A partir do cinema é possível trabalhar o desenvolvimento da sensibilidade e da percepção artística e a problematização de temáticas históricas, sociais, ambientais e econômicas cujas consequências de suas manifestações atuais tornaram urgente a sua discussão e superação. A linguagem audiovisual permite uma maior aproximação em determinadas interações pedagógicas. A partir do trabalho didático e político com audiovisuais, sejam eles cinemas, documentários, séries etc. é possível tematizar questões importantes e promover reflexões. O debate crítico orientado, tomando como meios os audiovisuais podem ampliar horizontes culturais e políticos dos envolvidos. Seja apresentado produções que vão além do cinema “blockbuster” e para além da passividade acrítica no âmbito da política e da vida, quando ao realizar a leitura crítica das produções comercias que fazem parte do universo cultural dos alunos.
Mais do que em qualquer época histórica passada o acesso ao patrimônio audiovisual produzido pela humanidade e às produções de cinema contemporâneas é bastante facilitado. Hoje é possível assistir filmes de quaisquer gêneros, nacionalidades e épocas sem sair de casa. Todavia, essa facilidade não resulta em uma ampliação do acesso dos indivíduos ao que de mais significativo a humanidade produziu e produz na esfera da arte cinematográfica. Diretores e atores que construíram a história do cinema, para não falar de suas obras, são completamente desconhecidos das gerações atuais. Os filmes mais assistidos na internet reproduzem os rankings de bilheteria dos cinemas. Em outras palavras, a ampliação do acesso possibilitado pela internet, tv a cabo e serviços de streaming não resulta diretamente na difusão de conteúdos nos quais pode-se ver personagens bem desenvolvidos e histórias que remetam os indivíduos ao encontro do gênero humano como fazem os grandes filmes.
Em concomitância com os aspectos anteriormente citados, outra característica presente na apreciação do audiovisual nas gerações passadas também vem se perdendo. Referimo-nos a discussão em torno dos filmes e das problemáticas que ele sucinta. Cada vez mais saímos do cinema, ou assistimos produções em casa, sobretudo quando o filme pode gerar bom debate, sem debatermos as questões em torno dele ou que a partir dele pode-se discutir.
- A importância Educativa do Cinema
Entendemos que temos a cada geração indivíduos que são empobrecidos no desenvolvimento de seus sentidos para apreciação da arte em todas suas formas. A mercadorização da arte exige, de forma cada vez mais ampliada, a difusão de elementos de facilitação da comercialização de seu produto, seja ele musical ou audiovisual. Nós vamos nos tornando consumidores dessas formulas “artísticas” descartáveis e na maioria das vezes superficiais.
Paralelamente a essa rápida caracterização feita acerca da relação entre os indivíduos e o audiovisual nos dias de hoje, uma outra ordem de problema (ainda que relacionado com o primeiro) nos incomoda. Trata-se da crise em que vivemos e sua manifestação em diversos campos da sociedade.
Entendemos que vivenciamos uma crise do capital cujos contornos vão muito além daqueles presentes em suas crises anteriores. Entre os autores que apontam o caráter diferenciando da atual crise, destaca-se o filósofo recém falecido István Mészáros. De acordo com este autor a crise ora presenciada tem início na década de setenta do século passado, quando se inicia uma forte queda na taxa de lucro capitalista. Para Mészáros esta crise possui qualidades distintas das anteriores, configurando-se em uma crise estrutural do sistema do capital. Estratégias que no passado foram capazes de retirar o capital da crise, hoje, ou não são mais possíveis de serem utilizadas (a guerra mundial, por exemplo) ou já estão sendo aplicadas, mas não são suficientes para assegurar um patamar satisfatório de retomada da taxa de lucro capitalista (pensemos na expansão geográfica do capital, só para ficar em um exemplo).
Nesse quadro de crise estrutural o capital coloca em ativação limites que põe em risco a sobrevivência da humanidade sem que ele possa dar respostas positivas a esses limites. Problemas como a destruição ambiental, riscos de hecatombe nuclear, transformação de contingentes populacionais inteiros em pessoas supérfluas, ampliação do desemprego em escala global, crescimento da miséria a nível internacional não encontram saída no atual estado de coisas. Mesmo problemáticas aparentemente menores como a questão das minorias, das mulheres, da homoafetividade, da xenofobia etc. não encontram solução no quadro da crise do capital. Ao contrário as contradições estão cada vez mais se ampliando. Isto se manifesta, sobretudo, no crescimento do pensamento conservador, militarista, segregacionista, machista, xenófobo etc.
A arte, mesmo quando sem intenção, não consegue deixar de refletir esse quadro de coisas. Em se tratando do cinema, há uma imensa produção atual e passada na qual essas questões são abordadas. Mesmo histórias passadas com pano de fundo histórico diferente do qual vivemos hoje podem nos servir de iluminação para ampliação do entendimento da realidade que vivemos hoje. A necessidade de tratar tais temáticas, sobretudo aonde elas não são abordadas ou são abordadas destituídas dos elementos históricos e culturais, torna-se fundamental. Mais que fundamental é urgente percebermos o mundo a nossa volta e agirmos sobre ele, uma vez que, se Mészáros estiver certo, o que está em jogo é a sobrevivência da humanidade.
A linguagem audiovisual é hoje, mais que em qualquer outra época, uma forma de mediação amplamente utilizada. Não apenas porque é um tipo de linguagem que pode ser realizada antes da leitura e independentemente dela, mas porque hoje a sua presença é extremamente predominante. Contemporaneamente a presença do audiovisual na maneira como as crianças e os jovens conhecem o mundo e a realidade é cada vez maior. As interações sociais e a formação da personalidade são, hoje, bastantes influenciadas por esse tipo de linguagem. Dentre as diversas formas de audiovisual a linguagem fílmica ou o cinema é a mais antiga. Em que pese sua antiguidade sua presença é notável. Basta observamos como determinados filmes influenciam a forma de vestir e as normas de comportamento de muitos jovens (pensemos, por exemplo, no caso das franquias de filmes de super-heróis). A imensa quantidade de produtos comercializados associados a filmes é outro exemplo de como o cinema está presente na determinação do modo de ser do jovem. Das salas de cinema aos filmes assistidos em casa é inegável a influência da linguagem cinematográfica hollywoodiana, industrial e mercadorizada. É bem verdade que mesmo os filmes “menos comerciais” e as produções independentes não deixam de ser mercadoria, todavia, estes se destacam das grandes produções por serem “mercadorias” que, na maioria dos casos, não pretende atingir todas as camadas de público.
O fato de objetivar todas as camadas de público faz com que as grandes produções realizem concessões do ponto de vista estético e que abandonem, ou, passam ao largo, de questões “sensíveis” que possam significar uma restrição do seu consumo por parte do público comprador.
Evidentemente que a fronteira que separa bons filmes daqueles de “linha de produção” não é facilmente verificável. Só caso a caso pode-se observar quais filmes trazem, ou, não certo nível estético. Isto é, se determinada obra pode provocar uma catarse estética que contribua para o desenvolvimento dos sentidos e mudança dos indivíduos frente à realidade.
Entendemos que os jovens precisam desenvolver os sentidos e ter uma relação com o mundo menos fetichizada possível. Acreditamos que as produções audiovisuais podem servir de ferramenta que contribua para esse objetivo, pela familiaridade de sua linguagem, pela experiência sensível que ele provoca e pela existência de produções que podem proporcionar essa finalidade.
O impacto que as intervenções pedagógicas com audiovisuais, aliadas à formação política e estética, proporcionam é bastante conhecido, haja vista que experiências dessa natureza são realizadas há décadas nas escolas e por sindicatos, partidos políticos, movimentos sociais de todas as naturezas. Nas escolas essa ferramenta de formação não é novidade. A importância da exibição de audiovisuais nas escolas, especialmente da produção nacional, não deixa de ser notada nem mesmo pelo Estado Brasileiro que em 2014, mediante a Lei nº 13.006, tornou obrigatório a exibição de, no mínimo, duas horas de filmes nacionais por semana nas escolas como complemento ao conteúdo pedagógico.
Consideramos importantes não apenas trabalhar temáticas abordadas pela produção nacional, mas de várias nacionalidades, uma vez que entendemos como elemento fundamental da obra de arte o seu caráter universal, mesmo quando parte uma particularidade regional. Além disso, consideramos a produção cultural como produto do gênero humano e não de uma nacionalidade específica, ainda que ela só possa surgir em dado solo nacional.
Infelizmente as produções que constituem o que poderíamos chamar de patrimônio artístico e memória artística (isto é, aquelas cuja qualidade estética e o caráter de permanência e universalidade os transformam em clássicos) são de desconhecimento da maioria dos alunos. Também é facilmente comprovável que produções de língua não inglesa não são vistos por esse público. Consideramos que o não acesso, a filmes de língua não inglesa; às produções clássicas e às contemporâneas que fogem do formato hollywoodiano e que possuem determinadas qualidades estéticas constitui uma lacuna na formação humana, estética e cultural desse público. Entendemos que apresentar, debater, discutir, criticar tais obras é fundamental para estabelecer uma relação mais sensível e crítica com o mundo a nossa volta.
Entendemos como Saviani que, “o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (2003, p.13). Acreditamos que oportunizar, o acesso a essa pequena mostra do que de melhor a arte audiovisual produziu, é contribuir para produzir a humanidade em cada um deles, na perspectiva apontada por Saviani.
Ao mesmo tempo, as produções audiovisuais possibilitam o debate e a discussão de temas necessários e urgentes. Usando-as como veículo para a análise e crítica da realidade, a escola pode contribuir para a constituição de jovens mais críticos, democráticos e menos influenciáveis por tendências conservadoras e antidemocráticas.
Compreendemos que uma dessas produções audiovisuais que tem potencial pedagógico na direção do que apontamos anteriormente é a série aqui analisada, Damnation.
“As angústias e esperança do povo devem ser compartilhados pela igreja (...). Afinal, o próprio Cristo, que “passou pela terra fazendo o bem”, foi perseguido, torturado e morto. Legou-nos a missão de trabalhar pelo reino de Deus, que consiste na justiça, verdade, liberdade e amor”. (ARNS. 2011). Assim inicia o prefácio escrito por Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal Arcebispo de São Paulo (entre 1970 até sua morte em 2016) para o livro “Brasil: Nunca mais” que trata dos horrores cometidos pela ditadura militar no Brasil. Dom Paulo é a representação mais autêntica de como a igreja e a religião pode ser um instrumento de luta política em favor do povo. A solidariedade da igreja deve se consolidar para além do assistencialismo e da caridade. A igreja deve agir para conscientização das massas, em defesa dos oprimidos e no combate aos opressores. Essa foi a vida de Dom Paulo. Por ela vimos, na prática, uma igreja e uma religião em defesa da classe trabalhadora.
A Série, Damnation, que tem seu primeiro episódio discutido nesse artigo, trata do papel da igreja e da religião com a política, por meio da ação de um pastor em favor dos trabalhadores, em Iowa - EUA, no ano de 1932. Ao longo da série podemos observar como a atuação do pastor é fundamental para organização dos trabalhadores. Pois, esses estão com suas propriedades ameaçadas pela ganância do banco e dos grandes empresários. A série possui como alicerce a luta de classe entre os trabalhadores e o Capital. Nesse sentido, nos apresenta o mecanismo utilizado pela classe dominante para impedir a organização dos trabalhadores e a luta ferrenha empreendida por esses últimos para garantir sua própria sobrevivência.
A luta de classe que permeia a série fica explícita em vários momentos. Aqui basta citar a referência à Marx, no sentido da necessidade de uma mudança estrutural da sociedade, a referência à organização dos trabalhadores como Bolcheviques ou comunistas, a referência à Martin Luther King em oposição a todo conflito estabelecido por uma grande empresa em articulação com o banco, os comerciantes e a polícia para tomar a propriedade dos trabalhadores rurais[1].
O radicalismo do pastor, em compreender as relações de opressão engendradas pelo Capital e sua tentativa de uma organização dos trabalhadores que põe em xeque o próprio sistema, o vincula à uma leitura religiosa bíblica fundamentalmente política. A sua interpretação dos escritos sagrados tem por objetivo afastar os fiéis do conformismo e os conscientizar para a luta contra seus opressores. A fé cristã professada pelo pastor exige um compromisso com a justiça e com a mudança estrutural da sociedade. Muito acertadamente diz Mainwaring que:
A questão não é saber se a Igreja está ou não envolvida na política, mas como ela está envolvida. Os católicos conservadores estão tanto ou mais envolvidos na política, ao procurarem através da Igreja reforçar ou legitimar o discurso e a ordem dominante, do que os ativistas da Igreja popular, que, no polo ideológico oposto, querem transformar a sociedade. (1989, p. 94)
Mainwaring (1989) estava se referindo à esquerda da igreja católica no Brasil, mas podemos sem grandes esforços, fazer a mesma leitura em relação ao pastor na série. O envolvimento político da igreja, por meio do ativismo do pastor, com a luta dos trabalhadores é desafiador à classe dominante. Foi exatamente por essa conexão que iniciamos esse texto com as palavras do cardeal Dom Paulo E. Arns, pois, ele foi a representação viva brasileira que desafiou a ordem e lutou contra a opressão e a violência do Estado e dos empresários contra o povo.
A primeira temporada inteira trata dos aspectos aqui destacados. No entanto, para esse artigo, optamos por tratar apenas o primeiro episódio. Nossa opção se deu por acreditar que o primeiro episódio aponta, em linhas gerais, toda a problemática que se desdobra ao longo da série. Isso permite que analisemos mais detalhadamente os principais aspectos que implica na relação entre igreja, religião, política, luta de classes e organização dos trabalhadores.
2. Quando a igreja popular se coloca em defesa dos oprimidos
A cena inicial é bastante significativa para compreendermos a posição que a igreja, na figura do pastor Seth, irá assumir durante toda a história. Essa cena demonstrará o espírito de uma sociedade impregnada de valores pautados pela propriedade privada, a situação de empobrecimento dos trabalhadores e a defesa além do superficial de como os mais vulneráveis, os que nada possuem, devem agir para garantir sua própria existência.
A cena acontece no momento em que o pastor, logo após fixar na porta da igreja o panfleto intitulado “Um acerto de contas de Deus com os Estados Unidos”, se aproxima da casa do fazendeiro Frank, e o vê atirando em seu próprio galinheiro. O diálogo se estabelece da seguinte forma:
Pastor: Parece estar atirando nas galinhas.
Frank: Não, estou atirando naquele ladrão de ovos filha da mãe que está escondido com elas. Não posso perder mais ovos. A vida já está difícil demais”.
Pastor: Não está perdendo ovos e galinhas a cada tiro?
Frank: Um homem tem que seguir seus princípios.
Pastor: Imagino que sim.
Na citação acima, aparentemente simples, é possível identificar algumas ideias importantes no que diz respeito ao funcionamento da sociedade. Frank continua a atirar contra o galinheiro, para atingir o ladrão, mesmo sabendo que suas galinhas, fonte de sua renda, poderiam ser afetadas. Quando questionado pelo pastor, ele responde que um “homem tem que seguir seus princípios”. Essa é uma ideia fundamental de como estamos profundamente impregnados com a ideia da propriedade privada. É mais importante destruir o outro, mesmo que esse outro seja quem passa fome e esteja numa situação vulnerável, ainda que isso cause danos à sua propriedade, do que agir no sentido do compartilhamento do alimento tão necessário à vida. Embora a situação de Frank seja difícil, o que está em jogo é a ideia de que quem não é trabalhador não deve ter direito à nada, a não ser à morte, em sua busca pela sobrevivência.
No entanto, na continuidade da cena, o pastor intervém ao baixar a arma e entrar no galinheiro. Lá encontra uma jovem, pede pra ela ficar abaixada, retorna para falar com Frank, informa que é uma menina e o diálogo continua:
Frank: Se já tem idade para roubar, tem idade para lidar com as consequências.
Pastor: Bem aventurado os misericordiosos, Frank, porque alcançarão a misericórdia. Frank: Está dizendo que posso ir para o céu se eu não matar essa ladra de ovos imunda?
Pastor: Sim.
Frank: O que mais eu ganho com isso?
Pastor: Além da salvação eterna?
Frank: Sim.
Pastor: Posso também lhe dar uma dúzia de ovos e alguns litros de leite fresco.
Frank: Fechado
Essa primeira intervenção é significativa pois vemos a defesa dos mais vulneráveis pelo pastor. O pastor negocia com Frank a saída segura da garota exaltando a misericórdia como um ato de salvação. No entanto, ao ser questionado por Frank que afirma que a salvação eterna não é suficiente, oferece leite e ovos, ou seja, alimentos necessários à sobrevivência, que são aceitos por Frank. O fundamental dessa conversa é a compreensão imediata do pastor que as necessidades para a manutenção da vida são mais urgentes. Essa compreensão já nos dá um forte indicativo de como a igreja, do pastor, está vinculada à consciência da importância da satisfação das necessidades materiais do povo, mesmo que a linguagem inicial seja a da necessidade da salvação espiritual.
Ao levar a garota para sua morada podemos confirmar o que acabamos de dizer por dois motivos. O primeiro é o encontro do pastor com o líder do movimento grevista. Isso já o coloca ao lado de um movimento organizado em favor dos trabalhadores e luta contra a própria dinâmica estrutural do sistema capitalista. Ele possui plena consciência que se trata claramente de uma luta de classes. O segundo, é o diálogo que estabelece com a garota:
Garota: Contra o quê é a greve?
Pastor: Contra o sistema econômico americano.
Garota (Sorrindo ironicamente): Como vão fazer isso?
Pastor: Quebrando os pilares do sistema... Um banqueiro canalha por vez.”
(...)
Garota: “É aqui que moro.
Pastor: Não vejo nenhuma casa.
Garota: Não disse que veria.
Pastor: Pode vir a nossa igreja. A congregação se reune para comer depois do culto da manhã.
Garota: Acho que prefiro viver no mato e passar fome do que ouvir um pastor dizer como devo viver minha vida.
Pastor: Não somos esse tipo de igreja
Garota: Roubou isso (ovos) da dispensa daquele velhote?
Pastor: Somos todos parte do corpo de Deus. Só troquei os ovos da mão esquerda de Deus para a mão direita. Tome.
Garota: Não aceito esmola.
Pastor: E eu não ofereço. É um pagamento pelo que vou dizer agora.
Garota: Está bem. Vamos ouvir o sermão.
Pastor: Na próxima vez, não se contente com os ovos. Pega a galinha inteira. Pura economia.
Garota: Ok.
Pastor: Espalha um pouco de sangue e penas. Vai parecer que as raposas atacaram o galinheiro.
Garota: Amém para isso pastor (sorrindo).
Podemos perceber que o pastor já afirma a diferença de sua igreja na medida em que a convida para o culto e diz que não vai exigir nada, em termos morais e comportamentais. Sua ordem religiosa tem o intuito muito maior do que mera pregação espiritual. Não é à toa que ele diz que há comida após o culto, entrega para a garota dois ovos que pegou de Frank e ainda diz que somente os ovos não são suficientes da próxima vez que for se apropriar: “É preciso pegar a galinha inteira”. Essa última afirmação é, por si só, mais significativa, uma vez que apresenta a posição do pastor em relação à propriedade privada. Não basta se contentar com uma parcela mínima do trabalho. É necessário tomar posse dos meios de produção desses produtos. Por isso, a “galinha inteira”.
A relação do pastor com a greve, sua defesa dos vulneráveis, além da sua consciência do funcionamento da sociedade, que ficará mais clara ao longo da série, já nos demonstra, nos primeiros minutos desse primeiro episódio, que tipo de igreja e de relação entre religião e política é desenvolvida ao longo da série. Desta forma, observaremos como a religiosidade e a igreja pode ser utilizada em defesa dos mais vulneráveis para além de mera caridade. Articulado diretamente com uma consciência de classe, essa ação política é necessária para questionar e enfrentar uma ordem profundamente desigual, injusta e desumanizante que apenas oprime e explora o trabalhador. O primeiro sermão que o pastor realiza esclarece mais ainda sua posição:
Pastor (primeiro sermão): Bem vindos, amigos. Gostaria de falar para vocês sobre Jesus. De alguma forma, nos dias de hoje, nos convencemos de que Jesus Cristo era um homem respeitável, uma figura de autoridade solene. Mas, a polícia e os juízes não crucificaram Jesus por ser respeitável. Eles o crucificaram porque ele era um fora da lei. Um revolucionário. Eles o crucificaram porque tinham medo de que ele tirasse o poder das mãos dele e o desse aos pobres. Meus amigos, vivemos novamente em tempos bíblicos. Há uma guerra santa nesse país. Ricos contra pobres. É a mesma guerra que Jesus travou. (Sermão interrompido para mostra o fura greve e o assassinato do líder dos grevistas pelo capanga contratado pelos empresários para conter a greve).
Continuação do sermão (Enquanto o sermão é dito aparece cenas de uma organização similar à ku klux kan). Jesus nos diz “não pensem que vim trazer paz à terra; Não vim trazer paz, mas espada. Não paz... Mas espada...” (o pastor levanta a arma). O próprio Jesus Cristo diz isso. Porque sabia que estava em guerra. A pergunta é: Vocês sabem?
Podemos perceber que a própria figura de Jesus Cristo é apresentada pelo pastor como alguém que foi injustiçado e assassinado pelos promotores da ordem por se colocar a favor dos pobres e oprimidos. Desta forma, o Jesus que foi eliminado é o revolucionário que se colocou ativamente contra toda forma de injustiça. A pregação a respeito desse Jesus é um chamado ao povo de uma ação contra seus próprios opressores que se apresentam das mais diversas formas. Os opressores estão personificados na figura do banqueiro, do xerife, dos membros de uma organização semelhante a Ku Klux Klan, ou seja, de todos que estão articulados, mais ou menos, ao Estado, para a manutenção de uma sociedade de exploração.
Questionar aos fiéis, frequentadores da sua igreja, se sabem o motivo de sua guerra, a mesma enfrentada por Jesus, ao afirmar que Jesus não veio trazer paz, é uma leitura bíblica muito peculiar que coloca os ensinamentos religiosos a favor de uma luta social de derrubada do sistema. Assim, os ensinamentos religiosos cumprem um papel de conscientização para construção da luta dos trabalhadores.
Ao fim do culto, uma fiel se aproxima do pastor e afirma que “nunca tinha visto usar um culto para política assim”. O pastor imediatamente responde que “a questão não é entender o mundo, mas mudá-lo”. Ao escutar, a fiel pergunta se essa afirmação estava na bíblia. De pronto a esposa do pastor, Amélia, responde: “em todas as páginas”. Nessa passagem, o pastor consolida seu interesse em fazer da ação religiosa uma forma de despertar as consciências e incentivar a organização dos trabalhadores. A política que defende é a ação revolucionária para mudança radical do sistema capitalista. Ao dizer que em todas as páginas da bíblia se encontra a célebre tese de Marx (1845): “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo” vincula a ação da igreja e da religião a uma luta revolucionária que tem como objetivo subverter radicalmente a ordem social. O vínculo entre política, luta de classes, igreja e religião é a temática delineada nesse primeiro episódio que acompanhará toda a série.
3. A religião como instrumento para organização dos trabalhadores
Ao fazer uma análise mais profunda da atuação da igreja, na série, não podemos admitir a ideia pré-estabelecida e hegemônica de manutenção da ordem. Trata-se de identificarmos uma atuação política da igreja a partir de seu posicionamento de classe. Nesse caso, se trata de uma ruptura, ainda que localizada e pontual, com uma igreja conservadora e aliada às classes dominantes. A atuação do pastor é marcante nesse sentido. A ressignificação da leitura bíblica, profundamente necessária, está articulada com um projeto que visa garantir aos trabalhadores a manutenção de suas terras.
A única forma de garantir o sustento dos trabalhadores é fazendo uma greve para tentar conseguir um aumento dos preços dos alimentos que eles vendem aos comerciantes. O valor pago pelos produtos dos trabalhadores são tão baixos que os mesmos estão cada vez mais endividados, sem dinheiro para remédios e alimentos e sem conseguir pagar os impostos e os empréstimos que fizeram ao banco. A igreja, na figura do pastor, aparece como o espaço político de organização desses trabalhadores com uma narrativa e interpretação religiosa que os apoiam.
Uma das cenas importantes desse primeiro episódio é a demonstração de como o banqueiro tem se articulado aos comerciantes para manter os preços dos produtos dos trabalhadores baixos, ou seja, “a fixação de preços”. Assim, os trabalhadores não ganham o suficiente para pagar seus empréstimos, mesmo com uma safra de excelente qualidade. Esse é o motivo da greve. A intenção do banco é leiloar as fazendas para que os grandes empresários possam se apossar e torná-la mais uma forma de enriquecimento do grande capital.
Com esse objetivo, o banqueiro se aproveita da vulnerabilidade de um dos trabalhadores, Pete Collingsworth, que se encontra com a esposa doente e que necessita de alimentação e remédios, oferecendo o dobro do pagamento pelo seu produto, para conseguir desarticular a organização dos grevistas. O papel do banco é fazer o possível para que a greve termine. Ainda que isso signifique utilizar meios cruéis de repressão. Isso se torna evidente com a contratação de um fura-greve que assassina a sangue-frio o líder dos grevistas, Sam Riley, na frente do próprio filho, Sam Riley Jr, na intenção de intimidar e impedir a continuidade da greve.
Mais uma vez o papel do pastor e sua atuação política a favor dos trabalhadores é fundamental. Os trabalhadores vão à cidade convocar a população para comparecer à igreja e discutirem os rumos de sua organização. A segunda pregação do pastor é profundamente mais forte e provocativa. Ela se dá em meio ao velório de Sam Riley. Inicia citando a passagem bíblica, Mateus 7:11, “Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a ele”. No entanto, o que o pastor descreve não é uma infinitude de bondade que aprendemos quando criança. Mas, a demonstração mais violenta dos bancos, empresas e Estado para expropriar os trabalhadores, apossar-se de seus trabalhos e ferir lhes o corpo e a alma.
A regra de ouro bíblica, portanto, “não é um convite à conformidade” diz o pastor. É um chamado às armas”, acrescenta. É um chamado à necessidade de eliminar esse inimigo. Um inimigo de classe. Um inimigo que, sem remorso, abateu o líder dos grevistas para fins de enriquecimento privado. “Um chamado as armas” significa os trabalhadores fazerem ecoar numa grande explosão o silêncio deixado por Riley. Um “silêncio estrondoso, furioso, ensurdecedor” só pode ser o levante dos trabalhadores contra o capital.
Durante a pregação, o pastor é interrompido pelo xerife que leva Riley Junior, acusando-o de assassinar Pete Collingsworth. Em meio aos acontecimentos desse episódio é possível observar a atuação da polícia como instrumento do Estado, em favor da classe dominante e contra os grevistas. Numa cena anterior, o mesmo xerife aparece açoitando um produtor clandestino de bebidas por causa da lei seca. Depois de açoitar exige que o produtor faça bebida para ele e para um prostíbulo. Isso significa que além de estar vinculada aos interesses da burguesia, no caso de Iowa, a polícia é profundamente corrupta.
Para enfatizar a atuação da polícia nos EUA, o episódio conta com uma cena onde os mineiros que estão em greve na cidade de Harlan, reclamam ao xerife da região que os empresários chamaram outros trabalhadores para ocuparem seus lugares. O xerife diz que “os tempos estão difíceis para todos. Temos que abrir essas minas de novo”. Então, um dos grevistas responde: “Os tempos estão difíceis para todos? Parece que trabalha para eles. O xerife diz: pois é. Voltem ao trabalho!”. O xerife manda ligar para o governador para dizer que precisa mais do que fura greve. Pede a guarda nacional.
Nos dois momentos, citados acima, a atuação do Estado, por meio da polícia, representa seu caráter essencialmente repressor. Sua função é manter a ordem e evitar o possível motim dos grevistas. Ainda que a ordem seja garantir que os trabalhadores recebam salários de fome e se submetam passivamente aos seus patrões. Desta forma, não se trata apenas de uma vinculação corrupta da polícia à classe dominante. Mas, da natureza opressora que a polícia, independente de ser corrupta ou não, possui. Uma natureza classista em favor do Capital. Inclusive, isso é demonstrado no segundo sermão, quando o pastor diz “se eu fosse conspirar como nossos bancos, empresas e governos conspiraram para roubar as mesmas pessoas que cultivam nossa comida e fortalecem nossa nação, o que eu gostaria que meu próximo fizesse a mim?”
Em mais uma ação forte e impactante o episódio se encerra com o corpo de Riley pregado na porta do banco como Jesus na cruz. A figura de um trabalhador injusta e cruelmente assassinado como a representação de Jesus é mais uma forma de demonstrar a vinculação da religião com o movimento de trabalhadores. Religião e política é a união da fé com a justiça social e com os oprimidos.
4. A comunicação institucional e formal como instrumento de legitimação da burguesia
Na primeira cena do episódio observamos o pastor pregando na porta da igreja o panfleto “Um acerto de contas de Deus com os Estados unidos”. Essa é a ideia emblemática da série. “Um acerto de contas de Deus com os EUA” significa a organização dos trabalhadores que lutam contra a opressão e dominação implementada pela classe dominante americana. Trata-se de um levante da classe subalterna para destruir o mecanismo próprio do Capital de expropriação dos trabalhadores de suas terras e acumulação e concentração de riqueza nas mãos dos grandes empresários.
A produção e distribuição de panfletos é de grande importância para a narrativa da série e demonstra a necessidade de um meio de comunicação independente e feito pelo próprio movimento dos trabalhadores. Amélia, a mulher do pastor, vai até o jornal e informa ao jornalista D. L Wallace sobre a morte de Riley estabelecendo um diálogo que revela a verdadeira atuação do jornal oficial da cidade. Amélia expõe a ausência de informações sobre “revolta coletiva dos trabalhadores” enquanto o jornal enaltece um comerciante da área de sorvetes. Wallace responde: “Revolta coletiva? Essas são palavras perigosas”. Ou seja, qualquer menção ao movimento dos trabalhadores deve ser censurada e apresentada como perigosa.
A realização de um projeto de dominação implementado pelo sistema capitalista perpassa não apenas a dimensão política e econômica, mas também os mecanismos ideológicos de formação da opinião pública. Não é à toa que o jornal oficial aparece vinculado aos interesses dominantes quando, ao final, o jornalista chefe informa ao banqueiro sobre a morte de Riley que responde: “é uma tragédia Americana”. A tragédia americana é a tentativa de naturalizar as próprias relações de opressão existentes nos EUA. Amélia tenta despertar a consciência política do jornalista ao afirmar: “D. L. Sullivan, você se encontra no breve trecho de sua única vida. É assim que quer passa-la? Escrevendo sobre vendedores de sorvete e recitais escolares e não sobre as dificuldades dos seu próximos?”. O jornalista responde que necessita manter o emprego. Ela pergunta: “E quanto à sua alma?” e ao ser interrompida pelo editor chefe sai recitando o trecho do poema “O imperador do sorvete” de Wallace Stevens.
Desta forma, podemos afirmar que existe uma posição de classe do jornal da cidade que não está ao lado dos trabalhadores. Pelo contrário, os meios de comunicação além de estarem vinculados há uma grande movimentação de dinheiro, por isso à vinculação ao banco, também representa uma formação ideológica que tem a função de legitimar o próprio Capital.
Por isso, é sempre necessário construir uma outra forma de comunicação comprometida com a organização dos trabalhadores. Essa comunicação precisa ser independente do financiamento do Capital. Precisa divulgar e contestar a opressão e a miséria em que vivem os trabalhadores, além de colocar em xeque a visão e a representação dos interesses da classe dominante. É isso que Amélia faz, sob o pseudônimo de Dr. Samuel T. Hopkins, ao escrever os panfletos. Seu objetivo é apresentar aos trabalhadores uma nova forma de pensar a si mesmo nos mais diversos aspectos. Não é gratuito que o outro panfleto, entregue na igreja, se intitula “lugar de mulher é na revolução”. É necessária uma nova construção subjetiva e ideológica que amplie a consciência dos trabalhadores para além do que a ideologia dominante veicula.
Como podemos acompanhar, ao longo do primeiro episódio, o que está em jogo é a importância da igreja no desenvolvimento de uma consciência de classe e de uma organização para as lutas contra o sistema capitalista norte-americano. Dentro desse contexto, vários pontos foram desenvolvidos, tais como: a visão de uma Jesus de luta, revolucionário; as armas de opressão utilizadas pelo Estado, como a polícia e os fura-greve; as organizações de cunho racista conservador que servem para manutenção do sistema; e o poder da comunicação, entre outros que não foram possíveis discutir nos limites desse artigo.
A série apresenta uma narrativa complexa e bem fundamentada de uma religião e de uma igreja comprometida com a libertação dos trabalhadores. Nesse sentido, podemos compreender que a própria série cumpre um papel de questionar a ordem vigente por meio da atuação de uma religião política. Longe de ser mais um entretenimento vazio, questiona os pilares da sociedade e se realiza enquanto um veículo cinematográfico de conscientização.
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