No início dessa década de 2020, vivemos coletivamente uma crise sanitária, a pandemia de covid-19, doença respiratória decorrente da infecção pelo vírus SARS-CoV-2, que afetou todo o planeta, cuja principal medida de controle de contágio se constitui no isolamento social. Medida imprescindível para contenção do número de doentes e mortos nos diversos países, a necessidade de controle fez com que diversos estabelecimentos fossem fechados para reduzir a circulação de pessoas, inclusive as escolas.
Esse texto vem expor como a pandemia impactou os países da América Latina e como o fechamento das escolas provocou prejuízos na escolarização de estudantes latino-americanos, com a exposição de números que, mesmo antes da pandemia, já não eram satisfatórios. Assim, propomos pensar esse contexto a partir das teorias da educação, com enfoque em textos de Dermeval Saviani e Paulo Freire, na busca de referenciais que contribuam na construção de abordagens que tratem os problemas educacionais enfrentados por esses países.
1. A pandemia na América Latina
A pandemia covid-19 eclodiu uma crise sem precedentes na história da humanidade. Os povos e seus governos, nos mais diversos países, tiveram que enfrentar a pandemia e seus problemas decorrentes não só na área da saúde, mas também na economia e na educação.
Se o vírus parecia não fazer distinção entre contaminar um rico ou um pobre, as condições de prevenção e isolamento faziam isso sim. Uma pandemia que se iniciou na China e se espalhou em poucos meses por todo o planeta, pareceu se alastrar inicialmente entre os usuários de transporte aéreo, pessoas de mais alto poder aquisitivo, mas que logo encontrou os guetos da pobreza, dizimando milhões de pessoas.
Em junho de 2021, os países que compõem a América Latina, que concentram 8% da população mundial, respondiam por quase um quarto de todas as mortes por covid-19 registradas naquele período. Dos 30 países com maior número de novos casos diários confirmados por milhão de habitantes, 14 deles eram latino-americanos (Biernath, 2021). André Biernath aponta que alguns desses países, exemplos de políticas públicas e vacinação, em poucos meses viram os números de casos e óbitos piorarem, como Paraguai, Uruguai, Argentina e o Chile. O Brasil, maior país da América do Sul, alavancava consideravelmente esses números no continente.
A conceituada revista The Lancelot, em seu editorial de novembro de 2020, já trazia em seu título “COVID-19 in Latin America: a humanitarian crisis”. E logo nas primeiras linhas, destaca o papel do Brasil como país que concentra maior parte das discussões sobre a covid, juntamente aos erros do governo Jair Bolsonaro. Não exclusivo a este país, a revista traz em seu texto o quadro sofrido pelos latino-americanos, para além de uma crise de saúde pública, uma crise humanitária.
the region as a whole is facing a humanitarian crisis borne out of political instability, corruption, social unrest, fragile health systems, and perhaps most importantly, longstanding and pervasive inequality—in income, health care, and education—which has been woven into the social and economic fabric of the region. (The Lancelet, 2020)
Assim fatores como instabilidade política, corrupção, da agitação social, dos sistemas de saúde frágeis e, talvez o mais importante, da desigualdade de renda, saúde e educação contribuíam, segundo a revista, para a situação alarmante vivenciada durante a pandemia.
Impossibilidade do grande número de pessoas que trabalhavam informalmente (mais de 50% entre latino-americanos ativos no mercado de trabalho) de seguir as medidas de isolamento social; necessidade de usar transporte público, em sua maioria cheios; dificuldade de acesso a serviços de saúde, que se se encontravam caóticos; problemas como obesidade, diabetes, problemas nutricionais vivenciados deixavam seus habitantes como candidatos mais suscetíveis a mortalidade.
Além desses fatores, os conflitos políticos foram uma constante em vários países nesse período. No Brasil, o clima de polaridade política, oposição à política de descaso com a pandemia marcaram os protestos contra o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro. Biernath (2021) ainda acrescenta que a Colômbia e Peru também tiveram protestos massivos, e países como Equador, Peru e Bolívia tiveram eleições presidenciais marcadas pela tensão e disputa. O Chile se viu diante de um plebiscito para mudar sua constituição depois de vários protestos de movimentos sociais em 2019. Tudo isso refletiu nas políticas de enfrentamento à pandemia que, muitas vezes, ficou em segundo plano, à mercê dos interesses políticos e outros.
2. Efeitos da pandemia na educação latino-americana
Segundo o relatório da UNESCO (2020), Monitoramento Global da Educação Inclusão e Educação: todos sem exceção, edição 2020, a América Latina e o Caribe, foco do estudo, são a região com as taxas de desigualdade socioeconômica mais altas e desafiadoras do mundo. O índice de Gini de desigualdade de renda caiu de 0,527 em 2003 para 0,456 em 2018, mas ainda é o mais alto do mundo. Os 10% mais ricos concentram 30% da renda total, enquanto os 20% mais pobres respondem por 6%.
Isso reflete na distribuição desigual das oportunidades, sobretudo educacionais. Segundo dados do relatório, cerca de 63% dos jovens concluem a educação secundária, mas em 20 países, os 20% mais ricos têm cinco vezes mais probabilidade de concluir este nível de educação do que os 20% mais pobres.
Os estudantes de etnias indígenas e os afrodescendentes também apresentam taxas de escolaridade e alfabetização mais baixas. Podemos citar o exemplo do Peru e do Uruguai. Em 2015, a probabilidade de os estudantes afrodescendentes completarem a educação secundária (ensino médio) era 14% menor que os não afrodescendentes no primeiro país citado e 24% menos no segundo.
Os resultados de aprendizagem já eram baixos antes da COVID-19, depois da pandemia, a situação é ainda mais preocupante. O relatório Dois Anos Depois: Salvando uma Geração, elaborado pelo Banco Mundial e o UNICEF, em colaboração com a UNESCO, traz dados sobre como foram esses dois anos de pandemia e a situação das escolas nos países latino-americanos (World Bank, 2022).
Segundo esse documento (World Bank, 2022, p. 3), a América Latina e o Caribe sofreram um dos períodos mais longos de fechamento de escolas, sendo desproporcionalmente atingida em termos econômicos, educacionais e de saúde. Na região, toda uma geração de estudantes, aproximadamente 170 milhões, foi privada do ensino inteiramente presencial por volta de 1 a cada 2 dias de aula.
O relatório também demonstra que enquanto os países da América do Norte tiveram apenas 7 semanas de aulas com escolas totalmente fechadas, os países latino-americanos tiveram uma média de 29, perdendo apenas para países do sul da Ásia que tiveram 31 semanas. Os norte-americanos apresentaram, por sua vez, 56 semanas de aulas com escolas parcialmente fechadas, enquanto a América Latina e Caribe tiveram 29 semanas de aulas nesse mesmo quesito. Ao analisar esse demonstrativo, percebemos que países europeus e da Ásia Central permaneceram apenas com 13 e 15 semanas, de aulas com escola totalmente e parcialmente fechadas, respectivamente (World Bank, 2022, p. 4) mais desenvolvidos e melhores posicionados economicamente, com condições educacionais melhores, permaneceram bem menos tempo com escolas fechadas do que países mais pobres, onde a educação é mais precária, aumento ainda mais a desigualdade entre as nações.
O relatório alerta ainda para a gravidade dos efeitos na educação na América Latina. Apesar de políticas públicas limitarem o fechamento das escolas até o final de 2021, milhões de crianças e adolescentes correm o risco de abandonar a escola por ficarem academicamente atrasados. As perdas de aprendizagem estimadas e observadas são elevadas e mais severas para as primeiras séries – principalmente crianças mais novas e de perfis socioeconômicos mais baixos, criando condições para uma crise geracional e maior desigualdade, destaca o relatório.
Estudos do Banco Mundial (World Bank, 2022) mostram que os prejuízos foram muito maiores para os estudantes da 5ª série do que para os de 9ª a 12ª series. Estima-se que as notas médias em leitura e matemática do ensino fundamental devem cair para níveis de mais de 10 anos atrás, em um contexto em que as notas já eram muito baixas. Cerca de 4 em cada 5 alunos da sexta série não são capazes de entender e interpretar adequadamente um texto de extensão moderada. O documento ainda estima que perdas de aprendizagem podem ser traduzidas em uma queda de aproximadamente 12% em rendimentos econômicos ao longo da vida para um estudante que está na escola hoje.
Outro efeito importante a ser considerado é o impacto da pandemia e do fechamento das escolas sobre a saúde psicossocial e o bem-estar de professores e estudantes, ocasionando “uma crise de saúde mental dentro da crise” (World Bank, 2022, p. 7). Sem trazer, maiores discussões, o relatório destaca a importância desse ponto na recuperação da escolarização no pós pandemia, sugerindo aos países a implantação de avaliações diagnósticas para fornecimento de dados para o planejamento de estratégias de abordagem. Esse é um dos compromissos de recuperação sugeridos por esse documento.
Além desse último, o relatório do Banco Mundial sugere o compromisso de se colocar a recuperação da educação no topo da agenda pública, reintegrando todas as crianças que abandonaram a escola e garantindo a permanência nela; destaca também o compromisso que se deve ter com a recuperação do aprendizado perdido e garantindo o bem-estar socioemocional das crianças, além de valorizar, apoiar e formar professores.
Vemos assim o enorme desafio a ser enfrentado na recuperação e melhoria da educação nos países latino-americanos. Os dados nos fazem ter ideia do impacto que o fenômeno pandemia covid-19 provocou sobre um quadro que já não era bom. Como fazer para melhorar esses índices? Partir de onde? Será que só garantindo acesso e permanência dos estudantes nas escolas resolve nossos problemas educacionais, e sobretudo sociais? Em que medida a permanência na escola trará benefícios a vida dos estudantes? A fim de refletir sobre essas questões buscamos nas teorias da educação a compreensão de quem são esses estudantes, sobretudos aqueles que mais sofreram conforme dados acima, os mais economicamente desfavorecidos, os afrodescendentes e minorias outras.
3. As teorias da educação e o problema da América Latina
Segundo Moacir Gadotti (2003), a filosofia, a história e a sociologia da educação oferecem os elementos para que compreendamos melhor as práticas educativas e possamos transformá-la. Assim, pensar que educação podemos oferecer nesse momento de pós pandemia exige de nós, não só conhecimento dos dados reais sobre a escola e aproveitamento dos estudantes como também, como também uma compreensão ampliada do fenômeno social vivenciado, a pandemia covid-19, de bases históricas e filosóficas que ajudem à reflexão e a construção de intervenções práticas que possam contribuir para a formação de estudantes autônomos e conscientes de sua cidadania.
Nesta perspectiva, optamos por uma leitura crítica em educação que nos ajudasse a compreender esse estudante latino-americano, cujo seu percurso escolar que foi tema de preocupação de diversos órgãos internacionais, como vimos acima. Iniciamos por uma leitura sobre as teorias da educação e a questão da marginalidade, a partir da concepção de Demerval Saviani.
3.1 Teorias da educação e a questão da marginalidade
Apesar de antigo, o texto As teorias da educação e o problema da marginalidade na América Latina, de Dermeval Saviani, datado de 1982, nos traz um panorama de como as teorias educacionais tratam sobre a marginalidade e o fenômeno da escolarização. Inicia o escrito com o dado que não diverge muito do que foi colocado anteriormente neste artigo, mesmo depois de mais de 30 anos:
De acordo com estimativas relativas a 1970 cerca de 50% dos alunos das escolas primárias desertavam em condições de semianalfabetismo ou de analfabetismo potencial na maioria da América Latina. (Saviani, 1982, p. 8).
Diante dessa evidência, Saviani se pôs a questionar como as teorias da educação se posicionam diante dessa situação. A partir de então, classifica as teorias no que diz respeito à questão da marginalidade em dois grupos. No primeiro, temos aquelas que entendem educação como um instrumento de equalização social, portanto, em suas palavras, de superação da marginalidade. No segundo, temos aquelas que entendem a educação como instrumento de discriminação social, assim, um fator de marginalização. Essa distinção é importante ser compreendida pois marca a diferenças entre as teorias não críticas e críticas.
3.1.1Teorias não críticas
As teorias que fazem parte desse grupo, tomam a educação como autônoma e buscam compreendera partir dela mesma. Acreditam que aquela tem poder sobre a sociedade. São elas: a pedagogia tradicional, a pedagogia nova e a pedagogia tecnicista.
A pedagogia tradicional surge a partir dos primeiros “sistemas nacionais de ensino” que surgiram no século XIX, tendo como princípio de que a educação é um direito de todos e um dever do Estado. Esse princípio decorria do tipo de sociedade burguesa e capitalista que se consolidava na época. “A escola tradicional foi construída como instrumento de redimir a humanidade da opressão e permitir que seus súditos se convertessem em cidadãos”, resume Saviani em entrevista ao canal Leituras Brasileiras, no YouTube, em 2017. Tratava-se então de consolidar uma sociedade democrática, de consolidar uma democracia burguesa (1982, p. 9).
Nesta pedagogia, o objetivo é tornar os cidadãos livres por meio do conhecimento, do ensino. A marginalidade é identificada então com a ignorância. A escola cumpre, assim, o papel de transmitir conhecimentos acumulados pela humanidade e sistematizados logicamente. O professor é o agente transmissor do “acervo cultural” aos alunos.
No entanto, esse modelo foi amplamente critica pela pedagogia Nova, que surge no século XX, com caráter reformista, chamado “escolanovismo”. Nesta, a concepção de marginalizado é o de rejeitado (1982, p. 9). Todos aqueles que não se sentiam pertencentes ao espaço escolar, que não aprendiam, porque eram “diferentes” e o modelo tradicional não dava conta desse indivíduo.
Surgem assim diversas abordagens que têm em comum uma certa biopsicologização da sociedade, da educação e da escola. Há uma popularização dos testes de inteligência, de personalidade, deficiências neurofisiológicas, que irão contribuir para uma noção de “anormalidade biológica”. Nesta perspectiva, os rejeitados são justamente esses ditos “anormais”. Saviani (1917) entende que nesse processo, a sociedade burguesa, já consolidada e num movimento conservador, de buscar a igualdade entre os indivíduos, passa a justificar as desigualdades, agravando o problema da marginalidade. A escola nova acabou por reforçar a ideia de que “é melhor uma escola boa para poucos do que uma escola deficiente para muitos” (1982, p. 10).
Na pedagogia chamada Tecnicista, pretende-se a objetivação do trabalho pedagógico, um planejamento e organização racional que garantisse eficiência nos resultados. Segundo Saviani, a escola nova não teria cumprido seu papel de resolver os problemas da escola tradicional, mas a ideia de que práticas poderiam ser planejadas e implementadas no contexto educacional permaneceu, acrescido pela busca da eficiência e produtividade.
São próprios dessa perspectiva educacional a proliferação de propostas pedagógicas como enfoque sistêmico, tele ensino, máquinas de ensinar, fragmentação em módulos, especializações, e outras do tipo. A ideia de que a educação é para treinar os indivíduos para as múltiplas tarefas do sistema social. O marginalizado, na pedagogia tecnicista, passa ser o incompetente.
Essas teorias têm em comum o fato de não reconhecerem os limites da educação e seus determinantes sociais. As teorias críticas são justamente aquelas que passaram a demonstrar os seus limites, como elas incidiam em ilusões e limitações (Saviani, 1982). Por reduzir a escola a mera reprodução das funções dominantes, Saviani (1982) as chamou de Teorias crítico reprodutivistas.
3.1.2 Teorias crítico reprodutivistas
Saviani (1982) define teorias críticas reprodutivistas aquelas que postulam não ser possível compreender a educação senão a partir dos condicionantes sociais. Essas abordagens consideram que a escola, em origem, tinha uma função equalizadora na sociedade, porém vem se tornando cada vez mais discriminadora e repressiva, na qual se produz uma sociedade de classes e que se reforça o modo de produção capitalista (p. 42). As principais são de: Teoria do sistema de ensino enquanto violência simbólica, teoria da escola enquanto aparelho ideológico do Estado e teoria da escola dualista.
A teoria do sistema de ensino enquanto violência simbólica foi desenvolvida na obra A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, de P. Bourdieu e J. C. Passeron (2014), escrito em 1970. É um estudo sociológico, de base weberiana, que define o sistema de ensino como uma modalidade específica de violência simbólica, que impõe significações, como legítimas, reforçando as relações de força material, isto é, econômica. Entre outras maneiras de manifestação de violência simbólica, sua teoria geral busca explicitar a ação pedagógica como imposição arbitrária da cultura dos grupos ou classes dominantes aos grupos ou classes dominados (Saviani, 1982, p. 13).
De maneira semelhante, porém de viés marxista, a teoria da escola enquanto aparelho ideológico do Estado é elaborada por Louis Althusser (2022), em livro de mesmo nome, publicado em 1970. Diferente dos aparelhos repressivos do Estado (Governo, Administração, Exército, Polícia, Tribunais, prisões etc.), a escola faz parte dos aparelhos ideológicos do Estado (diferentes igrejas, família, sistema jurídico, sistema político, sindical, de informação, cultural).
Partindo, assim como os demais aparelhos ideológicos, a escola parte da ideologia para repressão por meio de suas práticas, constitui o instrumento mais acabado de reprodução das relações de produção capitalista. Por meio dela, todas as crianças de todas as classes sociais são submetidas à escola durante anos seguidos para serem envolvidos na ideologia dominante, e futuramente desempenharem um papel na sociedade capitalista, uns operários, outros empresários, agentes de repressão, profissionais da ideologia, que irão trabalhar nas escolas e outros aparelhos ideológicos. Nesse contexto, em vez de equalizadora, a educação é instrumento de reprodução da lógica capitalista e marginaliza a classe trabalhadora, cujos trabalhadores são expropriados pelos capitalistas.
A teoria elaborada por C. Baudelot e R. Establet, no livro Escola Capitalista na França, em 1971, é chamada por Saviani de teoria dualista pois comprova em suas teses que, a escola, mesmo aparentando unitária e unificadora, é na verdade, duas redes distintas que correspondem à divisão da sociedade capitalista, a burguesia e o proletariado. Por meio das práticas escolares, a formação da força de trabalho se dá no processo de inculcação ideológica burguesa, como também a sujeição e o disfarce da ideologia proletária.
Acrescentando à teoria dos aparelhos ideológicos do Estado, a teoria dualista admite a existência de uma ideologia proletária, que vem das massas operárias e organizações. O papel da escola, nessa teoria, é não apenas reproduzir a lógica burguesa como impedir o desenvolvimento de uma ideologia do proletariado e a luta revolucionária. A escola abertamente qualifica o trabalho intelectual e desqualifica o trabalho manual, marginalizando os trabalhadores.
As três teorias supracitadas exerceram, segundo Saviani (1982), influência na década de 70, na América Latina, nos estudos sobre os sistemas de ensino. No entanto, ao demonstrar o comprometimento da educação como os interesses dominantes, se instalou um enorme pessimismo e desânimo, entre os educadores, que viam como remota a possibilidade de articulação de sistemas de ensino que fossem capazes de superar o problema da marginalidade nos países da região (p. 16).
Saviani acredita que uma teoria crítica, que não reprodutivista, só poderia ser formulada do ponto de vista dos interesses dos dominados. Assim nos resta refletir: é possível articular a escola com os interesses dominados? É possível uma teoria da educação que capte criticamente a escola como instrumento capaz de contribuir para a superação do problema da marginalidade? (1982, p. 16)
3.2 Paulo Freire e uma perspectiva crítica latino-americana na Educação
Na perspectiva de encontrar uma teoria que pudesse transformar concretamente a vida das pessoas, Paulo Freire, brasileiro em dias de exilio no Chile, escreveu Pedagogia do Oprimido, livro publicado em 1970, com base em suas experiencias educativas e reflexões.
Importante destacar sua trajetória profissional na educação popular, alfabetizando e treinando equipes para alfabetizar trabalhadores inicialmente no nordeste brasileiro, perpassando países da América Latina e África. Gadotti (2003) coloca Paulo Freire, juntamente com Emília Ferreiro, Amílcar Cabral e outros educadores, no que ele chama de “pensamento pedagógico do Terceiro Mundo”.
Apesar de hoje em dia a expressão “Terceiro Mundo” ser um pouco polêmica, Gadotti define esse pensamento como aquele que fora“originado através da experiência educacional dos países colonizados, principalmente os da América Latina e os da África” (p. 201). Continua
Esses países construíram uma teoria pedagógica original, no processo de lutas pela emancipação”, e destaca a influência que essas teorias exerciam nos educadores, tanto nesses países, como também em países de “primeiro mundo” (Gadotti, 2003, p. 201).
Não se pode pensar em educação na América Latina sem refletir sobre os séculos de colonização europeia, que o fez conforme seus interesses econômicos, políticos e ideológicos. Processo este que provocou usurpações de toda maneira, com a exploração das terras colonizadas, expropriação cultural dos povos, violência física, desagregação de vínculos familiares, históricos, culturais e, mesmo com a emancipação, os processos de desenvolvimento dos povos colonizados sempre estiveram associados aos interesses das antigas metrópoles.
Os colonizadores combateram a educação e cultura nativas, impondo seus hábitos, costumes, religião, escravizando índios e negros. Nos casos dos africanos, que falavam três, quatro ou muitas línguas, os colonizadores impuseram uma única língua estrangeira a fim de catequizar a todos e uni-los numa religião universal (Gadotti, 2003, p. 202).
Sendo assim, todo um povo que vai historicamente se constituindo nesses dois continentes já, em sua origem, é um “marginalizado”. Todo processo de educação pensada para suas colônias e que se desenvolveram enquanto nações de terceiro mundo, isto é, subdesenvolvidas, ou do Sul, como chama Boaventura Santos (Santos, 2006), parte dos interesses do colonizador, do dominador, ou mesmo “opressor”, segundo Paulo Freire (2019).
A dicotomia opressor/oprimido se desenvolve na obra desse grande educador como uma relação a ser superada pela educação. Influenciado principalmente pelas teorias de Hegel, diz que o oprimido tem internalizado o opressor dentro de si, fazendo com que aja conforme as pautas opressoras, pois sua estrutura de pensar se encontra condicionada a sua situação concreta, existencial, de oprimido (Paulo Freire, 2019, p. 44). Ontologicamente, o ser quer saber mais, assim, ser mais, porém, o oprimido é condicionado a desejar ser “opressor”, neste sentido, a experiencia histórica e o conhecimento adquirido o leva a uma contradição, reproduzir modelo social vivenciado, e não a superação da condição de oprimido.
Nesta perspectiva, uma pedagogia do oprimido deve ser forjada pelo oprimido, e não pelo opressor, para justamente buscar a superação dessa condição de oprimido, buscando a luta pela libertação, que só é possível quando este é capaz de criticar, quando será possível a superação da situação opressora. Apresenta-se nesse trecho do livro Pedagogia do oprimido a concepção de pedagogia que defende:
A nossa preocupação nesse trabalho é apenas apresentar alguns aspectos de que nos aprece constituir o que vimos chamando de pedagogia do oprimido: aquela que tem de se forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará. (Freire, 2019, p. 43)
A reflexão sobre sua condição de oprimido e o papel da pedagogia pode ser exemplificado por esse trecho de palestra proferida por Paulo Freire no Seminário Internacional de Educação, no Irã, em 1975, destacado por Moacyr Gadotti (2003):
Não basta ler mecanicamente que “Eva viu a uva”. É necessário compreender qual posição que Eva ocupa em seu contexto social, quem trabalha para produzir uvas e quem lucra com esse trabalho (p. 255).
Destaque para o papel do diálogo na prática pedagógica. Para que haja uma ampliação de perspectiva do estudante “oprimido” com a aprendizagem de habilidades que contribuam para sua conscientização de seu papel social e possa se sentir livre para “ser mais”, o diálogo é necessário para, a partir da realidade concreta, buscar o universo temático do povo, ou os chamados temas geradores. Essa educação dialógica é contrária a que Paulo Freire nomeia de educação bancária, onde os conhecimentos do professor são “depositados” nos estudantes, reproduzindo a prática da dominação.
Em poucos parágrafos, procuramos expor o entendimento de Paulo Freire sobre a educação e os sujeitos envolvidos nela, educador e educando, ambas expressões de uma cultura, que a partir do exercício dos diálogos ambos aprendem e ensinam. Dessa relação, a consciência enquanto ser, enquanto posição social, leva os dois a crescerem, ao se conhecerem, refletirem e problematizarem a realidade. Diferente da educação bancária, a educação problematizadora provoca reflexão, debate, ação e transformação do meio.
Paulo Freire defende que a ação pedagógica é um ato político. Toda sua obra expõe uma teoria, que não se faz sem uma prática, que estimula o surgimento do oprimido ciente de seu ser livre, autônomo e consciente de sua história. Apesar do título Pedagogia do oprimido, suas ideias não se limitam ao termo, mas parte dele para expor uma práxis de esperança, a partir da superação da relação educativa clássica, para uma prática que amplia a dimensão do ser educando, consciente de sua dimensão histórica.
4. Reflexões sobre os desafios da educação contemporânea latino-americana
Nesta perspectiva, podemos pensar nossos problemas educacionais da América Latina a partir de nossa própria condição histórica de colonizados e buscar a superação da relação colonizado-colonizador que até os dias atuais permeiam nossos modelos educativos.
Várias abordagens buscam a construção de teorias críticas em educação, no entanto, ainda continuamos importando teorias, modelos e tecnologias de entidades que ainda veem a América Latina, juntamente a outros tantos países em desenvolvimento, como colônias dependentes de seus produtos e arsenal cultural. Construir novas epistemologias do Sul (Santos, 2006), novas formas de conhecer a realidade, diferentes da visão eurocêntrica são necessárias para que possamos enxergar eventos invisibilizados. É necessário o desenvolvimento de uma linguagem que explique os problemas reais que vivenciamos nessa realidade de própria do “hemisfério sul”. Assim, buscar construir teorias e práticas educativas, cientes desse lugar, na busca de transformar a sociedade que vivemos é o trabalho do educador.
As teorias da educação, sobretudo as críticas, têm analisado os contextos, métodos, intenções, ilusões, mas tudo isso exige de nós, trabalhadores em educação, um empenho maior, pois não basta explicar, mas transformar. Temos que conhecer nosso educando, eleger os temas a partir da existência dele. Se marginal ou oprimido, a história das práticas escolares sempre colocou o aluno numa posição inferior, dependente do professor e esvaziado de conhecimento. O desafio se inicia justamente na construção de fazeres pedagógicos onde haja uma relação horizontal para a efetivação de uma relação colaborativa, efetiva e transformadora.
A experiência da pandemia nos mostrou como ainda temos uma relação de independência dessas potências imperialistas e desenvolvidas. Se todo o planeta sofreu com o contágio, com o adoecimento, com as mortes, e com todos os prejuízos em saúde física e mental que o vírus da covid-19 trouxe, as formas de cuidado e enfrentamento nos mostraram nossas deficiências.
A educação foi uma dessas deficiências. Com um dos maiores números de mortes do mundo, os países da América Latina também apresentam um dos maiores números de semanas com escolas fechadas. Escolas em sua maioria públicas que se viram no desafio de educar de portas fechadas. O ensino remoto foi a realidade viável para minimização dos prejuízos educacionais. Mas o mesmo ensino remoto encobriu as dificuldades encontradas pela maioria dos estudantes, na dificuldade de compreensão dos temas curriculares em curso, das mortes, desemprego e fome em diversas famílias, na falta de recursos mínimos para pesquisa e estudo em casa, entre outros fatores. Da parte do educador, o ensino remoto também encobriu seus medos, inseguranças “digitais” e dificuldade de ensinar sem “olho no olho”.
A consciência de que devemos mudar a forma com que educamos e entendemos escola também foi lição de pandemia. Infelizmente essa necessidade já era percebida, mas por muitos negada, resistindo, por exemplo, a força das novas tecnologias da informação. Mas será que com o investimento em tecnologias, por si só, resolve nossas questões? Mudanças de ordem didática provoca uma efetiva melhora? Será que a maior dificuldade educacional decorreu do fato das escolas terem sido fechadas em média quase dois anos nos países da América latina?
Entendemos que não. Pensar em pós pandemia e desafios para a educação contemporânea exige resolver velhos conflitos. Diante de tantos dados negativos e desafios que encontramos, é preciso pensar e agir em como reduzir prejuízos educacionais dos estudantes, reduzir evasão e garantir sua permanência, principalmente os mais desfavorecidos economicamente, mulheres, afrodescendentes, indígenas, migrantes, pessoas com deficiência, LGBTQIA+ e tantos outros grupos que lutam para ter acesso e poder dar continuidade a seus estudos, mas encontram dificuldades das mais variadas.
Mas mais do que isso, precisamos assumir não só a posição de marginalizados, ou oprimidos, como se queira, mas também de colonizado e buscar formas de superar essa relação que ainda mantemos com nossos colonizadores diversos. Paulo Freire mostrou que, na maioria das vezes, o oprimido quer se tornar opressor. Vimos isso, durante a pandemia. Enquanto o povo morria de covid, nosso governo de extrema direita ria dos doentes com falta de ar e idolatrava os Estados Unidos. Triste exemplo da teoria que em décadas nosso educador previu.
Mais do que países ricos queremos ser países plenos, devemos ser mais, devemos ser países autônomos e livres em nossa cultura e soberania. Defender a diversidade como nossa riqueza cultural e aprender, com isso, a desenvolver e transformar em conhecimento crítico e transformação de nossa realidade é o grande e velho desafio para educação latino-americana.
Ao final desse texto, podemos concluir que muito há que ser feito para melhorar a qualidade educacional dos povos dos países latino-americanos. A pandemia impactou a educação em todo o mundo, porém os prejuízos a serem colhidos por países subdesenvolvidos, principalmente os da América Latina e Caribe, são preocupantes. Pensar nossos índices de desempenho educacional à luz das teorias da educação, especialmente Demerval Saviani e Paulo Freire, traz à tona a necessidade de refletirmos sobre que concepção de educação adotamos e que estudante é esse, que na posição de colonizado, sub-desenvolvido, marginalizado ou oprimido, tem em si a força de conhecer criticamente e transformar sua realidade.
Althusser, L (2022). Aparelhos Ideológicos do Estado. 13 ed. São Paulo: Paz e Terra.
Biernath, A. 2021. Covid-19: Por que a América Latina concentra maior número de vítimas no mundo? Site BBC Brasil.
Bourdieu, P. e Passeron, J. C. (1992). A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 3ª ed, Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves.
Freire (2019). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro – São Paulo: Editora Paz e Terra.
Gadotti, M. (2003) História das Ideias Pedagógicas. 8ª edição, São Paulo: Editora Ática.
Santos, B. S. (2006). Conocer desde el Sur: para uma cultura política emancipatória. Biblioteca Nacional del Peru.
Saviani, D. (1982) As teorias da educação e o problema da marginalidade na América Latina. Cadernos de Pesquisa. São Paulo (42) 8 – 18.
The Lancet (07 de novembro de 2020). COVID-19 in Latin America: a humanitarian crisis. Volume 396. www.thelancet.com. UNESCO (2020). Monitoramento Global da Educação Inclusão e Educação: todos sem exceção, edição 2020, a América Latina e o Caribe.
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