Já disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade – daremos ao mundo o homem cordial. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade [...] representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro” (Holanda, 1995, p. 146).
Pretendemos, neste capítulo, a partir da literatura pré-moderna brasileira, da análise do discurso (AD) de filiação pecheutiana, do materialismo histórico-dialético e do discurso nacionalista presente na política brasileira, refletir sobre o tipo nacional brasileiro, bem como sobre as possibilidades de resistência a esse discurso nacionalista para a construção de um horizonte societário que resista e supere o atual sistema antagônico de produção e reprodução das relações sociais do povo brasileiro.
Para, então, podermos pensar sobre o tipo nacional e o discurso político nacionalista/ufanista, julgamos ser ilustrativa a narrativa, feita por Euclides da Cunha, da guerra de Canudos, em Os Sertões: campanha de canudos e as reflexões de Lima Barreto, presentes em Os Bruzundangas e em Triste fim de Policarpo Quaresma.
O motivo de trazermos, à nossa reflexão, o pré-modernismo, justifica-se pelo fato de esse período literário representar um momento histórico de mudanças sociais marcadas pelo profundo inconformismo de uma parte da sociedade com as instituições políticas/sociais da recém-nascida República brasileira e pelas reflexões ensejadas por seus autores acerca do Brasil, do brasileiro e de suas relações.
Nossa proposta, então, é de retomar o processo de consolidação do Estado moderno no Brasil com seu discurso nacionalista de avanço, progresso, modernização, bondade e cuidado destinado a todos os brasileiros, para, a partir desse discurso, realizar alguns apontamentos sobre o tipo nacional brasileiro.
No que diz respeito à obra Os Sertões, nosso interesse é o de retomar tanto o discurso de civilização, de progresso e de modernização, materializado na figura do Estado moderno brasileiro – representado, na referida obra, pelo governo republicano e por suas instituições, quanto o discurso de barbárie, atraso, retrocesso, materializado não somente na figura de Antônio Conselheiro, líder do Arraial de Canudos, mas também no sertão e nos sertanejos.
Em relação aos textos de Lima Barreto, nosso interesse é o de retomar a problematização, presente em suas narrativas, do discurso ufanista e dos elementos que comporiam a identidade nacional. Podemos citar, como exemplo, a intrigante figura de Policarpo Quaresma e seu intenso interesse pelas temáticas nacionais:
Havia um ano a esta parte que se dedicava ao tupi-guarani. Todas as manhãs, antes que a “Aurora, com seus dedos rosados, abrisse caminho ao louro Febo”, ele se atracava até o almoço com o Montoya, Arte y Diccionario de la Lengua Guaraní ó más bien Tupí, e estudava o jargão caboclo com afinco e paixão. Na repartição, os pequenos empregados, amanuenses e escreventes, tendo notícia desse seu estudo do idioma tupiniquim, deram, não se sabe por que, em chamá-lo – Ubirajara (Barreto, 2011, p. 23-24).
Entendemos, pois, que esses discursos sobre a política, o Brasil e os brasileiros, o tipo nacional, presentes na obra de Euclides da Cunha e de Lima Barreto, enquanto manifestação do imaginário coletivo de uma época marcada por tensões econômicas, políticas, sócias e culturais, foram, em alguma medida e de alguma forma, transmutados para nós em memória discursiva cuja ativação e atualização se deram/dão constantemente no transcorrer do séc. XX e no séc. XXI.
A memória discursiva deve ser entendida: “[...] não no sentido diretamente psicologista da memória individual, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador” (Pêcheux, 2015, p. 44).
O surgimento do Estado moderno brasileiro e a consolidação do projeto societário do capital
E diga-lhes que o governo da República é bom para todos os brasileiros (Cunha, 2019, p. 623, grifos nossos).
A narração da guerra de Canudos, presente em Os Sertões, é constituída polifonicamente por discursos sobre a formação social do povo brasileiro, sobre o tipo nacional; sobre o sertão, o sertanejo e seus costumes; sobre o litoral, os homens da capital e seus hábitos, bem como sobre regime republicano presidencialista brasileiro cuja instauração solidificou o surgimento do Estado moderno no Brasil com a simulação da igualdade e da liberdade de todos os brasileiros, independentemente de raça, cor, credo, posição social etc., pois, com o advento da República, não mais existem legalmente escravos, senhores, barões, nobres, plebeus ou servos, todos passam a ser, como propõe o liberalismo econômico/político, cidadãos:
A teoria liberal da cidadania, (Kant, Hobbes, Locke, Rousseau e outros) tem como ponto de partida o pressuposto de que todos os homens são iguais e livres por natureza. As desigualdades sociais que hoje presenciamos teriam sido o resultado do próprio desdobramento da igualdade e da liberdade naturais. A busca da realização pessoal, consequência da própria liberdade de todos, faria com que os indivíduos se chocassem, inevitavelmente, entre si, dando origem a toda sorte de conflitos (Tonet, 2005, p. 49).
O surgimento do Estado moderno, para a teoria liberal, está ligado, pois, à necessidade de garantir aos homens o exercício da liberdade individual, legitimando, assim, as diferenças sociais existentes entre os homens que teriam sua origem na natureza individual do ser humano:
[...] a teoria liberal do Estado foi fundada na contradição autoproclamada entre a presumida harmonia total das finalidades (as finalidades necessariamente desejadas pelos indivíduos em virtude de sua “natureza humana”) e a total anarquia dos meios (a escassez necessária de mercadorias e recursos, o que faz com que lutem e, por fim, destruam uns aos outros pelo bellum omnium contra omnes, a não ser que de algum modo eles tenham sucesso em estabelecer sobre e acima de si próprios uma força repressora permanente, o Estado burguês (Mészáros, 2011, p. 577, grifos do autor).
É nesse sentido que afirmamos anteriormente que o Estado moderno simula igualdade nas relações estabelecidas entre os seres humanos em sociedade, pois quando ele postula, por meio da teoria liberal, a liberdade e a igualdade entre os indivíduos como o Estado natural dos homens, o Estado moderno está, na verdade, transpondo a causa das desigualdades sociais, isto é, o acúmulo de riquezas por uma pequena parcela da humanidade e a existência em condições miseráveis de uma parcela significativa dessa mesma humanidade, para individualidade do ser humano em constante estado de guerra com seus semelhantes. Segundo a teoria liberal, o Estado moderno surge justamente para harmonizar e controlar esse estado bélico.
Dessa forma, a teoria liberal do Estado, ao apagar a real natureza do ser humano que, segundo Marx (2007, p. 534): “[...] não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado [mas sim] o conjunto das relações sociais”, explica e legitima, de uma só vez, o surgimento do Estado moderno e a existência das desigualdades sociais no mundo dos humanos como um desdobramento natural do desenvolvimento da própria essência humana.
O Estado moderno, no caso brasileiro, representado pelo regime político da República, apresenta-se inicialmente, na narrativa de Euclides da Cunha, como o detentor da civilização, do progresso e do bem estar humano. O arraial de Canudos, por sua vez, é apresentado como uma comunidade de religiosos fanáticos, um reduto monarquista portador da barbárie, do retrocesso, do mal estar e da miséria humana. A narrativa literária discursiviza o antagonismo existente, no imaginário coletivo da sociedade brasileira republicana, entre o forte e o fraco, o litoral e o sertão, a civilização e a barbárie:
A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável “força motriz da História”, que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes. A campanha de Canudos tem, por isto, a significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa. [...] Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo (Cunha, 2019, p. 25-26).
Contudo, antes de ser um encontro antagônico da raça forte com a raça fraca, da civilização com a selvageria, a experiência de Canudos, na realidade, foi um desafio ao Estado moderno do Brasil em suas instituições republicanas, dando provas, coforme posto por Michel Pêcheux (2014b, p. 281), que “não há dominação sem resistência”. Mesmo que o Estado republicano falasse, por meio de seu exército, que a gente de Canudos não poderia resistir, nem fugir, Canudos resistiu até onde foi possível:
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados (Cunha, 2019, p. 631).
Canudos ousou se revoltar, o Arraial resistiu até o fim à proposta civilizatória do Estado republicano brasileiro, defendendo os ideais de sua comunidade. Canudos não se rendeu! Resistiu até o fim à barbárie social imposta pela república. Não estamos fazendo, aqui, uma apologia ao Estado monárquico, pois sabemos que a monarquia, no Brasil, também estava à mercê da lógica do capital.
A questão principal não é se o Arraial de Canudos partilhava de um ideal monárquico ou se era uma comunidade messiânica de fanáticos preguiçosos – como era posto nos jornais da época que tratavam do conflito de Canudos, mas sim que o Arraial era formado por trabalhadores e trabalhadoras que, inconformados com a dominação e a exploração do governo republicano e suas crescentes taxações de impostos, com a exploração econômica, com a dominação do capital sobre o trabalho, com a injusta divisão da terra e dos meios de produção, com os desmandos dos coronéis, juntam-se em torno de Antônio Conselheiro, conforme relata o cordel de França e Rinaré (2006, p. 8-9):
Depois de um largo tempo/ Retorna para Bahia/ Crescia pois seu prestígio/ Multidão já lhe seguia/ Não fez aliciamento/ Só queriam sofrimento/ Isso os purificaria. Segundo informações/ O grupo dos penitentes/ Componha-se de ociosos/ E pessoas delinquentes/ Andavam esfarrapados/ Em vilas e povoados. Peço uma ponderação/ Sobre aqueles “ociosos”/ Eles não tinham trabalho/ Por que eram preguiçosos? Ou a causa eram as cercas/ E não somente a seca/ Com efeitos escabrosos.
No caso específico do relato presente em Os Sertões: Campanha de Canudos, a dominação do capital sobre o trabalho dava-se predominantemente na injusta divisão social do trabalho que era legitimado e perpetuado por meio do sistema agrário-econômico dos latifúndios no qual os agricultores cultivavam e plantavam em terras alheias, sendo constantemente o produto de seu trabalho alheio e estranho a si mesmo, e os vaqueiros, por sua vez, “[...] cuidando a vida inteira, fielmente, dos rebanhos que lhes não pertencem” (Cunha, 2019, p. 149). Essa temática está posta também na narrativa de Lima Barreto no momento em que Olga, afilhada do Major Policarpo Quaresma, percebe o tipo de moradia dos caboclos e a tristeza de Felizardo, empregado de seu padrinho:
Olga pôde ver tudo isso bem à vontade [...] O que mais impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta do cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre. Educada na cidade, ela tinha dos roceiros a ideia de que eram felizes, saudáveis e alegres. Havendo tanto barro, tanta água, por que as casas não eram de tijolos e não tinham telhas? [...]. Seria a terra? Que seria? E todas essas questões desafiavam sua curiosidade, o seu desejo de saber, e também a sua piedade e simpatia por aqueles párias, maltrapilhos, mal alojados, talvez com fome, sorumbáticos! (Barreto, 2011, 119-120).
Dentro dessa temática da injusta divisão da terra, dos meios de produção e da expropriação do trabalhador, é importante destacar que o Arraial de Canudos materializou/materializa uma tentativa histórica de se construir uma sociedade diferente na qual todos tivessem a terra para trabalhar pela subsistência própria e pela subsistência da comunidade. Por isso, em Canudos, não existiam proprietários, mas sim uma partilha de terra igualitária para as famílias trabalharem em seus roçados que ficavam à disposição da comunidade, como é atestado por Euclides da Cunha (2019, p. 218, grifo do autor): “[...] apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam a exígua quota-parte, revertendo o resto para a companhia”.
Também é necessário destacar que, no arraial, todas as crianças, sem restrições econômica, social ou racial, tinham acesso à escola. Enquanto que no Rio de Janeiro, capital da República, e em outros estados, crianças negras e pobres advindas da classe trabalhadora não tinham direito à educação formal, contradizendo mais uma vez o discurso estatal para a conciliação das classes sociais de que “o governo republicano é bom para todos os brasileiros” (Cunha, 2019, p. 623). Essa realidade conflituosa do pertencimento ao mundo letrado por parte de pessoas não advindas de famílias tradicionais e/ou de prestígio econômico-social está presente sarcasticamente em Triste fim de Policarpo Quaresma:
- Aquele requerimento era de doido. - Mas não é só, General – acrescentou Genelício. – Fez um ofício em tupi e mandou ao ministro. [...] - Aqueles livros, aquela mania de leitura... Para que ele lia tanto? – indagou Caldas. Telha de menos - disse Florêncio. Genelício atalhou com autoridade: - Ele não era formado, para que meter-se em livros? – É verdade - fez Florêncio. Isso de livros é bom para os sábios, para os doutores – observou Sigismundo. - Devia até ser proibido – disse Genelício - a quem não possuísse um título acadêmico, ter livros em casa. Evitavam-se, assim, essas desgraças. Não acham? - Decerto – disse Albernaz. - Decerto – fez Caldas (Barreto, 2011, p. 57, grifos nossos).
Quem tem direito à leitura, à educação formal no Brasil? Sendo a educação, legal/constitucionalmente, um direito de todos e dever do Estado e da família, até que ponto em pleno séc. XXI esse direito é garantido ou esse dever é cumprido? Vale ressaltar, aqui, a crítica feita por Lima Barreto, em Os Bruzundangas (1922), às relações antagônicas de classes existentes no Brasil.
Essas relações não permitiam, por exemplo, a quebra do status quo social por parte do filho da classe trabalhadora que, por exceção, tivesse acesso à educação formal, pois seu diploma, à época, teria um menor prestígio social quando comparado ao diploma obtido pelos filhos das frações da burguesia brasileira em sua dita nobreza doutoral. Um exemplo disso é o próprio Lima Barreto que, por ser negro e de origem pobre, mesmo sendo formado e excelente literato, encontrou grandes resistências dos círculos intelectuais consagrados de seu tempo:
A nobreza doutoral, lá, está se fazendo aos poucos irritante, e até sendo hereditária. Querem ver? Quando por lá andei, ouvi entre rapazes este curto diálogo: — Mas T. foi reprovado? — Foi. — Como? Pois se é filho do doutor F.? Os pais mesmo têm essa idéia; as mães também; as irmãs da mesma forma, de modo a só desejarem casar-se com os doutores. Estes vão ocupar os melhores lugares, as gordas sinecuras, pois o povo admite isto e o tem achado justo até agora. Há algumas famílias que são de verdadeiros Polígnacs doutorais (sic). Ao lado, porém, delas vai se formando outra corrente, mais ativa, mais consciente da injustiça que sofre, mais inteligente, que, pouco a pouco, há de tirar do povo a ilusão doutoral (Barreto, 2013, p. 58-59).
É interessante destacar também que mesmo a sociedade republicana passando por uma série de problemas de ordem social e econômica, como as dificuldades de acesso à educação formal, desempregos, moradia, doenças endêmicas causadas pelas péssimas condições de infraestrutura urbana como saneamento básico, questões sanitárias, sistema de abastecimento de água potável, a cidade do Rio de Janeiro, representando a ideia do litoral, aparece, na narrativa euclidiana, em oposição ao arraial de Canudos, representando o Sertão, simbolizando e dicotomizando dessa forma o progresso e o retrocesso, a República civilizada e a Comunidade bárbara:
Ademais, ninguém se iluda ante a situação sertaneja. Acima do desequilibrado que a dirigia estava toda uma sociedade de retardatários. O ambiente moral dos sertões favorecia o contágio e o alastramento da nevrose. A desordem, local ainda, podia ser núcleo de uma conflagração em todo o interior do norte. De sorte que a intervenção federal exprimia o significado superior dos próprios princípios federativos: era a colaboração dos Estados numa questão que interessava não já a Bahia, mas ao país inteiro (Cunha, 2019, p. 274).
Outro texto literário que trata do Sertão e faz alusão a este em oposição ao Litoral é Morte vida Severina de João Cabral de Melo Neto. Contudo, não se dicotomiza, ali, o Sertão e o Litoral entre progresso e retrocesso. Faz-se algo análogo, opondo-se, no início da narrativa, morte e vida, simbolizando Sertão e Litoral, mas em uma perspectiva diferente. Severino, o retirante, sai do sertão, fugindo da fome, da seca, da falta de terra e de oportunidades de trabalho, escapando dessa forma da morte Severina:
[...] que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia/ (de fraqueza e de doença/ é que a morte Severina/ ataca em qualquer idade,/ e até gente não nascida) (Melo Neto, 2007, p. 92).
Na narrativa de João Cabral de Melo Neto, esse ideário do Litoral como símbolo da vida, da plenitude, da civilização, do progresso e do bem estar é posto em crise e desmistificado no decorrer da narrativa. O retirante Severino sai em busca de vida plena, fugindo da morte, isto é, das precárias condições de existência de sua realidade social. Porém, toda a sua trajetória, do sertão, passando pelo agreste e pela zona da mata, até o litoral, é marcada por experiências fúnebres como: 1. O enterro, no cemitério de Torres, de Severino lavrador assassinado em uma emboscada por tentar cultivar um roçado; 2. O fim do rio Capibaribe por conta da estiagem; o velório do finado Severino; o encontro com uma mulher que tem por profissão rezar pelos defuntos nos velórios; 3. O enterro de um trabalhador de eito; 4. O descanso da viagem próximo a um muro alto e caiado onde escuta a conversa de dois coveiros; 5. A chegada a um cais do rio Capibaribe, em Recife, no qual Severino retirante pensa em cometer suicídio; 6. Por fim, o nascimento de um menino magro, pálido e franzino.
Todos esses acontecimentos fazem com que Severino, ao chegar a Recife, litoral pernambucano, conclua, ou tome consciência, que, em sua jornada do sertão ao litoral, acompanhava o seu próprio funeral:
E chegando, aprendo que,/ nessa viagem que eu fazia,/ sem saber desde o sertão,/ meu próprio enterro eu seguia./ Só que devo ter chegado adiantado uns dias;/ o enterro espera na porta:/ o morto ainda está com vida./ A solução é apressar/ a morte a que se decida/ e pedir a este rio,/ que vem também lá de cima,/ que me faça aquele enterro/ que o coveiro descrevia: caixão macio de lama,/ mortalha macia e líquida (Melo Neto, 2007, p. 120).
Essa conclusão de Severino produz, no leitor, o efeito de sentido que a morte e a vida severinas não é um fenômeno exclusivo do Sertão, enquanto representação do interior e da vida do trabalhador rural sem ter as condições necessárias para produzir sua subsistência, mas também do Litoral, representação da modernidade, do progresso, da vida urbana que, estruturada pelas relações antagônicas de classes, é perpassada por injustiças sociais, solidificando cada vez mais o status quo do capital.
Apesar de Morte e vida Severina, semelhante aos Sertões, trabalhar com as figuras dicotomizadas do Sertão e do Litoral, do interior e da capital, a perspectiva literária de João Cabral de Melo Neto (2007), como já apontado, é completamente diferente. A capital litorânea também tem seus problemas econômicos. A vida ali também é ameaçada pelas contradições sociais inerentes à sociedade de classes, sociedade esta que é legitimada e sustentada pelo Estado moderno que, por sua vez, assume uma lógica perversa de exploração e expropriação do trabalhador para total preservação e manutenção do capital sobre o trabalho estranhado no qual o trabalhador é desprovido dos meios de produção e, por isso, cada vez mais explorado e alienado do produto de seu trabalho:
[...] o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta com um ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal, é a objetivação do trabalho. A efetivação do trabalho é a sua objetivação. Esta efetivação do trabalho aparece ao estado nacional-econômico como desefetivação do trabalhador, a objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento, como alienação (Marx, 2010c, p. 80, grifos do autor).
A sobreposição do capital em relação ao trabalho é o que garante a efetivação da mercadoria e a desefetivação do trabalhador que, segundo Marx (2010c, p. 80): “[...] é desefetivado até morrer de fome”. Em nossa sociedade de classes antagônicas, essas relações conflituosas de exploração e expropriação são legitimadas pelo Estado moderno o que, segundo Mészáros, foi postulado por Hegel como “[...] uma entidade orgânica, adequadamente fundida à sociedade e não mecanicamente superposto a ela” (Mészáros, 2011b, p. 580, grifo do autor), cumprindo, assim as funções vitais de totalização da sociedade por meio da conciliação de classes sociais antagônicas que teriam, conforme indica a teoria liberal, se desenvolvido naturalmente no mundo dos homens.
Essa seria, na perspectiva dos teóricos orgânicos do Estado a serviço do capital, a função social do Estado moderno: harmonizar os conflitos ocasionados pela livre fruição dos interesses individuais dos homens. O Estado, então, se configuraria, na perspectiva teórica liberal, por meio de um paradoxo: “[...] o paradoxo do Estado consiste no fato de que ele é, com frequência, bárbaro e civilizador, ao mesmo tempo, emancipador e escravizador” (Morin, 2005, p.117). Seria, então, por meio desse paradoxo que o Estado realizaria essa conciliação de vontades e interesses conflitantes.
Todavia, como nos adverte Mészáros, é importante entender que “[...] o Estado político moderno não se constitui como uma ‘unidade orgânica’, mas, pelo contrário, foi imposto às classes subordinadas a partir das relações de poder materiais já prevalecentes da sociedade civil” (Mészáros, 2011b, p. 581, grifos do autor). Sendo assim, a partir do referencial teórico-metodológico que assumimos – o materialismo histórico-dialético, o nosso entendimento é que, na realidade, o Estado moderno é duplamente barbarizador, porque o que o mesmo entende por civilizar é, na verdade, uma forma de barbarizar, de instaurar a barbárie social, pois ser civilizado é aderir à valoração do Estado burguês, isto é, adequar-se ao modo de exploração da produção do capital:
Com o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção, e o constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras [...]. Sob a pena de ruína total, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção; constrangendo-as a abraçar a chamada civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança (Marx; Engels, 2007, p. 44).
Um fato histórico que materializa bem essa discussão é o horrendo e criminoso processo de escravização dos negros, nos séculos XVI e XVII, cuja força de trabalho sustentava o capitalismo mercantil que nascia com a idade moderna. Ao passo que o capitalismo vai se desenvolvendo e aperfeiçoando sua forma de produção não sendo mais compatível com um modelo econômico de trabalho estranhado e não assalariado, libertam-se os escravos para aprisioná-los sob outros grilhões.
No estágio de acumulação do capital, as relações de produção da sociedade burguesa deixaram de corresponder às forças produtivas do trabalho escravo, fazendo com que se abolisse tal prática por meio de uma constituição política e social condizente com as demandas do capital àquela época, pois o trabalho escravo não mais se adequava a tais necessidades, gerando, pois, a demanda pela estabilização de um grupo de trabalhadores assalariados em escala global. Surge, então, a partir do desenvolvimento produtivo de cada país em relação à nova economia de mercado mundial, a classe do proletariado:
O Estado moderno brasileiro e a identidade nacional: entre a memória do discurso político e a Literatura
Voltamos aqui com a citação de Os sertões que inicia esse trabalho. Eis que, estando cercada a comunidade de Canudos pelo exército militar, instituição oficial de repressão do governo republicano, fala o general: “- E diga-lhes que o governo da republica é bom para todos os brasileiros” (Cunha, 2019, p. 623, grifos nossos).
Entendendo com Bakhtin que “O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação verbal” (Bakhtin, 1997, p. 317), entendendo também que, por conta da funcionalidade prático-operativa da ideologia, sendo o enunciado um produto ideológico, ele não somente reflete, mas também refrata outros enunciados, outras realidades (Volóchinov, 2018), queremos destacar que a enunciação realizada pelo general no cerco ao Arraial de Canudos será retomada pelo Estado em diferentes momentos da história do Brasil, refletindo e refratando o discurso ufanista de que a grande pátria mãe é boa para todos os seus filhos.
Conforme aponta Santos (2009), diante de autores como Oliveira Viana e Nina Rodrigues que, no final do séc. XIX, depreciavam o Brasil, apontando para uma suposta inferioridade étnica do provo brasileiro em relação à raça branca europeia, surgem movimentos teóricos e literários que levantavam a bandeira nacionalista como objetivo de exaltar o Brasil e o brasileiro. É um marco significativo, dessa corrente nacionalista, a publicação, em 1900, do ensaio literário Por que me ufano do meu país de autoria do padrinho de Lima Barreto, Affonso Celso.
O livro de Affonso Celso, escrito por ocasião do quarto centenário da dita descoberta do Brasil, tornou-se o primeiro best seller da literatura brasileira e constitui um rebuscado convite e exortação ao amor e ao zelo pelos bens ofertados, pela doce e bondosa Mãe, a pátria Brasil:
Devem ter ufania os filhos de uma terra assim dotada. O bello é a fonte essencial do amor. Amemos apaixonadamente o Brazil, pelas suas lindesas sem par. [...] A belleza é privilégio divino, suprema força. As cousas verdadeiramente bellas sempre vencem, angariam respeito e estima de todos (sic) (Celso, 1968, p. 42).
Apesar do padrinho de Lima Barreto ter participado ativamente da campanha abolicionista, as temáticas referentes à escravidão, à condição/posição social do negro e do mestiço estiveram presentes, em seu escrito nacionalista, de forma suave, romantizada e sem nenhuma problematização crítica. Nesse sentido, é importante destacar que o espírito nacionalista-ufanista de exaltação às riquezas naturais existentes no Brasil, retratado no livro de Affonso Celso, é retomado, em vários sentidos e direcionamentos, pelo Major Policarpo Quaresma, personagem central da obra de Lima Barreto:
Quando ela [Olga] chegou, p padrinho exclamava: - Adubos! É lá possível que um brasileiro tenha tal ideia! Pois se temos as terras mais férteis do mundo! – Mas se esgotam, Major – observou o doutor. Dona Adelaide, calada, seguia com atenção o crochet que estava fazendo; Ricardo ouvia, com os olhos arregalados; e Olga intrometeu-se na conversa: – Que zanga é essa, padrinho? – É teu marido que quer convencer-me que nossas terras precisam de adubos... Isso é até uma injúria [...]. Senhor doutor, o Brasil é o país mais fértil do mundo, é o mais bem dotado e as suas terras não precisam empréstimos para dar sustento ao homem. Fique Certo! (Barreto, 2011, p. 122).
De certo que Lima Barreto, por meio do personagem Policarpo Quaresma, traz, em sua obra, o discurso nacionalista presente em Por que me ufano de meu País. Todavia, esse discurso é refratado dentro da narrativa, problematizando-se, por meio dos outros personagens esse ideal de fertilidade, de beleza e de bondade existentes na grande pátria Brasil.
No irônico nacionalismo ingênuo de Policarpo Quaresma reside, de algum modo, a pergunta de fundo ou a reflexão que perpassa todo esse livro de Lima Barreto. Diante de toda a grandeza e riquezas naturais existente no Brasil por que esse país não dá certo? Quais os motivos da existência de tamanha pobreza, da exclusão social e da marginalização de tantos brasileiros?
Ao analisarmos, por exemplo, o lugar/posição ocupado pelos personagens negros, caboclos e mestiços de Triste fim de Policarpo Quaresma, percebemos que o autor levanta questões, ainda hoje pertinentes, sobre a formação social do Brasil, sobre os brasileiros, pertencentes aos grupos sociais mais pobres, e sobre quais lugares são ocupados por esses na sociedade de classes do Brasil.
Dentro desse romance de Lima Barreto, a figura de Olga, afilhada do Major Policarpo Quaresma e caracterizada pela “vaporisidade [...], [pelo] seu ar distante de heroína [e por] sua inteligência” (Barreto, 2011, p. 64), merece destaque. Diferentemente das outras mulheres da narrativa, que se preocupam somente com as trivialidades de casa e se ocupam todo o tempo com as temáticas do casamento e das festas, Olga, apesar de, pela convenção, casar-se com um doutor, é uma pessoa reflexiva que começa a problematizar situação social dos grupos pauperizados e a colocar em suspenso o nacionalismo piegas do governo e de seus aliados preocupados em derrotar os revoltosos que se colocaram contra a República. É interessante observar o diálogo de Olga com Felizardo, homem negro que é empregado do major Quaresma no sítio do Sossego:
- Você, por que não planta para você?/ - Quá, sá dona! O que é que a gente come?/ - O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro. – Sá dona tá pensando uma coisa e a coisa é outra. Enquanto planta cresce, e então? Quá, sá dona, não é assim. [...] Terra não é nossa ... E frumiga? ... Nós não tem ferramenta ... isso é bom pra italiano ou alemão, que governo da tudo ... Governo não gosta de nós... [...]. Ela voltou, querendo afastar do espírito aquele desarcordo que o camarada indicara, mas não pôde. [...] E a terra não era dele? Mas de quem era, então, a terra abandonada que se encontrava por aí? Ela vira até fazendas fechadas com as casas em ruínas ... Por que esse acaparamento, esses latifúndios inúteis e improdutivos? (Barreto, 2011, p. 121).
Olga é uma personagem que subverte a ordem posta sob diversos aspectos. É ela quem levanta a crítica ao projeto nacionalista do governo republicano e o faz justamente, sendo mulher, usurpando os espaços do pensamento crítico-reflexivo e da política que, à época, não lhe caberia pelo simples fato de ela ser mulher. Contudo, é justamente uma mulher que, na narrativa de Lima Barreto, coloca o nacionalismo estatal em suspenso, invertendo os polos da oposição posta entre os defensores e os detratores da pátria:
- Mas vocês só falam em patriotismo? E os outros? É monopólio de vocês o patriotismo? – fez Olga. [...]. – Você no fundo é uma revoltosa – disse o doutor, fechando a discussão./ Ela não deixava de ser. A simpatia dos desinteressados, da população inteira era pelos insurgentes. [...] Não era, pois, de admirar que a moça tendesse para os revoltosos (Barreto, 2011, p. 147-148).
Diante da problematização de Olga acerca de quem é o amigo e de quem é o inimigo da pátria, pensamos ser importante destacar que, em momentos de crise econômica e social, é recorrente, na história do Brasil, o surgimento do discurso político nacionalista/populista que aponta para a grandiosidade da pátria mãe que ama homogeneamente todos os brasileiros, bravos filhos resistentes e criativos que devem defender o país, aceitando as propostas/imposições do governo. Tal dado pode ser percebido em variados momentos da história brasileira como uma memória discursiva que se instaura e á atualizada e ressignificada constantemente.
Assim o foi na tensão do processo da dita independência política do Brasil em relação a Portugal: “Como é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto; diga ao povo que fico” (Dom Pedro I, grifos nossos). No início do governo republicano: “[...] o governo da República é bom para todos os brasileiros” (Cunha, 2019, p. 623). Na ditadura militar de 1964 com a criação e disseminação dos slogans “[...] ‘Brasil, conte comigo’; [...] ‘Ninguém segura este país!’; ‘Pra frente, Brasil’; O Brasil é feito por nós; [...] ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’” (Couto, 1998, p. 115). Assim o foi com o governo Lula da Silva com os slogans também ufanistas: “‘O melhor do Brasil é o brasileiro’ e ‘Sou brasileiro e não desisto nunca’” (Santos, 2009, p. 59). E, assim, o foi com o governo Bolsonaro e seu apelo nacionalista presente no slogan “Pátria amada Brasil” e no lema ufanista “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
Diante da constante retomada desses discursos ufanistas e pseudonacionalistas que atualizam a memória discursiva da pátria bondosa que ama todos os seus filhos por igual e, por isso, esses devem ser dóceis, aceitar sua condição social dentro da nação e se sacrificar para a glória do país do futebol, é necessário problematizar, desmistificar e entender a função ideológica prático-operativa que a manutenção temática desses dizeres produz.
O que, de fato, está embutido nesses discursos: “para o bem de todos”, “é bom para todos os brasileiros”, o “Brasil é feito por nós”, “o melhor do Brasil é o brasileiro”, “Brasil acima de todos”?
Esses dizeres, retomando o discurso otimista da bondade do brasileiro e da grandiosidade do Brasil ativa o discurso presente no imaginário coletivo de que “[...] a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade. [...] A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade [...] representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro” (Holanda, 1995, p. 146). Essa famosa definição do brasileiro como cordial, hospitaleiro e generoso teve seu primeiro registro na obra Por que me ufano de meu país de Afonso Celso que, nos capítulos XVI (Sexto motivo da superioridade do Brasil: excelência dos elementos que entraram na formação do tipo nacional), XVII (Sobre os costumes curiosos dos índios), XVIII (Negros) e XIX (Portugueses), definiu a formação do tipo nacional brasileiro, como apresentado por Santos (2009, p. 50):
Quanto ao tipo nacional, Affonso Celso mostra que é fruto da mistura de três elementos notáveis: o selvagem americano - leal, bondoso e dado, o negro africano marcado pelos sentimentos afetivos, resignação estoica (sic), coragem, laboriosidade e o português pelos serviços prestados à humanidade, heroicidade, esforço, enfim, por terem, pela sua união, patriotismo, amor ao trabalho e filantropia, terem elevado verdadeiros monumentos à caridade e à instrução.
Seguindo, pois, a combinação desses três elementos, Affonso Celso elenca os nobres predicados do caráter nacional do homem brasileiro:
1º- sentimento de independência [...]. 2º- hospitalidade [...]. 3º- afeição à ordem, à paz, ao melhoramento [...]. 4º- paciência e resignação [...]. 5º- doçura, longanimidade e desinteresse [...]. 6º- escrúpulo no cumprimento das obrigações contraídas [...]. 7º- espírito extremo de caridade [...]. 8º- acessibilidade [...]. 9º- tolerância, ausência de preconceitos de raça, religião, cor, posição [...]. 10º- a honradez no desempenho de funções públicas e particulares (Celso, 1968, p. 84).
Entendemos, pois, que é urgente colocar esse discurso ufanista sobre o tipo nacional em suspenso. É necessário, conforme posto por Pêcheux (2014b, p. 281, “ousar se revoltar” e, considerando a estrutura social do Brasil e a formação social do brasileiro, questionar como Olga, em Triste fim de Policarpo Quaresma, por que não são os revoltosos os nacionalistas, mas sim os dominadores sequiosos em manter o status quo social posto?
Nessa perspectiva de colocar o discurso nacionalista em suspenso, pensamos ser importante questionar, parafraseando Melo Neto (2007, p. 108), qual é “a parte deste latifúndio” que cabe ao mulato, ao mestiço, seja ele cafuz ou caboclo? Qual é a parte deste latifúndio que é destinada ao brasileiro nato, fruto da miscigenação entre o negro africano escravizado, o indígena usurpado e o branco europeu invasor? Neste latifúndio multicultural, chamado Brasil, qual é a territorialidade da cultura africana e da cultura indígena? Em quais espaços essas vozes e expressões culturais podem ser ouvidas?
A literatura, a cultura e a arte decerto que não são a solução imediata para a crise econômica, política e social que acompanha o Brasil da Monarquia à República, mas certamente podem intervir enquanto elementos potenciais para engendrar a construção do verdadeiro tipo nacional para a elaboração de um projeto de resistência não somente ao pseudonacionalismo estatal, mas também ao sexismo, ao racismo, ao feminicídio, ao extermínio de jovens negros pobres das periferias do Brasil.
Precisamos urgentemente criar artifícios para desconstruir um discurso pseudonacionalista cujo funcionamento se dá como um simulacro de brasilidade. Um discurso que, travestindo-se de amor à pátria, de exaltação aos bons costumes e do brasileiro como um tipo acolhedor, produz um discurso de ódio, materializado no racismo, na homofobia, no machismo, em uma política de extermínio discursivizada no dizer que “bandido bom é bandido morto”. Aliás, é importante destacar que, nessa lógica do bandido bom é bandido morto, o bandido mau, certamente, deve ser o que tem foro privilegiado ou imunidade parlamentar.
É necessário, pois, desfazer o efeito de evidência da ideologia e sua função prático-operativa presentes nesse discurso nacionalista que trata a relação da Pátria com os brasileiros de forma homogênea. O Brasil, por exemplo, não está acima de todos, mas sim acima de alguns brasileiros, pois há aqueles que são intocáveis e pelos quais todos devem ser sacrificados. É justamente para que esse ritual de expropriação da classe trabalhadora brasileira ocorra harmonicamente que se apela à religiosidade (Deus acima de tudo), à cordialidade, aos bons costumes, à moralidade para que assim possa ser despertado o espírito nacionalista e junto com ele o desejo de participação e colaboração do indivíduo no processo de sua própria expropriação. Assim, se salva a economia e a classe social que vive de seus lucros.
Encaminhando-nos para o fim de nossa reflexão, queremos pontuar que analisar o discurso nacionalista como um funcionamento do Estado no transcorrer da história do Brasil, fez-nos perceber que estamos em meio à processualidade do fazer histórico no qual, como apontava Marx (2011, p. 25), fazemos a história, mas não podemos escolher “[...] as circunstâncias sob as quais ela é feita”.
Todavia, o fato mais importante é que nós fazemos a história e, sendo a história da humanidade, como apresentado por Marx e Engels (2007, p. 40), a “história da luta de classes,” nela podemos resistir, pois, conforme aponta Pêcheux (2014b, p. 281): “não há dominação sem resistência”. Por isso, resistamos como a comunidade do Arraial de Canudos resistiu! Resistamos como resistiu Lima Barreto com seus escritos! Resistamos!
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