado fortuito, meio de o indivíduo realizar seus propósitos privados) fundada na ideia da natural desigualdade entre os homens e uma noção rasteira da liberdade (vista como função da liberdade de mercado)” (NETTO; BRAZ, 2006, p.238).
[1] Nova fase de acumulação do capital estruturada na incorporação do modelo de produção flexível toyotista, com processos produtivos de mercadorias baseados no Just in time.
[1] A financeirização da economia (entrelaçamento do capital bancário com o capital industrial) assume papel predominante para recuperar as desejáveis taxas de lucros do capital com a hegemonia dos setores rentistas.
[1] Conforme as análises de Netto e Braz (2006). As crise são elementos constitutivos do sistema de reprodução metabólico do capital. Portanto, fazem parte do seu funcionamento histórico que determinam que sejam inelimináveis, pois estão relacionadas ao seu modo de ser expansivo, acumulador e concentrador de riquezas.
[1] “Embora as mudanças climáticas não tenham sido o principal causador da perda de biodiversidade até hoje, se não controlarmos o aquecimento para menos de 2°C, de preferência 1,5°C, é provável que se tornem a causa principal da perda de biodiversidade e da degradação dos serviços ecossistêmicos nas próximas décadas.” (WWF, 2022, p.16).
[1] “[...] trata-se de um discurso que propala a capacidade do sistema de compatibilizar “desenvolvimento econômico e preservação ambiental”, desde que indivíduos adotem posturas mais respeitosas para com a natureza. Sob o manto da responsabilidade socioambiental, os meios de comunicação enfatizam, cotidianamente, experiências bem-sucedidas, iniciativas empresariais “sustentáveis”, revelando uma ofensiva ideológica sem par, cujo fim é convencer a todos de que é possível superar a degradação ambiental sob o signo do capital. (SILVA; ARAÚJO; SANTOS, 2012, p.96).
Referências
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ARAÚJO, Nailsa Maria Souza; SILVA, Maria das Graças e. O metabolismo social e sua ruptura no capitalismo: aspectos históricos e sua configuração na etapa de financeirização da natureza. Revista Germinal n.2, vol.13. p. 151-173, ago. 2021. Disponível em https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/45306/25204 .
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MARQUES, Luiz. À beira do abismo, uma sociedade inerte diante do colapso climático. [entrevista concedida a] Ricardo Machado. Instituto Humanitas Unisinos (IHU On-Line), 2021.
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