[...] Tá vendo aquele colégio moço? Eu também trabalhei lá. Lá eu quase me arrebento, fiz a massa, pus cimento, ajudei a rebocar. Minha filha inocente veio pra mim toda contente: “Pai, vou me matricular!” Mas me diz um cidadão: "Criança de pé no chão aqui não pode estudar" (Cidadão, 1979).
Analisando brevemente algumas reflexões que tratam da educação formal no Brasil durante os períodos colonial, imperial e republicano (Kuenzer, 2000; Ramos, 2005; Saviani, 2005, 2008; Vechia, 2005), percebemos que há uma constante que rege a dinâmica de funcionamento dessa educação nos diferentes momentos da história nacional, isto é, a educação formal sempre esteve/está a serviço de um projeto societário de classes que privilegia, a todo instante, as frações sociais da classe dominante.
Diante da constatação de que a educação formal no Brasil, estando historicamente a serviço de um projeto societário classista, funciona regularmente para manter equilibrada, em meio ao estado permanente da luta de classes, a sociabilidade do capital neste país, defendemos a tese de que a educação formal, no Brasil, é constituída historicamente para a manutenção de um projeto colonial de exploração e dominação de uma classe social sobre a outra, do capital sobre o trabalho. Esse projeto colonial de exploração permanente foi engendrado, no Brasil, pela invasão portuguesa do séc. XVI e moldou-se, do Império à Republica, aos diversos regimes e formas organizacionais assumidos pelo sistema econômico-político brasileiro até o séc. XXI.
Estaria fora de nossas possibilidades epistemológicas trabalharmos, neste artigo, com a educação formal como um todo na história do Brasil. Dessa forma, por uma questão metodológica e pelas reais condições de produção de nossa pesquisa, emos como objetivo, neste estudo, fazer um percurso histórico sobre o Ensino Médio brasileiro, enquanto um recorte específico da educação formal que é ofertada no Brasil.
O Ensino Médio brasileiro e sua dualidade histórico-estrutural-constitutiva
Antes de se realizar um percurso histórico, é importante apresentar, aos que nos acompanharão em tal percurso, o que entendemos por história ou que aspecto da história vamos considerar em nossa trajetória. Destacamos aqui, juntamente com Marx e Engels (2007, p. 40-41), a relação existente entre a história da humanidade com a luta de classes:
[...] a história [...] é a história da luta de classes. [...] Nas mais remotas épocas da História, verificamos quase, por toda parte, uma completa estruturação da sociedade em classes distintas, uma múltipla gradação de posições sociais. Na Roma Antiga, encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres das corporações, aprendizes, companheiros, servos [...]. A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes. Não fez mais do que estabelecer novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das que existiram no passado. Entretanto, a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia e o proletariado.
Sendo assim, seguindo a perspectiva do materialismo histórico-dialético, quando falamos de história, não podemos perder de vista o antagonismo de classes que perpassa a existência do ser social e de suas instituições, imprimindo-lhes uma série de limitações históricas/estruturais e, concomitantemente, uma gama de possibilidades para criar resistência, pois, como propõe Pêcheux (2014, p. 279): “Se, na história da humanidade, a revolta é contemporânea à extorsão do sobre-trabalho é porque a luta de classes é o motor dessa história”.
Nesse sentido, para iniciar nossas reflexões sobre a constituição histórica do Ensino Médio brasileiro, consideramos como marco reflexivo-analítico a tese retomada por Melo (2020), amparado nos estudos de Cury (1998), Kuenzer (2000) e Romanelli (1986), de que o Ensino Médio no Brasil é atravessado, em toda a sua história, por uma dualidade estrutural:
[...] trataremos sobre o Ensino Médio, retomando a tese de que essa etapa de ensino é historicamente atravessada por uma dualidade que põe, de um lado, aqueles cuja escolarização deve contribuir para formar a elite dirigente, e, do outro lado, aqueles que a escola deve preparar rapidamente para a ocupação profissional e a reprodução material da ordem social vigente (Melo, 2020, p. 540).
Pensamos ser pertinente acrescentar a essa tese, ou pelo menos explicitar, o dado de que a dualidade que atravessa o Ensino Médio, por ser histórica e estrutural, torna-se também constitutiva à gênese dessa etapa educacional. Essa tríade de adjetivos “histórico-estrutural-constitutivo” caracteriza bem a dualidade que atravessa o Ensino Médio brasileiro, pois essa dualidade é historicizada na estrutura antagônica da sociedade brasileira de classes, sendo a manutenção dessa dualidade a razão de ser dessa etapa educacional.
Sendo assim, a dualidade histórico-estrutural que atravessa o Ensino Médio é inerente à gênese dessa etapa educacional, moldada, desde seu início, pelo modelo de sociabilidade do capital, destinando-se, de um lado, a preparar um determinado grupo social para os estudos universitários com carreiras de grande prestígio social e excelente rentabilidade financeira; e, do outro lado, destinando-se a preparar outro grupo social para os trabalhos braçais, socialmente desvalorizados e financeiramente pouco rentáveis.
Grosso modo, essa é a forma mais básica de entender como o capital, no Brasil, se apropriou da educação formal, fazendo com que essa se estruturasse, a partir do princípio antagônico que rege o modus operandi da sociedade capitalista de classes, garantindo, assim, a manutenção do status quo posto pelo capital, fazendo sempre que o grupo social com maior poder econômico e prestígio social prevaleça como senhor, dominador e explorador dos outros grupos sociais.
Desde o início da dominação portuguesa sobre a Terra de Santa Cruz, legitimada e justificada pelo processo sócio-histórico da colonização - posto em movimento pelo sistema político-econômico do colonialismo - a educação formal, sob a concepção pedagógica classista-humanista, era de monopólio da Ordem religiosa jesuítica a serviço dos grupos sociais pertencentes à elite econômica da colônia nascente:
[...] por mais de duzentos anos os jesuítas mantiveram no Brasil um “sistema escolar”, isto é, um conjunto de escolas, articulado por uma visão de ensino que visava ao preparo dos jovens da elite brasileira para seguir os estudos superiores (Vechia, 2005, p. 78).
Contudo, é importante citar em relação ao projeto educacional jesuítico no Brasil, como destaca Melo (2020, p. 545), que, desde as primeiras atividades pedagógicas organizadas pelos jesuítas nesse país, “[...] contrastava-se o oferecimento de uma educação basicamente catequética (ou no máximo elementar) para os indígenas [...] com uma formação mais sofisticada para os colonos e seus descendentes”. Desse fato, podemos deduzir a gênese histórico-constitutiva da educação formal brasileira em sua dualidade histórica e estrutural, pois a proposta inicial da educação jesuítica para o Brasil, o Plano de Instrução do Padre Manoel da Nóbrega, segundo Saviani (2008, p. 43): “[...] culminava, de um lado, com o aprendizado profissional e agrícola e, de outro lado, com a gramática latina para aqueles que se destinavam à realização de estudos superiores na Europa”.
No bojo da reflexão em curso, questionamos, então, qual é o lugar social ocupado por aqueles que são destinados aos estudos superiores na Europa e qual o lugar social daqueles destinados à educação profissional e agrícola? Quais posições esses indivíduos ocupavam/ocupam nas relações de produção e reprodução da vida social brasileira? Quem são esses indivíduos que transitam por lados opostos da educação formal ofertada no Brasil?
Conscientemente ou não, naquele projeto educacional do Padre Manoel da Nóbrega - não sistêmico ou mesmo estruturado - enquanto sistema de ensino, os jesuítas selavam a intencionalidade da educação formal brasileira, destinando-se, de um lado, a preparar os filhos das elites para o ingresso na universidade e, do outro, a preparar as outras frações sociais, pertencentes à classe trabalhadora, para o mundo do trabalho nas formas mais precarizadas possíveis. Aquele primeiro plano de Instrução dos jesuítas instituiu-se como um acontecimento histórico que vai desdobrar-se constantemente, por meio de leis e decretos, na história educacional brasileira, como uma memória que se atualiza até nossos dias.
Mesmo com a expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759, por meio do alvará do Marquês de Pombal, a concepção pedagógica jesuítica permaneceu, por meio das aulas-régias, exercendo forte influência direta neste país até o século XIX e, indireta, até o século presente.
O pombalismo, por sua vez, enquanto ideário teórico filiado ao iluminismo, rejeitava a concepção de educação formal de inspiração clássico-humanista, praticada pelos jesuítas, para se aproximar de uma concepção de ensino de caráter mais técnico no sentido de ser útil por sua aplicação prática, por sua empiria - própria ao espírito iluminista do qual foi imbuída a reforma pombalina.
No tocante ao Ensino Médio, o Seminário Nossa Senhora da Graça, de Olinda-PE, conforme aponta Chagas (1978), foi a primeira experiência educativa que rompeu, de fato, com a concepção pedagógica dos jesuítas e se aproximou do ideário iluminista das reformas pombalinas, tornando-se a semente de como posteriormente se organizaria o ensino secundário no Brasil.
Contudo, em seu tempo histórico, a experiência do Seminário de Olinda foi uma exceção passageira, pois o que predominou como resultado das iniciativas reformistas do marquês de Pombal, no Brasil, foi uma outra realidade:
[...] o que resultou da implantação das reformas pombalinas foi, portanto, um híbrido de classicismo e modernismo incipiente, de aulas-régias e alguns seminários, que permeou o pensamento educacional brasileiro no século XIX e em grande parte do XX (Vechia, 2005, p. 89).
Como apontam Chagas (1978) e Vechia (2005), realmente a origem da sistematização do Ensino Médio no Brasil com disciplinas organizadas lógica e gradualmente de forma seriada, com os alunos agrupados em sala, data do período imperial com a fundação do Seminário Episcopal de Olinda em 1800.
Sem querer diminuir a importância da experiência pedagógica do Seminário de Olinda, no séc. XIX, em seu prenúncio histórico de como se organizaria, mais de um século depois, o Ensino Médio no Brasil, é necessário reafirmar que tal experiência foi passageira e estanque, não se perpetuando em seu tempo e ficando restrita ao Seminário de Olinda, na província de Pernambuco, sem se estender pelo resto do território brasileiro.
A marca legal que oficializaria a sistematicidade e organicidade do Ensino Médio só seria estabelecida no período republicano com a Reforma Educacional de Francisco Campos, em 1931, na qual o governo federal assumiu definitivamente sua responsabilidade em relação a essa etapa de ensino, estabelecendo, assim, uma política educacional para a mesma:
[...] a partir da reforma Campos o governo federal definitivamente compromete-se com esse grau de ensino, dando-lhe conteúdo e seriação própria. O rompimento do monopólio estatal de acesso ao ensino superior deu amplitude à política de oficialização das escolas privadas, desde que cumprissem com a regulamentação da União e se submetessem ao controle federal. [...]. Foi com esta reforma, portanto, que o ensino secundário adquiriu organicidade, caracterizando-se por um currículo seriado e pela frequência obrigatória, com dois ciclos, um fundamental e outro complementar. A habilitação no ensino secundário tornou-se exigência para o ingresso no ensino superior (Ramos, 2005, p. 230).
Se, por um lado, a Reforma Campos deu, sob a nomenclatura de ensino secundário, organicidade ao Ensino Médio, conferindo-lhe um estatuto sistemático amparado legalmente pelo Estado; por outro lado, não se conseguiu romper com a tradição colonial/imperial da educação formal brasileira a serviço das elites econômicas que ocupam o poder, acentuando o caráter dual do Ensino Médio, cada vez mais aristocrático e elitista, com o fortalecimento de instituições privadas de ensino e com a institucionalização de sua finalidade exclusivamente propedêutica em relação ao ensino superior:
[...] os ramos profissionais foram ignorados, criando-se dois sistemas independentes. Ainda que se tenha regulamentado o ensino profissional comercial, nenhuma relação entre eles foi estabelecida (Ramos, 2005, p. 230).
Essa concepção dual do Ensino Médio vai encontrar legalmente seu ápice com Gustavo Capanema que, ao assumir o Ministério da Educação em 1934, deu, por meio das leis Orgânicas do Ensino Secundário, expressão máxima à política educacional iniciada por seu antecessor Francisco Campos:
[...] a característica dessa política educacional, cuja expressão mais acabada foram as reformas Capanema, é uma concepção dualista de ensino. Na reforma do ensino secundário estabeleceu-se que seu objetivo era a formação das elites condutoras. Ora, daí se infere que o objetivo do ensino técnico seria a formação do povo conduzido. E, de fato, esse dualismo se expressou de forma rígida, pois apenas o ensino secundário dava direito de acesso, mediante vestibular, a todas as carreiras do ensino superior (Saviani, 2005, p. 33).
Pensamos ser interessante explicitar que não nos opomos à formação técnica na etapa educacional do Ensino Médio, mas sim a uma determinada compreensão pedagógico-legal que legitima a destinação de um ensino pleno para os filhos das elites se dedicarem às carreiras profissionais que necessitam de habilidades intelectuais, exigem menos esforço físico e oferecem maior rentabilidade financeira e grande prestígio social; enquanto, destina-se um ensino técnico como uma formação fragmentada/aligeirada, aos filhos da classe trabalhadora em suas variadas frações, cuja culminância se dá no adestramento mecânico para realização de um determinado fazer, no horizonte classista da sociedade capitalista, para a manutenção da sociabilidade burguesa na qual o jovem pobre está condenado aos trabalhos que exigem a maior exploração de sua força física, em maiores jornadas de trabalho com o menor pagamento possível por essa mão de obra realizada.
A consequência direta da “legalização” dessa organização pedagógica dual é a manutenção da lógica perversa do capitalismo com o aumento crescente e desumano do capital e a diminuição e o aviltamento do trabalhador. Todo esse processo ocorre agora sob a legitimação do Estado, corroborando a constatação assertiva de Marx (2010, p. 81) de que “O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata, quanto mais mercadorias cria”.
Nesse sentido, como aponta Mészáros (2005, p. 27, grifos do autor), “[...] é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente”. No caso brasileiro, o modelo educacional dual do Ensino Médio evidencia, conserva, legitima e naturaliza a relação dicotômica de classes da sociedade capitalista, enquanto materialização do antagonismo existente entre capital e trabalho no mundo dos homens, transmutado, pelo capital, em mundo das coisas. A legitimação dessa dicotomia pode ser percebida explicitamente nos textos de lei da Reforma Capanema.
Observemos os fragmentos dos artigos das leis orgânicas do Ensino Secundário e do Ensino Industrial, ambas de 1942, que tratam da finalidade de cada ensino. Eis o que anuncia a lei orgânica do Ensino Secundário:
[...] é finalidade do ensino secundário formar ás (sic) individualidades condutoras, pelo que força é desenvolver nos alunos a capacidade de iniciativa e de decisão e todos os atributos fortes da vontade (Brasil, 1942a, Art. 23, grifos nossos).
Por sua vez, eis o que anuncia a lei orgânica do Ensino Industrial:
O ensino industrial [...] tem as finalidades especiais seguintes.1. Formar profissionais aptos ao exercício de ofícios e técnicas nas atividades industriais. 2. Dar a trabalhadores jovens e adultos da indústria [...] uma qualificação profissional que lhes aumente a eficiência e a produtividade [...] (Brasil, 1942b, Art. 4, grifos nossos).
O Ensino Industrial, ao invés de funcionar como uma tentativa de ampliar a compreensão do indivíduo sobre o processo produtivo que o cerca e, em alguma medida, que o condiciona e determina suas reais condições de existência, de estudos e de trabalho, deve servir única e exclusivamente para fortalecer e preservar a produtividade capitalista, naturalizando e inculcando, nos jovens pobres, o trabalho estranhado por meio do mecanismo da otimização da produção. A intencionalidade da lei educacional posta, alinhada com as necessidades da economia de mercado assumida pelo Brasil, é explicitamente aumentar a eficiência e a produtividade da classe trabalhadora para o bem da produtividade e lucratividade do mercado.
As leis orgânicas dos ensinos secundário e industrial não eram as únicas que formavam o Ensino Médio proposto pela Reforma Capanema. Além dessas, havia ainda a lei orgânica do ensino comercial de 1943, e a dos ensinos normal, primário e agrícola de 1946. As leis orgânicas do ensino comercial e agrícola também tinham como terminalidade formar jovens e adultos da classe trabalhadora para o aumento da produtividade dos segmentos econômicos do comércio e da agricultura, semelhante ao que se propunha para a eficiência da produção industrial.
Essa organização do Ensino Médio, explicitamente classista, foi mantida por um bom tempo na organização legal da educação brasileira, mesmo que a constituição aprovada em 1946 apontasse para o quanto era necessária uma regulamentação da educação que servisse como direcionamento para o funcionamento dos estabelecimentos de ensino em todo o Brasil, por meio da criação de uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) que reestruturasse a organização e finalidade pedagógica do Ensino Médio.
Tal lei, a LDB 4.024 só seria aprovada morosamente em 1961, depois de treze anos de tramitação/congelamento, conservando-se, para o Ensino Médio, a mesma estrutura organizacional das leis orgânicas da Reforma Capanema, pois, o projeto original da LDB que entrou para a discussão do Congresso Nacional em outubro de 1948 foi, segundo Ramos (2005, p. 231), “[...] substituído por um projeto de Carlos Lacerda, apresentado em 1958, que incorporava os interesses dos estabelecimentos particulares de ensino”.
Ao invés de se discutir sobre a intencionalidade do Ensino Médio, bem como uma nova organização pedagógica dessa etapa de ensino que superasse seu modelo de oferta educacional dual, segundo Ramos (2005, p. 231), “as discussões travadas em torno do projeto foram marcadas pelo conflito entre escola pública e escola particular”.
Temos aqui mais um elemento que irá acentuar a dualidade histórico-estrutural-constitutiva do Ensino Médio: a natureza de sua oferta que, podendo ser pública ou privada, abre espaço para que os grupos sociais, pertencentes à classe dominante, criem seus sistemas próprios de ensino.
Esse fato tem como consequência direta o aprofundamento e a naturalização da existência de uma diferença qualitativa entre o Ensino Médio ofertado aos jovens das elites econômicas, que podem pagar pelo ensino privado, e o Ensino Médio destinado aos jovens da classe trabalhadora que não podem pagar pela oferta desse ensino em uma instituição privada e, por isso, ficavam/ficam à mercê da escola pública que, além de ter uma oferta tímida, em relação ao número de vagas destinadas ao Ensino Médio, levando em consideração a quantidade de pessoas em idade para cursá-lo, tinha a terminalidade de prepará-los para o trabalho braçal imediato, sem perspectivas de um futuro na universidade.
Contudo, conforme o princípio prático da luta de classes - proposto por Pêcheux (2014, p. 281), de que “não há dominação sem resistência”, mesmo em meio à dominação impositiva do ideário neoliberal privatista, houve pressão popular para que os governos estaduais e federal assumissem seu compromisso com a oferta pública e gratuita do Ensino Médio, ocasionando um significativo processo de expansão dessa etapa educacional.
Apesar desse avanço, é necessário reafirmar que os problemas mais urgentes relacionados ao Ensino Médio não foram superados pela LDB 4.024/61 e toda a expectativa social por uma mudança estrutural na forma da oferta desse ensino foi frustrada, havendo apenas uma alteração significativa na política de acesso à educação superior, pois, conforme aponta Ramos (2005, p. 232), “os concluintes do colegial técnico podiam se candidatar a qualquer curso de nível superior”.
Mesmo com essa mudança na política de acesso à educação superior, por meio da equivalência legal entre o ensino técnico-profissional e o ensino secundário, essa equivalência legal não alcançou sua efetividade prática, pois, além de outros fatores, houve a conservação e a manutenção da organização dual do Ensino Médio, dificultando ainda mais as possibilidades dos jovens trabalhadores se articularem para a construção de um horizonte social diferente daquele imposto pelas frações da burguesia no poder.
A essência explícita da organização dual do Ensino Médio, consoante às leis orgânicas do ensino – criadas pela Reforma Capanema - manteve-se intacta até o final da década de 60, sofrendo alteração apenas em 1971, no governo ditatorial dos militares que usurparam o poder em 1964, com a criação da Lei 5.692 que, simulando uma proposta unívoca, neutra e não classista para essa etapa educacional, unificava as duas vertentes do ensino secundário, cognominado agora pela referida Lei de Segundo Grau, tornando, segundo Ramos (2005, p. 233), “compulsória a profissionalização em todo o ensino de 2º grau”.
Apesar de todo o caráter economicista da reforma educacional realizada pelos militares a serviço do capital e de seu modelo de sociabilidade classista no Brasil, a profissionalização compulsória no segundo grau era apresentada, pelo governo ditatorial dos militares, como uma superação do dualismo educacional proposto anteriormente pela Reforma Capanema:
[...] ao justificar a tentativa de universalização compulsória da profissionalização no ensino de segundo grau, trouxe à baila o slogan “ensino secundário para os nossos filhos e ensino profissional para os filhos dos outro” com o qual se procurava criticar o dualismo anterior sugerindo que as elites reservavam para si o ensino preparatório para ingresso no nível superior, relegando a população ao ensino profissional destinado ao exercício de funções subalternas (Saviani, 2005, p. 35, grifos nossos).
Aqui é interessante destacar a locução verbal, “procurava criticar”, utilizada propositalmente por Saviani (2005), pois a crítica ficou apenas na procura, não sendo jamais encontrada. A reforma educacional do governo ditatorial militar para o Ensino Médio apenas simulava neutralidade, pois estava comprometida com os interesses classistas do capital no Brasil:
[...] essa mesma Lei n. 5.692 introduziu a distinção entre terminalidade ideal ou legal, que corresponde à escolaridade completa de primeiro e segundo graus com a duração de onze anos e terminalidade real, a qual implicava a antecipação da formação profissional de modo a garantir que todos, mesmo aqueles que não chegassem ao segundo grau ou não completassem o primeiro grau, saíssem da escola com algum preparo profissional para ingressar no mercado de trabalho (Saviani, 2005, p. 35-36, grifos nossos).
Nessa perspectiva, podemos concluir que a mudança realizada na política educacional do período catastrófico da ditadura militar brasileira, iniciada em 1964, foi apenas a simulação de um projeto educacional que superasse a dualidade histórico-estrutural-constitutiva da educação formal brasileira. Mesmo não sendo posta literalmente, essa intencionalidade dual/classista da educação brasileira é atualizada na Lei 5.692/71, dando manutenção e continuidade ao projeto de educação dual no Brasil.
Nesse sentido, é importante evidenciar a que projeto societário ou a que modelo de sociedade serve o Ensino Médio transmutado agora, compulsoriamente pelos militares, em ensino técnico. Conforme aponta Ramos (2005, p. 233), “O ensino técnico, realmente, assumiu uma função manifesta e outra não manifesta. A primeira, a de formar técnicos; a segunda, a de formar candidatos para cursos superiores”.
Está posto, então, que mais uma vez foi colocada em movimento uma política educacional classista que atendia plenamente os filhos das frações da burguesia brasileira, oferecendo-lhes carreiras universitárias rentáveis e de grande prestígio social para garantir a dominação sobre os filhos dos diversos grupos sociais pertencentes à classe trabalhadora, oferecendo a esses uma formação educacional parca e fragmentada com fins imediatos de relações trabalhistas precárias, atendendo estritamente às demandas do capital, interditando suas possibilidades individuais de ascensão social e de quebra coletiva do status quo da sociedade capitalista.
Com o fim do regime ditatorial-militar no Brasil, a reabertura democrática é marcada por novos sonhos e novas perspectivas em todas as esferas nacionais. Essa reabertura foi consagrada pela promulgação da nova Constituição em 05 de outubro de 1988. Nesse ano, educadores e movimentos sociais progressistas preocupados em construir e perseguir um horizonte societário diferente daquele posto pelo capital, que divide os homens entre explorados e exploradores, fizeram surgir o projeto de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Segundo Ramos (2005, p. 236), esse projeto da nova LDB “[...] foi apresentado pelo deputado Octávio Elíseo em dezembro de 1988, dois meses depois de promulgada a Constituição, incorporando as principais reivindicações dos educadores progressistas”.
Contudo, tal projeto, após passar por vários relatores e sofrer várias emendas, durante oito anos de discussão, foi barrado pelo governo, sendo então aprovada uma proposta de LDB diferente daquela pensada pelos educadores progressistas:
[...] foi aprovada a proposta apresentada pelo Senador Darcy Ribeiro, mais maleável aos propósitos da política governamental que deu origem à nova LDB (Lei n. 9.3940 promulgada em 20/12/1996. Quanto à organização do ensino, a nova LDB manteve, no fundamental, a estrutura anterior, apenas alterando a nomenclatura ao subdividir as denominações de ensino de 1º e 2º graus, respectivamente por ensino fundamental e médio. [...] Com a nova LDB passamos a ter, em termos substantivos, apenas uma lei infraconstitucional normatizadora da educação em seus vários aspectos, unificando, portanto, a regulamentação do ensino no país. Em que pese essa unificação legal, não podemos fugir à constatação de que a política educacional brasileira continuou marcada pelo dualismo antes referido (Saviani, 2005, p. 36-37).
Mesmo em um período político de reabertura democrática, o sistema educacional brasileiro continua marcado por esse dualismo de classes, corroborando a tese de que tal dualismo é histórico, estrutural e constitutivo à própria gênese da educação formal destinada aos brasileiros.
Pelo que se pode constatar na história deste país, seja diante de um sistema político monárquico, seja republicano, seja em um regime democrático ou ditatorial, a educação formal brasileira esteve/está a serviço da manutenção do modelo de sociabilidade burguesa. Não importa a forma que seja assumida pelo sistema político, as políticas educacionais estarão lá orquestrando ideologicamente os papeis que devem ser assumidos por cada grupo social em suas variadas frações.
Todavia, precisamos considerar que, mesmo sendo constitutivamente instituída para garantir a reprodução social da ordem capitalista, a educação formal se processa no interior das lutas de classes não somente reproduzindo a ordem posta, mas também subvertendo-a, gerando furos, fraturas e escapes em tal reprodução e, por isso, se revelando como campo de disputas de projetos societários.
Nesse sentido, é interessante destacar que a LDB 9.3940/96, mesmo corroborando com a organização dual da educação brasileira, apresenta marcos significativos para a estrutura organizacional da educação brasileira.
Nesse sentido, no conjunto das medidas propostas pela LDB, é interessante destacar, como apontado Saviani (2005, p. 37), o Plano Nacional de Educação (PNE) no que diz respeito à avaliação diagnóstica, ao planejamento, ao estabelecimento de metas e ao financiamento da educação formal pública no Brasil.
O PNE (2001-2010), em seu diagnóstico do Ensino Médio, aponta que, em 1997 no Brasil, de “[...] uma população de 16.580.383 habitantes na faixa etária de 15 a 19 anos. Estavam matriculados no ensino médio, no mesmo ano, 5.933.401 estudantes” (Brasil, 2001, p. 25).
Apresentamos aqui apenas um dado do diagnóstico do Ensino Médio no Brasil, realizado pelo referido PNE. Contudo, por esse dado, já percebemos a importância da construção desse plano, pois, nele, o governo federal reconhece explicitamente em sua política pública, voltada à educação formal, que somente 30% da população brasileira com idade escolar para frequentar o Ensino Médio estava, de fato, frequentando esse nível de ensino.
Implicitamente, esse dado nos permite pensar que 70% desses jovens estavam, na melhor hipótese, em um drástico processo de distorção idade-série, cursando alguma série do ensino fundamental; ou, simplesmente, esses jovens estavam fora da escola, não estando sujeitos a nenhum processo de educação formal.
Desse dado implícito, advindo logicamente da informação explicitada no documento, chegamos a um não dito daquilo que fora afirmado pelo governo federal em sua política pública. Ora, se dos jovens que deveriam cursar a etapa educacional do Ensino Médio, apenas 30% o estão fazendo, a quais grupos sociais pertencem os 70% dos jovens que estão fora das salas de aula do Ensino Médio? Certamente que, por exceção, alguns jovens pertencentes aos grupos sociais dirigentes compõem esse quadro social de jovens que sofrem por problemas de distorção idade-série ou mesmo por estarem fora da escola. Contudo, tal quadro é formado majoritariamente pelos filhos da classe trabalhadora em seus diversos estratos.
Podemos destacar, então, a partir do implícito e do não dito, presentes no PNE (2001-2010), um dado interessante e diferenciado desta política pública educacional. No que diz respeito ao horizonte societário capitalista, do qual a educação formal está a serviço no Brasil, o PNE, mesmo não rompendo com a lógica de reprodução social classista, apresenta uma proposta diferente, pois até então as políticas públicas, voltadas à educação, apresentavam a divisão social de classes da educação formal como teleologia, como proposta a ser alcançada, ora de forma restritiva, ora condicionada a uma formação tecnicista superficial.
O PNE (2001-2010), por sua vez, apresenta esse horizonte teleológico em forma de consequência, apresentando-o como avaliação diagnóstica. As metas dessa política educacional agora se destinam a superar esse quadro de exclusão do acesso dos filhos da classe trabalhadora ao Ensino Médio. Adota-se, então, como metas a expansão de escolas públicas que ofertem o Ensino Médio, bem como a melhoria de seus espaços no que diz respeito à infraestrutura e questões sanitárias; formação e aperfeiçoamento dos professores; adoção de equipamentos didático- pedagógicos para sala de aula; reorganização curricular; dentre outras medidas (Brasil, 2001).
Não estamos aqui, realizando a defesa do PNE, mas sim refletindo sobre uma mudança de perspectiva que, mesmo não sendo estrutural, aponta para pequenas possíveis mudanças nos direcionamentos da educação formal brasileira, abrindo, assim, espaços para resistências, para o trabalho crítico-criativo. Nosso objetivo, aqui, não é o de fazer uma análise profunda do referido documento, mas apenas salientar as brechas deixadas por essa política para a resistência e reinvenção do novo.
Podemos utilizar como ilustração dessa reflexão o REUNI (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) que surgiu como um instrumento para se alcançar as metas do PNE (2001-2010) em relação ao Ensino Superior para absorver um maior número de alunos, concluintes do Ensino Médio, tendo em vista que, segundo o próprio PNE (2001-2010): “No conjunto da América Latina, o Brasil apresenta um dos índices mais baixos de acesso à educação superior, mesmo quando se leva em consideração o setor privado” (BRASIL, 2001, p. 32-33).
A grande política pensada para melhorar os índices de acesso ao ensino superior público foi justamente o REUNI, uma política de expansão da educação superior construída sob a ótica da otimização de recursos humanos e físicos.
Por universidade otimizada, segundo Santos (2016, p. 43), “[...] pode-se entender uma universidade que se organize da forma mais econômica possível para poder atender o máximo de alunos com o mínimo de estrutura física e de recursos humanos”. Nessa lógica, escolhe-se um modelo econômico, barato, para se expandir a universidade e, assim, fazê-la chegar de forma mais efetiva à classe trabalhadora.
Contudo, esse processo de expansão, tido como econômico, precarizado, foi, como aponta a pesquisa de Santos (2016), ressignificado, subvertendo a lógica da racionalização de recursos e surgindo como atividade educacional significativa e indispensável para a expansão da educação superior no estado de Alagoas, demonstrando, por meio da subversão da ordem posta, a assertiva de Pêcheux (2014, p. 281) de que, não havendo dominação sem resistência, “[...] é preciso ‘ousar se revoltar’[...]”.
Mesmo o PNE (2001-2010) estando compromissado com a manutenção da ordem societária do capital, era uma política pública que dava margens para uma contra ação ao modelo de sociabilidade capitalista, pois fomentava a formação de professores em áreas específica em nível de graduação, a criação de novas escolas, que ofertassem o Ensino Médio, a criação de laboratórios de informática e de bibliotecas, estabelecendo como fonte financiadora para a realização dessas ações um fundo público de financiamento: o Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) cujo funcionamento se deu até 2006, ano que foi substituído pelo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).
A reorganização curricular, nomenclaturas, metas de expansão, estabelecidas pelo PNE (2001-2010) para o Ensino Médio, no bojo das ações ligadas à instituição da LDB 9.394/96, foram reassumidas pelo PNE (2014-2024) sem propor nenhuma mudança estrutural para essa etapa educacional.
Nos direcionamentos legais do Estado brasileiro, uma proposta de mudança significativa da organização e funcionamento do Ensino Médio só viria a acontecer com o projeto do Novo Ensino Médio, por meio da MP 746, de 23 de setembro de 2016, designada como Reformulação do Ensino Médio, sancionada pela Lei nº 13.415 em 16 de fevereiro de 2017.
O novo Ensino Médio e a antiga questão da educação dual no Brasil
Em meio a um contexto político-econômico-social de extrema crise, marcado historicamente por um golpe jurídico-parlamentar que, em 2016, retirou a presidenta Dilma Rousseff do poder, o presidente ilegítimo Michel Temer, pretendendo unir o Brasil pela conciliação de classes, apresenta à sociedade brasileira um pacote de reformas administrativas que tinham/têm como ponto de intersecção a retirada de direitos da classe trabalhadora.
A primeira reforma proposta foi a Trabalhista cuja aprovação e implementação se deram ainda no curto espaço de tempo do governo Temer. A máxima utilizada por Temer (2016) para defesa da alteração das leis trabalhistas era que se fazia necessária a modernização das relações de trabalho, flexibilizando a legislação que as rege, por meio da livre negociação entre empregado e empregador.
A segunda Reforma proposta foi a do Ensino Médio que apesar de ter sido aprovada em 2017, ainda no governo Temer, hoje – segundo semestre de 2021 – encontra-se ainda em vias de implementação. O principal argumento, apresentado, em propagandas oficiais de serviço e em discursos governamentais sobre o Novo Ensino médio, para defesa de sua aprovação era que o insucesso da educação formal brasileira se devia à sua estrutura curricular que da forma que, até então, era organizada não se mostrava nem atraente, nem estimulante aos alunos.
A terceira e última reforma, proposta por Temer, foi a da Previdência. Essa só seria aprovada posteriormente no (des) governo Bolsonaro, dando mostras de um agravamento nas políticas classistas/elitistas em curso Brasil. O governo Temer propôs a referida reforma sob o argumento da crise/falência do sistema previdenciário (Temer, 2016).
Resumidamente, poderíamos colocar a questão da seguinte forma: o jovem, pertencente à classe trabalhadora, é convidado/obrigado a, quando terminar a educação básica (cursando o itinerário formativo profissionalizante proposto pela reforma do Novo Ensino Médio), ir direto para o mercado de trabalho em sua forma mais precarizada possível (seja pela parca formação acadêmica/profissionalizante do indivíduo em questão, seja pelos efeitos destrutivos da reforma trabalhistas), tendo agora, devido à reforma da previdência, que trabalhar/contribuir por bem mais tempo para conseguir sua aposentadoria.
Não iremos aprofundar aqui as reformas trabalhista e previdenciária. Contudo, foi necessário trazê-las à discussão para evidenciar que o projeto do Novo Ensino Médio compõe um pacote de medidas para, através do aparato legal do Estado brasileiro, atender às demandas do Capital em detrimento dos direitos da classe trabalhadora.
A própria reformulação pedagógica, proposta pelo Novo Ensino Médio, é uma retirada de direitos dos estudantes da classe trabalhadora que, ao escolherem o itinerário formativo profissionalizante, irão sofrer a interdição de uma gama de conhecimentos relacionados à história, à literatura, à filosofia, à sociologia, à matemática, a artes, à biologia etc. Conhecimentos que foram construídos ao longo da história da humanidade, organizados sistematicamente no currículo escolar do Ensino Médio e agora diminuídos drasticamente no novo modelo curricular constituído por itinerários formativos:
O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, a saber: I - linguagens e suas tecnologias; II-matemática e suas tecnologias; III - ciências da natureza e suas tecnologias; IV - ciências humanas e sociais aplicadas; V - formação técnica e profissional (Brasil, 2017, art. 4).
A Lei 13.415/2017, modificando LDB 9.394/96, determina que o Ensino Médio se organize em um momento fixo (destinado à Base Nacional Comum Curricular – BNCC) e em outro flexível (destinado aos itinerários formativos – a ser escolhido pelo estudante).
Para além da mudança do formato do Novo Ensino Médio, em momento fixo e flexível, é interessante observar como esse novo formato recebe uma ampliação e uma nova distribuição de carga horária no decorrer dos três anos que compõem essa etapa de ensino:
A carga horária mínima anual [...] deverá ser ampliada de forma progressiva, no ensino médio, para mil e quatrocentas horas, devendo os sistemas de ensino oferecer, no prazo máximo de cinco anos, pelo menos mil horas anuais de carga horária, a partir de 2 de março de 2017 (Brasil, 2017, Art. 1º).
No que diz respeito à carga horária, é interessante observar, como destacado por Santos e Santos (2021), que o Ensino Médio brasileiro, organizado, até então, em 2.400 horas, passará a ser formado por uma carga de 3.000 a 4.200 horas letivas. Ao momento fixo, destinado à BNCC, caberão 1.800 horas e, ao momento flexível, serão destinadas, no mínimo, 1.200 horas e, no máximo, 2.400 horas.
Quantitativamente falando, a questão numérica indica que o momento flexível do Novo Ensino Médio, no qual o estudante fará sua escolha se vai fazer uma formação técnica ou cursar o itinerário de matemática, linguagens, formação técnica e profissional etc., corresponde, no mínimo, a 50% do total de horas letivas do antigo modelo curricular do Ensino Médio.
Esse dado numérico/quantitativo aponta para uma questão qualitativa que revela/confirma a intencionalidade dual do projeto do Novo Ensino Médio, pois, a partir desse dado, podemos perceber a interdição cultural/cognitiva (im) posta ao jovem pobre, pertencente à classe trabalhadora, que, tendo a necessidade de garantir as condições materiais para manutenção/reprodução de sua existência, escolher o itinerário formativo da formação técnica profissional.
Essa proposta curricular do Novo Ensino Médio, flexibilizada em itinerários formativos, apesar de se pretender nova, é um desdobramento das filiações sócio-históricas da educação dual no Brasil, revelando a intencionalidade classista dessa política educacional e tensionando a luta de classes na sociedade brasileira por meio da atualização da antiga proposta da educação dual no Brasil.
Seguindo essa perspectiva teórico-analítica, entendemos com Cavalcante (2007, p. 85) que “toda ação educativa contém em si mesma uma função política que corresponde aos objetivos que se pretende alcançar, a serviço de que, de quem e de que modelo de sociedade”.
Nesse sentido, em meio a reformas econômicas e educacionais que atingem diretamente a classe trabalhadora do Brasil, precisamos questionar/problematizar a serviço de que, de quem e de que modelo de sociabilidade está a intencionalidade das políticas educacionais voltadas ao Ensino Médio para, assim, resistir ao projeto de educação classista para conservação do projeto societário burguês, marcado pela sobreposição do capital ao trabalho, da burguesia industrial/empresarial à classe trabalhadora em seus variados estratos.
Em uma sociedade de classes, resistir a um projeto educacional dual, a serviço da manutenção do capital em crise é, em última instância, identificar-se com outro modelo de sociabilidade, inscrevendo-se ideologicamente em um modelo social cujas relações não estejam submetidas à lógica de classes, castas, camadas ou estratos sociais, uma sociedade na qual não haja a dominação do capital sobre o trabalho, de um homem sobre outro.
Por outro lado, em uma sociedade de classes, aderir a um projeto educacional classista, é identificar-se com o modelo de sociabilidade capitalista, inscrevendo-se ideologicamente no modelo de sociedade de classes, mantido pelo capital que, por meio do Estado, naturaliza e legitima as relações sociais de dominação e exploração de um indivíduo pelo outro.
Foi nesse processo de identificação ideológica com um sistema opressor de colonização que, conscientemente ou não, no projeto educacional do Padre Manoel da Nóbrega, os jesuítas selaram a intencionalidade da educação formal brasileira a serviço de um projeto societário classista de exploração e expropriação. Essa intencionalidade classista da educação formal se atualiza constantemente na história educacional brasileira como uma triste memória que insiste em nos assombrar cotidianamente.
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