A concepção de que atividades práticas enriquecem significativamente as aulas de Ciências é trivial entre os educadores. Contudo, a partir de Bachelard (1938) é necessário atentar que essas estratégias, a depender da forma do trabalho docente, podem ser perniciosas para o desenvolvimento da cultura científica.
Posto isso, trazemos para o centro do debate a ideia de Bachelard (1938), quando chama a atenção para a necessidade de impedir um obstáculo epistemológico denominado de experiência primeira, que ocorre quando as atividades experimentais são praticadas sobre a égide da observação primeira se limitando ao divertimento, atratividade ou mesmo assombro do experimento (cores vivas, barulhos e fumaça), desconsiderando a explicação científica. Com base nessa assertiva, o presente estudo tem como objetivo propor pressupostos teóricos e práticos que possam orientar o professor dos anos iniciais a planejar e propor experimentos em um sentido que incite a atenção e o encantamento dos estudantes, mas, sem deixar os elementos essenciais dos conteúdos se ofuscarem, ou mesmo, se perderem, diante do fascínio despertado pelos efeitos dos experimentos.
Com vistas a esse objetivo, o presente estudo se orienta a partir do seguinte problema: Como introduzir, desde os primeiros anos de escolarização, experimentos práticos que incitem o encantamento pelos mistérios da Ciência sem deixar as nuances explicativas dos fenômenos se ofuscarem por efeitos visualmente interessantes? A investigação dessa questão foi feita por meio da pesquisa qualitativa e os dados foram categorizados e interpretados por meio da análise de conteúdo de Bardin (2011).
A partir da análise de uma atividade experimental de Carvalho (1998 et. al), denominada “o problema do barquinho” foram estruturadas cinco categorias. Essas estruturas serviram de suporte para construir resultados de pesquisa, os quais sinalizam que o ensino de Ciências por investigação
por se constituir em uma abordagem didática, que propõe ensinar Ciências a partir de problemas, delineamento e teste de hipóteses, registro, comparação de dados, interpretação e argumento das ideias desenvolvidas impulsiona o estudante a desenvolver o raciocínio do conteúdo de forma engajada e estimulante.
METODOLOGIA
Embasados na abordagem da pesquisa qualitativa, buscamos o rigor científico para essa investigação, isto é, buscamos técnicas alinhadas a um método que, indexado a fundamentos epistemológicos da pesquisa científica, pudessem viabilizar resultados fidedignos. A pesquisa qualitativa “[...] tem por objetivo expressar o sentido dos fenômenos do mundo social” (NEVES, 2007, p. 01).
Nessa abordagem de pesquisa, se faz necessário utilizar um conjunto de técnicas interpretativas que ajudem ao pesquisador descrever e decodificar o significado da situação estudada. Por esse motivo, optamos pela análise de conteúdo, que na perspectiva de Bardin (2011, p. 48) se constitui em:
Um conjunto de técnicas de análises das comunicações visando obter por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/ recepção/ (variáveis inferidas) dessas mensagens.
Assim, trabalhando com duas fontes de informações: A obra de Bachelard (1938) denominada “A formação do espírito científico” e a obra de Carvalho et al (1998), “ Ciências no ensino fundamental: O conhecimento físico”, realizamos de forma sistematizada, uma leitura atenta, buscando construir um diálogo que tornasse possível um encontro de ideias entre as duas obras. Estruturamos algumas categorias que nos ajudaram, em meio a várias informações, a classificar os dados a serem apresentados e discutidos.
Vale destacar, que a técnica da análise categorial funciona como uma “[...] espécie de gavetas ou rubricas significativas que permitem a classificação dos elementos de significação constitutivos da mensagem” (BARDIN 2011, p. 43). Desenhamos cinco categorias que foram construídas a partir da leitura da atividade experimental “O problema do carrinho”, logo após, com o intuito de elencar em que pontos a presente forma de conduzir atividades experimentais pode servir para aprendizagem de conceitos científicos, definimos unidades de significação construídas a partir da obra de Bachelard (1938).
A partir dessa ação, tivemos subsídios para responder o seguinte problema de pesquisa: Como introduzir, desde os primeiros anos de escolarização, experimentos práticos que incite o encantamento pelos mistérios da Ciência sem deixar as nuances explicativas dos fenômenos se ofuscarem por efeitos visualmente interessantes?
REFERENCIAL TEÓRICO
Para Gaston Bachelard (1938) em sua obra “A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento” independente de elementos externos aos fenômenos, como a fugacidade e a complexidade, há intrínseco ao ato de conhecer conflitos que estagnam a evolução do espírito científico. As causas de tais entraves foram denominadas pelo autor de obstáculos epistemológicos que precisam ser expurgados do sujeito. Considerando esses conflitos, inerentes ao ato de conhecer, a tese filosófica sustentada por Bachelard (1938, p. 29) é a de que [...] “O espírito científico deve forma-se contra a natureza, contra o que é, em nós e fora de nós, o impulso e a informação da natureza, contra o fato colorido e corriqueiro.
O espírito científico deve forma-se enquanto se reforma.” Essa assertiva, traz a ideia bastante forte de que o espírito científico deve resistir a sua própria natureza de diante do conhecimento partir do que é fácil, imediato, da premissa que utiliza com maior frequência, daquilo que crê saber com clareza. Para Bachelard (1938), essa resistência é essencial para formação do espírito científico, uma vez que, diante do real o espírito não pode apresentar um comportamento ingênuo orientado pela observação primeira, afinal, ela é pitoresca, apoiada em opiniões frágeis e conflituosas.
Assim, a tese filosófica de Bachelard (1938) tem como fulcro a acepção de que a cultura científica deve partir de uma catarse intelectual que destrua a doxa, primeiro obstáculo epistemológico. Nesses termos, para o início dessa cultura é preciso haver uma espiritualização que encaminhe a alma a rupturas com conhecimentos anteriores, isto é, que permita a superação de ideias mal compreendidas.
De tal modo, Bachelard (1938) entende que a Ciência surge de forma dissidente do senso comum, o que significa que não há continuidade entre os conhecimentos comuns e os científicos, antes, o que há são puras rupturas. Nessa perspectiva, o autor concebe que de uma teoria de conhecimentos a outra – teoria de Newton a teoria de Einstein, por exemplo – também, não existe continuidade e, nem mesmo, complementaridade, mas sim, ruptura.
Bachelard (1938) afirma que os obstáculos epistemológicos são questões que devem ser abordadas nos estudos da prática da educação e da história do pensamento científico, essa concepção nos leva a pensar, que se faz pertinente trazer uma discussão acerca das práticas de atividades experimentais, nos anos iniciais do ensino fundamental, alinhada à ideia de ruptura da experiência primeira, isto é, a experiência que se coloca antes e acima da crítica. Mais especificamente, pensamos que é relevante para o ensino de Ciências, nos anos iniciais, trazer um diálogo que pense as atividades experimentais como práticas, que a depender do trabalho didático do professor, pode está enquadrada na seguinte tese de Bachelard (1938, p. 36): o fato de oferecer uma satisfação imediata à curiosidade, em vez de benefício pode ser um obstáculo para a cultura científica. Substitui-se o conhecimento pela admiração, as ideias pelas imagens.
Essa perda da essência da prática experimental se dá pela ausência da abstração racional das ideias que, para além do ver e descrever um fato permite ao sujeito se desvencilhar das sombras que tornam conflituosas o conhecimento do real, ou em outras palavras, permite ao indivíduo se livrar das amarras que o impede de colocar em mobilização os artefatos da razão, bem como de [...] dialetizar todas as variáveis experimentais, oferecer enfim à razão razões para evoluir (BACHELARD, 1938, p. 24).
Nesses moldes, sem o exercício dos atributos da razão, a prática experimental ao invés de se constituir como uma contribuição ao espírito científico acaba por se transformar em um obstáculo ao desenvolvimento da cultura científica, se configurando mais como espetáculo à curiosidade. Bachelard (1938) menciona algumas características das práticas experimentais enquanto obstáculo epistemológico, algumas delas são: Deve ser divertida, fácil, sedutora, causar admiração, assombro e fascinar.
Sob esse prisma, o autor também atenta para a questão de que, por vezes, as explicações construídas pelos sujeitos envolvidos nesse tipo de prática experimental são totalmente desenvolvidas em bases inconsistentes e apressadas. Analisando essa forma de trabalho, Bachelard (1938) constatou em entrevista de recordação das aulas de Ciências, que a maioria dos alunos se lembrava de coisas que explodiam, do medo e espanto dos amigos, mas, nunca das causas objetivas dos conteúdos envolvidos na atividade.
As ideias de Bachelard (1938) se fundamentam na assertiva de que, em primeiro lugar é preciso saber elaborar problemas e que o espírito científico ao procurar saber deve se mover em um sentido de conhecer para logo em seguida questionar novamente, ou seja, o espírito científico não deve trabalhar em uma dinâmica de conhecimento estado, mas sim, de um conhecimento processo. É nesse sentido que trazemos o ensino de Ciências por investigação como abordagem que, em grande medida, coloca o professor na direção de trabalhar com experimentos práticos para além das ações de contemplação dos fenômenos e manipulação de objetos de um experimento.
Essa abordagem didática propõe a liberdade intelectual do indivíduo para que a partir de um problema, exercite, o pensar, o refletir, o comparar dados o produzir evidências, o testar e contestar hipóteses, o argumentar e explicar fenômenos de forma crítica e argumentada. Essa forma de projetar o sujeito na ação de aprender tende a destituir o desenvolvimento de ideias apressadas, inconsistentes, fugazes e ingênuas, como aquelas produzidas no empirismo básico e evidente, denunciado por Bachelard, 1938).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A seguir, apresentamos e discutimos as categorias construídas a partir da análise da
atividade “o problema dos carrinhos” de Carvalho (1998 et.al.).
Categoria 01: O problema
A atividade começa com o professor colocando o seguinte problema:
Eu vou entregar dois carrinhos para cada grupo e, no grupo, vocês vão ver como esses carrinhos funcionam. E vão fazer uma espécie de treino para ver qual dos carrinhos é o melhor para uma corrida. Depois nós vamos fazer uma competição entre os grupos(Carvalho et. al. 1998, p. 48).
Um ponto bastante marcante nos estudos de Carvalho et. al. (1998) ao falar da construção do conhecimento científico é a ideia de que no ensino deve haver uma mudança metodológica de modo a proporcionar a passagem de uma experimentação espontânea para uma experimentação científica. No entendimento da autora, para que essa passagem ocorra é preciso propor os conteúdos em forma de situações problemáticas interessantes, pois, ao procurar na história das Ciências o ponto inicial de um conhecimento novo, sempre é possível obter a seguinte resposta que pode ser resumida na célebre afirmativa de Bachelard (1938, p. 18) [...] “Todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído.
Para não resvalar em falsos centros de interesse, isto é, em experiências que substituem o conhecimento pela admiração, o ensino do conhecimento científico não deve se limitar à contemplação de fenômenos. Como nos diz Sasseron (2015) a observação é importante, mas, é preciso ir além, oportunizando aos estudantes o estudo de ideias, teorias e modelos científicos e a mudança conceitual.
Nesse sentido, Bachelard (1938, p. 55) destaca que [...] “no conhecimento vulgar, os fatos são muito precocemente implicados em razões. Do fato, à ideia, o percurso é muito curto. A impressão é que basta considerar o fato”. Essa ação é uma característica do espírito pré-científico em que as racionalizações prematuras, a vontade de se ter razão antes e acima da crítica e fora de qualquer espécie de discussão e de compreensão do fenômeno é uma tônica. Todavia, a razão é uma atividade psicológica politrópica, o que significa que é preciso ao espírito científico […] “revirar os problemas, variá-los, ligar uns aos outros, fazê-los proliferar.” (BACHELARD, 1938, p. 51).
Carvalho et al (1998) ao pensar atividades investigativas em uma dinâmica em que o envolvimento do estudante não se limita ao plano da observação e manipulação de objetos, se transpondo para um envolvimento intelectual, acaba, em grande proporção, contemplando a assertiva de Bachelard (1938) quando fala da necessidade do espírito científico revirar os problemas. Assim, ações como: construção de hipóteses, teste de hipóteses, análise de relações causais, debate em grupo, reflexão oral, gráfica e escrita acerca do problema experimental são algumas formas de elaborar os primeiros conceitos científicos.
Categoria 02: Agir sobre os objetos e ver como eles reagem
Essa etapa da atividade experimental é o momento em que o professor analisa se o problema a ser resolvido foi entendido pela turma, com esse propósito, o docente passa pelos grupos e avalia como os alunos discutem as hipóteses e manipulam os objetos envolvidos na tarefa. A ação do aluno é ponto chave para que ele não seja um mero expectador, a ideia é que o estudante varie diversas ações no objetivo de verificar as reações correspondentes a cada ação realizada. (CARVALHO et al 1998).
Essa etapa do trabalho, apesar de ser marcada pelo agir e o observar as reações dos objetos, não isola a observação e nem a toma unilateralmente, pois, ao pensar no que fazer para resolver o problema e exteriorizar no grupo possíveis resultados das reações dos objetos, o aluno tece as primeiras construções hipotético-dedutivas que, ao serem testadas, dão bases para que construa argumentos fortemente associados ao fazer, ver e compreender. Consideramos que essa etapa da atividade experimental se constituiu em uma alternativa para evitar o hábito de dar respostas, antes, que a pergunta receba a devida atenção.
O cuidado em tornar a pergunta clara, de forma a dar condições para que os alunos elaborem argumentos acerca do fenômeno, é perceptível no momento em que o professor dá tempo e espaço para vivência da seguinte situação:
As crianças começam a se movimentar imediatamente. Agem sobre os carrinhos para ver como funcionam: empurram-nos com a mão, aprendem a usar o bocal, variam a quantidade de ar na bexiga...Um menino assopra o bocal, que está fechado; a bexiga continua murcha. Outro menino enche a bexiga e fecha o bocal. Coloca o carrinho no chão e dá-lhe um empurrão com a mão. Uma menina estoura a bexiga. O professor passa pelos grupos verificando se o problema proposto foi compreendido (CARVALHO et, al. (1998, p. 49).
O docente pode fazer perguntas da seguinte natureza: [...] “_ Vocês entenderam o que é para fazer? _Contem para mim o problema que vocês têm para resolver.” Carvalho (1998, p 49- 50). Tais situações contribuem para que os alunos explorem devidamente os problemas, ainda mais, contribuem para que o sujeito que está aprendendo não confirme [...] “ seu saber àquilo que o contradiz, em que gosta mais de respostas do que de perguntas.” (BACHELARD p. 19, 1938).
Categoria 03: Agindo sobre os objetos para obter o efeito desejado
Nesse momento do trabalho, os alunos repetem algumas ações da etapa anterior. […] “Eles fazem determinadas coisas para obter determinados resultados” (CARVALHO et. al.1998, p. 22). Com base nessa ideia, a autora afirma que o objetivo das aulas de Ciências é primeiramente conduzir o aluno a resolver experimentalmente o problema, isto é, saber fazer e depois criar condições para que os alunos elaborem em pensamento o “como” conseguiram resolver o problema e o “porquê” dele ter sido resolvido.
Pensamos que, embora, as etapas “Agir sobre os objetos e ver como eles reagem” e “Agir sobre os objetos para obter o efeito desejado” sejam momentos focados na ação e observação dos alunos, não se constituem em momentos desprovidos da faculdade de raciocinar. Com isso, estamos partindo do pressuposto de que há ações do pensar de forma lógica nesses dois momentos da atividade experimental, pois, os alunos não partem da observação de forma isolada, mas, refletem sobre ações, que sejam passíveis de levar os objetos a agirem de acordo com o problema proposto, e nesse processo, variam ações no objetivo de levar os objetos a reagirem no sentido da solução do problema.
Assim, essa dinâmica cria uma situação em que o agir sobre os objetos ocasiona um retorno de informações ao pensamento capaz de reconduzir, ou seja, variar as ações para que o efeito seja alcançado, nesses termos, há um jogo em que o delineamento de hipóteses coloca em atividade o “fazer” do aluno e o “fazer” coloca em atividade o pensamento.
Relatando a situação aqui discutida, Carvalho et. al. (1998 p. 50) nos diz que [...] “Um menino enche a bexiga. Coloca o carrinho no chão e o firma com cuidado. O carrinho sai reto: _ Este é melhor _ diz.” Em seguida, o professor orienta a atividade explicando que é preciso organizar uma competição dos carrinhos em que um aluno do grupo 01 irá competir com um aluno do grupo 02 e o vencedor dessa primeira rodada disputará com um aluno do grupo 03 e assim sucessivamente.
Sobre essa etapa da atividade, os estudantes elaboram as seguintes hipóteses: “É preciso soltar os carrinhos ao mesmo tempo”; “Fazer uma linha”; “ Não, duas linhas. Uma no meio, outra lá.” (CARVALHO et. al. 1998, p. 50).
Categoria 04: Tomando consciência de como foi produzido o efeito desejado
Esse momento da atividade é dedicado para os alunos contarem para os colegas e professores como resolveram o problema. Nesse processo de contar o que fez, de descrever eventos reconstruindo suas ações, os estudantes acabam desenvolvendo ligações lógicas entre suas ações e as reações dos objetos de um modo que os fazem criar cadeias de pensamento que, gradualmente, possibilitam a conceituação do fenômeno em investigação.
Esse processo de reflexão é denominado por Carvalho et. al. (1998) de tomada de consciência de como foi produzido o efeito desejado e constitui um momento essencial para que os estudantes consigam compreender o fenômeno de modo a conceituá-lo na perspectiva das explicações científicas. Nessa conjuntura, Carvalho et al (1998, p. 23) afirma que a conceituação vai se iniciar com a (re)elaboração, agora em pensamento, da própria ação da criança para depois progredir para noções especificas do conceito.
Em relação a esse momento na atividade do carrinho, é possível averiguar o seguinte diálogo transcrito por Carvalho et al (1998, p. 51):
P: Como vocês fizeram para o carrinho andar bem depressa?; A:_ A gente encheu a bexiga, depois a gente pôs ele no chão... P: “ Quando você colocava ele no chão, sem virar o bocal, não andava?; A: _Não; P: _ O que era preciso para o carrinho começar a andar?; A: _Sair o ar da bexiga; A: Virar o bocal; P: _Mas para o carrinho andar bem...?; A: _ Eu não enchi muito porque senão o carrinho virava na hora da corrida.
É perceptível, que até o momento, os estudantes não elaboraram explicações causais sobre o fenômeno, o que eles fazem nessa etapa da atividade é descrever, orientados por suas ações, os eventos que deram certo, ou não. Notaremos a seguir, que essas descrições se constituem em um exercício qualitativo para que as crianças (re) elaborem em pensamento as primeiras explicações pautadas na Ciência.
Categoria 05: Dar explicações causais
Na concepção de Bachelard (1938 p. 50) [...] “no ensino elementar, as experiências muito marcantes, cheias de imagens, são falsos centros de interesse”. Isso ocorre, quando as atividades experimentais são realizadas sem priorizar as causas objetivas dos fenômenos estudados, focalizando toda a atenção para o assombro advindo das reações do experimento: substâncias explodem, materiais causam choques e arrepiam os cabelos.
Bachelard (1938) afirma que os estudantes são fascinados por experiências perigosas e chegam a exagerar quando contam as suas famílias as atividades vividas no laboratório. Para que os experimentos não resvalem em práticas que deturpem as verdadeiras causas objetivas do que se deve conhecer e compreender, Bachelard (1938, p. 50) nos diz que: [...] “È indispensável que o professor passe continuamente da mesa de experiências para a lousa, a fim de extrair o mais depressa possível o abstrato do concreto. Quando voltar à experiência, estará mais preparado para distinguir os aspectos orgânicos do fenômeno.”
Essa assertiva de Bachelard (1938) se alinha a concepção de Carvalho et al (1996, p.21) quando a autora destaca que [...] “as aulas de Ciências podem e devem ser planejadas para que os estudantes ultrapassem a ação contemplativa e encaminhem-se para a reflexão e a busca de explicações.” Justamente para que haja esse encaminhamento, a autora propõe que o aluno construa explicações causais acerca do fenômeno experimentado.
Visualizamos essa etapa da atividade muito focada no intento de retirar o abstrato do concreto, isto é, de conduzir os alunos a explorarem as causas objetivas, o essencial dos conhecimentos envolvidos no fenômeno em estudo. Nesses termos, essa etapa da atividade experimental tem como objetivo conduzir os estudantes a compreenderem em pensamento as explicações dos fenômenos que estudaram em ação, o que exige uma reflexão acerca das relações entre as ações e reações dos objetos por meio de ações tipicamente científicas, como: pensar em uma hipótese, testar essas hipóteses, separar variáveis erradas das corretas, para então, raciocinar sobre o fenômeno.
Assim, ao analisar o diálogo da atividade do problema do carrinho, Carvalho et. al. (1998) percebeu momentos em que os alunos relacionaram questões relevantes para a compreensão do fenômeno físico em questão, como por exemplo, relações entre o ar que sai da bexiga e o movimento do carrinho, bem como a relação entre quantidade de ar que sai da bexiga e o equilíbrio do carrinho. Essas relações são referências que indicam que os estudantes não apenas se divertiram com a atividade, ou substituíram o conhecimento pela admiração, as ideias pelas imagens.
São as relações e compreensões dos estudantes que nos levam a essa afirmativa, pois as seguintes considerações foram construídas pelos estudantes: o ar ao sair da bexiga exerce uma força no carrinho o empurrando em sentido contrário; a distância percorrida pelo carrinho está diretamente relacionada à quantidade de ar existente na bexiga, é preciso haver um mínimo de ar na bexiga para que haja força suficiente para chegar ao local desejado.
É consenso que práticas experimentais em Ciências aguçam o espírito curioso infantil transformando a aprendizagem dos conteúdos de Ciências em momentos divertidos e estimulante (cores vibrantes, barulhos e fumaças intrigantes são produzidos). A partir de Bachelard (1938) trazemos para discussão a premissa de que, desde os primeiros anos de escolarização, é singular abordar o fascínio pela Ciência, mas com a percepção de cuidar para não substituir o conhecimento pela admiração e as ideias pelas imagens.
No intento de orientar o professor a evitar práticas experimentais imersas em observações genuínas e fascinantes capazes de distorcer as lentes por quais as crianças enxergam e percebem o mundo, analisamos uma atividade investigava denominada “O problema do carrinho”. Essa ação foi feita a partir da análise de conteúdo de Bardin (2011) para responder ao seguinte problema de pesquisa: Como introduzir, desde os primeiros anos de escolarização, experimentos práticos que incite o encantamento pelos mistérios da Ciência sem deixar as nuances explicativas dos fenômenos se ofuscarem por efeitos visualmente interessantes?
A análise da atividade em questão foi feita por meio dos postulados da obra “A formação do espírito científico” de Bachelard (1938) e da obra de Carvalho et al (1998), “Ciências no ensino fundamental: O conhecimento físico”. Nesse sentido, foram construídas cinco categorias que sinalizaram que o ensino de Ciências por investigação se constitui em uma abordagem didática, que pode tornar o planejamento e implementação de aulas práticas experimentais em uma dinâmica interessante, encantadora, mas sem deixar de exercitar o raciocínio lógico, o espírito crítico, o pensamento abstrato, o uso de argumentações e explicações em uma sistemática aberta da construção do conhecimento.
BACHELARD, Gaston. La formacion de l’ esprit scientifique: Contribution à une psychanaly de la connaissance. Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1938. Trad. Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.
CARVALHO, Anna Maria Pessoa de. et al. Ciências no Ensino Fundamental: o conhecimento físico. São Paulo: Scipione, 1998. (Pensamento e Ação no Magistério).
NEVES, José Luis. Pesquisa Qualitativa: Características, usos e possiblidades. Disponível em:<http://www.dcoms.unisc.br/portal/upload/com_arquivo/pesquisa_qualitativa_caracteristicas_usos_e_possibilidades.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2007.