Para quem acompanhava a rotina de alguma escola há alguns anos, percebia que, apesar do esforço da contemporaneidade em trazer a tecnologia para as práticas educacionais, com inovações como televisão, computadores, internet e programas correlatos para dentro da escola, a utilização desses recursos em sala de sala de aula ou de livre utilização pelos estudantes, quase sempre era vedada por muitos docentes, apoiados pelas equipes gestoras, que proibiam o uso de eletrônicos em sala de aula. Assim, smartphones, tablets, até notebooks ainda eram proibidos ou vistos com certa reserva, se encontrados de posse de algum discente durante uma prática escolar.
Essa se constitui uma contradição que parece imanente à prática docente que assiste ao desenvolvimento das tecnologias da comunicação e cobra o acesso à informação por via da internet, pois os educadores são cientes de que elas facilitam a aquisição de vários conteúdos no dia a dia, e que a sociedade tem tido avanços rápidos e de alcance extenso quebrando barreiras de espaço e tempo. Ao mesmo tempo que os estudantes, de todas as idades, interagem, convivem e se relacionam com as tecnologias, veem e contribuem para uma sociedade conectada, e sentem dificuldade de interagir com a escola e se beneficiar mais das experiências de ensino e aprendizagem. Moran, Masetto e Behrens (2006) já diziam no início dos anos 2000, sobre o desconforto sentido neste âmbito:
Muitas formas de ensinar hoje não se justificam mais. Perdemos tempos demais, aprendemos muito pouco, desmotivado-nos continuamente. Tanto professores como alunos temos a clara sensação de que muitas aulas convencionais estão ultrapassadas. Mas para onde mudar? Como ensinar e aprender em uma sociedade mais interconectada? (p. 11)
Se esse cenário já era visível e esse desconforto já era percebido por muitos educadores, essa situação chegou ao ápice com a emergência sanitária provocada pela pandemia da covid-19, que teve início na China, no final de 2019, e tomou o mundo nos primeiros meses de 2020. No Brasil, o primeiro caso de pessoa contaminada se deu no dia 26 de fevereiro (UNA-SUS, 27 de fevereiro de 2020), e o fechamento de boa parte dos estabelecimentos físicos veio em menos de um mês depois.
O isolamento social, principal medida sanitária para contenção da doença, afetou profundamente todos os setores sociais, acelerando o processo de consolidação de novas tecnologias de informação e comunicação nas práticas sociais. A maior parte da população ficou impedida de interagir nos espaços coletivos. Tivemos que construir novas formas de fazer coisas simples como comprar um lanche ou ir ao médico, entre as diversas coisas que só se pôde realizar por meio dos recursos de comunicação e relacionamento disponíveis nos meios tecnológicos para continuar convivendo socialmente. E com a escola não foi diferente.
Nesse artigo, procuramos refletir como a experiência da pandemia covid-19 afetou as práticas escolares e a forma de interação entre professores e estudantes, e de como a utilização das novas tecnologias de informação e comunicação impõe desafios à prática docente no sentido de promover acesso, permanência e perspectivas aos estudantes no pós pandemia.
Para isso, iremos contextualizar a pandemia covid -19 e seus impactos na educação, práticas educativas no contexto brasileiro. Em seguida, apresentaremos pontos levantados pela professora e pesquisadora Mariana Maggio sobre o que ela chama de “ensino poderoso”, práticas de ensino na contemporaneidade e o uso de tecnologias em sala de aula. Ao final, ressaltamos como a experiência da pandemia enfatizou a necessidade de integrar recursos tecnológicos às práticas pedagógicas.
2. A pandemia covid-19 e seu impacto na educação
No ano de 2020 o mundo viveu um momento de alerta devido à pandemia causada por um novo vírus,o SARS-CoV-2, que ficou conhecido como Coronavírus, responsável por causar a Covid-19. Devido o rápido contágio e das dificuldades de tratamento por desconhecimento inicial dos pesquisadores a respeito dessa nova doença, a Organização Mundial da Saúde (OMS), em declaração oficial, informou que o surto da doença causada pelo novo vírus constituiu-se uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, alertando toda a população mundial sobre os perigos relacionados a esse problema e os elevados índices de óbito.
A pandemia covid-19, que chegou ao Brasil e países da América Latina nos primeiros meses de 2020, provocou mudanças profundas no contexto educacional. As medidas de prevenção incentivadas pela Organização Mundial da Saúde que incluíram comportamentos de higiene, o isolamento físico, redução das atividades sociais entre outras, uso de máscaras, juntamente ao número crescente de casos configurando uma epidemia em nível mundial, fez com que a suspensão das aulas escolares se desse nos diversos países do mundo.
No Brasil, a suspensão das aulas presenciais veio por meio da Portaria n. 343, de 17 de março de 2020, do Ministério da Educação (Brasil, 2020a), que substituiu as disciplinas presenciais da rede federal de ensino em andamento, por aulas que utilizassem meios e tecnologias de informação e comunicação, por um período de 30 dias, prorrogáveis por igual período, se necessário. Depois de algumas outras portarias que alterariam basicamente a duração, a Portaria n. 1.030, de 1º de dezembro de 2020 (Brasil, 2020b) dispôs sobre o retorno às aulas presenciais e sobre caráter excepcional de utilização de recursos educacionais digitais para integralização da carga horária das atividades pedagógicas enquanto durasse a situação de pandemia. Nesta última, há a autorização do retorno às aulas presenciais da rede federal de educação, mas diante da suspensão das aulas por autoridades locais, a utilização de recursos tecnológicos poderiam ser usados de forma integral.
As portarias nos mostram que não se fala em suspensão das aulas, mas substituição por recursos educacionais digitais, o que destaca a potencialidade desses recursos. Porém se a portaria abre espaço para a utilização destes, a mesma impõe às instituições a viabilidade dessa substituição, as colocando como responsáveis pela disponibilização de ferramentas para tal. Apesar da portaria se referir às instituições de ensino superior da rede federal, a possibilidade de prática foi replicada na rede particular de escolas de todos os níveis, além das redes estaduais e municipais de educação.
No entanto, os problemas em se empregar recursos tecnológicos em substituição das aulas presenciais não se restringiam à disponibilização de dispositivos. Para Lemos (2021, p. 95), a pandemia covid-19 realçou problemas de infraestrutura, tornando mais evidente o despreparo dos professores e das escolas para lidar com o problema da educação à distância, destacando que no Brasil existem problemas habitacionais, de acesso à internet e de telefonia 3G e 4G de boa qualidade. Trabalhadores e pesquisadores em educação à distância sempre defenderam que a qualidade educacional nessa modalidade, a qualidade no acesso à internet é essencial, como também de equipamentos que viabilizem a usabilidade da mesma, tanto para alunos quanto para professores, além de formação adequada para que os docentes possam fazer uso dos recursos a eles ofertados.
Apesar das poucas e contraditórias medidas governamentais vivenciadas no Brasil nesse período que, ressaltamos, não são foco deste texto, todas as escolas também foram fechadas, exigindo da comunidade escolar atenção e cuidados para o enfrentamento da pandemia. Inicialmente, se discutiu muito o papel da escola num período de pandemia, destacando seu papel na sensibilização da comunidade, a carência de estudantes nas escolas públicas, da evasão anunciada, dos prejuízos decorrentes da suspensão das aulas presenciais, além das dificuldades destacadas em parágrafo anterior.
Vários educadores e estudiosos, entre anônimos e famosos, também discutiram a viabilidade da substituição da presencialidade por práticas de mediação pedagógica por meios dos recursos digitais e de como essa prática seria uma ferramenta de exclusão, principalmente para os mais pobres. Todo esse movimento foi possível principalmente pelas discussões em plataformas como YouTube, Zoom, lives no Instagram e outros meios que possibilitaram a realização de congressos, simpósios, seminários, palestras e debates diversos, numa explosão de eventos virtuais que promoviam a discussão dos temas e interação dos profissionais.
Cada instituição de ensino desenvolveu suas práticas. Pesquisas diversas, fabricação de materiais de higiene, reafirmação da importância da ciência fizeram parte do trabalho social desenvolvido por universidades e institutos, públicos e particulares, em todo o Brasil. Ao mesmo tempo, desenvolviam estratégias para continuar as atividades acadêmicas. No caso das escolas de ensino básico, o abismo metodológico foi bem amplo. Enquanto as escolas particulares adotavam canais de comunicação por meio de tablets, notebooks, smartphones, com os quais professores e estudantes continuavam seus programas, nas escolas públicas a comunicação foi muito mais precária. Reprodução de material impresso, sua distribuição, programas especiais via televisão, aulas síncronas que atendiam parte dos alunos que usavam, muitas vezes, os smartphones precários de familiares, quando estes tinham acesso razoável à internet, e outras ações foram empregadas para manutenção das atividades acadêmicas no ensino básico público.
Nesse contexto, a educação à distância, como possibilidade de continuidade dos estudos, foi o tema central desses debates, nos quais se discutia também o avanço das tecnologias da informação e comunicação, a necessidade de capacitação dos professores, a dificuldade de grande parte da população estudantil em ter acesso a internet de qualidade, e sobre a escola como um agente de aprofundamento das desigualdades sociais no contexto pandêmico.
No entanto, o que parecia, de início, ser um período curto de emergência sanitária se tornou longo demais para esperar o fim da pandemia para a continuidade integral das atividades acadêmicas. No Brasil, o ensino remoto, expressão que melhor nomeou as estratégias adotadas no período, foi empregado em meados do segundo semestre de 2020, após muitas discussões sobre os prejuízos, dificuldades e possibilidades metodológicas, e se estendeu até os meses finais de 2021.
Por parte dos professores, a necessidade de capacitação foi imanente. Eram ofertados e consumidos cursos sobre recursos digitais e criação de vídeos que eram realizados e praticados por professores de todas as idades e formações. Novas formas de acolhimento e acompanhamento dos estudantes eram criadas. Por parte das equipes de apoio escolar, os recursos de comunicação fizeram parte da rotina de acompanhamento dos estudantes da forma que foi possível chegar a cada realidade.
Se antes da pandemia, os questionamentos de muitos docentes eram: "Mas como aproveitar esses dispositivos na rotina escolar se eles tiram a atenção do estudante?" "Como usá-los se os estudantes fazem apenas copiar/colar?" "Por que permitir seu uso do smartphone, que de posse do google em sala, o estudante usa as pesquisas para “enfrentar” o professor?” O advento da pandemia criou urgência da reflexão, capacitação e utilização de instrumentos de tecnologias de comunicação e informação.
O professor, em poucos meses, precisou repensar toda a prática de uma vida. Docentes, muitos com décadas de sala de aula, precisaram mudar do ambiente presencial para o virtual. Se, para muitos, o moderno era exibir conteúdo em dispositivos, transparências e mais recentemente slides projetados (aposentando parcialmente os antigos quadros negros e brancos, gizes e pincéis atômicos), os dispositivos eletrônicos (que são de posse e domínio dos estudantes também) vieram de forma avassaladora, invadindo a sala de aula, que agora, não tinha paredes e se dava, na maior parte dos casos, no smartphone.
O presencial na sala de aula deu espaço ao virtual, e em vez de espaço falava-se em tempo. As aulas podiam ser síncronas ou assíncronas. As primeiras tinham horários e plataforma definida; seguia o formato de uma aula presencial, possibilitadas geralmente por meio de plataformas como o Zoom e o Google Meet. O professor e os estudantes de uma determinada turma discutiam o tema da aula. Já as aulas assíncronas traziam em si os conteúdos, atividades, sob a forma de textos ou vídeos, que ficavam à disposição dos alunos nos ambientes virtuais de aprendizagem, sendo os mais comuns AVA, Moodle, ou ainda Classroom.
Pensando em docentes do ensino profissional, a angústia de migrar do presencial ao virtual foi ainda maior. O professor que planejava suas aulas dividindo ou integrando aulas teóricas e práticas, em laboratórios físicos ou em campo, naquele momento se desesperava em como trazer as experiências das aulas práticas, exigidas no currículo e essenciais para a formação, para uma aula “à distância”, nas salas virtuais. Os estágios já tinham sido suspendidos pela portaria n. 343 de 17 de março de 2020.
Sobre as aulas práticas, Koerich et al (2023). descreveram modelos pedagógicos que viabilizaram aulas práticas remotas no curso de Gastronomia, no Instituto Federal de Santa Catarina. Segundo a pesquisa desses autores, alguns docentes utilizam aula síncrona com preparações culinárias em tempo real ou gravavam previamente, de forma assíncrona. Os alunos, por sua vez, deveriam reproduzir as experiências, o que gerou dificuldades, pois isso requer estrutura física e equipamentos adequados, mostraram-se indisponíveis no domicílio dos docentes e estudantes. Essa situação demonstra os desafios encontrados pelos professores no ensino profissional.
Diante de tudo que procuramos descrever, consideramos que a pandemia “despejou” uma revolução educacional sobre os educadores, impulsionando-os para que utilizassem novas práticas educativas, mesmo não acreditando muito nelas. Essa transformação rápida trouxe para muitos professores o sentimento de que não estavam sabendo fazer e de que os alunos não conseguiriam aprender dentro do novo contexto no qual estavam vivenciando. Citamos Edgar Morin (2020) para traduzir um pouco o sentimento de frustração e impotência que foi sentido, sobretudo, pelo professor.
Antes da década de 1970, o homem acreditava ter dominado a natureza. Antes da década de 1980 e da irrupção da AIDS, a ciência acreditava ter eliminado vírus e bactérias. Antes de 2008, os economistas garantiam que estava excluída toda e qualquer crise. Antes de 2020, a humanidade havia relegado as grandes epidemias à Idade Média. Em 2020, o mito ocidental do homem cujo destino é tornar-se “senhor e dono da natureza” desmorona diante de um vírus. (Morin, 2020, contracapa).
Edgar Morin deu nome às suas reflexões de “É hora de mudarmos de via”, livro publicado em 2021, mas no campo da educação, uma mudança de perspectiva já era uma preocupação de muitos. Uma revolução era necessária, até para mudar o visual da sala de aula que por séculos se mantém a mesma, com poucas alterações. Muitos educadores criticavam as práticas escolares e sonhavam com uma escola contemporânea autônoma e tecnológica. Com a pandemia, a revolução parecia ter vindo.
Se na preocupação em sobreviver e continuar a prática docente durante a pandemia, os dispositivos tecnológicos foram introduzidos de forma urgente enquanto possibilidade de continuidade do ano letivo, vê-se agora, há mais de um ano do retorno às aulas presenciais, as tentativas de integrar a aprendizagem adquirida com a utilização das novas tecnologias com as velhas formas de exercer a docência, ainda baseada na exposição de conteúdos, exercícios e avaliação clássicas.
Essa experiência vivenciada coletivamente nos trouxe a necessidade de novas reflexões sobre o relacionamento humano com as tecnologias que temos disponíveis em nosso cotidiano. Sobretudo no que tange às relações escolares, é importante pensar em como docentes e estudantes podem fazer integrar as tecnologias na prática pedagógica. Esses aparelhos se encontram cada vez mais presentes no cotidiano escolar, tendo sido recurso de essencial importância para o processo educativo no período pandêmico, mas que o retorno às atividades presenciais nos impõe o desafio de pensar uma prática educativa que contemple o que foi aprendido com essas experiências.
3. Caminhos para pensar educação e o Ensino Poderoso
Nos parágrafos anteriores, foi exposto como o contexto pandêmico foi um grande marco que impactou o uso das novas tecnologias nas práticas pedagógicas. Vários questionamentos foram feitos pelos sujeitos educacionais a partir das experiências vivenciadas durante o isolamento social para a continuidade das atividades escolares. Para pensar esses questionamentos e superá-los, buscando pensar sobre esse novo momento educacional que se constrói no pós pandemia, partiremos então das ideias e contribuições de Marianna Maggio continuando nosso caminhar reflexivo sobre o tema.
Mariana Maggio é doutora em Educação, mestre e especialista em Didática, e licenciada em Ciências da Educação pela Universidade de Buenos Aires. Além disso, é professora titular de Educação e Tecnologias e diretora do Mestrado e Especialização em Tecnologia Educativa, na mesma universidade. É membro do Conselho Nacional de Qualidade da Educação da Argentina. (Maggio, 2022). Sua experiência em docência no ensino superior argentino tem resultado em vários livros sobre ensino e sua relação com a tecnologia.
Sua obra é marcada pelo desejo dessa professora universitária em construir um ensino contemporâneo que reconheça as profundas transformações do mundo atual, coerente com o compromisso com o direito à educação superior, de modo que todos possam acessar e graduar-se, contando com ferramentas que permitam atuar no mundo. Na Argentina, apesar do livre acesso ao nível superior gratuito, a evasão conta com níveis significativos, demonstrando o desafio de se construir um ensino que realmente procure garantir a permanência e ascensão do estudante de nível superior. Acreditando que as questões e apontamentos que a autora levanta são altamente pertinentes a todos os níveis de ensino, neste artigo, serão expostas algumas de suas ideias que embasam nossas reflexões.
A autora do livro “Enriquecer la enseñanza: los ambientes con alta disposición tecnológica como oportunidad”, de 2012, nos faz pensar primeiramente que tema de estudo da didática, o ensino e a percepção de ensino que o docente embasa sua prática, e como esta acontece nos ambientes educacionais em que se utiliza de novas tecnologias de informação e comunicação. É nessa obra que apresenta o conceito de "enseñanza poderosa". Traduzindo para o português: o que seria o ensino poderoso? Em muitos encontros com Maggio, seja por leitura de seus textos como nas conferências que tem dado na última década, essa questão se faz presente como forma do educador refletir, rememorar, a partir sua própria experiência enquanto estudante, que aulas e que docentes mais marcaram sua vida e tiveram efeito transformador. “Lo memorable marca las prácticas y su sentido a lo largo de generaciones, y también renace para seguir siendo digno de recordarse” (Maggio, 2012, p. 41). Aquilo que é digno de ser recordado, ou mesmo essa dignidade que tem a força moral que distingue o bom ensino.
Mas o “ensino poderoso” também deve dar conta de uma abordagem teórica atual, não se restringir ao passado e que deve reconhecer que o conhecimento tem um caráter provisório, destaca a autora. A formação atualizada do professor tem consequências concretas e específicas em cada tema que se ensina. A tecnologia, nesse tema, tem papel central, tanto pelo caráter construtor de conhecimento como de difusor. Ela pode ser uma aliada para atualização do docente, pois cria oportunidades inéditas para isso. Destacam-se o acesso a pesquisas desenvolvidas recém-publicadas, realizar intercâmbios com especialistas de diferentes áreas, conhecer reflexões de outros colegas, facilitação na busca e compra de livros, participar de fóruns de debates.
O ensino poderoso desenvolve o que ela chama de “olhar em perspectiva”, que possibilita que o estudante veja um tema sob vários pontos de vista. Junto a isso, o ensino deve ser formulado em tempo presente, de forma criativa e conectada com a atualidade. O professor, por meio do seu planejamento, cria e controla o ensino, sendo possível concebê-lo em tempo real, isto é, no presente da sociedade (Maggio, 2012, p. 55). Assim, pensar em ensinar sem considerar as novas formas de interação e comunicação atual, é impossível. Reconhecer as expressões da cultura contemporânea que nos atravessa é imprescindível.
No livro Reinventando la classe em la Universidade, publicado em 2018, Maggio nos faz pensar: "O que ensinam as séries?" Para um professor desavisado ou restrito numa visão estreita da Didática, pensaria em série escolares, mas não. Série no vocabulário dos jovens, são as séries disponíveis nos streamings, como Netiflix, Amazon Prime, Apple TV. Sim, jovens aprendem nas séries sim. Muitos maratonam! O que podemos aprender com elas? Maggio destaca que o consumo das séries de televisão e sua expansão nos meios digitais nos mostra alguns modos de relação com o conhecimento que podemos observar. Elas oferecem perguntas e problemas complexos, envolvem movimentos interpretativos, que transcorrem em tempo real, sob várias perspectivas sobre um mesmo assunto.
Em vários textos, Maggio destaca a importância do professor, na prática de um ensino poderoso, de trocar as experiências com os colegas como o primeiro passo para a análise de sua prática. Romper a rotina, planejar uma aula atual, com problemas reais fundamentados no presente, que resulta do potencial criativo do seu autor, desafia o professor e o expõe a riscos. Planejar, desenvolver, se submeter a erros, acertos e repensá-la com outros professores, faz do espaço das reuniões pedagógicas um espaço de “Didática ao vivo”, pois nelas se antecipam e se discutem as propostas para as aulas e avaliações, compartilham, se opina, são expressas preocupações, se diz o que se sente e também se celebra. Uma proposta de ensino não é uma tradição herdada, mas uma construção social.
Tudo isso faz do trabalho do professor uma ação intencional e reflexiva sobre sua prática cotidiana. Perceber o que o comove, criar condições de ensino que reflitam o momento presente, que faça o estudante se implicar na construção da proposta, que o emocione, exigem um professor comprometido, em constante atualização e diálogo com os seus pares. É importante que ao planejar propostas, debater, aplicar, mas também escrever, registrar, a fim de gerar teorias.
Entre as características de um ensino poderoso, significativo para o estudante, é que também deve comover e perdurar (Maggio, 2012, p. 60). A autora diz que quando o ensino é atual e originalmente concebido, ajuda a pensar e a ver em perspectiva, e deixa marcas que perduram. Em muitos momentos do processo educativo, a emoção tanto do professor como a dos estudantes pode eclodir. E não há problema que isso aconteça. Quando lembramos de uma aula ou professor especial, sempre lembramos com alguma emoção. Para Maggio, “esse momento de comoção é revelador” aos efeitos da aprendizagem. É um modo de poder dizer “agora entendo”, ganhando em consciência cognitiva através da emoção (2012, p. 62).
Tudo isso implica na construção dos programas, no currículo, nas propostas de produção e avaliação. É necessário romper com a ideia de que ensinar é passar saberes acumulados. A experiência da pandemia trouxe a dificuldade de como ensinar sob essa perspectiva sem considerar o mundo e a vida pessoal e coletiva que vivemos naquele momento. As experiências mais significativas serão aquelas que tiveram em conta todo esse contexto e foi construída em relação/interação com o estudante. A valorização daquilo que é construído por ele também deve fazer parte desses planos.
Para Maggio, o modelo apresentação – aplicação – avaliação deve ser ampliado. A ideia de que o professor traz os saberes para serem assimilados e reproduzidos em práticas e provas, deve ser realizada, debatida e negociada coletivamente. É importante reconhecer os múltiplos caminhos que a contemporaneidade nos abre, compreendê-las incluí-las para atualizar nossas práticas de ensino, para que possamos incluir mais e obter melhores resultados.
4. Pós pandemia e novos desafios
Ao longo dos meses, que somaram cerca de dois anos, descobrimos que estávamos em um paradigma que só dava condições de ensino e aprendizagem na escola. Não sabíamos fazer educação fora dela. Nos vimos perdidos quando, ao fechar suas portas, não sabíamos o que fazer. A preocupação em cuidar-se e cuidar dos outros era constante; as dúvidas com relação à sobrevivência faziam parte de todas as decisões cotidianas tomadas; mas se, num primeiro momento, a escola não era prioridade, passou a ser diante do passar das semanas, dos meses. Retornar às atividades acadêmicas passou a ser urgente, sob o risco de prejuízos sem precedentes em toda uma geração de jovens, que independente da classe social, já se encontrava ociosa e com saúde mental abalada. "Mas como ensinar fora da escola?" "Sem bibliotecas, sem livros muitas vezes, sem olho no olho?"
"Como integrar teórico/prático/presencial/virtual?" "O que fazer se não sei manusear tecnologias?" A necessidade de atualização/capacitação, que há muito e em diversos contextos era cobrada pelos professores, precisou ser rapidamente sanada. Programas vários foram adquiridos, cursos ofertados, no entanto, entendemos que nenhum tenha sido tão efetivo, pois o que mais importante fora aprendido, por todos os participantes da relação educativa com a experiência compartilhada. Porém os questionamentos se ampliaram sobre a prática docente e o fazer dos diversos agentes educacionais nesse período:"Que tipo de formação podemos ofertar?" "Que tipo de formação queremos ofertar?" "Que tipo de sociedade o estudante que ensino vai enfrentar?" "Será que minhas ações vão contribuir de alguma forma para que ultrapasse as dificuldades provocadas pela pandemia?"
A experiência compartilhada na ação se dava nas aulas síncronas, principalmente, na escuta do estudante, nas reuniões pedagógicas com a oportunidade de fala e na escuta dos colegas professores e equipes multidisciplinares. Essas reuniões ajudaram o fazer de cada um e deram suporte para o atravessamento desse período. Luto, sentimento de impotência, experiências de grupo virtual, conhecimento da situação vivida por muitos estudantes apoiados pelas equipes educacionais, tudo isso serviu de fomento e construção pedagógica que, através das tecnologias, foi possível nesses encontros.
A pandemia tirou muitos docentes da zona de conforto. Se para uns, os questionamentos sobre sua prática e aproveitamento por parte dos estudantes era uma preocupação constante, para outros, a pandemia e tudo que trouxe com ela provocaram o educador para refletir sobre o seu fazer. Não há como voltar a ser como era antes, não dá para ser como antes. Não dá para negar o uso dos dispositivos tecnológicos e da vida virtual nas redes sociais. Isso é negar o nosso próprio tempo.
No panorama educacional no qual nos encontramos, o uso de tecnologias digitais, que “são objetos infocomunicacionais nos convocando a determinados comportamentos, gerando informação e forçando formas de comunicação o tempo todo” (Lemos, 2021,p. 65), o que desafia os educadores a usar o ciberespaço, tal como definido por Levy quando cria esse conceito: “espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores" (2010, p. 94). Se põe, dessa maneira, como atribuição do professor atrair a atenção dos alunos e usar os recursos tecnológicos não apenas como entretenimento, mas como fonte de pesquisa de dados e informações para realizar a construção de conhecimento com análise crítica e consciente.
Muito há que ser feito, pensado, dialogado e construído. Agora, o desafio é aprender a lidar com o híbrido. Se no início, podíamos deixar as tecnologias para eventuais pesquisas, para formalização de trabalhos escritos ou entretenimento fora da sala de aula, agora, depois de tudo o que passamos, não podemos fechar as portas para os dispositivos tecnológicos de informação e comunicação. Construir formas híbridas é necessário. Integrar presencialidade e virtualidade, pois esta última é uma forma da primeira. Talvez seja preciso construir cenários para que os vínculos se deem (Maggio, 2022). Ensinar fora da escola é possível, precisa ser. Se há muito, debatemos o problema da exclusão e insucesso escolar, hoje, não podemos concebê-la como exclusividade aos muros da escola. Esta continua ser um lugar de excelência, de encontros, mas não precisa ser restrita às suas paredes.
E isso exige um esforço coletivo. É importante lembrar que educar é um processo coletivo e diverso. O planejamento de propostas, o debate de experiências, a crítica e seu registro devem ser divulgados, publicados, discutidos para além das reuniões pedagógicas. Precisamos discutir currículos, concepções, propostas de governo que possam contribuir para a transformação social.
Mariana Maggio e a experiência argentina pode não trazer soluções prontas para o ensino e o uso das tecnologias, mas nos traz caminhos a partir do que é ou como deve ser o ensino, além de apresentar os desafios que as tecnologias apresentam no atual contexto educacional. Em seu novo livro, Híbrida, publicado em 2022, ela discute por exemplo sobre os programas de inteligência artificial, que já é uma realidade. Não esquece também da realidade de escassez de boa parte dos educandos, argentinos ou brasileiros, latino-americanos e de várias partes do mundo, que carece muitas vezes de alimento, e que as tecnologias ainda são uma necessidade não conquistada. Para esses, as dificuldades são ainda maiores e o acesso ainda mais restrito à educação.
O que chama de ensino poderoso é aquele que nutre, comove, vale a pena ser vivido, pois transforma o sujeito que aprende, pois se sente capaz de transformar seu modo de viver, sua sociedade. E esse ensino não pode ser construído sozinho, mas compartilhado como seus pares, com seus estudantes, considerando as tendências culturais, em uma didática ao vivo, construída coletivamente, na sociedade que temos para a sociedade que queremos. Quem não precisa de tudo isso, seja estudante ou professor, após todo esse turbilhão vivenciado pela humanidade?
Assim, nosso referencial teórico contribuiu para uma reflexão das práticas pedagógicas durante a pandemia e nos prepara para o pós. Entendemos ensino e ação do professor como potência em transformar a escola, seja ela básica ou superior, em um espaço inclusivo, em que se cruzem pessoas, que se constroem, que se formem e que possam atuar ativamente na sociedade. E hoje, não há como se construir esse ambiente não levando em conta todo uma cultura da mobilidade, conectividade e tecnologias diversas que fazem parte do mundo contemporâneo. Levar isso em conta e proporcionar essa vivência em prática pedagógica pode contribuir para a construção de cidadãos plenos de condições de exercício de autonomia e crescimento.
Esse texto procurou expor como a pandemia provocou impactou a educação e suas práticas pedagógicas, provocando rupturas, medos, exclusões, mas também demonstrou a necessidade de mudanças, não só de condições materiais mas de atitude e perspectivas de todos aqueles que partilham da prática educacional e formativa dos estudantes. É preciso dar um passo adiante.
Brasil (2020a). Ministério da Educação. Gabinete do Ministro. Portaria nº 343, de 17 de março de 2020. DOU de 18 de março de 2020.
Brasil (2020b). Ministério da Educação. Gabinete do Ministro. Portaria nº 1030, de 1º de dezembro de 2020. DOU de 02 de dezembro de 2020.
Koerich, G. H. et al. (2023). Ensino Remoto Emergencial: Estratégias Educacionais Adotadas nas Atividades Práticas em Gastronomia durante a Pandemia de Covid-19. Revista Eletrônica Debates Debates em Educação Científica e Tecnológica, [S. l.], v. 12, n. 1, 2023. Disponível em: https://ojs.ifes.edu.br/index.php/dect/article/view/1707.
Maggio, M. (2012) Enriquecer la enseñanza: los ambientes con alta disposición tecnológica como oportunidad. Buenos Aires: Paidós.
Maggio M. (2018) Reinventar la clase em la Universidad. Buenos Aires: Paidós.
Maggio, M (2022) Híbrida: Enseñar em la universidad que no vimos venir. Tilde Editora.
Moran, J. M. et al (2006). Novas Tecnologias e Mediação Pedagógica. 10 ed. Campinas, SP: Papirus Editora.
Morin, E. (2021). É hora de mudarmos de via. Rio de Janeiro: Editora Berthand Brasil.
Lemos, A. (2021). A tecnologia é um vírus: pandemia e cultura digital. Porto Alegre: Sulina.
Levy, P. (2010). Cibercultura. 3 ed, São Paulo: Editora 34.
UNA-SUS (27 de fevereiro de 2020). Coronavírus: Brasil confirma primeiro caso da doença. https://www.unasus.gov.br/noticia/coronavirus-brasil-confirma-primeiro-caso-da-doenca