Leite (2005, p. 13-14) divide a historiografia sobre o cinema no Brasil nos seguintes períodos: 1. A época dos primeiros realizadores, sob a qual predominada a influencia direta do cinema estadunidense (estúdios cinematográficos), das primeiras décadas do século XX; 2. O momento da intervenção direta do Estado na produção do cinema nacional, marcada, principalmente, pela propaganda ideológica do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP/1939-1945), durante o Estado Novo e, em um segundo momento, pelo projeto educativo do Instituto Nacional de Cinema (INCE e INC/1937-1969), que perdurou até o final da Ditadura Militar (1964-1985), período no qual foi criada a EMBRAFILME (Empresa Brasileira de Filmes S.A./1990) e 3. O contexto do “cinema da retomada” (1995-2002), com destaque para os temas nacionais de conteúdo social, que conquistaram, também, o mercado internacional.
Este artigo reflete, através de uma análise sistemática da literatura, sobre as possibilidades de utilização dos filmes produzidos nos anos 2000, como dispositivos pedagógicos para o levantamento de temas relativos à questão da negritude em sala de aula, vinculados ao conteúdo curricular de História do Brasil. Destaca-se que esta prática se sustenta teoricamente em dois referenciais: 1. No método do filme como contra análise da sociedade, defendido por Marc Ferro (2010) e 2. Como documento social (Carretero, 2002).
Sobre as referências citadas, destaca-se, inicialmente, que o objetivo de Ferro (2010) era argumentar sobre o filme como documento histórico. Nesse sentido, ressalta-se que não há como iniciar qualquer reflexão sobre a relação cinema e história, mesmo no campo educativo, se não partirmos da discussão sobre o estatuto epistemológico da imagem.
No entender de Ferro (2010), além de documento histórico, a imagem fílmica também pode ser compreendida como agente da história, visto que foi utilizada pelos Estados, e continua a ser, como instrumento de dominação, propaganda e, principalmente, produtora e sustentadora de mentalidades. Nesse sentido, diante deste contexto de hiper visualização sob o qual vivemos, aprender a “ler e escutar” as imagens (Ferro, 2010, p. 44) torna-se uma das funções indispensáveis no processo de ensino e aprendizagem.
Para Ferro (2010), tanto o ensino quanto a pesquisa histórica devem ser revestidos de uma intenção compreensiva das sociedades, principalmente no que se refere ao seu potencial como agente modelador de padrões de comportamentos previamente estabelecidos. Assim sendo, o espectro imagético nunca será uma “representação”, mas criação e sustentação de valores e ações capazes de condicionar tanto o tempo presente quanto o devir histórico.
Em vista disso, não se pode compreender uma ação pedagógica na qual a imagem não faça parte do “universo mental” da sala de aula. Nesse sentido, a primeira questão que se apresenta, refere-se à ética do/a profissional da educação, que não deve prescindir do seguinte questionamento: a que “senhor” eu estou servindo? Visto que ninguém pesquisa ou ensina de forma “inocente”; e, em segundo lugar, cabe ao/a professor/a reformular seus métodos e técnicas de ensino, vinculando-os às especificidades icônicas da imagem. Por conseguinte, o exercício da prática profissional do educador é, inevitavelmente, sempre uma questão de escolha.
Acabou-se o tempo em que o filme era considerado “um passatempo de iletrados” (Ferro, 2010, p. 29); pois, hoje, indiscutivelmente, a imagem constitui-se em objeto recorrente das nossas pesquisas; visto que diz muito, tanto sobre quem a produz quanto sobre quem a recebe. Ou seja, a imagem mostra o que “não deve” ser visto, revela “segredos” que não poderiam ser revelados, em suma: desvenda o “latente por trás do aparente”, constituindo-se, dessa forma, numa contra análise da sociedade que a produz (Ferro, p. 33).
Ante o exposto, ressalta-se que, nesta pesquisa, o filme é compreendido como uma arte que nos permite questionar a sociedade por dentro, atingindo camadas muito profundas do nosso “inconsciente coletivo” (Jung, 2000). Escolher a imagem como objeto de estudo não é uma proposta para quem pretende investigar a “superfície”; mas antes, para que escolhe “mergulhar”, sem medo, no desconhecido. Assim sendo, levanta-se a seguinte questão de pesquisa: Quais são as possibilidades de utilização de filmes do cinema brasileiro dos anos 2000, como dispositivo pedagógico, que nos permita refletir sobre o tema da negritude em sala de aula?
Uma panorâmica sobre os princípios do Cinema da Retomada
No início dos anos 2000 a produção cinematográfica brasileira estava saindo de uma crise produzida pelos decretos institucionais, de cunho essencialmente neoliberal, publicados ainda durante o governo do presidente Fernando Collor de Mello (15 de mar. de 1990 – 29 de dez. de 1992), que extinguiram os principais órgãos de fomento à sétima arte brasileira, como o Concine (Conselho Nacional de Cinema) e a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes).
No período em questão, a indústria do cinema conseguiu implementar medidas com o objetivo de fomentar produção nacional, tentando convencer tanto ao Estado quanto aos investidores de que era seguro e rentável investir na produção de películas.
As medidas empreendidas pelos cineastas desse momento da Retomada, revelam muito mais do que apenas uma simples mudança relacionada à temática cinematográfica. Postulando-se como uma estratégia de resgatar o passado como patrimônio, mesmo que a memória tenha sido utilizada como um mero recurso de “reverência e uso” (Ikeda, 2022, p. 101). Diante dessa premissa, compreende-se que o Cinema da Retomada representou uma readequação do consumo da sétima arte brasileira, caracterizando-se por um novo direcionamento de público, tanto consumidor quanto participante das películas. Compreende-se tal estratégia, se levarmos em consideração o amplo apoio popular que foi promovido, no sentido de reivindicar a existência de um cinema nacional; principalmente porque os cineastas sabiam que deviam gerar comunicabilidade, emprego e renda. Para tanto, utilizou-se a estratégia de mostrar ao mercado que o audiovisual era, também, um setor economicamente produtivo que produzia empregabilidade (Ikeda, 2022, p. 100).
Sabe-se que, assim como outras manifestações culturais deste país, o cinema brasileiro sempre foi economicamente dependente dos incentivos fiscais e do financiamento proporcionado pelo Estado. Por conseguinte, as mudanças que se configuravam deste da década de 1990 obrigaram à indústria cinematográfica nacional, no início dos anos 2000, a reorganizar a estrutura produtiva dos filmes, adaptando-se tanto ao interesse dos produtores quanto ao gosto dos consumidores.
De acordo com Almeida (2019), isso acontece porque a estabilidade dos sistemas sociais depende da capacidade das instituições de absorver os conflitos e antagonismos que são inerentes à vida social; como um artificio para se reformar, dá conta de seus conflitos e responder às pressões externas, a fim de preservar sua existência. Assim sendo, ao reestruturar narrativas, a instituição do cinema nacional conseguiu retomar o seu prestígio, cedendo às pressões da classe média e alta, que via no cinema anterior a esse período, como “uma espécie fadada à extinção” ou “meramente como um produto vulgar, ligado à pornografia” (Ikeda, 2022, p. 32).
Na tentativa de aproximar a produção cinematográfica nacional ao gosto visual do público consumidor, os cineastas desenvolveram certos artifícios estilísticos que acabaram se tornando característicos da referida época. À vista disso, constata-se que tal estratégia deu certo, pois o número de salas de exibição aumentou no Brasil, principalmente se levarmos em consideração as construções de cinemas em redes de Shoppings. Por conta de tal fato, torna-se evidente constatar que o público consumidor daquelas películas era essencialmente composto por pessoas provenientes das classes abastadas deste país. Ante o exposto, compreende-se, ainda, o motivo pelo qual os ideais dessa classe são facilmente identificados nas películas que conquistavam o mercado.
Percebe-se, portanto, que temas como a marginalização nas favelas ou estigmas relacionados ao povo do sertão passam a ser predominantes, reforçando, desse modo, as narrativas que perpassam a “diferença do local do outro em relação aos privilégios do meu”; distanciado, desse modo o “fosso” que é facilmente perceptível, por exemplo, pela população negra marginalizada das favelas e de “outras periferias”, que convivem em um mesmo espaço geográfico. Prioriza-se, portanto, um olhar de piedade perante a violência e o subdesenvolvimento, que permeia todos esses espaços relacionados à percepção das “margens”. Para compreender melhor tal ideia, Almeida (2019) afirma que:
Não é incomum que instituições públicas e privadas passem a contar com a presença de representantes de minorias em seus quadros sempre que pressões sociais coloquem em questão a legitimidade do poder institucional (Almeida, 2019. p. 256).
Assim sendo, nesta pesquisa parte-se da premissa, defendida por Carretero (2002), de que a produção cinematográfica de um determinado país encontra-se irremediavelmente associada à mentalidade do seu tempo; conduzindo-se, dessa maneira, como reprodutora da memória coletiva de um povo, pois se projeta a partir de um conjunto de múltiplos textos culturais, que permitem ao observador ter acesso a diferentes tipos de informações.
Contudo, no início dos anos 2000, o cinema nacional não tinha esse panorama de possibilidades, pois se encontrava diretamente atrelado ao mercado e ao gosto de um público elitizado; o que lhe impossibilitava a apresentação de uma produção representativa ou reparadora da imagem do “outro”. Na prática, as imagens cinematográficas dessa época não se encontravam verdadeiramente voltadas para o público em geral, mas buscavam atender aos interesses dos seus dois clientes: a opinião pública e os investidores (Ikeda, 2022, p. 41). Por conseguinte, a representação de classes marginalizadas, não se configurava como possibilidade de reflexão e reavaliação das políticas públicas do Estado em relação às pessoas em situação de vulnerabilidade social; mas, antes, estas foram retratadas de forma ficcional, alegórica ou, até mesmo, estereotipadas; como a finalidade de ocupar o ócio da classe dirigente, em suas incursões cinematográficas, nas redes dos shoppings das grandes cidades, inclusive, no exterior do país. Em suma, eram eles que, ao fim e a cabo, financiavam películas que “espetacularizavam à miséria”; dentro de uma narrativa estética muito parecida com as das telenovelas; que, não por acaso, compartilhavam da mesma empresa de produção.
Diante de tal contestação, acrescenta-se a essa temática os argumentos defendidos por Almeida (2019), quando denuncia a flexibilidade que a classe dominante possui de se remodelar, no intuito de manter o seu status quo, ressignificando o seu gosto estético, quando isso se torna interessante para reafirmar o seu lugar de dominação.
Percebe-se como isso ocorreu através do Cinema da Retomada, no início dos anos 2000; no sentido de que o referido movimento absorveu, através de suas imagens, os conflitos sociais, justificando-os, muito mais que propondo soluções. Principalmente quando se desvencilhou das representações estereotipadas referentes ao povo preto e aos nordestinos que habitam favelas; como faziam as produções que procederam à década de 1980 até aqueles dias; produzindo dramas, quase sempre eivados de violência, no qual figuram temáticas como: as religiões populares, o tráfico e a geografia dos sertões, das favelas e das demais comunidades periféricas (Ramos, 2018, p. 430).
Infelizmente o Cinema da Retomada do início dos anos 2000 não rompeu com a mentalidade racista que o produziu; mesmo quando o povo preto e outras minorias sociais apareciam majoritariamente nos filmes; pois, como afirma Almeida (2019), o racismo não se resume a um problema de representatividade, mas a uma questão de poder real. Ou seja, faz parte da estrutura de um todo que não pode ser contido pela ação de uma minoria específica, como no caso, através de uma película ou de seu casting formado por atores negros. Ademais, o fato de uma pessoa negra estar na liderança, não significa que esteja no poder e, muito menos, que o povo preto esteja no poder (Almeida, 2019, p. 110).
Em vista disso, foi que nesta pesquisa, privilegiou-se a cinematografia do período que compreende a transição entre a Retomada e o Pós-retomada, visto que tais temáticas ratificam claramente a hipótese deste trabalho, qual seja: que a referida estética fílmica, ao invés de combater, acaba reforçando o Racismo Estrutural, pois refletiu o imaginário social dominante do brasileiro médio, principalmente, no que se refere às populações marginalizadas, inclusive a negra; constituindo-se num paradoxo, principalmente no que diz respeito à dimensão máxima da negritude no cinema, qual seja: o domínio não só da temática, bem como da participação em todo processo do filme, desde a produção até a pós-produção; passando, inclusive, pelo roteiro, direção e interpretação.
Assim sendo, como premissa desta pesquisa, compreende-se o referido contexto como um exemplo claro de “absorção” e “normalização” do racismo institucional promovido no campo do cinema nacional, enquanto Instituição Social de um povo. Em face disso, ressalta-se que as películas que foram selecionadas neste trabalho, configuram-se como poderosos agentes produtores de mentalidade social (Ferro, 2010) que, ao serem questionadas pelos alunos/as no contexto da sala aula, podem atuar como dispositivo pedagógico que aprimora a Consciência Histórica sobre a negritude; promovendo a ativação do poder do povo preto e não a reafirmação de imagens opressoras construídas por uma elite, que nada mais deseja, do que se manter como classe dominante.
Filme e Consciência Histórica sobre a Negritude em Sala Aula
Sabe-se que o/a professor/a não deve negligenciar a subjetividade dos/as seus/suas alunos/as durante o exercício de sua prática pedagógica. Diante de tal premissa, espera-se que os/as discentes valorizem tanto as individualidades de cada sujeito envolvido no processo de ensino e aprendizagem quanto a responsabilidade de ministrar os conteúdos arrolados nos livros didáticos.
Nesse sentido, o educador Paulo Freire (1921-1997) defendeu que essa tarefa constitui-se em uma das funções mais importantes na prática educativo-critica. Por conseguinte, a tarefa de garantir que o processo de subjetivação de cada aluno será respeitado torna-se um dever de ofício da docência. De acordo com o autor supracitado, cabe ao/a professor/a viver a tarefa histórica de compreender-se como um ser social, que se mostra presente, e se comunica com os/as seus/suas alunos/as de forma transformadora e criadora, com a finalidade de promover a “assunção de si” daqueles que lhes foram confiados (Freire, 1996, p. 39).
Agindo de tal forma, ainda no entender de Freire (1996), o/a educador/a estaria contribuindo, não para garantir o respeito à individualidade do/a discente, mas, também, a dos grupos nos quais eles/elas encontram-se inseridos/as. Em vista disso, ao compreender-se com ser único e respeitado em sua diferença, os/as alunos/as também desenvolvem a capacidade de compreender que os/as outros/as colegas também têm direito a igual valor, mesmo que pertençam a uma classe social distinta da sua e possuam outras identificações culturais.
No processo de descoberta da sua subjetividade o/a aluno/a desperta para as particularidades do “outro/a. Ainda no entender de Freire (1996), um dos principais objetivos da prática educadora é colocar os/as alunos/as em atitude de observação constante, não apenas do/a outra/a, mas, também, de si mesmo. Trata-se, portanto, de assumir o compromisso de formar sujeitos investigadores, que consideram tanto aos/a outros/as quanto a si mesmo como objetos de pesquisa.
Dessa maneira, ao distinguir-se como participante de um grupo social alocado em um tempo particular da história, o/a aluno/a desenvolve a capacidade de se autoquestionar suas atitudes. Trata-se, portanto, de um processo de alteridade continuada, a respeito do qual o pesquisador Luiz Fernando Cerri (2011) atribui o nome de “Identidade”, definindo-a como sendo: “[...] o conjunto de ideias que tornam possível uma delimitação básica para o pensamento humano (nós e eles), pertencentes ou não pertencentes a um grupo” (Cerri, 2011, p. 31).
Assim, ainda no entender do referido autor, o caminho para se despertar a questão indenitária no/a aluno/a, se dará pelo reconhecimento de imagens, valores, objetos e ideias que os grupos sociais reconhecem como sendo “seus”. Tal processo permite ao/a aluno/a confrontar seus valores subjetivos; ou seja, aconteceria algo parecido com a “assunção de si”; ampliando-se, porém, em algumas dimensões que ainda não foram postas.
Para Cerri (2011), a obtenção da noção de identidade, advém do discernimento do /a aluno/a de se descobrir como um ser alocado em um tempo particular da história. Logo, compreende-se que adquirirem a consciência de reconhecerem-se em uma temporalidade, ou seja, integrantes das “[...] dimensões do passado (de onde viemos), do presente (o que somos), e do futuro (para onde vamos)” (Cerri, 2011, p. 21). A esse fenômeno que permite aos/as alunos/as, através das aulas de história, reconhecerem-se como sujeitos do seu tempo, descobrindo suas particularidades e a dos seus respectivos grupos sociais, vivenciadas ao longo da história, o referido autor chama de Consciência Histórica. Complementando tal ideia, assim afirma Cerri (2011, p. 32): “[...] produzir a identidade coletiva, e dentro dela uma consciência histórica específica e sintonizada com ela, é um dado essencial a qualquer grupo humano que pretenda sua continuidade”.
Nessa pesquisa, portanto, concebem-se as aulas de História como sendo um espaço privilegiado que os grupos minoritários possam fortalecer suas identificações e reforçar suas particularidades, bem como despertá-la naqueles que antes não as reconheciam. Reforça-se que essas são alguns dos objetivos da Lei Nº 10.639/03, que, como visto anteriormente, torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas disciplinas, tanto do ensino fundamental quanto do médio.
Por conseguinte, a obrigatoriedade de execução da referida Lei torna-se um dos principais instrumentos de fortalecimento da Consciência Histórica do alunado, visto que promove a aproximação entre os/as alunos/as com os valores e lutas do seu povo; instigando aqueles que não fazem parte dos mencionados grupos, a entender um pouco mais sobre eles/elas mesmos/as; pois elucida movimentos que antes não recebiam tanto enfoque.
Ante o exposto, reforça-se a ideia defendida por Almeida (2019) de que a representatividade negra, aqui concebida como fator indispensável à noção de negritude, apoia-se nas conquistas progressivas das minorias de conquistar espaços de poder e prestígio social, que antes lhes eram negados.
Contudo, uma única Lei não tem a possibilidade de anular por completo todos os instrumentos de violência que o Estado forjou para si, pois persistem a violência e o racismo institucional. Decorre disso, a necessidade de aprimorar a Consciência Histórica dos/as discentes através de atividades educativas. Para tanto, torna-se mister promover uma renovação urgente dos métodos de ensino, para que o/a professor/a, sustentados/as no aparato do marco legal, continuem a ser agentes que promovem a manutenção de identidades que, sendo mantidas, ampliem a representatividade deste grupo.
O Cinema Nacional e o Ensino de História
Os estudos acadêmicos, que versão sobre investigações referentes ao desenvolvimento ações afirmativas decorrentes de políticas públicas voltadas para a diminuição das desigualdades entre grupos sociais que passaram por processos sistemáticos de discriminações históricas, têm aumentado consideravelmente, mas ainda são escassos, principalmente no que se refere à demanda apresentada, no tocante ao aumento ao acesso de tais grupos a usufruírem de direitos e espaços que possam diminuir desigualdades sociais, promovendo a construção de uma cidadania ampla e irrestrita.
As referidas demandas foram parcialmente atendidas; principalmente depois que a política externa brasileira reconheceu internacionalmente a existência da discriminação racial neste país; a partir da promulgação a Lei 10.639/03, que determina a inclusão do estudo da história e cultura africana e afro-brasileira no currículo da educação básica do Brasil.
Nesse sentido, destaca-se o trabalho de Pereira (2018), que versa sobre a o desenvolvimento dos estudos africanos no Brasil, destacando as mudanças ocorridas depois da promulgação da referida Lei. Neste estudo, chega-se á conclusão que a atuação dos movimentos negros foi indispensável no que tange à modificação dos currículos escolares, em todos os níveis do sistema educacional brasileiro. Ressalta-se desta pesquisa, a premissa básica de que existe um trauma histórico que necessita ser urgentemente superado. Sobre este tema, assim escreve a autora:
[...] a não valorização do passado africano deste alunado, a associação quase que imediata entre negro e escravo e o esquecimento da história da população negra após a Abolição da Escravatura (1888) nos currículos de história, entre outros fatores, são entendidos como a base para a produção de uma identidade negativa que produz, desde muito cedo, uma baixa autoestima no aluno afrodescendente e que perdura até a idade adulta, relegando-o a uma cidadania de segunda classe. (Pereira, 2008, p. 259)
Depreende-se de tal constatação, a necessidade de promover estratégias pedagógicas que visem redirecionar a maneira que o povo negro é identificado nos diferentes suportes que provem conhecimento. Nesse campo, um dos elementos fundamentais refere-se ao controle das narrativas históricas, que se constituem em importantes agentes sociais, pois formam mentalidades e, por conseguinte, estruturam comportamentos (Ferro, 2010).
Em vista disso, Pereira (2008) levanta a questão do “desinteresse” de meninos e meninas negras pela escola, expondo o cuidado que os/as professores/as devem ter em relação ao material didático, ou qualquer outro tipo de suporte informativo que seja usando em sala de aula, procurando evitar, ou quando não possível, ao menos questionar, a maneira como as identidades são construídas através de tais meios. Logo, deve-se promover uma visão equânime sobre a participação dos africanos, dos indígenas e dos europeus na construção social deste país.
Contudo, a referida estratégia não se deve limitar à educação básica ou ao material didático escolar. Por isso, a presença negra nas universidades, em todos os seus níveis, tanto no ensino e na pesquisa quanto na extensão, necessita, também, ser ampliada. Sobre essa dimensão importante da negritude, assim escreve Pereira (2008):
[...] Com a crescente presença de lideranças negras no espaço universitário e nos programas de pós-graduação (principalmente a partir dos anos 1990) aqueles que habitualmente estavam no lugar de “objetos de estudo” passam a se ver como “sujeitos” que tomam para si a tarefa da escrita de sua própria história e experiências individuais e coletivas. Torna-se assim plausível o discurso de que o estudo do negro feito pelo próprio negro teria maior legitimidade e autoridade que estudos feitos por não negros. A maior presença negra dentro da universidade faz borrar a tênue distinção entre “academia” e “militância”, mudando o perfil do campo de estudos raciais e afro-brasileiros e criando tensões antes pouco evidentes (Pereira, 2008, p. 268).
Ou seja, construir negritude envolve ocupar campos que antes eram negados aos homens e mulheres negras, ampliando significativamente a dimensão totalizante da vida social; atingido, como defende a autora supracitada, setores dos mais variados campos, sejam da “[...] simbologia, poder, artes, etnia, organização social e economia [...] tratando de forma coerente e atraente os sistemas culturais africanos (e os culturais afro-brasileiros), embora não sem fortes contradições” (Pereira, 2008, p. 273).
No que tange ao objeto desta investigação, Borges (2012) amplia significativamente tal perspectiva, ao refletir sobre a aplicabilidade da Lei 10.639/03, ao se referir aos cuidados necessários na utilização de documentários sobre temáticas negras em sala de aula, principalmente no que diz respeito à possibilidade de que tais meios possam acabar ratificando preconceitos e discriminações. Em vista disso, o referido autor parte da seguinte premissa: “Não há alguém mais legítimo do que o próprio sujeito para falar da realidade vivida em seu dia-a-dia” (Borges, 2012, p. 82).
Outro ponto bastante significativo no que se refere ao uso do filme em sala de aula, diz respeito à obrigatoriedade de exibição, ao menos duas horas por semana, de filmes brasileiros na escola, de acordo com o que reza a Lei 13.006/2014. Sobre tal questão, Fonseca (2014) debate acerca da relação entre cinema, educação e Estado, problematizando sobre as possibilidades do uso do filme como recurso pedagógico; ao tempo que questiona o papel do Estado brasileiro, no que se refere à produção audiovisual.
O artigo destaca que uso de filmes em sala de aula é uma realidade que faz parte do cotidiano escolar há bastante tempo; o que, de fato, tornaria inoperante a existência de uma Lei que obrigasse tal prática. No entanto, a autora ressalta que não se trata da obrigatoriedade de exibição de qualquer filme, mas, especificamente, de produções brasileiras; o que deixa latente a intencionalidade do legislador em incentivar o cinema nacional e, consequente, formar um público consumidor voltado para este produto. Por conseguinte, não se exime o papel do Estado da referida função. Como bem resume Fonseca (2016, p. 141): “Acoplada a uma ideia de que o cinema tinha uma função cultural, está a reivindicação de que o Estado apoie e assuma o desenvolvimento de uma indústria cinematográfica”.
Diante disso, a autora conclui o artigo afirmando que a obrigatoriedade que a Lei 13.006/14 impõe, não pode ser entendida sem se levar em consideração as políticas públicas voltadas para o incentivo da cinematografia nacional. No entanto, também se compreende que a referida prática possibilita a formação de uma cultura fílmica relacionada à história do cinema brasileiro; podendo ser entendida como de fundamental importância para educação dos/as alunos/as da educação básica.
Aprofundando esta última questão, Dalla Valle e Ravanello (2017) propõe-nos refletir sobre o filme como dispositivo educacional em sala de aula, ainda no bojo das discussões acerca da Lei Nº 13.006/14. Para tanto, as autoras reafirmam o papel do filme como provocador de sensações e significações; que, consequentemente, podem ser ampliadas em agenciamentos coletivos. Em vista disso, as autoras criticam as propostas que chamam de “pedagogizantes”, nas quais, segundo elas, encontra-se um “[...] receituário de como fazer, como ver e o que ver nos filmes” (Dalla Valle; Ravanello, 2017, p. 81). E dizem mais, ampliando consideravelmente o campo de visão sobre a referida prática educativa:
[...] neste texto propomos pensar e articular o cinema de modo relacional, afetivo, múltiplo, em devir, algo que não está pronto, onde existem infinitas probabilidades de aproximação e diálogo. Configurando-se também como dispositivo edu(vo)cativo, ponto de partida, um começo, isento da intensão de prescrever um método a ser implementado. (Dalla Valle; Ravanello, 2017, p. 81).
Assim sendo, as autoras supracitadas compreendem que os temas provocados pelo uso do filme em sala de aula podem ser potencializados “edu(vo)cativamente”, buscando-se caminhos alternativos que se ampliem através de múltiplos campos de aprendizagem. Ademais, explicitam o que compreendem por dispostos, usando os seguintes termos: “[...] os dispositivos nos convidam a pensar sobre as imagens, sobre a narrativa construída, processos que envolvem subjetividades, aprendizagens e signos no ensino” (Dalla Valle; Ravanello, 2017, p. 82).
Segundo as autoras, funcionando como dispositivo, o filme pode provocar novas conexões, sejam relacionadas com a construção do futuro ou a ressignificação do passado, pois, igualmente, memórias também são evocadas. Em vista disso, Della Valle e Revanello (2017, p. 84), afirmam: “[...] o cinema como disparador, desperta e força o pensar, produz afetos, signos e rompem com a ideia que as narrativas fílmicas têm somente o objetivo de entreter e lazer, mas de cativar o espectador para inúmeras problematizações”.
No entender destas autoras, é o poder dos signos que forçam alunos e alunas a pensar, levantando diferentes campos de problematizações sócio historicamente construídos; envolvendo questões como: religião, preconceito, marginalização, gênero, respeito e construção de cidadania.
Por fim, o artigo ressalta a importância da figura do/da mediador/a, no caso, o professor ou a professora, no sentido de provocar no/as alunos/as a experiência de questionar, promovendo, a partir dos filmes, o intercâmbio de ideias que podem estar diretamente vinculadas ao comtiano escolar; aqui compreendidas como Consciência Histórica.
Os Filmes da Retomada e a Reflexão sobre a Identidade Negra
Ante o exposto, compreende-se que o cinema nacional dos anos 2000, carrega consigo os valores de sua época, reforçando a ideia de formação de uma identidade específica, criando estereótipos sobre o que é “ser brasileiro”. Tal constatação propicia o entendimento, para esta pesquisa, de que os cineastas da Retomada contribuíram para expandir tais valores no imaginário social sobre o nosso povo, tanto dentro quanto fora do território brasileiro.
Entretanto, cabe ao/a professor/a que trabalha com o cinema nacional em sala de aula, decompor o referido material fílmico, para que possa refletir, junto com os seus/suas alunos/as sobre como eles/as percebem a construção sobre a imagem do povo negro nas películas que forem escolhidas para serem trabalhadas em sala de aula. Logo, o debate torna-se indispensável dentro do processo de ensino e aprendizagem no qual o filme é utilizado como dispositivo pedagógico, visto que algumas perguntas devem ser levantadas, tais como: Eu me identifico com os/as personagens negras que aparecem no filme? Tenho para com eles/elas uma relação de reconhecimento? A quem interessa os “símbolos de identidade nacional” que este filme reproduz? Estas e outras tantas perguntas não podem sair do radar do/a professor/a que trabalha com cinema.
Tal atitude é justificada, baseando-se no que afirma Borges (2012, p. 72), quando afirma que: agindo assim, “[...] o receptor torna-se coautor ao acrescentar-lhe significados novos, nos quais, o autor pode sequer ter pensado”; noutro momento, este mesmo autor complemente: “[...] cabe ao professor refletir respeitosamente sobre o retorno que seus alunos lhe trazem e, junto com eles, analisar as frestas (ou a ausência delas) utilizadas pelos alunos para chegarem à compreensão que verbalizam” (Borges, 2012, p. 72).
Esse processo mostra-se indispensável, pois se sabe, hoje mais do que nunca, que toda e qualquer narrativa encontra-se eivada de intenções, idiossincrasias e, principalmente, ideologias que atuam fortemente como reforçadoras e construtoras de mentalidades. Assim sendo, como nos mostra a História do Cinema (Sadoul, 1991), compreende-se que o filme é agente e não somente produto do comportamento social.
Depreende-se desta constatação que, o cinema brasileiro da virada do século XX para o XXI, ao inserir a participação cada vez mais efetiva de povos marginalizados como centro dramatúrgico de suas obras, nos entrega, essencialmente, a visão de seus dirigentes e financiadores, que se deleitam, tranquilamente, transformando a miséria destes povos em mercadoria; apoiados na potencialidade nas políticas culturais do Estado em relação ao cinema.
- “Sonhos Tropicais” (2001)
Nessa tentativa de buscar temas e personagens exemplares que pudessem se aplicar às condições e aos problemas do presente (Oricchio, 2003, p. 35), surge a dramatização biográfica da vida do sanitarista Oswaldo Cruz (interpretado por Bruno Giordano) e da imigrante polonesa Esther (Carolina Kasting), protagonistas da película “Sonhos Tropicais”[1] (2001), de André Sturm; contextualizada no Brasil da primeira metade do século XX, regido pelo contexto da Velha República (1889-1930).
No referido período, alastravam-se doenças contagiosas, como a febre amarela e a varíola. Assim sendo, o filme nos mostra a tentativa da população, majoritariamente marginalizada, em resistir perante a obrigatoriedade, liderada pelo sanitarista Oswaldo Cruz (1987–1917), da vacinação em massa da população, gerando o levante que ficou conhecido como a Revolta da Vacina (1904).
Dentre as várias sequências que retratam a vida deste médico, destaca-se a presença de outra figura importante: o Prata Preta (interpretado por Bukasa Kabengele), um dos líderes populares que participou da Revolta da Vacina, exercendo um papel fundamental na oposição ao governo; não só no que se refere à negação da vacina, mas, também, à tentativa de afastar as pessoas pobres para longe do centro do Rio de Janeiro. Portanto, o diretor faz questão de destacar a posição social do negro brasileiro ocupava na sociedade, após a Abolição da escravatura (1888); marcada, essencialmente, pela discriminação social violenta atrelada à pobreza e ao racismo.
Por conseguinte, ressalta-se a luta dos negros pelo reconhecimento de seus direitos e pela sua dignidade. Nesta perspectiva, o filme aborda a situação social do povo negro, geralmente retratado como morador de favela; ao tempo que exalta sua riqueza da cultura; enfatizando manifestações como: o samba, a capoeira e as religiões afro-brasileiras, elementos que denotam a diversidade cultural e a resistência do povo negro em uma sociedade violenta e eivada de desigual.
Compreende-se, contudo, que “[...] a representatividade não é uma questão de quantidade, mas de qualidade, ou seja, não basta ter negros e negras em determinados espaços, mas é preciso que eles e elas tenham voz, autonomia e protagonismo” (Almeida, 2018, p. 65). Nesse sentido, o filme “Sonhos Tropicais” (2001), pode funcionar como um dispositivo importante, não só no que se refere às suas referências históricas, mas, principalmente, quanto à valorização da cultura afro-brasileira e da participação do povo negro em movimentos sociais relevantes.
- “Cidade de Deus” (2002)
Sucesso de bilheterias, em um momento em que o cinema brasileiro reerguia-se, “Cidade de Deus”[2] (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund, baseado no livro homônimo de Paulo Lins, transformou-se em um fenômeno na História do Cinema Brasileiro, principalmente por ter alcançado a marca de 3 milhões de espectadores (Oricchio, 2003).
O filme retrata o microcosmo da favela narrado pelo personagem Buscapé (Alexandre Rodrigues), enquanto relata a organização social de uma comunidade fortemente marcada pela presença cotidiana da criminalidade na vida dos seus moradores. Assim sendo, o horror e a violência são tomadas como marcas estilísticas dos realizadores. Em vista disso, Ramos (2018, p. 446) afirma que, no filme supracitado, “[...] esse horror estaria ‘lustrado’, articulado com maestria narrativamente no modo de representação, mas sem a má consciência própria aos filmes que gradualmente retomaram a representação popular”.
No entanto, tal constatação não o exclui o uso estético da “espetacularização da violência”, tão particularmente utilizada quando se representa, no cinema nacional, a vida cotidiana de comunidades marginalizadas (Almeida, 2019). Em vista disso, Oricchio (2003, 2019, p. 158) afirma que “[...] o traço geral dessa atitude ‘espetacularizada’ é a busca do que há de estético na destruição, na guerra, na morte, anulando, por sua transformação em show, tudo aquilo que essas situações possam ter de insuportável.”
Destaca-se que a caracterização da sociabilidade da favela, no filme, passa pelo estabelecimento de alguns símbolos já marcados e conhecidos da cultura brasileira como: ritmos musicais, o RAP e o Samba, as religiões, de matrizes africanas ou evangélicas, a linguagem, o dialeto, o uso de gírias e a reflexão sobre a identidade brasileira e a realidade social do país.
A referida opção estética dos realizadores é reforçada pela participação efetiva de atores estreantes mesclados com outros já conhecidos; o que, de pronto, confere a “Cidade de Deus”, um lugar de distanciamento da produção cinematográfica de seu tempo. Tal condição é reforçada pela preocupação dos diretores em concentrarem as locações dentro das próprias favelas; o que dá ao filme um “certo ar” de documentário; fato que, no entender de Oricchio (2003) caracteriza esta produção como um “[...] olhar da classe média sobre a favela, mas sem folclorizá-la. Prova disso é a grande aceitação do filme pelo próprio público favelado, que nele tem se reconhecido” (Oricchio, 2003, p. 160).
Compreende-se, portanto, que o filme “Cidade de Deus” (2002) pode ser considerado um dispositivo pedagógico valioso para o ensino de história, não só por fazer referência a acontecimentos, que são próprios ao contexto histórico que lhe serve de suporte; mas por apresentar diferentes arcos narrativos que tocam em temas essencialmente cotidianos; aproximando, dessa forma, o expectador da sua própria realidade social, tanto no que se refere ao convívio com a violência cotidiana quanto coma as manifestações culturais e religiosas da população negra. Nestes sentidos, vislumbra-se a possibilidade do que Freire (1996, p. 42) chama de “assunção de si”; ou seja, a percepção ou reconhecimento da presença dessa parcela da população nos fatos narrados.
- “Quanto vale ou é por quilo?” (2005)
Esta obra cinematográfica “Quanto vale ou é por quilo?”[3], lançada em 2005. Nela, o diretor Sérgio Bianchi utiliza a criação de paralelos entre passado e presente da história do povo negro no Brasil para demostrar a prossecução do racismo, da desigualdade e da violência que foram geradas a partir da história da escravização de mulheres e homens negros/as. Nesta produção as narrativas desenvolvem-se paralelamente; à medida que o diretor se utiliza da comparação dos dois tempos históricos, o da pré-abolição e o contemporâneo, para caracterizar o referido sistema. Constata-se, portanto, a consecução de algumas ideias como, por exemplo, as defendidas por Silvio Almeida (2019), principalmente no que se refere ao Racismo Estrutural, que construiu historicamente ao longo do tempo, apresentando consequências que se arrastam até os dias atuais.
Diferentemente das obras produzidas nesse período, a intenção principal da película, se denota pela preocupação da produção em utilizar fontes históricas; algumas, inclusive, tiradas do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro; para fundamentar sua narrativa. Em vista disso, compreende-se que este filme conta a história do povo negro, levantando questionamentos importantes que inquietam o espectador, não só pelo que apresenta, mas, também, pela forma como é interpretada.
Por conseguinte, temas relevantes são apresentados como: desigualdade, pobreza, exclusão e exploração da população afrodescendente ao longo da história do Brasil. Nessa perspectiva, novamente nos reportamos a Almeida (2019, p. 66), ao defender que não é somente necessário que os homens e mulheres negras/os sejam representados em produções culturais, mas que tenham espaço “[...] para afirmar seus valores e suas normas próprias”. Assim sendo, considera-se que esta película alcançou tal finalidade.
Constata-se tal fato, a partir do momento em que a narrativa estabelece análises comparativas relacionadas à problemática racial no Brasil, apresentando questões sobre o povo negro que podem ser facilmente captadas pelos/as alunos/as em sala de aula; possibilitando, inclusive, ao/a professor/a de História estabelecer relações com conteúdos que são trabalhados no ensino básico, como, por exemplo: a Abolição da escravatura (1888) e a ausência de políticas de inserção dos ex-escravizados na sociedade brasileira; bem como sobre a desigualdade e a violência desenvolvidas nos centros urbanos como decorrência desse processo.
“Cafundó” (2005)
A película “Cafundó”[4], estreada no ano de 2005 e dirigida por Clóvis Bueno e Paulo Betti, aborda a história de João Camargo (interpretado por Lázaro Ramos), personagem histórico brasileiro que assume o posto de líder religioso na cidade de Sorocaba-SP, no contexto do pós-abolicionismo, entre os séculos XIX e XX.
Trata-se de uma película ficcional, de fundo histórico, que insere elementos fatídicos da vida deste ex-escravizado, utilizando-se de elementos próprios da linguagem cinematográfica para dramatizar a biografia do referido personagem. Para tanto, apoia-se em fatos históricos que suscitam questionamentos relativos, não somente à presença do negro na sociedade brasileira, como, também, no que se refere ao respeito às suas manifestações culturais. Além disso, este filme levanta problemáticas como: a expansão urbana e o processo de marginalização do povo negro; a repressão e a violência policial sobre a referida população, a intolerância religiosa e, é claro, o racismo.
Tomando como pano de fundo as mudanças econômicas, culturais e sociais provocados pela Abolição da escravatura (1888), o filme acompanha vida do referido personagem; principalmente no que se refere a sua tentativa de sobrevivência e manutenção da cultura negra, no contexto do momento histórico supracitado. Nesse sentido, destacam-se aspectos importantes da vida de João Camargo, principalmente no que se refere a sua lutando contra a sociedade e o Estado brasileiro; ao tempo que defende o respeito pela sua fé e os seus costumes, no espaço urbano do início do século XX.
Diante disso, pode-se constatar como as resistências (orgânica e cultural) são ações necessárias para a sobrevivência da cultura dos povos marginalizados (Freire, 1996, p. 76). Assim sendo, percebe-se como as festas populares, principalmente no que se refere à presença da religião, aparecem na película como formas de combate ao racismo e a violência empregadas pela sociedade. Percebem-se, ainda, os costumes da sociedade branca que se projetaram na longa duração, vinculados a valores provenientes de costumes escravagistas; fazendo com que a luta pela cidadania dos ex-escravizados, agora libertos, prolongue-se por muitos anos.
Também nesta película aparecem diversos aspectos da cultura afro-brasileira que podem ser abordados em sala de aula, como, por exemplo: a língua Banta (que é mostrada no filme como uma forma de resistência), o sincretismo religioso, suas crenças, manifestações culturais e, principalmente, o tratamento que a sociedade da época dava ao ex-escravizado, que necessitava de uma inserção mais justa e igualitária. Assim, constata-se que algumas sequências deste filme podem ser utilizadas em sala de aula para levantar problemas sobre questões atreladas a temas como a escravidão, a abolição, a resistência negra e a formação identidade afro-brasileira.
[1] Sonhos Tropicais. Direção e Produção: André Sturm. Rio de Janeiro: Pandora Filmes, v. 144, 2001.
[2] Cidade de Deus. Direção: Fernando Meirelles Kátia Lund. Produção: Andrea Barata Ribeiro. Roteiro: Braulio Mantovani. [S. l.]: VideoFilmes, 2002. 130min.
[3] Quanto vale ou é por quilo? Direção: Sérgio Bianchi. Roteiro: Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi. Rio de Janeiro: Agravo Produções Cinematográficas, Rio filmes, 2005. 104 min.
[4] Cafundó. Direção: Clovis Bueno e Paulo Betti. Produção: Paulo Betti; Virginia W. Moraes; R.A. Gennaro. Roteiro: Clovis Bueno e Paulo Betti. [S. l.]: Prole de Adão, 2005. 102min.
Diante do exposto, considera-se que as possibilidades de utilização de filmes do cinema brasileiro dos anos 2000, como dispositivo pedagógico que nos permita refletir sobre o tema da negritude em sala de aula, são amplas e variadas. Principalmente se levarmos em consideração que “negritude” é uma ação política, que norteia amplos aspectos relativos ao povo negro, como, por exemplo, a sociedade, a economia, a religião, a produção cultural e, é claro, a educação.
Assim sendo, conclui-se que a obrigatoriedade de exibição de (no mínimo) duas horas mensais de películas nacionais, no Ensino Básico Brasileiro, como determina a Lei 13.006/14, pode funcionar como um dispositivo promotor de Consciência Histórica; visto que a cinebiografia brasileira; principalmente aquela compreendida como Cinema da Retomada, como visto nos filmes analisados nesta pesquisa; apresentam inúmeros elementos simbólicos que podem ser compreendidos pelos/as discentes como motivadores de questionamentos, reflexões e ações referentes ao seu pertencimento, ou não, aqueles universos sociais apresentados nas películas; criando, mantendo ou aprofundando relações indenitárias, que podem ser expandidas tanto para escola como para o resto da sociedade. Considera-se, contudo, que outras pesquisas de ordem prática podem e devem ser desenvolvidas com o objetivo de ratificar, ou refutar, estas e outras propostas de intervenção educativa que envolva a relação cinema e história.
Por fim, acredita-se que uma ampla ação de negritude, como política pública de educação, faz-se necessária para que a tanto a Lei 10.639/03, que obriga o ensino de História e Cultura Afro-brasileira através das disciplinas que fazem parte do currículo do ensino fundamental e médio; quanto a Lei 11.645/08, que versa sobre a obrigatoriedade da temática de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena em todos os níveis da Educação Nacional, sejam efetivamente aplicadas; mesmo depois de vinte anos da homologação deste primeiro dispositivo legal.
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