O presente artigo traz como enfoque as subjetividades de alunas negras egressas de escolas particulares, ocupadas majoritariamente por pessoas brancas. O interesse pelo tema surge ao iniciar leituras sobre a subjetividade negra no contexto escolar em bell hooks[i] e Djamila Ribeiro e a especificidade da escola particular que fez parte da minha experiência enquanto aluna. A partir dessas primeiras aproximações iniciei um processo de reconhecimento de fala e histórias comuns a mulheres negras em minha própria vivência.
No ano de 2022 iniciei estudos no curso de Extensão Pedagogia Feminista Negra, idealizado pela professora Dr.ª Carolina S. B. Pinho e coordenado pelas professoras Tayná V. L. Mesquita e Rívia J. Santos. O curso foi promovido pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), com objetivo de reunir estudantes e professores da Rede Básica de Ensino, além de ativistas educacionais selecionados por todo o Brasil. Contou com aulas com diversas profissionais atuantes na área, como Anielle Franco — fundadora do Instituto Marielle Franco e atual Ministra da Igualdade Racial do Brasil; Eliane Cavalleiro — Universidade de Brasília; Keisha-Khan Y. Perry — University of Pennsylvania (EUA); entre outras.
O objetivo desse artigo é fazer uma análise de vivências de mulheres negras escolarizadas em instituições privadas de ensino, a conexão entre a escrita dessas mulheres e a minha própria experiência enquanto mulher negra, egressa de escolas majoritariamente brancas.
A metodologia sugerida é a escrevivência, termo cunhado por Conceição Evaristo (2017), que trata da subjetividade negra inerente aos aspectos de “escrever”, “viver” e “se ver”. O método aproxima a subjetividade negra da escrita, suprimindo a neutralidade da escrita acadêmica em detrimento de uma fala que reconhece a nossa própria experiência enquanto grupo historicamente silenciado. Assim, é importante salientar que a escrita desse artigo ora será feita em primeira pessoa e ora em terceira pessoa, refletindo o processo recente de identificação da autora, conectado a outras histórias e ao referencial teórico.
A análise se apoia ainda no paradigma interseccional, termo utilizado pela professora norte-americana Kimberlé Crenshaw e popularizado a partir de 2001, após a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância (Akotirene, 2019).
O conceito de interseccionalidade é definido por Akotirene (2019) como uma sensibilidade analítica, resultado do pensamento feminista negro e suas particularidades inobservadas pelo feminismo hegemônico e pelo movimento antirracista, com foco nos homens. A interseccionalidade combina dois ou mais fatores sociais que definem uma pessoa. No caso dessa pesquisa, os fatores são gênero e raça das mulheres negras, que influenciam na sua desvantagem e discriminação em espaços brancos.
A interseccionalidade “visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado[ii]” (Akotirene, 2019, p. 14). A autora discorre sobre a particularidade da mulher negra no feminismo branco norte-americano dos anos 1950. Enquanto a mulher negra lutava ainda para ser reconhecida como pessoa, a mulher branca, lutava por seu direito ao voto e ao trabalho. Essa distinção entre lutas dentro de uma mesma causa feminista justifica a observância do termo (Akotirene, 2019).
A importância do tema disposto nesse artigo é a necessidade de reconhecimento de estudantes negras em seus contextos, diante de experiências de não pertencimento, não escuta, negação da sua fala, que influenciam grandemente sua experiência de escolarização, no desenvolvimento de suas potencialidades como ser humano e nos amplos espectros da vida da mulher negra na sociedade brasileira.
Este artigo se baseia ainda na pedagogia feminista negra, que defende a recuperação, defesa e reinterpretação das histórias de luta negra em oposição aos paradigmas do poder hegemônico branco europeu, no enfrentamento ao racismo, sexismo e opressões vividas pelas mulheres em diversos contextos (Pinho, 2022).
O pensamento feminista negro discute uma educação tensionada pela perspectiva dual entre teoria e prática, sem que uma se sobreponha a outra, tornando-se inseparáveis e essenciais para uma educação emancipadora (Pinho, 2022).
Esse pensamento é o conjunto de tradições intelectuais feministas negras específicas, embora heterogêneas, criadas a partir do lugar social que as mulheres negras ocupam como coletividade. Esse conjunto de tradições nasce da tensão dialética entre a opressão sofrida pelas mulheres negras e seu ativismo (Pinho, 2022, p. 24).
A perspectiva se aproxima do método da escrevivência, de Conceição Evaristo (2017), onde o sujeito ao falar de si, combina sua vivência com a de um coletivo de mulheres negras, oriundas das camadas populares, demarcando sua subjetividade como “corpo-sujeito negro” (Ferreira et al., 2021, p. 253).
O negro, antes visto como objeto, assume o protagonismo através da escrita, ocupando lugar de sujeito, numa dialética entre o sistema colonial do passado e um presente de lutas contra o racismo. Na escrevivência, o corpo negro tem autonomia. É um processo de descolonização, um “ato político” (Kilomba, 2019, p. 28 apud Ferreira et al., 2021, p. 253).
Temos uma mudança de paradigma que se apresenta no dualismo “discurso de” x “discurso sobre”, proveniente da “descolonização”, que se caracteriza como uma na luta contra os efeitos da lógica colonial, um processo de resistência, contra a subjugação, de desconstrução das formas de vida e simbologias resultantes do processo colonial (Guimarães, 2021).
Assim, escrever sobre nossa experiência nos fortalece enquanto grupo duplamente desrespeitado, sendo mulher e sendo mulher negra. Os espaços de fala e escrita são extremamente necessários para a nossa própria construção como ser social e construção de identidade.
Iniciaremos a discussão a partir do conceito de identidade. Segundo Antony Appiah (2016) existem três dimensões para pensar sobre identidade. A primeira é o fato de exigirem rótulos que indicam como os indivíduos reagem e pensam sobre si mesmos e os outros, mesmo que essas identidades não sejam reais. Outra prerrogativa é a existência de normas de identificação ou de tratamento. Essas normas carregam o modo como as pessoas devem se comportar, agir, reagir e atuar sobre pessoas de determinada identidade. E a última abordagem indica que a existência de normas para certos grupos, resulta em ações de acordo com o rótulo que esses grupos e/ou pessoas carregam (Appiah, 2016).
Segundo Nascimento (2003), a identidade é construída a partir da própria experiência e também das representações da experiência coletiva. A construção da identidade negra, levando em conta particularidades como seus espaços, orientação sexual, localização geográfica, classe social e idade, passa a ser influenciada pelos movimentos anticolonialistas, feministas e de minorias sociais oprimidas. Apesar da negação dos teóricos etnocêntricos.
A identidade negra, construída historicamente sob o aspecto da inferiorização, da escravização, da negação e da substituição de sua cultura pela cultura hegemônica europeia, é contestada através dos movimentos sociais, que defendem as minorias e questionam a identidade forjada num padrão sociocultural branco, cultuado pela sociedade (Nascimento, 2003). Essa mudança de paradigma foi possível a partir do entendimento de cultura e identidade como algo fluido, que se constrói com o tempo e as diferentes experiências. Essa ideia possibilita a mudança de padrões tidos como fixos, conduzindo mudanças sociais (Nascimento, 2003).
É nesse processo de quebra de paradigmas da própria sociedade que ocorre o reconhecimento da mulher negra, porém esse reconhecimento vem acompanhado de uma dor, antes subjugada, não nomeada e que era impedida de ser exposta. Gonçalves (2022) traz uma reflexão acerca de seu entendimento como mulher negra nesse mundo paradigmático, através da história de outras mulheres. De acordo com a autora,
[…] foi a experimentação da vida como mulher negra, a objetivação de diferentes processos de racialização, por meio da oralização de nossas histórias — e digo “nossa” porque a cada elemento novo relatado eu me via sob a pele daquelas mulheres negras. Foi uma eclosão de sentimentos e, ao mesmo tempo, um rompimento de lucidez no que diz respeito à minha própria história (Gonçalves, 2022, p. 203).
Esse reconhecimento é exposto também por Djamila Ribeiro, em seu título Quem tem medo do feminismo negro? (2018). A autora discorre sobre várias passagens da sua vida, onde o reconhecimento como mulher negra aconteceu de forma incômoda, onde o sentimento de inadequação e de uma automática anulação eram frequentes.
Minha experiência de vida foi marcada pelo incômodo de uma incompreensão fundamental. Não que eu buscasse respostas para tudo. Na maior parte da minha infância e adolescência, não tinha consciência de mim. Não sabia por que sentia vergonha de levantar a mão quando a professora fazia uma pergunta, já supondo que eu não saberia a resposta. Porque eu ficava isolada na hora do recreio. Porque os meninos diziam na minha cara que não queriam formar par com a “neguinha” na festa junina (Ribeiro, 2018, p. 7).
A autora prossegue relatando:
A sensação de não pertencimento era constante e me machucava, ainda que eu jamais comentasse a respeito. Até que um dia, num processo lento e doloroso, comecei a despertar para o entendimento. Compreendi que existia uma máscara calando não só minha voz, mas minha existência (Ribeiro, 2018, p.15).
Esse sentimento é compartilhado também por Gonçalves ao relembrar:
Minha existência, em muitos momentos, se restringiu ao silêncio — uma personagem construída quase como parte do cenário da vida de outras. A inexistência, a negação de mim, fora o meu porto seguro diante do cotidiano que insistia a cada novo nascer do sol. O meu lugar de fala se restringia a um debate comigo mesma sobre o que havia compreendido das relações travadas a cada dia; dúvidas quanto ao que eu ouvia, percebia e mesmo sentia (Gonçalves, 2022, p. 199).
Os relatos ocorrem a partir, principalmente, do processo de escolarização, fazendo parte de sua socialização primária, que envolve o seio familiar, a interação com outras crianças e professores na escola. Nesse momento a criança aprende e reproduz as crenças normativas da sociedade (Cavalleiro, 2003). A interação da criança com esses significados influencia seus hábitos, opiniões e valores, tomando para si os valores da sociedade. De acordo com Berger e Luckmann (1985, p. 177), o que importa é o “indivíduo não somente absorver os papéis e atitudes dos outros, mas nesse mesmo processo assumir o mundo deles”.
Djamila Ribeiro aponta ainda em sua escolarização, como se deu o estudo de línguas estrangeiras em outras instituições também particulares de sua cidade. Em seu primeiro relato afirma: “Estudei inglês na escola mais conhecida da cidade. Lembro que quando cheguei para minha primeira aula, as conversas animadas foram substituídas pelo silêncio assim que fui vista. Todos pararam para me olhar e comentar” (Ribeiro, 2018, p.11). A autora aborda a distinção como única aluna negra da instituição e os insultos recebidos:
Antes desse lugar, eu tinha estudado em uma escola de idiomas mais modesta, e ainda assim era a única aluna negra. Havia um garoto que sempre me xingava, subindo as escadas atrás de mim proferindo insultos racistas. Eu odiava ir às aulas. Um dia, meu pai foi comigo fazer a rematrícula. Ele subiu antes de mim, porque passei no banheiro. Quando o garoto me viu, correu atrás de mim para recomeçar seu ritual macabro. […] Quando chegamos lá em cima, meu pai me aguardava na recepção. Assim que o avistou, o menino gelou. Contei ao meu pai o que o garoto fazia e ele deu um escândalo (Ribeiro, 2018, p. 12–13).
Cavalleiro (2003) discute como o racismo afeta a socialização primária das crianças. Conforme a autora, é a partir do aprendizado de atitudes com relação ao seu grupo racial em contato com outros, que ela absorve a distinção do seu próprio grupo e de sua identidade social. A partir disso:
[…] tende a adquirir preconceitos raciais, pois as ideias preconceituosas presentes na sociedade em relação à raça são transmitidas da mesma maneira que todos os valores sociais: por gestos, palavras, atitudes cotidianas, e, em geral, dos mais velhos para os mais jovens (Cavalleiro, 2003, p. 5).
Ribeiro e Gonçalves expõem, além de fatos marcantes e negativos em suas vidas, uma tristeza, um sentimento de dor que as acompanhou. Essa dor foi nomeada por Piedade (2018) como “dororidade”, uma dor que une as mulheres pretas em torno do racismo. Uma dor que reflete o não lugar, o lugar-ausência, o silenciamento histórico da mulher preta.
Ao explicar o conceito, a autora defende: “Dororidade, pois, contém as sombras, o vazio, a ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo racismo. E essa dor é preta” (Piedade, 2018, p. 16). O termo é cunhado em complemento ao termo “sororidade”, muito utilizado no feminismo, mas que não abarca a subjetividade preta. A ideia de sororidade ampara o feminismo que, por conseguinte, promove a sororidade. Entretanto, o termo não compreende a dor que só pode ser sentida pela mulher preta, considerando ainda que quanto mais escura seja a pele, mais racismo essa mulher sofre (Piedade, 2018). Os relatos das autoras compreendem o sentido de escrevivência, através de uma escrita consciente de suas histórias, mas também, do potencial de reversão e redefinição de suas identidades. De acordo com Soares e Machado (2017, p. 207), “a escrevivência marcadamente carrega, assim, uma dimensão ética ao propiciar que a autora assuma o lugar de enunciação de um eu coletivo, de alguém que evoca, por meio de suas próprias narrativa e voz, a história de um ‘nós’ compartilhado”.
Ribeiro (2018) afirma que essa reversão foi feita através da sua própria experiência ministrando aulas em cursos comunitários e trabalhando em ações sociais, além do contato com o pensamento feminista negro de bell hooks, Carolina Maria de Jesus, Toni Morrison, Grada Kilomba e Chimamanda Ngozi Adichie, entre outras. A autora destaca ainda a importância de questionar o patriarcado racista, entender a diferença entre identidade vitimada e resistência militante, e o valor iminente na construção de redes políticas de apoio, no lugar de uma “narrativa imutável de não transcendência” (Ribeiro, 2018, p. 19).
Outra possibilidade que tem se discutido para o combate ao racismo é uma pedagogia revolucionária e antirracista. Pinho e Amaral (2022) defendem uma pedagogia revolucionária de cunho antirracista, para que o cidadão possa identificar sua cultura e intervir na sua realidade. Essa pedagogia busca a igualdade entre os cidadãos como ferramenta para uma sociedade igualitária. O professor é peça fundamental na condução e desenvolvimento dessas crianças, sendo necessária à sua devida formação para atuação (Pinho; Amaral, 2022). O contexto da sala de aula multicultural e o papel do professor no enfrentamento do racismo foi abordado também por bell hooks. A autora expôs a dificuldade enfrentada com uma equipe docente, em desaprender o racismo, e aprender sobre colonização e descolonização (hooks, 2013).
Outro problema apontado por hooks é a falta de disposição em abordar o ensino a partir da consciência racial e quando isso acontece, a dificuldade de respeitar e incluir todas as particularidades. Como exemplo, cita os estudos sobre as mulheres negras que estão sempre à margem, e são tratadas apenas no final de um curso, ou mesmo, misturados com todas as outras questões raciais (hooks, 2013).
A autora aborda ainda a preocupação de professores que percebem a ausência de fala de alunos não brancos. Segundo hooks (2013), os alunos brancos e homens despontam como os que mais detém a palavra em sala de aula. Alunas brancas, negras e alunos negros demonstram medo do julgamento de inferioridade. O silêncio e não afirmação de sua subjetividade são opções para evitar possíveis agressões.
No contexto da educação infantil, Pinho e Amaral (2022) discutem que em seu processo de reconhecimento a criança negra sofre a não representação, a negligência de cuidados e afetividade, impedindo e direito de explorar suas potencialidades enquanto sujeito pleno. No lado oposto, insere-se a criança branca que já experiencia:
Privilégios ao ser educada como um ser humano capaz de desenvolver suas potencialidades com base em referências positivas ao longo da história, contada a partir da perspectiva de quem sempre dominou e orientou as práticas sociais (Pinho; Amaral, 2022, p. 126).
As autoras apontam ainda que é necessário desalienar os processos pedagógicos para a garantia dos direitos de igualdade no tratamento com as crianças, garantindo uma efetiva intervenção, transformação das práticas sociais e desenvolvimento do pensamento crítico (Pinho; Amaral, 2022).
Uma iniciativa ligada ao combate do racismo na escola, foi a realização de uma ação social afirmativa denominada Projeto Geração XXI, da ONG Geledés — Instituto da Mulher Negra, no ano de 1999. O projeto oportunizou vinte e um adolescentes negros na cidade de São Paulo a terem seus estudos custeados, da 8.ª série até o término do curso universitário. O objetivo era a produção de condições de aprendizado, acesso ao conhecimento para alunos negros, de baixa renda, valorizando a educação como instrumento de superação dos processos de exclusão e discriminação do povo negro, além do compromisso em manter os estudantes fora do mercado de trabalho até a conclusão do ensino médio (Geledés […], 2009).
Porém, inserir o aluno negro em escolas brancas não é o suficiente, pois seria mais uma situação em que o estudante teria mais possibilidade de sofrer com o racismo. Entretanto, a ação social através da Geledés assegurou:
[…] que a questão racial fosse corretamente trabalhada em todas as dimensões do Projeto no que tange ao fortalecimento da autoestima e da identidade racial dos/as jovens e seus familiares; ao desenvolvimento de atitude crítica em relação às práticas discriminatórias presentes nas relações sociais, bem como a montagem de estratégias para se defender dessas práticas; a aquisição de conhecimentos sobre os direitos e deveres que permitem o exercício pleno da cidadania; à formação de professores e público-alvo do projeto para a adoção de uma perspectiva antirracista e de valorização da diversidade racial/ étnica/cultural na escola e nos demais espaços sociais (Geledés […], 2009).
Outro grande avanço no Brasil foi a criação, no ano de 2003, da Lei Federal 10.639, decretada pelo Presidente da República Luís Inácio “Lula” da Silva. Essa lei traz a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira no ensino fundamental e médio. Porém, a educação infantil não foi citada. Somente no Parecer do Conselho Nacional de Educação e do Conselho Pleno (CNE/CP) n°3/2004 foram instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais na Educação Infantil (Pinho; Amaral, 2022). De acordo com Kasai:
Conhecer mais a cultura africana ajudará a criança a formar uma consciência crítica a respeito do racismo e suas consequências danosas e não permitindo no futuro, que aquela cultura continue sendo vista apenas como “folclore” ou um debate de pequena relevância (Kasai, 2006, p. 19).
Porém, a efetivação da lei no ambiente escolar ainda é difícil. É necessário também uma releitura de disciplinas, conteúdos e paradigmas sobre o currículo escolar (Fernandes; Souza, 2016). É nesse empenho entre avanços e retrocessos que o tema tem sido destacado. Se faz necessário e urgente a discussão sobre a questão racial, o conhecimento da história e cultura negra e valorização da diversidade étnica e cultural no país para a promoção de uma sociedade igualitária.
A partir desse ponto serão expostos os relatos da autora deste texto e de outras mulheres que participaram da pesquisa através de questionários, deixando-as livres para descrever suas experiências escolares. A experiência de egressa negra de escolas privadas abordada aqui, foi um dos motivadores deste trabalho. Com base na minha própria história, como aluna de escolas particulares frequentadas por estudantes majoritariamente brancos, e das leituras de vivências de mulheres negras, que comecei a indagar sobre minha história de vida.
O que eu sempre encarei como um problema meu, relacionado à timidez, à dificuldade de interação, era relatado por outras mulheres em seus textos, ou em cursos que comecei a frequentar. O fato de ser a única criança negra na turma ou uma das poucas da escola, o silenciamento desde tenra idade, e até a falta de lembranças de quando comecei a me perceber à margem de outras crianças, também era relatado.
Estudei em quatro escolas particulares durante a vida. Fui alfabetizada em uma escola particular de grande porte, próxima a minha casa. Na primeira série do ensino fundamental, fui para outra escola, uma cooperativa criada para os filhos de trabalhadores da Petrobrás. Meu pai era falecido em decorrência de acidente de trabalho na estatal. Realizei o ensino fundamental, da terceira até oitava série em outra instituição privada. No ensino médio ganhei uma bolsa de estudos parcial em outra escola com foco no vestibular. Por ser mais distante, cursei um ano e retornei para concluir os estudos na primeira escola que estudei.
A discriminação verbal e contundente ou ridicularização por minha cor, ou cabelo, com apelidos depreciativos, ocorreu de forma velada, para que eu não percebesse. Eu observava as colegas juntas, apontando ou rindo de mim. Durante minha escolarização, muitas das vezes eu era a única negra da turma. Na segunda série do ensino fundamental eu sabia da existência de duas irmãs negras na sétima série, conhecidas como “cabelo de fogo” e “cabelo de bombril”. Então mesmo que os apelidos não tivessem chegado a mim, eles poderiam acontecer a qualquer momento. Me calar, esconder e não chamar atenção acabou se tornando uma prática que nem eu mesma percebi que adotei.
Essa discriminação acabava sendo explicitada no distanciamento de outras crianças e em momentos como a típica festa junina e a escolha de pares para dança. As meninas negras são rejeitadas e recebemos essa rejeição com palavras duras dos colegas de turma. A fatídica frase: “não quero dançar com ela porque ela é preta” se insere em várias outras situações cotidianas de forma disfarçada.
Às vezes somos somente esquecidas em um passeio da escola, onde ninguém se senta do seu lado e uma professora que percebe a situação, faz isso, deixando todas as outras crianças muito surpresas. Ou numa brincadeira de “pega-pega” onde ninguém corre atrás de você. Eu ficava admirada, na faixa dos oito anos, pois na brincadeira de “pique-esconde” eu não era encontrada e talvez nem procurada.
Eu tinha a certeza de que não era desrespeitada, pois pagava a escola como todos e aprendi que deveria ter os meus direitos garantidos. Porém, percebo que minha exclusão era a maior dificuldade enfrentada, sem que eu percebesse. Outras recordações são de professoras que me tratavam com rispidez, mesmo que eu fosse uma das crianças que menos dava “trabalho”, por ser bem-comportada, obediente, estudiosa e disciplinada. Não havia motivo para tal comportamento, e ao perceber isso eu tentava me ajustar ainda mais para não receber uma fala negativa.
As voluntárias para a pesquisa possuem entre 22 e 46 anos, egressas de escolas da rede particular da cidade de Aracaju (SE). Seus relatos evidenciam que a temática racial não era abordada nas aulas, ou era feita superficialmente, em relação ao período de escravidão ou às heranças culturais. A quantidade de alunos negros nessas escolas também era inexpressiva ou inexistente.
Eu não tinha recordação alguma sobre o tema ser abordado em qualquer disciplina. Lembro apenas das aulas que relatavam, superficialmente, os anos de escravidão… e, mais superficialmente ainda, heranças culturais dos povos africanos. […] Quando terminei o ensino fundamental, minha mãe conseguiu uma bolsa para mim em um colégio renomado da cidade e foi então que as diferenças raciais, sociais e econômicas ficaram mais evidentes… os negros e bolsistas contavam-se nos dedos. […] era difícil não notar que, com exceção de funcionários e, talvez, um ou outro professor (só lembro de um), quase não havia negros por lá. De certa forma, estar lá fez com que me questionasse: se apenas uma maioria branca tinha acesso a colégios renomados (Entrevistada A, 34 anos).
Eu não me recordo sobre a abordagem desse tema na vida escolar, pelo menos não de forma clara e objetiva. O mais próximo disso, era nas aulas de História quando o assunto era sobre o tempo da escravidão e ainda assim, eu entendia que era algo do passado, eu não conseguia fazer tanta correlação com “ser negro” atualmente (Entrevistada B, 27 anos).
Sobre as ocasiões em que essas pessoas se sentiam discriminadas, estão associadas com apelidos como “café com leite”, discriminações relacionadas ao cabelo, a recusa na escolha como par de festa e insultos com outros colegas negros. Algumas relatam o sentimento de tristeza, raiva ou agressividade e outras, a tentativa de repreender posturas inadequadas, porém sem muito sucesso.
[…] nos intervalos das aulas, um grupo ficava importunando um colega negro com “brincadeiras” e eu me irritei. Chamei um deles e questionei por que falava aquelas coisas se o pai dele também era negro… talvez com raiva por que chamei atenção dele diante dos colegas, ele apenas disse “sua mãe também é”… justamente o que era meu maior motivo para me incomodar e não aceitar aquelas “brincadeiras” (Entrevistada A, 34 anos).
As principais situações racistas que eu sofria, eram relacionadas ao meu cabelo crespo. Eram feitas principalmente pelos colegas da escola. As críticas eram feitas explicitamente, como forma de ofensa. Eu lidava com isso reagindo a essas situações: brigando, respondendo de forma agressiva. Em outras situações, eu fazia brincadeiras com meu próprio cabelo, assanhando e assustando as colegas (Entrevistada B, 27 anos).
Uma das participantes evidencia a negação do racismo percebido durante a adolescência, outra relata o próprio reconhecimento como pessoa negra a partir da discriminação. Uma descoberta que ocorre em um processo de doloroso:
Na infância eu não conseguia perceber isso ou não associava diretamente ao fato de ser negra. De uma certa forma, acho que eu inconscientemente tentava negar essas questões e me igualar a eles. É como se na época eu não aceitasse que era diferente (Entrevistada B, 27 anos).
[…] sempre tinha um comentário sobre meu cabelo, sobre minha cor, inclusive foi quando passei a me dar conta de que realmente eu era uma pessoa negra e deveria sim me entender como tal, porque as pessoas sempre falavam sobre isso (Entrevistada C, 22 anos).
De alguma forma essas alunas refletiram sobre a continuidade dos estudos no ensino superior, e percebem a importância de estudos em ambientes como a universidade pública, para a própria identificação como mulher negra, mudando o paradigma vivenciado na escola. Outras também buscaram terapias para lidar com a situação, além de busca por exemplos positivos de mulheres negras.
De certa forma, estar lá fez com que me questionasse: se apenas uma maioria branca tinha acesso a colégios renomados, com altos níveis de aprovação no vestibular… então os negros na universidade pública também seriam contados nos dedos ou apenas frequentavam cursos de pouco "prestígio"? Somente dois anos após minha formatura da universidade, foi sancionada a Lei de Cotas (2012) e, não vejo como, olhando a realidade, não apoiar, bem como, discordar do conceito que muitos disseminam, de meritocracia — não é uma corrida justa quando um dos concorrentes não tem as mesmas condições que os outros (Entrevistada A, 34 anos).
Ao entrar em uma universidade pública, a minha consciência racial e de classe mudou completamente. Comecei a ver essas questões de forma mais “consciente” mesmo. Outro diferencial foi a partir do meu contato com a arte, que me fez ver essas questões de forma crítica (Entrevistada B, 27 anos).
Lidando através de terapia e seguindo páginas que empoderem as pessoas pretas, que mostrem a superação e ascensão delas (Entrevistada D, 29 anos).
As voluntárias concluem experiências dolorosas nos seus processos de escolarização, despreparo de profissionais, ausência de debate e ações sobre situações de racismo, como abordam a seguir:
Traumática, principalmente pelo despreparo dos professores em lidar com situações de racismo (Entrevistada D, 29 anos).
Desafiadora, principalmente na escola mais cara, de classe média alta, parecia que em muitos momentos, em muitos olhares, você não estava no local adequado pra você ali (Entrevistada C, 22 anos).
As sugestões para mudança desse quadro perpassam pelo debate de questões raciais, conscientização sobre racismo, a importância do papel do professor e da equipe escolar, além da representatividade no entorno das educandas.
Questões raciais devem ser abordadas de forma diferente nas escolas, para que o aluno de cor preta não se sinta excluído. O papel da escola e dos professores é imprescindível para que ofensas e atitudes racistas não sejam reproduzidas. É importante que, desde crianças, não somente aprendam a conviver com as diferenças, mas também que adotem medidas de conscientização e valorização da diversidade. Ressaltando que isso não deve se limitar a data comemorativa. Na época da minha infância e adolescência observei pouquíssima representatividade, algo que vejo evoluindo pouco a pouco (Entrevistada D, 29 anos).
Acredito que as escolas particulares ainda precisam ter o espaço firmado pra a questão racial, pra falar de racismo, pelo menos na minha época escolar não era um tema muito discutido e isso me fez sofrer com situações de preconceito sem perceber que eram, só tive noção anos depois, se eu tivesse sido ensinada a reconhecer eu teria rebatido como fazia com situações de bullying normalmente, mas as de racismo eu não entendia como racismo, acabavam passando despercebidas (Entrevistada C, 22 anos).
É perceptível que a vida dessas voluntárias foi marcada pela problemática racial e a falta de contato com o tema na escola pode ser um limitador, tanto para os que identificam, quanto para os que não percebem a discriminação. A abordagem do tema já nas séries iniciais de escolarização é de suma importância para o combate ou perpetuação do racismo.
O racismo é um tema complexo, suas origens no Brasil remontam a história de um povo que não se reconhece. Ao falar de racismo nos deparamos com a sua negação. A negação da identidade brasileira em aspectos raciais.
A identidade no Brasil é construída, entre outros fatores, sobre as questões de raça, a inferiorização do negro, sua escravização, marginalização e negação. O impacto para crianças e mulheres negras é alarmante e, ao mesmo tempo, negligenciado. Crescer e reconhecer-se como mulher negra em ambientes brancos é um processo doloroso e essa “dororidade” é ainda subjugada.
Na socialização primária das crianças negras, são apreendidos e perpetuados os conceitos negativos, a partir da interação com outras crianças e professores. Essas experiências influem no desenvolvimento pessoal, nas relações de afeto, na autoestima, na continuidade dos estudos, na vida como um todo. A criança negra absorve o seu papel nas relações de poder da sociedade. E esse papel tem sido o mais negativo.
A violência física e simbólica do racismo deixa marcas profundas nas pessoas e a experiência de escolarização não valoriza suas potencialidades como ser humano. A escola, como espaço de construção de identidade, é um ambiente significativo de intervenção e construção do ser negro. É preciso destacar o caso das mulheres negras, que lutam pelo seu reconhecimento como pessoa, contra a opressão do machismo e a invisibilidade do feminismo eurocentrado.
Destacam-se os movimentos sociais anticolonialistas, feministas, de minorias sociais para os novos debates acerca do combate ao racismo. Assim como a reversão desse estereótipo, a partir da construção de redes políticas de apoio, do questionamento da identidade vitimada, do estudo do feminismo negro e de uma pedagogia antirracista e revolucionária.
É necessário também destacar a importância das ações sociais e da criação da Lei Federal 10.639, com a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira no ensino fundamental e médio, e o subsequente Parecer do Conselho Nacional de Educação e do Conselho Pleno (CNE/CP) n°3/2004 que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais na Educação Infantil.
Apesar da criação dessa lei, existem dificuldades para a sua concretização, barreiras para repensar posturas, atitudes e o currículo escolar. Essa dificuldade foi relatada pelas voluntárias da pesquisa, que reconheceram sua força a partir do estudo das artes, do desenvolvimento de uma consciência crítica na universidade, mas não do acesso a esse conhecimento ainda na escola.
O método da escrevivência foi essencial para a análise das vivências, sendo mais difícil extrair das voluntárias tais informações com um método mais direto ou apenas quantitativo. A pequena quantidade de alunas negras nas escolas particulares se refletiu também no contato com essas voluntárias para pesquisa, associados a negação do sofrimento e a dificuldade de falar sobre as questões.
A valorização, afirmação e reconhecimento dessas mulheres perpassa pela reconstrução de si, de sua identidade, pelo conhecimento de sua história e suas origens para, assim, atuar e modificar o seu entorno. Para a superação do racismo é necessário o esforço da sociedade como um todo, o debate no ambiente escolar, familiar, na socialização primária e secundária. Acreditamos nessa mudança através da educação e de uma pedagogia libertadora, transformadora e afirmativa de nossa identidade negra.
Às voluntárias para a pesquisa e ao curso de Pedagogia Feminista Negra, idealizado pela professora Dr.ª Carolina S. B. Pinho, coordenado pelas professoras Tayná V. L. Mesquita e Rívia J. Santos, e promovido pela Universidade Estadual de Feira de Santana.
[1] O pseudônimo foi empregado com letras minúsculas pela própria autora como postura política frente ao rompimento das tradições da escrita acadêmica e valorização do seu trabalho e não da sua pessoa.
[1I] Termo referenciado por Ribeiro que trata do patriarcado, reforçado por papéis de gênero duais (cisgênero), como moduladores da cultura de dominação contra as mulheres.
AKOTIRENE, Carla Santos. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen. 2019.
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