Metadados do trabalho

Histórias Em Quadrinhos No Debate Sobre O Racismo

Luciano dos Santos Ferreira

O Brasil é uma sociedade recente com pouco mais que cinco séculos, ainda que os processos socioeconômicos tenham avançados e o país conste como um dos mais relevantes do mundo em vários setores, não podemos esquecer que foi formado a partir de violento processo de exploração colonial, latifúndio e mão-de-obra escravizada, que perdurou por maior parte de sua história. As consequências são de brutal desigualdade social, população afrodescendente na base de uma pirâmide social, cuja pobreza reproduz os tempos de escravismo, com papel subalternizado pelo insistente preconceito, além do racismo estrutural. Uma solução para reverter o status quo, ainda que seja de enorme complexidade e demande muito tempo, é fornecer uma educação de qualidade a todos igualmente; para tal, deve-se pensar em métodos e processos a partir da premissa de descolonização das mentalidades, para isso propomos Histórias e Tiras em Quadrinhos para expor adolescentes e jovens ao debete com pares e seus/suas docentes sobre racismo, preconceitos, misoginia, etc., dialéticas com um veículo midiático atrativo para a faixa etária de forma lúdica e ao mesmo tempo crítica.

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Como citar este trabalho

FERREIRA, Luciano dos Santos. HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO DEBATE SOBRE O RACISMO. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2023 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/544-hist%C3%B3rias-em-quadrinhos-no-debate-sobre-o-racismo. Acesso em: 16 out. 2025.

HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO DEBATE SOBRE O RACISMO

            Não faz muito tempo em que era corrente aceitar o conceito do brasileiro como “o homem cordial”, que o processo escravagista aqui foi mais brando do que em outros lugares por suas dissimulações e trato. Diz-se que aqui o escravo fora incorporado à família extensa dos seus senhores, assumindo os sobrenomes, etc. Houve até quem afirmasse que o Brasil era um caso único de “democracia racial”, belas palavras, mas apenas falácias.  Há uma propensão das elites, ainda que velada, na aceitação e reprodução dessa versão, ou simplesmente ignoram; de certa forma, exime parte da culpa, já que àquela velha “elite” se perpetua no poder, não mais literalmente com o chicote nas mãos, aprisionamento no tronco ou a vigília da vida escrava na senzala[i]. Atualmente os afrodescendentes exercem funções domésticas na casa de patrões ou assumem funções básicas como motorista de executivo, jardineiro ou como empregados de baixa qualificação nas empresas comandadas por aqueles mesmos senhores, ou ainda pior: rechaçados à informalidade como vendedores ambulantes de todo tipo de produto ou prestação de serviço, sem escolaridade significativa, sequer segurança alimentar alcançaram. A mesma separação social e opressão simbólica da época da escravidão, apenas a roupagem é diferente.

            Mas será que a violência foi menor? Depois de mais de 5 milhões desenraizados, separados das famílias, nomes e culturas apagados, religião extirpada, mortos lançados ao mar, os vivos às chibatadas chegaram à América, perdurando do século XVI até o XX (SHALHOUB, 2011, p. 40), neste último, mesmo abolido oficialmente o regime escravocrata, afrobrasileiros da marinha brasileira ainda eram punidos assim. Historiadores, sociólogos, filósofos e tantos outros, desde meados da década de 1950, já afirmavam que esse conceito “cordial” dos anos 1930, era questionável. Passamos por períodos turbulentos de cerceamento de direitos por décadas que atrasou o avanço do reconhecimento de direitos de povos historicamente oprimidos, nãos só os afrodescendentes como de povos originários e tantas outras minorias com lutas ainda em curso. Décadas depois da turbulenta instituição das cotas nas universidades em 2012, a elite ainda esperneia pela não aceitação dos afro-brasileiros ao lado dos seus. Eis que surgem vozes que, explicitamente negam os resquícios da escravidão, de uma abolição sem critérios e ainda ousam afirmar que não há racismos ou preconceitos. Sem aprofundar a questão, retrocedemos e muito quanto a ideia de direitos com a ascensão da extrema direita no Brasil, colocaremos como marco a eleição presidencial de 2018.

            O presente trabalho é exposição de parte de um produto educacional de mestrado do PROFHISTORIA da Universidade Federal de Sergipe, que buscou e busca discutir a questão do racismo e do preconceito cotidiano para ser trabalhado em sala de aula por professores e estudantes, em um diálogo aberto e maduro, para que esses adolescentes e jovens percebam as reminiscências dessa época brutal, nos trejeitos sutis das palavras, nas brincadeiras de mau gosto normalizadas, da distorção das narrativas impostas por falsos moralismos, etc. Para fomentar essa discussão foi utilizada uma ferramenta do imaginário juvenil, as História em Quadrinhos, que chamam a atenção por si mesmas, toda criança gosta, nem que seja para apreciar os “desenhos”. A ideia para além da base divertida e descontraída, que os estudantes possam ter auto reflexão e enxergar os equívocos proferidos até por autoridades que deveriam promover a igualdade e justiça social e fomentar a crítica.

            Aqui apresentaremos alguns exemplos de quadrinhos autorais, extraídos da HQ Caminhos de Uma Escrava da África a Sergipe[ii], o intuito é que seja reproduzida, recortada e discutida da melhor maneira que os /as docentes possam utilizar, a prerrogativa é que seja útil aos estudantes para que compreendam a própria origem e trajetória e com isso sejam cidadãos melhores.

 

Desenvolvimento da Pesquisa do roteiro da História em Quadrinhos

 

            Um aspecto importante desenvolvido paralelamente a pesquisa historiográfica, foi a metodologia de construção de Histórias em Quadrinhos e as Tiras em Quadrinhos. Foi necessário entender como se constrói um roteiro para HQs, que não é tão simples como parece. A obra de Gian Danton foi fundamental, já que seu livro: Como Escrever HQ, deu as primeiras bases, complementada pelo curso de roteirização de HQ oferecido pela fundação Demócrito Rocha da UFCE, para formar os conceitos do que representar nos quadros e nas passagens de tempo das calhas[i], na organização do ritmo da história, etc.

            Após uma série de leituras feitas, e ideias de como eu desejava desenvolver a história, começava a me preocupar se daria conta de transmitir nas ilustrações as ideias da pesquisa. No princípio minha busca foi feita conforme a sugestão do professor Lucas Pinheiro do programa do PROFHISTORIA/UFS, da disciplina de Percursos e Linguagens da Arte no Ensino de História, que foi buscar entre meus discentes do ensino médio alguém com habilidade ilustrativa, o de fato é muito comum encontrar entre os estudantes tais  habilidades; encontrei dois estudantes, um que estava trabalhando e outro já em vias de entrar na universidade e sem tempo para meu projeto, chegaram a fazer alguns esboços, mas o trabalho precisava ser sistemático e contínuo. Decepcionado, passei a buscar na internet profissionais que pudessem “dar vida” a história que eu ainda idealizava.

            Depois de algum tempo encontrei um site especializado em dar suporte a escritores[ii], possui uma infinidade de serviços de suporte a escritores como ilustração, correção ortográfica, traduções, registros de ISBN, etc., comecei os primeiros contatos com ilustradores que tivessem experiência em HQs, já que as únicas experiências que eu possuía era como leitor e a que eu adquirira com a leitura do livro de Gian Danton, que foi bastante instrutivo, mas insipiente; eu só queria começar a montar os roteiros após contratar o ilustrador e conversar sobre como o trabalho seria feito. Depois de examinar algumas referências no site, encontrei Mauro Martins da Paz, cujas referências eram ótimas. Conversamos, expliquei como seria o projeto, os prazos, os objetivos e pedi pra que ele fizesse a capa, expliquei como queria, acertei o prazo, etc. Logo ele me enviou um estudo da personagem, usando os elementos que eu havia explicado. Por causa da minha inexperiência acabei deixando passar detalhes com relação ao recorte temporal, o resultado está na figura abaixo.

 

Figura 1: Estudo da personagem da HQ

Fonte: Obra do desenhista Mauro Pena, 2018.

 

            Pedi para que ele refizesse sem o turbante, já que nossa personagem vivia numa tribo africana, com pouca influência cultural de outras etnias; também pedi que ele tomasse cuidado com as vestes, já que as referidas etnias vestiam pouca roupa da cintura para cima; falei da questão moral, para que ele a ilustrasse com as características mais próximas possíveis do cotidiano local no século XIX, que era sempre com os seios a mostra. Pesquisei etnias banto com fotos do período e, após refazê-la, ficou como na figura 2, dessa ilustração eu havia gostado, ele desenvolveu os outros detalhes, como consta na figura 3, a capa estava quase pronta.

                                    

Figura 2: Estudo da personagem da HQ                      Figura 3: Estudo da personagem da HQ

      Fonte: Obra do desenhista Mauro Pena, 2018.           Fonte: Obra do desenhista Mauro Pena, 2018.

 

Com acordo sobre os detalhes, firmei o contrato, passei os detalhes de outros roteiros. Não foi um começo harmonioso, já que minha falta de experiência mesmo tentando montar os fullscripts[iii], estava deixando passar detalhes que o ilustrador livremente preenchia com seu conhecimento, começaram alguns atritos, na figura 4, feita posteriormente ilustra isso.

 

                               

 Figura 4: Transporte escravo no navio negreiro            Figura 5: Transporte escravo no navio negreiro          Fonte: Obra do desenhista Mauro Pena, 2018                   Fonte: Obra do desenhista Mauro Pena, 2018.

 

            Voltando um pouco à historiografia, como o tráfico escravo estava proibido desde 1831, o transporte passou à ilegalidade, então não poderia haver símbolos da monarquia de nenhuma nação, outra inconformidade são os cabelos da personagem que deveriam estar rapados, já que infestações de piolhos era comuns durante o trajeto, então, rapar a cabeça de todos evitava o transtorno, também não poderia estar solta no convés da embarcação, era uma cativa também. Foi pedido para que ele corrigisse, mas o fez à revelia e em parte, apagou o símbolo nas velas, mas os outros detalhes ficaram da mesma forma. Demos continuidade e produzimos quinze páginas, algumas muito boas e outras com muitos erros historiográficos.

Sanados os atritos, ainda que alguns erros não tenham sido consertados, deixei para fazê-los no final, já que o prazo era escasso e importava que o trabalho fosse completamente feito. Mas não tardou e o ilustrador abandou o trabalho alegando motivos pessoais. Só não foi desastroso por causa da minha antecipação, ele havia começado a ilustrar o roteiro quase um ano antes do meu prazo final. Tive que recomeçar a busca por outro ilustrador, agora tendo a tarefa de achar um traço que se assemelhasse com as ilustrações já feitas.

Falei do projeto com o dono de uma editora e este se dispôs a publicar a HQ, gostei da ideia, mas aleguei que ainda estava resolvendo o problema da ilustração, perguntei se ele conhecia algum ilustrador confiável; com a afirmativa, ele me passou o contato de Ênio Matheus de Carvalho Lopes. Voltei pra mesa de negociações, falei novamente do projeto e mostrei o trabalho já feito, e o ilustrador me disse que aceitaria, mas que os trabalhos já feitos não se encaixariam com o traço atual. A princípio pensei no oportunismo para me tirar mais dinheiro e propus que ele seguisse do meio da história e que pensaria em resolver as outras questões em outro momento. Ele fez um estudo da personagem que não gostei por questões obvias, retratada na figura 6. Pedi pra que ele refizesse com as características da raça negra africana, ele fez o esboço da figura 7; me vali da ilustração já feita por Pena, foi mais fácil pelo fato de haver já um ponto de partida, esse eu aprovei.

Essa experiência foi extremamente importante, percebi que era daquela maneira, semelhante e distorcida como nas ilustrações, que os estudantes para quem eu ministrava aula compreendiam os conteúdos histórico, o que me fez tomar cuidado redobrado nas aulas posteriores, sempre imaginando que a percepção do que digo poderá ser muito diferente do que é compreendido pelos estudantes; são outras vivências e outras mentalidade, quanto mais objetivo fosse a preparação das aulas, melhor seria a compreensão deles.

 

                                         

     Figura 6: Estudo da personagem da HQ                     Figura 7: Estudo da personagem da HQ

           Fonte: Obra do desenhista Ênio Lopes, 2018.          Fonte: Obra do desenhista Ênio Lopes, 2018.

 

Ele se dispôs a fazer algumas páginas sem compromisso para que eu avaliasse. Agora com um pouco mais de experiência, fiz roteiros bem mais detalhados, sempre na perspectiva que o ilustrador é uma tábula rasa para os conceitos de História e o que seria feito seguiria minhas orientações, ao menos em tese; os resultados estão nas figuras 8 e 9, os quais achei excepcionais, mas não deixei de notar o corte de cabelo anacrônico do homem branco na imagem 9.

 

                 

Figura 8: A vida na África antes dos europeus HQ                  Figura 9: Personagem reage a assédio

   Fonte: Obra do desenhista Ênio Lopes, 2018.                 Fonte: Obra do desenhista Ênio Lopes, 2018.

 

            Após os ajustes naturais e adequação ao estilo do novo ilustrador, já que ele ilustrava sem necessidade de colorização; vi que de fato não havia como aproveitar o trabalho feito pelo ilustrador anterior, também em função do estilo diferente. Após isso todos os roteiros foram refeitos e melhorados, buscando ilustrar os fatos ocorridos de modo que o ilustrador sentisse como a história se desenrolaria, evitando os erros anteriores e compreendendo os objetivos educacionais a serem atingidos.

            O trabalho seguia sem problemas por três meses, o plano era de concluir um pouco antes do prazo limite, mas com o abandono do trabalho pelo ilustrador anterior e pelo novo artista ter outra atividade profissional, usando o tempo livre para fazer nosso projeto, seria muito difícil que o projeto fosse concluído em tempo hábil, mas até então o prazo estava dentro do previsto. Porém como já citado, em meados do quinto mês, após serem requeridas as páginas para o balonamento[iv], o ilustrador Ênio se desculpou e afirmou que não seria possível concluir o projeto no prazo previsto. Que no momento apenas sete páginas haviam sido concluídas. De volta à estaca zero, não houve alternativa senão contratar outro ilustrador e recomeçar a empreitada do início mais uma vez, mesmo em face da marcada desconfiança da possível falta de profissionalismo do futuro ilustrador.

            Diante dos contratempos, mesmo com o roteiro, recordatórios[v] e falas prontos, não havia ainda a ilustração final com a junção de todas as partes integradas como produto pronto e acabado para utilização em sala de aula. Diante da possibilidade de mais um ilustrador deixar o trabalho pela metade, contratei dois ilustradores para trabalhar em paralelo, evidentemente riscos continuariam a existir, porém com chances muito mais reduzidas. Para que não se produzisse duas obras com excessiva similaridade, os ilustradores contratados possuíam traços muitos diferentes, nisso, uma ilustração seria preferencialmente destinada para o ensino fundamental menor, pelo fato do traço ser mais simples e as ilustrações possuírem uma subjetividade menor. O outro possuía um traço mais realista, portanto mais direcionado aos estudantes do ensino médio e ao alunado do EJA, por já possuírem uma maturidade mais substancial.

            Um desses ilustradores acabou abandonando o projeto com 10 páginas. Porém o ilustrador Cauê Carvalho foi perseverante na empreitada e levou a cabo a construção das ilustrações, profissional que soube expressar dúvidas e, se confessou, aprender surpreso com a trajetória, pôde aprender um pouco da história da escravidão e de como os escravizados eram transportados para o Brasil, de certa forma foi uma experiência didática dentro do próprio processo de criação do produto educacional. Para ilustrar, apresento a capa final ilustrada no livro publicado ilustrado por Cauê:

Figura 10: Tiras de quadrinhos para debates.

Fonte: Obra do desenhista Cauê Souza, 2018.

 

Como finalização do trabalho educacional, foram propostas atividades com tiras em quadrinhos ilustrando problemáticas que envolvem: violência escrava, preconceito, empoderamento feminino, racismo estrutural, eurocentrismos, etc. Diante disso seguiu em anexo as tiras e as atividades. É importante ressaltar que a aplicação das tiras em quadrinhos, atividade anexa não implicam na necessidade da leitura da HQ. Caso a aplicação seja em uma escola fora do contexto nordestino, por exemplo, não haverá incompreensão, possibilitando qualquer professor ou professora do país utilizá-las sem prejuízo de compreensão ou conteúdo. Tão logo o ilustrador concluiu o trabalho, as ilustrações foram anexadas e o trabalho oferecido ao público de professores interessados na temática.

 

Desenvolvimento da Pesquisa Historiográfica

 

            A pesquisa bibliográfica se focou em autores que trataram do tema da escravidão a partir de 1830 até por volta de 1870, o marco importante é a lei de proibição ao tráfico negreiro no Atlântico em 7 de novembro de 1831 (BRASIL, 1831), a partir dessa data, todo transporte escravo passou a ser ilegal, ainda que órgãos do governo fizesse “vistas grossas”, e no Rio de Janeiro até “armazenassem” esses escravos vindos na África. Vale ressaltar que a instituição escravista infelizmente foi longeva, por isso, muitas transformações e acomodações se deram ao longo do processo, é muito importante ter cuidado com conceitos que ainda se imputam como “verdades”, como a incivilidade dos africanos, classificando-os como bestiais, que eram preguiçosos e dados à vagabundagem, que não tinham capacidade de formar família, que possuíam tendência à submissão, ou que se sujeitaram voluntariamente à escravidão, etc., são apenas algumas delas. Autores como Sidney Chalhoub possuem largos relatos explicando minúcias de inquéritos e processos criminais e de alforria, retratando a luta constante por liberdade e manutenção dela. Também vale a pena lembra que, de um indivíduo que é violentado, com toda sorte de violência física e simbólica, se esperar mansidão a subserviência, aí sim se justificaria a aceitação de toda a opressão infringida.

            A geografia também foi fator determinante em muitas nuances da escravidão, enquanto os livros didáticos relatam uma instituição linear e genérica. Em Sergipe Del Rey, província em foco, a proximidade das fazendas deu possibilidade de outra forma de quilombos: quilombos volantes, ajuntamento móvel que circulava se escondendo até junto dos escravos das fazendas, roubando gado, cabras, galinhas, etc., e vendendo no comércio local como estratégia de subsistência, sendo alimentados e até financiados com a prataria roubada pelos companheiros de infortúnio na chamada rede de solidariedade. Sharyse Piroupo do Amaral (2012) e Igor Fonseca (2015) têm relatos das particularidades dos quilombos sergipanos.

            Para além das construções históricas enraizadas, em que o homem é sempre o protagonista, optamos por lançar mão da narrativa de mulheres como centro das abordagens; ainda que não tenha legitimamente lugar de fala, a orientadora foi fundamental no que se refere aos aspectos da feminilidade da personagem. Por outro lado, acredito que o respeito e a luta por igualdade deve ser de todos(a) e para todas(o). A Mulher sempre foi invisibilizadas pela História, apesar da relevância, ora pela originalidade ou por vezes seguindo caminhos e aspectos diferentes dos processos masculinos, Chalhoub relata que na segunda metade do século XIX a maioria de alforriados por compra da carta eram mulheres, que trabalharam, compraram a própria, de marido e filhos (CHALHOUB, 2011, p. 198-199); seja como quituteiras, lavadeiras, vendedoras de frutas e até prostitutas. Os estupros constantes, filhos usados em chantagens, até a aceitação do amasiamento em busca de privilégios, são ao mesmo tempo violência infligida e sofrida, ferramentas na busca da liberdade não só de si.

            É possível e cabível que as mulheres se proponham a falar desses infortúnios com mais especificidade, afinco e propriedade, já que a mulher escrava inaugura uma categoria de análise completamente nova, ainda que lentes obtusas não reconheçam. A mulher negra sempre trabalhou lado a lado com os homens no período escravista, não havia grande diferenciação laboral da força de trabalho, se era masculina ou feminina, ao passo que mesmo paridas, as escravizadas sequer tinham período de resguardo, trabalhavam com os filhos às costas ou outras crianças maiores “olhavam” suas crias, como relata Angela Davis em Mulheres, Raça e Classe (2016), evidentemente há toda a questão de diferenciação entre a escravidão nos Estados Unidos e no Brasil, mas no relato de Davis, desembocam no movimento abolicionista feminino, que lutava por espaço, justamente por entender “semelhanças” com a mulher escravizada, que de certa forma tinham paridade com os homens. Essa mulher branca, em busca de direitos que, de certa forma perdeu a função produtiva com advento da Revolução Industrial, que possuía na Idade Média ao lado do marido, que agora era apenas mãe, se espaço político de atuação, via na escrava uma referência para sua luta, que muitas vezes comparavam o casamento a escravidão (DAVIS, 2014, p. 52), já que tinham uma vida paritária de infortúnio, claro que num contexto muito específico, como o de Harriet Beecher Stowe, famosa escritora da Cabana do Pai Tomás, acredito que não se comparam tais contextos de luta, enfim,  são as disputas do espaço político na primeira metade do século XIX.

            A abordagem sobre as mulheres escravizadas trouxe outra problemática: a falta de relatos históricos que pudessem resgatar a trajetória de luta de uma africana ou afro-brasileira que tivesse vivido na região para inserção na HQ, o que fora encontrado na literatura disponível em Sergipe, era apenas fragmentos pouco detalhados em anúncios de jornais, seja oferta de recompensa pela informação do paradeiro ou anúncio de venda. Nesse contexto se percebe a diferença da documentação produzida e conservada em relação a outras localidades do país no período, se agrava pelo fato de serem mulheres. Segundo a vasta documentação examinada por Chalhoub, mesmo em São Paulo e Rio de Janeiro, há muitos processos incompletos ou simplesmente se encerram em uma sentença transitória (CHALHOUB, 2011, p. 233), de modo que é impossível saber o final de processo envolvendo a luta de mulheres na corte por conta da liberdade. Não houve outra alternativa senão lançar mão da ficção inserida na História, para tal, os escritos de Michel de Certeau foram tanto fundamentais como impactantes, conceitos historiográficos como a “exumação do morto”, aquele que não existe mais, que apenas deixou traços e que se trata, na verdade, de uma reconstrução do que foi o fato, mas não o mesmo (VIDAL, 2018).  A personagem Tereza encarna pessoas reais, que sofreram as agruras, injustiças, racismos e preconceitos, o que também não se configura como mera ficção, mas verossimilhança.

             Abaixo, segue um exemplo das discussões colocadas pelas Tiras em Quadrinhos:

 

Figura 11: Tiras de quadrinhos para debates.

Fonte: Obra do desenhista Cauê Souza, 2018.

 

            A questão que a tira trata é muito simples: refletir sobre a maneira como a abolição foi conduzida no Brasil. Optou-se por uma abolição lenta e gradual, daí as leis abolicionistas começarem desde 1831, com a proibição do tráfico escravo e libertação desses africanos, lei que não vingou, pelo contrário, com a proibição o preço médio dos escravos subiu, o que proporcionou lucros maiores para o comércio de gente no segundo terço do século XIX, passando pela Lei Eusébio de Queirós em 1850[vi], Lei do Ventre Livre em 1871[vii], a Lei dos Sexagenários em 1885[viii], até por fim em 13 de maio de 1888[ix], definitivamente ocorrer a abolição “total” dos escravos. Voltando à questão da forma como a abolição foi conduzida, não houve nenhuma lei reparatória ou de inserção dos ex-escravizados ao mercado de trabalho assalariado. Sequer a escola foi proporcionada ao recém libertados, mesmo com números de analfabetismo alarmantes. A tira estabelece algumas pontes para possíveis consequências dessa ausência de políticas públicas.

            A tira que se segue, trata de outra prática muito comum na sociedade atual, o eurocentrismo.

Figura 12: Tiras de quadrinhos para debates.

Fonte: Obra do desenhista Cauê Souza, 2018.

 

            E aqui há um debate importante que é o alisamento do cabelo adotado por homens e mulheres, parece simples, mas há os que defendem a assunção do cabelo crespo ao natural e dos que alisam usando produtos químicos, acusados de se submeter ao padrão europeu; por outro lado, os que alisam o cabelo, insinuam que cabelos altos, cheios seriam sujos por “guardar” resíduos, enfim, excessos de parte a parte. A tira chama a atenção para assumir o que se é, de se tomar cuidado com adjetivos que às vezes reproduzimos sem prestar atenção. Abaixo temos uma hipotética discussão sobre cotas nas universidades e concursos públicos:

Figura 13: Tiras de quadrinhos para debates.

Fonte: Obra do desenhista Cauê Souza, 2018.

 

            É uma situação muito corriqueira entre os estudantes, o debate sobre acontecimentos ou assuntos debatidos durante uma aula mais acalorada, nesse caso sobre as cotas, assunto polêmico até hoje. O discurso preconceituoso é: “eu não entraria em um avião pilotado por um cotista, nem aceitaria ser operado por um médico cotista”[x], frase do ex-presidente. Inclusive o argumento de um dos estudantes é semelhante.

            A HQ, assim como as tiras já forma apresentadas tanto em debates em escolas como em turmas de História do Brasil no curso de pedagogia, com reflexões sempre profícuas. Ressalto que o diálogo foi construído para estudantes debaterem entre si e docentes, e não um diálogo com os pares docentes, que poderia ser até óbvio, mas na percepção dos estudantes, ainda em formação, facilitar apresentando situações do dia-a-dia pode ser mais proveitoso. A discussão também não se propõe a ser esgotada, a criatividade do docente, da docente pode alçar voo e elencar infinitas situações para seu grupo de estudantes, como os número da violência estampado em diversas pesquisas que denotam a realidade de como comunidades inteiras vivem e de como o ciclo de violência tem endereço “certo” e cor de pele.

Segundo o artigo Panorama dos Quilombos Sergipanos: Condições de Vida e Vulnerabilidades, de Flávia Feitosa et al. (2021), 72% da população quilombola do estado depende do Programa Bolsa Família; 71,9% da população quilombola Sergipana pertencem à “extrema pobreza”; 79,3% reside na zona rural de municípios do interior do estado (há apenas o bairro Maloca, como remanescente quilombola na capital, Aracaju); no ano de 2015, 66% das comunidades tiveram conflitos de terra, enquanto a média nacional ficou em 21,55% no mesmo período (Feitosa et al., p. 4, 2021). A maioria depende de caminhões pipa para o abastecimento de água potável (FEITOSA et al apud TORALES; VARGAS; OLIVEIRA, p. 15, 2021), nenhumas das comunidades do interior tem esgotamento sanitário, mesmo a Maloca em Aracaju é deficitária. Só a Mussuca em Laranjeiras e o Mocambo em Porto da Folha possuem escola estadual com ensino médio; na primeira, 25% dos estudantes abandonam a escola para trabalhar, já a Escola Estadual 27 de maio, de Porto da Folha, é a única que proporciona um trabalho com contextualização cultural quilombola e aborda a multiculturalidade entre os estudantes (FEITOSA et al, 2021, p. 11), os dados da pesquisa foram retirados do Google Scholar.

Justifica-se a mais pesquisas sobre o tema e o pós-abolição, cujos resultados podem ajudar a tirar da invisibilidade comunidades ancestrais culturalmente ricas, vítimas do racismo estrutural que possivelmente permeiem os setores da sociedade sergipana, porque não dizer brasileira? Já que em pesquisa divulgada pelo G1esse mês, 38 pessoas em cada 100 sofreram racismo na escola, enquanto 29 sofreram racismo no trabalho, 28 em espaços públicos, 18 em ambiente comercial e 11 dentro da própria família[xi].

O resultado da pesquisa não surpreende, a abordagem conceitual/empírica de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron em A Reprodução: Elementos para uma teoria do sistema de ensino (2014), proposto na década de 1860 e 1970, já exibia o contexto exposto, os autores constataram que na França, ainda que todos os estudantes frequentassem a mesma escola, ao final do ciclo escolar, os filhos das famílias mais abastadas seguiam para as melhores universidades, os da classe trabalhadora e imigrantes iam para instituições de menor qualidade. A ideia de Capital Cultural se deu por perceber que não bastava o acesso às mesmas escolas. Desde os primeiros anos de vida, as crianças oriundas da elite, já compunham um ambiente dialogal, carregado de cultura, arte, vocabulário formal, etc. que formará o arcabouço social de domínio dos códigos escolares do futuro cidadão, justamente o exigido e aceito durante os anos na escola e ambientes “institucionais”. Bourdieu/Passeron provam que a escola, tida no imaginário como igualitária e equânime era, na verdade, a mantenedora da desigualdade social, e que é mero reflexo da sociedade e não formadora dela.

No Brasil a questão é ainda mais severa, já que a educação para a classe trabalhadora sempre foi distinta (diga-se inferior), hoje pela estrutura curricular da nova BNCC, motivada por forte ideologia neoliberal; ou seja: além da práxis, há elementos estruturantes de desigualdade, o que nos leva a supor que, ainda que tivéssemos uma escola de boa qualidade para todos na comunidade, o capital cultural alocado no seio familiar seria determinante para diferenciação na constituição dos sujeitos dos quilombos, por exemplo, cabendo ainda assim, os melhores postos de trabalho e colocação social para as “elites”, mantendo o status quo.

A abordagem conceitual de Paulo Freire é importante para pensar outras formas de educação e consequentemente cidadãos, desconstruindo a mentalidade de educação bancária (2011, p. 27), utilizada em quase todos os contextos escolares no Brasil, exposto em Pedagogia da Autonomia: “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção.” (2011, p. 24). Freire dá grande importância a pesquisa, para ele é elemento indissociável da docência e da formação do sujeito criador (2011, p. 25), estímulo que jovens de comunidade periféricas precisam se apropriar, formar seus conceitos em uma perspectiva epistemológica legítima e endógena.

 

 

 

O resultando da pesquisa foi uma HQ que contou a história da personagem Tereza que deixou a África por vota do segundo terço do século XIX, trazida à princípio para Salvador, após um período no Recôncavo Baiano, foi vendida a um senhor de escravos da região da Cotinguida em Sergipe Del Rey, percurso comum das escravizadas levadas a província na época. Também como proposta de debate e discussão, fazendo uma ponte com as consequências sociais e humanas do período escravista para a atualidade, elaboramos uma série de Tiras em Quadrinhos para ilustrar situações do cotidiano, exibidas e enfatizadas nesse artigo. O objetivo, reiteramos, é fornecer mais uma ferramenta para que professores e professoras possam levar as questões raciais à discussão por quem possui técnica e método para assertivamente mediar e intervir, de modo a fomentar conceitos para além da mera opinião sem base histórica, social ou científica.

            Pelo nível das discussões políticas e sociais, pelo retrocesso das políticas públicas que vagarosamente implementavam a igualdade, ainda que tardias, por toda a superficialidade que se tomou por pauta o âmbito político recente, não há dúvidas de que estamos em um rumo equivocado em educação. Aos poucos o público geral perceberá que o resgate dos que passam fome deverá voltar preencher as prioridades emergenciais, ou que as campanhas vacinais como a de sarampo, antes erradicada, precisará ser intensificada por causa da mentalidade anti-vacina[i] e anti-ciência ou ainda pior: daqui a algum tempo, teremos a dura tarefa de explicar que o planeta Terra não é plano, que no nazismo não é foi um regime político de esquerda e outros conceitos básicos.

 

 

[1] Disponível em:https://www.dw.com/pt-br/o-que-se-sabe-sobre-caso-de-trabalho-an%C3%A1logo-%C3%A0-escravid%C3%A3o-no-rs/a-64865707. Acesso em: 23 ago. 2023.

[1] Acesso em: https://ifs.edu.br/images/EDIFS/ebooks/2019.2/E-Book_-_Caminhos_de_uma_escrava.pdf. Acesso em: 30 ago. 2023.

[1] Espaço entre os quadros da HQ, simboliza a passagem do tempo e as mudanças de cenário na estruturação da História.

[1] https://profissionaisdolivro.com.br/servicos

[1] Tipologia de escrita de roteiro em que se detalha absolutamente todos os detalhes dos quadros, deste vestimentas, adereços, gestos, cortes de cabelo e posições como os personagens devem aparecer, assim como os ângulos exibidos.

[1] Objeto gráfico em que são inseridos os textos com as falas dos personagens.

[1] Caixas de texto os são inseridas narrativas feitas em terceira pessoa, como um narrador, para contextualizar e situar o leitor na estória.

[1] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim581.htm. Acesso em: 30 ago. 2023.

[1] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm. Acesso em: 30 ago. 2023.

[1] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/08/31/lei-dos-sexagenarios-completa-130-anos. Acesso em: 30 ago. 2023.

[1] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim3353.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%203.353%2C%20DE%2013,Art.. Acesso em: 30 ago. 2023.

[1] Acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=xiXHJW7kqEg. Disponível em: 30 ago. 2023.

[1] Disponível em: Acesso em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2023/08/15/ambiente-escolar-e-o-mais-citado-por-brasileiros-entre-os-locais-onde-ja-sofreram-o-racismo-diz-pesquisa.ghtml?utm_source=meio&utm_medium=email. Acesso em: 16 ago. 2023.

[1] Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/blog/ana-escobar/post/2020/01/01/por-que-o-sarampo-voltou.ghtml. Acesso em: 21 ago. 2023.

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