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A Organização Social Primitiva Dos Caçadores E Coletores

Yuri Silva

Durante as fases iniciais da organização social humana, nos grupos de caçadores e coletores, o desenvolvimento das forças produtivas era limitado, resultando em uma ausência de exploração do homem pelo homem. A baixa produtividade do trabalho e a falta de excedente de produção impediam a existência de classes. Com a introdução da agricultura, a divisão do trabalho foi aos poucos se aprofundando, o que implicou em uma posterior separação entre "trabalho intelectual" e "trabalho manual". Comunidades de horticultores e caçadores-coletores caracterizavam-se por igualdade social, posse coletiva dos meios de produção e igualdade de gênero, representando um caráter comunista de relação de produção. No entanto, a Revolução Neolítica trouxe mudanças, como a propriedade privada dos meios de produção, desigualdade social e subordinação de gênero. Apesar do primitivo nível de forças produtivas sugerir homogeneidade e relações monótonas, a igualdade substancial nessas comunidades permitiu um desenvolvimento individual significativo dentro das limitações materiais. A compreensão desse desenvolvimento individual nas sociedades primitivas é crucial para orientar práticas sociais contemporâneas, especialmente na educação. Portanto, a igualdade nas relações de produção nas primeiras comunidades, apesar das limitações materiais, possibilitou um desenvolvimento individual notável e oferece lições valiosas para ações sociais atuais.

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Como citar este trabalho

SILVA, Yuri. A ORGANIZAÇÃO SOCIAL PRIMITIVA DOS CAÇADORES E COLETORES. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2023 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/530-a-organiza%C3%A7%C3%A3o-social-primitiva-dos-ca%C3%A7adores-e-coletores. Acesso em: 16 out. 2025.

A ORGANIZAÇÃO SOCIAL PRIMITIVA DOS CAÇADORES E COLETORES

Este relatório comunica os resultados encontrados a partir de nossa pesquisa, que procura entender como se dá a organização social das comunidades primitivas. Além disso, em conexão com nossa investigação acerca da organização social primitiva, buscamos, de forma aproximativa, averiguar como eram tratadas a autonomia e a individualidade no seio das comunidades de caçadores e coletores, que constituíam o que conhecemos como comunismo primitivo.

Os achados e resultados desta pesquisa teórico-bibliográfica são provenientes da leitura imanente e discussão das obras de Williams (1991), Costa (2017), Service (1971), Childe (1977) e Leacock (in Engels 2012) que serviram para aprofundamento e melhor compreensão de nosso objeto de estudo.

Entender a organização social do comunismo primitivo pode contribuir decisivamente para entendermos mais profundamente a organização da sociedade contemporânea. É olhando para um cenário como o das comunidades de caçadores e coletores – sendo ele o total oposto da sociedade contemporânea em muitos sentidos - que podemos contemplar as problemáticas de uma sociabilidade tão centrada na obtenção de lucro como esta na qual estamos inseridos.

Ao realizar leituras de bibliografias que tratam das comunidades primitivas, além de podermos comparar nossos achados com o que está presente na sociedade de classes da contemporaneidade, também tivemos a possibilidade de vislumbrar a magnitude dos processos através dos quais a sociedade se desenvolveu e se complexificou, principalmente no que tange a tecnologia e a produção. Além disso, outra grande oportunidade tem sido a de perceber aspectos relacionais, culturais e sociais, que se perderam ao longo do desenvolvimento social do homem e que seriam benéficas no que concerne a superação da exploração do homem pelo homem e a sociedade capitalista.

 

 

Para atender aos fins de nossa pesquisa, foi escolhida a pesquisa exploratória, de caráter qualitativo, como a metodologia adequada para a pesquisa tendo em vista que, de acordo com Severino (2013, p. 106): “A pesquisa exploratória busca apenas levantar informações sobre um determinado objeto, delimitando assim um campo de trabalho, mapeando as condições de manifestação desse objeto”.

Levando em conta o distanciamento histórico que existe entre este estudo e seu objeto, para a coleta de dados foi realizada uma pesquisa teórico-bibliográfica pois, conforme Lakatos e Marconi (2003, p. 182):

 

A pesquisa bibliográfica, ou de fontes secundárias, abrange toda bibliografia já tornada pública em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas, boletins, jornais, revistas, livros, pesquisas, monografias, teses, material cartográfico etc., até meios de comunicação orais: rádio, gravações em fita magnética e audiovisuais: filmes e televisão. Sua finalidade é colocar o pesquisador em contato direto com tudo o que foi escrito, dito ou filmado sobre determinado assunto, inclusive conferencias seguidas de debates que tenham sido transcritos por alguma forma, quer publicadas, quer gravadas.

 

O método da leitura imanente foi escolhido para o estudo dos textos pois, segundo BEZERRA (2016, apud BEZERRA et al., 2017, p. 3), ela desenvolve uma profunda interlocução com os autores dos textos, em um processo no qual decompõe-se e desconstrói-se os textos, em busca de registrar, identificar, discutir e elaborar o mapa das unidades significativas: categorias, conceitos, ideias e glossário.

As obras de Williams (1991), Costa (2017), Service (1971), Childe (1977) e Leacock (in Engels 2012) foram estudados entre Agosto de 2021 e Agosto de 2022 com a análise imanente do texto e a extração de excertos das obras e citações indiretas que evidenciam com clareza a natureza da organização social das comunidades primitivas, em especial as dos povos caçadores-coletores.

            Ao longo do texto, além da caracterização da organização social primitiva, foram realizadas algumas comparações entre a organização social destas comunidades e da sociedade de classes, mais especificamente, da sociedade capitalista da contemporaneidade.

            Por fim, na conclusão, foi feita uma reflexão sobre o horizonte emancipatório que nos é oferecido ao estudar o desenvolvimento social em seus primórdios a partir da perspectiva do materialismo histórico e sua contribuição para a formação da individualidade e autonomia da pessoa contemporânea.

Como o desenvolvimento das forças produtivas era extremamente baixo nas comunidades primitivas, isto implicava dizer que os indivíduos encaravam uma realidade dura e escassa. As ameaças do mundo natural eram inúmeras e grandiosas, tendo em vista o incipiente afastamento das barreiras naturais daquela sociedade. Consequentemente, o homem, a este ponto, tinha as ferramentas mais rudimentares possíveis. Todo este cenário econômico-social criava uma dinâmica na qual todos precisavam participar das atividades para garantir a sobrevivência do grupo. Sobre isso, Service (1971, p. 23) nos conta que:

 

A maioria das armas é tão limitada que o caçador tem de compensar o seu pequeno arsenal com engenho, persistência, sabedoria e, em muitos casos, a cooperação com outros ou, pelo menos, repartindo livremente a sua caça, quando tem sorte, para que possa mais tarde recebê-la de outros quando não tem sorte.

 

 

Devido a este baixo desenvolvimento das forças produtivas, as atividades de caça e coleta do homem primitivo eram quase que ininterruptas (SERVICE, 1971, p. 25), o que tornava impossível, nesta sociedade, o aparecimento de algum excedente de produção. Além disso, não era possível para um indivíduo do grupo viver às custas do trabalho alheio, então é correto afirmar que ainda não existia nas sociedades de caçadores e coletores uma separação entre trabalho manual e intelectual. Existiam grandes limitações em relação a conservação e armazenagem dos alimentos, pois não existiam ainda as técnicas de refrigeração, enlatamento, salga ou defumação de carne animal. Os alimentos que eram obtidos tinham de ser consumidos antes que se estragassem. Service (1971, p. 25) conta que:

 

As limitações tecnológicas mais salientes são as que dizem respeito à preservação e armazenagem de alimentos. Sem refrigeração, enlatamento, salga ou defumação da carne e peixe, é claro, não faz sentido caçar ou pescar uma vez que haja um suprimento à mão, pois êste terá de ser comido depressa, mesmo nos climas mais secos.

 

Além de Service (1971), podemos citar também Williams (1991, p. 135) a partir de sua obra “O povo das montanhas negras” que, apesar de ser uma obra ficcional, pode ser considerado como um importante trabalho para a compreensão da vida e organização social nas comunidades primitivas. Williams se apoiou em um exaustivo levantamento histórico a respeito dos povos primitivos que habitavam as Montanhas Negras (região localizada no que é hoje o País de Gales) e em um profundo conhecimento da geografia da região na qual as histórias de seu romance se desenrolam. No livro de Williams temos a construção de narrativas ficcionais sobre grupos primitivos que habitaram a região das Montanhas Negras no País de Gales no decorrer de aproximadamente 25.000 anos.

Ao ler a obra de Williams (1991) percebemos o ambiente externo existindo ali como uma espécie de personagem que está presente ao longo de toda a obra e que coloca obstáculos e oportunidades para os indivíduos. Ainda assim, os indivíduos é que são os verdadeiros agentes diante do que está posto pelo mundo material. São eles que deliberam, planejam, decidem e se mobilizam de uma maneira particularmente escolhida por eles para superar as adversidades encontradas.

A agudeza e o profundo conhecimento histórico de Williams ao escrever “O povo das montanhas negras” são a chave para entender essa capacidade que o autor possui para escrever histórias tão convincentes. Ao escrever sua obra, o autor demonstrou um extremo cuidado não apenas para criar histórias sobre grupos primitivos que realmente existiram, mas também para reconstruir o universo de detalhes que estão relacionadas a estes grupos. Enquanto narra as histórias de seus personagens, ele nos envolve com diversos detalhes históricos que vão desde a coleta e a caça e de animais, o aproveitamento da lã dos animais caçados, o domínio da agricultura e da pecuária, o domínio das técnicas relativas à produção, os procedimentos de descoberta dos astros até muitos outros elementos que estão perfeitamente alinhados com aquilo que é cientificamente comprovado sobre aquele período histórico.

Por se sustentar neste levantamento histórico preciso para escrever sua obra, Williams (1991) conseguiu retratar de forma crível os grupos de caçadores e coletores, o seu cotidiano, as suas relações singulares, as personalidades dos sujeitos que transitam pelas histórias, de tal maneira que a ficção poderia facilmente ser verdade. Não seria possível reconstruir, em termos historiográficos, aquilo que está colocado em detalhes na obra de Williams (1991), o máximo que as ciências históricas e antropológicas conseguem descrever ainda não seria capaz de atingir o grau de detalhismo que está presente em “O povo das montanhas negras”. É através da Arte, que não está submetida ao que pode ser cientificamente comprovado, que Williams (1991) consegue elaborar algo que a História e suas ciências auxiliares não conseguem.

Embora esta obra não nos sirva como material para especificar exatamente o que cada indivíduo que existiu naquele tempo histórico fez ou deixou de fazer, ao nível de seu cotidiano, e o que sentiram ou deixaram de sentir em dias específicos, ainda assim, há uma importância fundamental em estudá-la. O valor que existe em estudar esta obra reside justamente nesta capacidade do autor de detalhar e retratar, mesmo que apenas a nível estético e artístico, estes traços da organização social dos grupos primitivos de modo que consigamos contemplar o cotidiano e as singularidades daqueles grupos em ação. Tendo em vista todo o conhecimento histórico e cientificamente comprovado levantado pelo autor, é de se supor que os indivíduos agiriam de maneira muito semelhante ao que está retratado no livro.

Na obra de Williams (1991, p. 135), mais especificamente no conto de Tarac e Lirisa, temos uma noção de como era difícil a vida nas comunidades primitivas em decorrência da escassez de alimento por conta da época ruim para a caça. A obra diz o seguinte:

 

A época era difícil para caçar. Com tão poucos carneiros, precisavam usar seus talentos de caçadores para passar o inverno, mas logo descobriram por que os caçadores do lago tinham se mudado para passar o inverno em outro lugar. Ainda havia mais na floresta, mas quase todos os cervos tinham desaparecido. As presas mais comuns eram lebres e aves, e às vezes alguns javalis. Mas em meio às árvores nuas, caminhando pelo solo encharcado, a perseguição à caça era muito penosa. Passaram fome muitas vezes, mas estavam determinados a conservar o rebanho inteiro enquanto pudessem. Com um bom rebanho, disse Idrisil, ali seria um lugar muito melhor para criar carneiros do que para caçar. Não haveria limite para o número de carneiros que poderiam criar. Suas palavras eram cheias de coragem, mas soaram fracas quando eles olharam para o pequeno rebanho que lhes restava – dois machos, nove ovelhas e cinco cordeiros em crescimento, dois dos quais machos – naquela estranha e fria região montanhosa.

 

Se quisermos caracterizar a vida e organização social dos povos primitivos, é indispensável que voltemos nosso olhar para o primeiro estágio ou revolução econômica da história da humanidade que, segundo Childe (1977, p. 21-28), ocorreu há aproximadamente de 250.000 anos, no qual temos o surgimento do homem como animal raro e coletor, que era carnívoro e vivia parasitariamente, se alimentando de qualquer coisa disponível na natureza que pudesse nutri-lo. Chamamos esta economia de coletora, podendo também ser conhecida como selvageria. Ela corresponde a Idade Paleolítica (1º idade da pedra, idade da pedra lascada, ou período plistoceno).

Apesar das limitações que as informações apresentavam na época de sua obra, os achados de Childe (1977, p. 29-34) ainda nos permitem compreender o homem e o surgimento de suas primeiras há cerca de 500.000 anos, no que é entendido como o início da era plistocena. O homem presenciou mudanças na paisagem e na configuração da superfície terrestre. Alterações lentas e catastróficas no clima afetaram todo o planeta, e os processos inversos dessas modificações, como o desaparecimento de imensas massas de gelo, se fez com lentidão semelhante.

No que diz respeito as mudanças climáticas, a maioria dos geólogos admite hoje quatro principais Idades do Gelo, separadas por três intervalos com climas quentes. Nesse meio tempo entre Períodos Glaciais, o homem viu surgirem novas espécies, que sobreviveram graças à seleção natural, enquanto outras simplesmente sumiram. Esse processo de seleção natural se prolongou por várias gerações e de maneira lenta. Os elefantes, por exemplo, são famosos pela lentidão para crescer e se reproduzir (CHILDE, 1977, p. 29-34).

Os primeiros "homens" diferem radicalmente em sua estrutura óssea e isso fez com que zoólogos os classificassem como homínidas, ao invés de Homo sapiens. Os fósseis homínidas demonstram muitas características próprias dos macacos, das quais os homens prescindem. Há indícios de que o homem de Java já falava e atribua significados aos sons que eram socialmente convencionados. O cérebro apresentava protuberância na zona que lida com a fala (CHILDE, 1977, p. 29-34).

No plistoceno inferior, houve o aparecimento de espécies e gêneros intermediários entre o macaco e o homem. Até a ocorrência da última Idade do Gelo, só foram encontrados quatro fragmentos incompletos de fósseis hominídeos na Europa. A raridade dos fósseis humanos se comparada a de outros animais indica que o homem era um animal raro (CHILDE, 1977, p. 29-34).

Quilos de instrumentos feitos pelos primeiros hominídeos foram encontrados, mas isso não quer dizer que existiram muitos fabricantes destes instrumentos. Um único hominídeo podia usar e abandonar três ou quatro desses instrumentos por dia (CHILDE, 1977, p. 29-34).

As ferramentas evidenciam o desenvolvimento do equipamento extracorporal que propiciou o desenvolvimento da sociedade, configurando-se como um momento crítico o instante em que o homem controlou o processo químico de combustão (CHILDE, 1977, p. 29-34).

Não há provas da utilização do fogo entre os restos arqueológicos, mas, mesmo assim, na caverna de Chou-kou-tien, proximo a Pequim, ossos carbonizados indicam que mesmo o hominídeo Sinanthropus controlava e usava o fogo. Os primeiros instrumentos foram feitos a partir de objetos naturais apenas levemente modificados para o atendimento das necessidades humanas. Os de madeira inevitavelmente desapareceram, e os de pedra são de difícil identificação por se misturarem com facilidade aos seixos naturais (CHILDE, 1977, p. 29-34).

Conforme dito por Childe (1977, p. 29-34), no plistoceno inferior, ainda que existissem pedras que receberam formas mais definidas e com clara finalidade útil e inteligente, não se sabe qual era sua utilização exatamente. Naquele momento histórico, uma mesma ferramenta servia para uma variedade de atividades. Aos poucos, foi percebendo-se aperfeiçoamentos provenientes do acúmulo do conhecimento e da habilidade. O homem aprendeu a obter lascas mais finas com golpes de uma acha de madeira, por exemplo. Os métodos de trabalhar a pederneira foram se diferenciando a depender da sociedade em que era realizado este tipo de trabalho, em decorrência das diferentes tradições sociais que existiam nas diferentes sociedades.

As tradições sociais divergiam uma da outra e eram reflexos dos diferentes ambientes dos quais surgiram. Elas são essencialmente convencionais e condicionadas por tradições sociais distintas. Por exemplo, não há fator climático ou ambiental que obrigue quem faz um instrumento a usar o núcleo de uma pedra ou as lascas que dele são separadas, mas, mesmo assim, são surpreendentes a uniformidade e a continuidade de cada um destes instrumentos. As evidências apontam para um possível intercâmbio entre os grupos esparsos, ocorrendo aí uma permuta de ideias e de experiência técnica (CHILDE, 1977, p. 29-34).

Na obra de Williams (1991, p. 122-128) temos um claro exemplo de como as diferentes tradições sociais se chocavam quando diferentes grupos se encontravam em um mesmo território. Idrisil, que pertencia a um grupo de pastores, em uma viagem se depararam com caçadores, e houve ali grande estranhamento sobre as maneiras divergentes com as quais eles lidavam com os animais. Eles não se compreendiam, pois não falavam a mesma língua e estavam em momentos diferentes no desenvolvimento das forças produtivas. A tensão que existia nas interações entre os dois grupos era palpável, porém, em um gesto de gentileza, Idrisil e seu grupo ofertaram leite em uma tigela aos caçadores, como sugere o trecho abaixo:

 

Idrisil deu um sorriso. Esse caçador grosseiro não era nada estúpido. Embora seu povo ainda vivesse mais como animais que como gente, só caçando e coletando, sem conhecer nada da criação de rebanhos e da plantação de cereais, ainda assim eram homens capazes de compreender. Ele sabia o que o caçador estava indicando, que seu povo não atacaria os carneiros. Isto posto, a tigela era uma oferenda pequena. Ele tornou a estendê-la, e dessa vez o caçador aceitou a tigela, sorrindo. Chegou até a inclinar a cabeça e a cheirar o leite, mas sem se esforçar para esconder sua reação ao cheiro. Os dois riram e tornaram a apertar as mãos. Depois o caçador voltou para junto de seus amigos e os pastores ficaram olhando enquanto eles se afastavam por entre as árvores até desaparecer.

 

Segundo Childe (1977, p. 35-40), muitos dos instrumentos posteriores mostram extraordinário cuidado e delicadeza na sua confecção o que indica que seus fabricantes procuravam fazer algo que fosse tão belo quanto útil. Os instrumentos eram também um trabalho de arte, expressavam um sentimento estético que estava condicionado pelas tradições dos grupos que os utilizava. Evidências apontam que os autores destas ferramentas devem ter sido muito próximos do homem de hoje, podendo ter sido nossos ancestrais na cadeia evolutiva.

Os primeiros hominídeos eram coletores e usavam machados para arrancar raízes comestíveis e para caçar. O Sinanthropus era provavelmente carnívoro, pois os membros encontrados em suas cavernas parecem ter sido desmembrados de maneira proposital. Entre os ossos estão presentes os ossos de outros hominídeos, o que aponta para um comportamento canibal (CHILDE, 1977, p. 35-40).

Os hominídeos eram onívoros, ou seja, comiam tudo aquele que conseguiam, mas mesmo assim era necessário passar, de uma geração para outra, conhecimentos como: o que era seguro comer e o que não era, como conseguir o alimento adequado, o reconhecimento das épocas e estações certas, entre outros. Estes se constituíram nos primeiros passos em direção à ciência (CHILDE, 1977, p. 35-40).

No fim do plistoceno médio, há cerca de 140.000 anos, ao se aproximar da última Era Glacial, o homem já estava bem equipado para expulsar outros moradores das cavernas, tomando o lugar deles e fazendo destas cavernas suas moradias. Os grupos mais bem conhecidos de hominídeos provavelmente são da raça chamada de Neandertal, bem distinta do Homo sapiens fisiologicamente (CHILDE, 1977, p. 35-40).

Há quem acredite que o homem de Neandertal representa uma espécie diferente da humanidade que se adaptou a vida no Ártico e desapareceu junto a essas condições. Apesar disso, há vestígios de alguns hominídeos com muitas das características de Neandertal. Enquanto alguns antropólogos se inclinam a considerá-los uma fase da evolução do Homo sapiens, outros consideram-nos como ramos anômalos do troco humano principal que desapareceram com o tempo. Alguns fosseis da Palestina, no entanto, sugerem uma hibridação com o Homo sapiens (CHILDE, 1977, p. 35-40).

O homem de Neandertal e seus contemporâneos no paleolítico médio possuíam um equipamento mais variado e especializado que incluía armas (pontas de lança) e instrumentos distintos para raspar e desbastar. A maioria deles era feito de pedra lascada, por um processo engenhoso chamado de técnica de Levallois, que requeria muita perspicácia e planejamento científico (CHILDE, 1977, p. 35-40).

Os homens de Neandertal da Europa viviam da caça do mamute, rinoceronte lanudo e outros animais de pele dura que pastavam pelas tundras que ficavam às margens do lençol de gelo da Europa e na Sibéria. Estes homens precisavam caçar em conjunto, de maneira organizada, mesmo que seu número fosse pequeno, visto que sua economia exigia algum grau de organização social. Sem este movimento conjunto, a sobrevivência do grupo estaria comprometida (CHILDE, 1977, p. 35-40).

Os homens de Neandertal também necessitavam de uma cultura espiritual. Idealizaram e consagraram socialmente ritos fúnebres para seus parentes mortos. Eles os enterravam em sepulturas feitas especificamente para isto, colocando pedras para proteção dos corpos da pressão da terra (CHILDE, 1977, p. 35-40).

Os homens de Neandertal podem ter imaginado que a vida continuava após a morte, e que seus parentes falecidos experimentavam as mesmas necessidades que os vivos. Do paleolítico médio em diante, as cerimônias fúnebres vão evoluindo até chegarem ao que temos no momento atual, representando um complexo de ideias que, mesmo tendo sido alteradas pela transmissão, contam com pelo menos cem mil anos de idade (CHILDE, 1977, p. 35-40).

Em algumas cavernas alpinas, foram achados montes de ossos e crânios de ursos da caverna dispostos de maneira que parecia ritualística. A arrumação sugere a realização de cerimônias que são presentes até hoje nas tribos caçadoras da Sibéria para afastar a ira do espírito do urso e garantir a multiplicação da caça deste animal (CHILDE, 1977, p. 35-40).

O homem de Neandertal e suas tradições desapareceram abruptamente da Europa com o fim da primeira fase da última idade glacial. No período seguinte, surgiu o homem moderno completamente formado, com esqueletos semelhantes ao de espécimes recentes encontrando em um museu anatômico (CHILDE, 1977, p. 35-40).

O homem moderno apareceu já com variedades distintas ou raças. Os anatomistas encontraram as raças Grimaldi, Cro-Magnon, Combe Capelle, Brünn e Chancelade, cada uma com características específicas que as distinguiam. A variedade destes primitivos homens modernos indica que os ancestrais diretos do Homo sapiens já estavam em evolução durante o plistoceno, mesmo que as evidências encontradas até então sejam mais próximas do homem de Neandertal (CHILDE, 1977, p. 35-40).

Ainda segundo Childe (1977, p. 35-40), o homem moderno surge no paleolítico superior muito melhor equipado do que os grupos anteriores, do paleolítico médio e inferior. Os instrumentos indicam tradições sociais divergentes que surgiram em reação a ambientes diversos. Destacam-se as seguintes culturas: 1) chatelperronense, da França; 2) a aurignaciana, da Ásia anterior, Criméia, Balcãs, Europa central após o chatelperronense, na França; 3) a gravetense, da zona pôntica setentrional; 4) a aterense, da África e, mais tarde, a capsense, da África setentrional. Posteriormente, surgem outras culturas locais, em especial a solutrense e a madalenense, na Europa ocidental.

O uso do osso e do marfim para ferramentas e as tradições que caracterizavam o trabalho com pederneira são comuns a todas as sociedades do paleolítico superior. Era comum a todos estes grupos, também, um instrumento conhecido como buril ou gravador, ele consistia em uma lâmina que se aguçava retirando uma faceta numa das bordas, podendo ser aguçada ou afiada diversas vezes, simplesmente removendo-se a outra faceta (CHILDE, 1977, p. 35-40).

As sociedades do paleolítico superior ainda devem ser consideradas selvagens, pois sua sobrevivência era proveniente da caça, da pesca e da coleta. Seus métodos e equipamentos se transformaram com a experiência coletiva das gerações passadas. Estas sociedades passaram a aproveitar-se das condições naturais e a preparar instrumentos novos e engenhosos (CHILDE, 1977, p. 35-40).

As várias sociedades caçadoras da Europa tinham de enfrentar os rigores de um clima subártico causado por um grande lençol de gelo que cobria as planícies do Norte. Apesar das desvantagens, com preparo eles penetraram num território de estepes e tundras onde encontraram presa fácil para caçadas organizadas, como os mamutes, por exemplo (CHILDE, 1977, p. 35-40).

A proteção artificial contra o frio era proporcionada pelas tendas feitas de peles ou por "casas" cavadas no solo macio e cobertas com pelos e palhas, semelhante as habitações dos caçadores do ártico de hoje. Por falta de madeira, os caçadores queimavam ossos para se aquecerem. Eles conseguiam fazer roupas de pele pois possuíam raspadoras e agulhas para prepará-las e então cozê-las (CHILDE, 1977, p. 35-40).

Segundo Leacock (in Engels 2012, p. 246-251), para as comunidades primitivas é central que o grupo se organize de forma que haja parentes com quem é possível casar e outros com quem não se pode. Ela explica que para Lewis Henry Morgan a organização do parentesco indicava uma relação biológica existente entre os membros. Ele percebeu que em algumas sociedades o termo “pai” não era utilizado só para o pai biológico, mas também para irmãos e primos masculinos que moravam junto a mãe de uma pessoa, de forma similar acontecia com os membros femininos e o termo “mãe”. Morgan encontrou quatro formas de família que surgiam sucessivamente após uma promiscuidade original, quais sejam: a família consanguínea, punaluana, sindiásmica e a monogâmica.

A família consanguínea, ou o casamento de irmãos e primos, surgiu com a proibição das relações sexuais entre pais e filhas e entre mães e filhos. A família punaluana, surgiu da proibição das relações sexuais entre irmãos. A família sindiásmica incluiu no grupo de incesto irmãos e irmãs colaterais, e por último, surgiu a monogamia como a conhecemos (LEACOCK, in Engels 2012, p. 246-251).

As hipóteses concebidas por Morgan no que diz respeito às funções terminológicas do parentesco e acerca dos tabus do incesto não podem ser consideradas de fato um reflexo da organização social primitiva em seus primórdios. Leacock (in Engels 2012, p. 246-251) entendia que as terminologias utilizadas por Morgan para organizar o parentesco entre os povos do Havaí, por exemplo, não foram suficientes para refletir o que era o sistema de parentesco entre os povos primitivos. Os casamentos entre irmãos que ocorriam em sociedades como a Polinésia e o Havaí, geralmente entre líderes, tinham a intenção de preservar a linhagem sanguínea, e em alguns casos, até mesmo de preservar a propriedade, o que indicava sociedades que já não eram mais selvagens

Para Leacock (in Engels 2012, p. 246-251), Morgan entendia que a proibição do incesto era instintiva e operava de acordo com a seleção natural. Engels foi além, e entendeu que “incesto” era algo inventado, e que a maneira como entendemos incesto é diferente da maneira como aquelas sociedades entendiam. Leacock (in Engels 2012, p. 246-251) vai além e explica que, na verdade, para as famílias primitivas que consideravam o parentesco apenas de um lado, existia uma gama de primos elegíveis para casamento por serem considerados fora da linha de parentesco. Casar-se com estes primos era uma forma de estreitar os laços do grupo. Um primo que estava fora da linha de parentesco de algum outro integrante do grupo, ao casar-se, poderia se conectar a este e a diversos outros membros da comunidade, estreitando ainda mais seus laços.

Os sistemas de parentesco, na verdade, revelam relações sociais e econômicas existentes nas comunidades primitivas. Elas não são meramente uma maneira de categorizar com quem se pode casar ou não, muito menos um reflexo das operações da seleção natural. Designar alguém pai, filho, ou irmão, era muito mais do que um título, implicava em responsabilidades dentro do grupo, de um integrante para com o outro (LEACOCK, in Engels 2012, p. 246-251).

As forças sociais não são novidades para a humanidade, de fato, é somente através do trabalho que o surge o ser social propriamente dito. É, inclusive, através do trabalho que o homem foi capaz de deixar de ser simplesmente um primata vivo, curioso, sociável e falante que possuía um polegar opositor e visão estereoscópica para tornar-se um ser social capaz de manipular o meio e a si mesmo, desenvolver linguagens e tradições culturais, além de desenvolver seu próprio corpo e relações sociais, sexuais e de parentesco. Os caçadores e coletores provavelmente viveram em grupos comunais pequenos, mas não podemos afirmar com certeza como seus vínculos especificamente eram organizados (LEACOCK, in Engels 2012, p. 246-251).

Leacock (in Engels 2012, p. 237-241) explica que os estudos deixados por Morgan mostravam que não havia a paixão pela propriedade nos primeiros estágios da sociedade. Engels complementa esta ideia afirmando que as relações de produção eram coletivas essencialmente. Além de não existirem classes sociais, o trabalho era dividido pelos sexos. Existia uma distribuição de bens direta através da qual se dava o consumo em pequenos grupos no comunismo primitivo. A terra era propriedade comum e os instrumentos e ferramentas utilizados para a realização do trabalho eram posse de quem os utilizava diretamente.

A autora cita os postulados de Frank G. Speck (1926, apud LEACOCK, in Engels 2012, p. 241-243) e Eiseley (1939, apud LEACOCK, in Engels 2012, p. 241-243) que tentou, em suas obras, usar as divisões de terras e territórios de caça dos montagnais como prova de que o comunismo primitivo nunca houvera existido pois estes eram um tipo de propriedade individual que passava de geração em geração. Leacock, no entanto, realizou uma meticuclosa pesquisa acerca dos montagnais e constatou que o sistema de territórios de caça surgiu em decorrência do contato com o comércio de peles europeu, não implicando necessariamente em uma posse efetiva de terra dos montagnais.

Segundo Leacock (in Engels 2012, p. 237-241), não se podia montar armadilhas para obter peles no território do outro, mas era permitido a todos abater animais de caça, pescar, colher madeira, frutos ou cortiça das árvores nestes mesmos territórios. Os produtos obtidos deveriam ser estritamente destinados ao uso.

 

 

Sobre o comportamento dos montagnais em relação a terra, Leacock afirma que:

  1. Era permitido caçar no território do outro desde que para consumo
  1. No verão, grupos grandes de índios se reuniam a beira de lagos e na foz de rios
  1. No outono, os grupos se dividiam em pequenos bandos familiares para subir o rio em direção ao interior
  1. Se dividiam para não causar uma hiperpopulação e comprometer a sobrevivência uns dos outros com a decorrente escassez de recursos para garantia da subsistência
  1. Mesmo separados, mantinham contato suficiente para ajudar uns aos outros, caso necessário.

Tabela 1                     

 

Ainda de acordo Leacock (in Engels 2012, p. 252-258), existem três tipos de matrimônio que correspondem aos três estágios da evolução humana. O casamento por grupo para os selvagens, o casamento sindiásmico para os bárbaros, e o monogâmico para a civilização. Na civilização, ocorre a subjugação das mulheres equiparando sua condição a de escravas2 dos homens. A monogamia, desde o começo, foi imposta somente as mulheres. Da mesma maneira, desde os primórdios já existiam o adultério e a prostituição. A poligamia que, nos tempos clássicos, era algo aberto para a sociedade tornou-se encoberta. A monogamia se tornou um símbolo da supremacia masculina.

A família nuclear passou a constituir a unidade básica da sociedade de classes, na qual uma mulher e seus filhos tornam-se dependentes de um homem. A descendência passou da matrilinearidade para a patrilinearidade. A posição das mulheres na sociedade se deteriorou em relação aos homens com o surgimento da sociedade de classes (LEACOCK, in Engels 2012, p. 252-258).

Se tratando do casamento por grupos, para alguém que observa superficialmente, ele pode parecer uma monogamia de laços frouxos, ou uma poligamia com infidelidade ocasional. Um homem que viajasse longas distâncias e adentrasse os acampamentos de outros grupos, não deixaria de encontrar mulheres que se entregassem a ele por vontade própria, mesmo entre povos cuja linguagem ele não fosse capaz de compreender. O casamento funciona como um emparelhamento de laços frouxos e o potencial para casar é definido a partir do nascimento, com sua determinação dependendo da classe de casamento ao qual os indivíduos pertencem. Este é o caso da Austrália, por exemplo (LEACOCK, in Engels 2012, p. 252-258).

As classes de casamento australianas eram mais complexas do que o que é encontrado entre outros caçadores-coletores, e permitiam que o indivíduo conseguisse se encaixar no sistema de parentesco de outros grupos sem problemas. O divórcio era simples e deveria partir da vontade de um dos parceiros, apesar de isso não ser algo comum. A morte é que provocava os fins das relações. Os relacionamentos eram, via de regra, amorosos e afetuosos. Não existia exclusividade sexual e a mulher era livre para deitar com os homens que quisesse sendo ela solteira ou esposa de um anfitrião. Isto é erroneamente entendido como uma prova da inferioridade da mulher, o que revela uma análise etnocêntrica e moralista que presume que as mulheres não desfrutavam de prazer sexual ou se beneficiavam tanto quanto os homens de uma maior variedade de parceiros (LEACOCK, in Engels 2012, p. 252-258).

No casamento sindiásmico houveram mais restrições. O casamento passou a ser uma forma de consolidar a posição de um jovem par na gens1 ou no clã. Os pais começaram a participar da escolha do cônjuge e a trocar bens materiais com a família do parceiro. Passou a existir maior resistência da sociedade com relação a separação, apesar da dissolução do casamento ser possível. Os parentes passaram a intervir mais (LEACOCK, in Engels 2012, p. 252-258).

O casamento sindiásmico faz parte da organização clânica dos povos agricultores. Existiam relações de produção e distribuição de bens comunais e as instituições passaram a ser necessárias para organizar as relações das aldeias de agricultores que tinham centenas de pessoas. Todos realizavam trabalho, apenas um chefe religioso ou curandeiro poderia se abster do trabalho de transformação do mundo natural para realizar outras atividades necessárias ao grupo em troca de uma pequena parcela da produção para sua subsistência. Quanto ao casamento, ele era exógamo (casava-se fora do grupo), e a unilinearidade determinava a descendência, de modo que ou se pertencia ao clã do pai ou ao clã da mãe. Isso era mais vantajoso no que diz respeito à sobrevivência dos grupos por várias gerações (LEACOCK, in Engels 2012, p. 252-258).

A família nuclear de pais e filhos já existia inserida nos clãs e aldeias. Bandos de parentes trabalhavam juntos nos campos e na caça, e trocavam alimentos e produtos manufaturados em festividades. O clã e a aldeia aceitavam a responsabilidade fundamental pelo bem-estar de todo e qualquer membro, e isso era encarado de forma natural. Porém, a linhagem de avós, pais e filhos, com cônjuges funcionava como unidade de trabalho no cotidiano (LEACOCK, in Engels,2012, p. 252-258).

O trabalho doméstico era comunal e a divisão do trabalho entre os sexos era marcada pela reciprocidade. As mulheres e seus filhos não eram dependentes economicamente de nenhum homem. Todo alimento, caça de grande porte e a produção do campo eram distribuídos igualmente entre as famílias, que se agrupavam em grupos maiores e compartilhavam grandes casas. Os caçadores-coletores faziam algo parecido quando em climas adversos, se abrigando em grandes conjuntos em tendas grandes ou abrigos semelhantes. As crianças faziam parte do grupo e ainda que ficassem órfãs não ficavam sem família. As mulheres não precisavam suportar injúrias de homens enfurecidos, elas podiam pedir que seus parentes fizessem justiça por ela ou ela podia simplesmente deixar o marido. Nas comunidades primitivas, não existia a separação que trancava a mulher no trabalho doméstico e privado, e permitia ao homem fazer o trabalho relativo à esfera pública. No comunismo primitivo, ambos os sexos trabalhavam em prol da sobrevivência e sustento do grupo. Não existia ainda produção de mercadorias para troca, a produção era apenas para o consumo (LEACOCK, in Engels 2012, p. 252-258).

A maior parte do alimento produzido era fornecido pelas mulheres. Os caçadores-coletores dependiam do alimento vegetal coletado pelas mulheres para complementar a alimentação proveniente da carne do animal caçado. Em sociedades horticultoras, era comum também que as mulheres produzissem a maior parte da lavoura. Na sociedade comunal primitiva, quem tomava as decisões era quem executava as ações, e isso conferia às mulheres grande influência e poder de decisão, visto que elas forneciam grande parte do da produção do grupo (LEACOCK, in Engels 2012, p. 252-258).

Ainda de acordo com Leacock (in Engels 2012, p. 252-258), nas sociedades primitivas, os homens tomavam decisões sobre a caça e a guerra, mas isso não quer dizer que as mulheres não tinham autonomia ou um papel importante na tomada de decisões. Os homens não eram “governantes” do grupo. De fato, nos clãs dos povos horticultores, era comum a matrilinearidade e as decisões políticas contavam com a participação formal das mulheres. Alguns estudiosos veem nisso, erroneamente, uma justificativa para a existência de um matriarcado anterior a sociedade patriarcal, mas é importante ressaltar a diferença entre matrilinearidade e matriarcado. O primeiro trata-se apenas da linha de descendência que organizava os sistemas de parentesco, o último nunca existiu, pois não houveram sociedades estratificadas em que mulheres subjugaram os homens. Os sistemas matrilineares cederam aos patrilineares com o surgimento das relações de exploração da sociedade de classes.

Para Leacock (in Engels 2012, p. 259-264), entende-se de forma padrão que as sociedades horticultoras eram matrilineares e matrilocais porque era das atividades produtivas das mulheres nas lavouras que provinha a maior quantidade de alimentos. Ao mesmo tempo, entende-se também de forma padrão que nas sociedades de caçadores-coletores, predomina a patrilocalidade, tendo em vista o papel central da caça. Todavia, é importante destacar que é possível encontrar sociedades de caçadores-coletores que eram matrilocais, e que só deixaram de ser após contato com os europeus. Nas comunidades primitivas, tanto homens como mulheres poderiam se casar fora de seu bando, a depender da organização do sistema de parentesco de cada tribo.

Como demonstra Leacock (in Engels 2012, p. 260-261) nos estudos acerca dos povos do Noroeste da Austrália, existe uma concepção errônea que entende que as mulheres são inferiores por não participarem de cerimônias dos homens ou de assuntos políticos. Porém, os homens também ficam de fora de rituais secretos das mulheres. Enquanto a guerra e os encontros formais ficam a cargo dos homens, as mulheres mais velhas e homens mais velhos participam da resolução de problemas intragrupais. Existem restrições para ambos os sexos em relação a com quem se pode casar e, além disso, ambos os sexos podem ter relações pré-maritais e tomar a iniciativa. As mulheres australianas, por exemplo, eram autônomas e participavam dos assuntos de seu povo, tendo consciência de seus direitos e responsabilidades.

Um outro exemplo é encontrado entre os esquimós. Ao contrário da crença comum de que as mulheres esquimós eram subservientes, é possível encontrar biografias de mulheres que demonstram alto grau de autonomia e independência de ação, além de considerável liberdade para escolher e flexibilidade para a tomada de iniciativa na condução de suas próprias vidas (LEACOCK, in Engels 2012, p. 260-261).

Entre os montagnais naskapi do Labrador, as mulheres tinham grande influência, tendo em suas mãos o poder de escolha de planos, atividades, viagens e invernadas. Além disso, os missionários jesuítas tentavam influenciar os homens montagnais contra a liberdade sexual predominante das mulheres daquela sociedade. Eles falavam aos homens sobre a importância de saber que um filho era seu de fato, mas os montagnais surpreenderam os missionários ao explicarem que em sua tribo, todas crianças da tribo importavam, não apenas aquelas que são consanguíneas. A paternidade na sociedade primitiva era tida em seu sentido social e não biológico (LEACOCK, in Engels 2012, p. 260-261).

As tradições de autonomia individual, ajuda mútua e responsabilidade coletiva no que diz respeito às crianças ainda existem entre os naskapi, apesar desta sociedade ter sofrido mudanças. Desafiando os estereótipos que determina que os homens caçam, e as mulheres coletam frutas e cuidam das crianças, Leacock (in Engels 2012, p. 259-264) observa o caso de um homem que cuida de sua criança, cantando carinhosa e pacientemente. O homem em nenhum momento parece inexperiente ou incomodado com sua atividade. Sua mulher, enquanto isso, curtia couro. Os homens sabiam cuidar e alimentar bebês, mas não sabiam curtir o couro nas sociedades montagnais.

O poder da mulher de gerar filhos tem sido fonte de admiração e medo desde o paleolítico superior, porém, a capacidade de dar à luz não trouxe respeito para as mulheres de nossa sociedade, e sim sua condição de oprimida. Da mesma forma trata-se a menstruação. Os homens a interpretação como sujeira a partir do julgamento de nossa cultura. Estas atitudes foram introduzidas pela primeira vez por missionários e comerciantes, levando os povos subjugados a aprenderem estas atitudes ao interagirem com os brancos (LEACOCK, in Engels 2012, p. 259-264).

Na religião de um povo da Nova Guiné, é comum encontrar homens que simulam um período de menstruação, tendo sangue extraído de seu pênis ou outras partes do corpo (a depender do grupo), passando um ritual em que se afastam das atividades rotineiras, guardam certos tabus e depois retornam renovados (LEACOCK, in Engels 2012, p. 259-264).

A capacidade de dar à luz jamais foi um entrave para nenhuma sociedade, nem mesmo a sociedade caçadora-coletora que tinham o mais baixo nível de desenvolvimento tecnológico. Com o desenvolvimento das relações de exploração, vemos esta mudança de perspectiva que está associada também ao declínio da importância da mulher na produção de alimentos, o crescimento do trabalho masculino na agricultura, a destruição do parentesco e da propriedade comunais em favor da família individual como unidade vulnerável, isolada e responsável economicamente pela manutenção de seus membros e pela criação de gerações novas. O trabalho feminino deixou de ser uma atividade socialmente necessária para ser trata como algo privado, que fica no espaço doméstico e separado da vida pública. O trabalho doméstico e outras atividades das mulheres chegaram a condições próximas à escravidão (LEACOCK, in Engels 2012, p. 259-264).

Segundo Leacock (in Engels 2012, p. 265-271), na passagem do matrimônio sindiásmico para a monogamia, foi também surgindo a nova divisão de trabalho que separou as pessoas em classes desiguais, que se relacionam de um modo que uma classe explora a outra. A família monogâmica é uma expressão da propriedade privada e ela fornece os meios para a herança individual. Com o declínio da atividade de caça e a substituição das mulheres na agricultura pelos homens, a família nuclear foi aos poucos se tornando a unidade econômica básica que é característica da sociedade de classes. Esta transição foi marcada pela destruição do direito materno em favor do direito paterno.

A subjugação e exploração das famílias de trabalhadores e o surgimento das classes superiores propiciaram as condições necessárias para o acúmulo de riqueza individual. Os homens da classe trabalhadora, estando em uma posição vulnerável, não podiam se contrapor a intensa exploração que sofriam nas mãos da classe dominante tendo em vista que tinham mulheres e filhos que dependiam deles economicamente além de terem a responsabilidade de sustentarem a si mesmos. (LEACOCK, in Engels 2012, p. 265-271)

O isolamento provocado pela organização da família individual, provoca sentimentos de ambivalência nos homens e mulheres, ainda mais quando as mulheres têm de trabalhar na indústria para ajudar no sustento familiar. A organização da sociedade de classes transforma o casamento em uma batalha constante que, consequentemente, embrutece o homem e o estimula à dominação mesquinha, enquanto que provoca amargura e raiva na mulher. Em comparação, nas sociedades pré-classe, as relações são marcadas predominantemente pela afetuosidade, o bem-estar, o respeito e a segurança. As relações conjugais de nossa sociedade tendem para a direção oposta destas características. Esta tendência é proveniente da estrutura social e não necessariamente da natureza do homem e da mulher. (LEACOCK, in Engels 2012, p. 265-271)

Segundo Leacock (in Engels 2012, p. 242-246), alguns estudiosos cometeram o engano de achar que porque existem hierarquias em algumas sociedades consideradas primitivas, isto necessariamente implicava dizer que aquela era uma sociedade estratificada. Na verdade, a hierarquização existia, porém ela não concedia privilégio algum ao indivíduo do grupo que ocupasse uma posição de liderança. Não havia um pequeno grupo dominante que vivia separado do resto do grupo.

A autora nos conta que outro ponto importante a ser analisado é que alguns povos considerados primitivos por alguns estudiosos, na verdade já não eram mais caçadores e coletores e já tinham ultrapassado, ou estavam próximos de ultrapassar, o limiar do Estado e da sociedade de classes. Leacock (in Engels 2012, p. 242-246) afirma que as análises de Morgan e de Engels ainda se centraram predominantemente nos povos eurasianos, o que os levou a desconsiderar os povos africanos. Para a autora, Morgan classificou erroneamente sociedades havaianas como selvagens só por estas não dominarem a cerâmica, apesar de já serem sociedades agricultoras.

Leacock (in Engels 2012, p. 242-246) aponta que um outro obstáculo para o entendimento acerca do comunismo primitivo e do materialismo histórico, surgiu a partir da escola antropológica da “cultura e da personalidade”, que se preocupava em entender de forma funcionalista o jogo de relações que existiam entre as instituições sociais e a formação da individualidade, caindo em um determinismo psicobiológico, que não se propunha a complementar as ideias marxistas mas servir como uma alternativa a ele. Os estudiosos deste momento histórico não levaram em consideração os aspectos socioeconômicos que atravessavam todas as áreas da vida social e do indivíduo. Ao organizarem-se para realizar trabalho e produzir o necessário para sua subsistência, os indivíduos teriam uma determinada dinâmica estabelecida entre eles pela produção que se estenderia por todas as outras áreas de suas vidas. Foram desconsiderados os pontos comuns entre as culturas dos povos e cada sociedade foi vista de forma desvencilhada do contexto mais amplo do trabalho e do materialismo histórico que apresentava suas semelhanças ontológicas.

Leacock (in Engels 2012, p. 242-246) no explica que os esquimós da Groelândia eram entendidos erroneamente como competitivos, quando na verdade, estavam sofrendo a influência do contato com o comércio de peles da Europa. Além disso, especialmente ao se tratar dos esquimós, muitos estudiosos confundiram individualismo com competitividade. Existia nestas comunidades de esquimós uma interdependência que permitia que eles se separassem fisicamente sem deixar de apoiar os outros membros do grupo mais amplo no processo. É costumeiro colocar a liberdade e a cooperatividade em polos opostos, quando na verdade, nas comunidades primitivas, elas existiam, de tal modo que era garantido o espaço para a expressão das individualidades.

No que diz respeito à participação das decisões do grupo, podemos citar um momento da obra de Williams (1991, p. 59-77), mais especificamente no conto “O lago de verão e o sangue novo”, no qual as personagens Varan e Adran, durante uma caçada de alces, saem em busca de um alce macho e separam-se do grupo mesmo quando o combinado havia sido de que a caça de uma fêmea de alce já tinha sido o suficiente para satisfazer as necessidades do grupo. Os dois jovens e fortes caçadores tiveram que ser deixados para trás pelo grupo pois ficar ali poderia ameaçar a sobrevivência coletiva. O grupo, mesmo não tendo sido consultado quando os jovens decidiram partir em busca do alce macho sozinhos, ainda sim se preocupava com eles e precisavam de sua presença, visto que eles eram membros de igual importância para aquele grupo. O bando esperou o máximo que pôde. Vemos que outra personagem, Gan, expressou forte discordância sobre deixá-los partir, visto que a situação era muito perigosa – dois homens não seriam capazes de abater um alce e transportá-lo sozinhos. Este trecho da leitura serve para nos mostrar que mesmo nas comunidades primitivas, pautadas na igualdade, havia espaço para a discordância, individualidade e autonomia. Esta autonomia é identificada tanto no momento em que os dois rapazes se separam do grupo, quanto no momento em que o grupo, mesmo decidindo seguir sem eles, ainda demonstra muitas preocupações e pesar diante do desaparecimento dos rapazes.

Outro momento da leitura da obra de Williams (1991, p. 45-55) que nos permitiu evidenciar o caráter coletivo da tomada de decisões nos bandos primitivos foi o conto “Varan à beira dos grandes gelos”, que narra parte da história das personagens Varan e sua esposa Almet. Eles pertencem a um grupo de caçadores e coletores que estão desbravando as proximidades das Montanhas Negras a procura de caça. Eles atravessam o primeiro e segundo rio-mar em buscar de caça, porém, chegam a lugares muito gélidos onde dificilmente encontrariam manadas para caçar. Conseguem pescar alguns peixes e isso é suficiente para alimentação do bando de Varan naquele momento, mas a pescaria não elimina as complicações de não encontrar uma manada. Existe uma história conhecida por eles, a história de Laran e Ragod, que determina o percurso que eles estão realizando e que indicava que aquele era um local no qual eles achariam animais para caçar mesmo com o tempo frio. Almet está grávida e está em trabalho de parto durante a história. Existe uma preocupação com o sexo do bebê, pois isto pode comprometer a sobrevivência do grupo. As condições na qual o grupo se encontra exigem que o filho de Almet seja um menino. Caso seja uma menina, eles não poderão mantê-la. As mulheres acreditam que Almet deve ficar com o bebê mesmo que seja uma menina. Os homens acham que não há maneira. Todos deliberam e decidem em conjunto sobre esta questão. Varan, que parece exercer um papel de liderança na questão, decide esperar mais uma lua para encontrar caçada, pois, assim, poderiam manter a menina. Do contrário, iriam para o sul, e as mulheres permaneceriam aonde estavam, alimentando-se de peixe. Mais uma vez identificamos que, apesar do caráter igualitário que existia no comunismo primitivo, ainda assim existia um espaço para a divergência de opiniões. Mesmo que houvesse divergência, as decisões eram tomadas de forma conjunta. Todos estavam envolvidos com as decisões tomadas pelo grupo. Também vemos aí a autonomia que existia dentro do grupo quando percebemos na história como eles poderiam se dividir ou se reunir à medida que as circunstâncias iam exigindo do grupo novas maneiras de se organizar. As mulheres ficariam para trás, mas não porque seriam abandonadas para morrer, e sim porque Varan confiava que elas eram capazes e autônomas o suficiente para sobreviverem por conta própria enquanto eles tentavam ir ao sul procurar por manadas. Também percebemos que, apesar de a sobrevivência do grupo ser priorizada, isso não significava dizer que eles iriam ignorar uma vida individual em benefício da sobrevivência do grupo. Sacrificar um integrante ou deixá-lo para trás era um último recurso, pelo qual o grupo evitava optar. Tudo isso, vale ressaltar, em um contexto no qual o desenvolvimento das forças produtivas era muito baixo.

Ainda se tratando das tradições sociais, é possível perceber entre os diversos grupos de caçadores e coletores, divergências de tradição que afetam a cultura material de cada um deles. Um exemplo disso é perceber como os estadunidenses usam seus talheres de maneira diferente dos ingleses. Esta diferença está presente até mesmo nos detalhes mais insignificantes dos instrumentos criados socialmente. Ainda que o trabalho realizado seja o mesmo, o manuseio dos instrumentos é diverso. As diferenças são, portanto, puramente convencionais e refletem divergências na tradição social que se expressam concretamente nas formas das ferramentas utilizadas (CHILDE,1977, p. 15-20).

Segundo Childe (1977, p. 21-29), cada sociedade reage às exigências de seu meio específico e graças a isso desenvolvem-se processos e recursos que caracterizam as tradições das diferentes sociedades. As invenções e descobertas não ficam limitadas a um determinado grupo ou região, elas podem transpor as barreiras linguísticas e geográficas. Quando uma sociedade sai de uma região para outra e entra em contato com uma nova sociedade, a tendência é a de que as tradições dos imigrantes se fundam as dos nativos. A riqueza de nossas tradições resulta em grande parte da difusão de diferentes ideias provenientes de diferentes culturas. Nossa tradição alimentar, por exemplo, foi enriquecida graças às culturas provenientes dos quatro quadrantes da Terra.

A cultura se torna cada vez mais diversificada com a diferenciação das sociedades em consequência de estímulos geográficos, técnicos ou ideológicos. Apesar das correntes da tradição cultural continuarem a se multiplicar, elas tendem a convergir cada vez mais, fluindo como um único rio. As culturas vão se fundindo para tornar-se uma cultura maior. Uma cultura só se tornou dominante e assumiu um papel de “corrente principal” porque sua tradição cultural captou e transformou em tributário um volume maior de tradições antes paralelas (CHILDE, 1977, p. 21-29).

Ao analisarmos cuidadosamente as tradições sociais, perceberemos que existe uma tendência mais direcionada no campo da economia, principalmente ao verificarmos as maneiras com as quais as sociedades mais progressistas garantiam sua sobrevivência, que vão desde inovações radicais no desenvolvimento das forças produtivas a aumentos populacionais. Estas inovações, que foram revolucionárias para aquele momento da História, podem ser usadas para distinguir fases ou estágios no processo histórico. Podemos chamar estes estágios também de revoluções econômicas (CHILDE, 1977, p. 21-29).

Segundo Childe (1977, p. 47-51), os selvagens progrediram muito lentamente de tal modo que apenas as sociedades que passaram por uma revolução econômica significativa é que tiveram maior progresso.

Os madalenianos, por exemplo, tiveram um inesperado momento de abundância graças às condições favoráveis que surgiram, porém, estas condições desapareceram e de nada a cultura espiritual ou a magia serviu para aumentar os víveres. Inevitavelmente, a selvageria como economia levava a um impasse, uma contradição, que impedia o progresso (CHILDE, 1977, p. 47-51).

Tribos isoladas viveram arduamente com uma economia paleolítica. Apesar de não ser possível dizer com perfeita exatidão quais crenças existiam ou qual era sua organização, é possível deduzir que uma ideologia impulsionava as operações na economia de coleta destas sociedades (CHILDE, 1977, p. 47-51).

As tribos selvagens contemporâneas se organizam em clãs e são mais estáveis. Todos os membros são parentes e são misticamente descendentes de um antepassado totem. O sistema de parentesco é classificatório e geralmente segue pela linhagem masculina. O parentesco determina os direitos e deveres dos membros. (CHILDE, 1977, p. 47-51)

O pai biológico e os tios paternos são todos chamados de pai, enquanto os primos paternos de primeiro e segundo grau são irmãos. Para ser considerado um membro, deve haver ligação sanguínea e também existe um ritual de iniciação que ocorre na puberdade. O parentesco é mais ou menos fictício. (CHILDE, 1977, p. 47-51)

As zonas de caça e pesca, e os alimentos nela obtidos, são de propriedade e utilização comum. Mas existe propriedade pessoal de armas, vasilhas, adornos, talismãs e danças. (CHILDE, 1977, p. 47-51)

Entre os selvagens, parece que o símbolo era confundido com o resultado. O selvagem agia como se pudesse, através dos feitiços e rituais, controlar os fenômenos da natureza. Sua ideologia se expressava em feitiços (palavras) e ritos (atos imitativos). As divindades poderiam ser representadas e personificadas e as palavras faladas em ritos poderiam virar mitos.

Segundo Childe (1977, p. 47-51), a mágica não produz os resultados almejados por seus praticantes, mas tem uma utilidade social: dar confiança aos caçadores, estimular a abstinência e a solidariedade social. Apesar disso, é importante ressaltar que existe muita variedade entre a cultura material e espiritual dos selvagens, não dá para definir a religião e a organização social de todos.

O autor explica que a solução do impasse da selvageria foi a revolução econômica proporcionada pelas mulheres que descobriram a agricultura, plantando sementes e ervas silvestres deliberadamente, cuidando da terra semeada contra ervas daninhas e outras ameaças. Isso aumentou a quantidade víveres significativamente (CHILDE, 1977, p. 47-51).

 

É possível perceber nitidamente que há diferenças essenciais na organização social dos caçadores e coletores quando comparadas a sociedade contemporânea. No comunismo primitivo, o respeito à individualidade dava aos sujeitos alguma liberdade para ir e vir como preferissem, longe da ideia de que no comunismo primitivo todos são iguais e não existe espaço para a diferença. É perceptível, também, que o compromisso com os interesses coletivos era algo muito importante para os indivíduos que pertenciam a comunidade, muito mais do que simplesmente agir por contra própria sem pensar nas consequências. Até mesmo quando os indivíduos se separam do grupo e tentam agir de maneira independente, o fazem pensando no bem coletivo. Quando comparamos as comunidades primitivas em relação a sociedade capitalista, vemos uma clara distinção entre individualidade e individualismo. Os caçadores e coletores, longe de viverem em um ambiente social homogêneo, respeitavam a individualidade e a entendiam como algo positivo. Já no capitalismo a individualidade é exaltada em detrimento de outras individualidades que passam a ser marginalizadas e roubadas de seu protagonismo no meio social. A individualidade aqui se exacerba e se volta mais para o individualismo egoísta, que não carrega em si outra intenção senão o ganho pessoal, desinteressado pelo outro.

Leacock (in Engels 2012, p. 283-284) nos diz que para a superação desta sociedade é preciso investigar e estudar laboriosamente sobre a unidade econômica da família como base da opressão das mulheres, as possibilidades da eliminação da produção de mercadorias e a alienação das relações interpessoais que provém dela em nível tecnológico avançado, da superação da contradição entre cidade e campo sem a transformação do mundo em um grande subúrbio, e da eliminação do Estado. Infelizmente, a produção ainda é controlada por leis cegas que atuam com violência pura e simples. É preciso que entendamos, como Leacock mostra ao citar Engels, que quanto mais uma atividade social escapar ao controle consciente do homem, como se fosse mero fruto do acaso, mais as leis próprias deste mesmo acaso se manifestarão como necessidade natural.

Segundo Leacock (in Engels 2012, 284-289), para que humanidade sobreviva é necessário que os revolucionários dominem as leis sociais tanto nos países capitalistas e neocoloniais quanto nos países socialistas.

Na estrutura da sociedade organizada pelos laços de parentesco, a produtividade aumenta ininterruptamente ao mesmo passo que se desenvolvem a propriedade privada, as trocas, as diferenças de riqueza, a exploração do trabalho alheio e o antagonismo das classes (LEACOCK, in Engels 2012, 284-289). Se observarmos as linhas gerais que configuram a transição da sociedade comunal para uma sociedade de classe em várias sociedades distintas, teremos:

 

Base para a sociedade de classes

  1. Decomposição do grupo corporativo de parentesco em famílias individuais
  1. Individualização dos direitos de propriedade
  1. Inferiorização da condição das mulheres
  1. Fortalecimento da hierarquia
  1. Usurpação dos poderes pelos chefes

            Tabela 2

 

No entanto, Leacock (in Engels 2012, 284-289) ressalta que existem limitações nestas reconstruções, pois estes ainda se tratam de dados muito antigos, do século XIX, tidos como instituições intactas. Além disso, a autora menciona que não se pode fazer uma análise mecanizada da realidade, lançando mão de dados numéricos, e muitas vezes arbitrários, como provas que caracterizam um determinado momento histórico.

Ao invés procurar comparar dados estatísticos, que revelam apenas aspectos superficiais das situações, Leacock (in Engels 2012, 284-289) explica que precisamos olhar em profundidade, para além do que está posto, se adentrando no nível dos mecanismos determinados, dos processos ocultos à primeira vista. As considerações teóricas, as hipóteses sobre leis e processos sociais devem ser entendidas a partir da perspectiva do materialismo histórico.

Leacock (in Engels 2012, 284-289) recomenda que não cometamos o erro de analisar o homem de um ponto de vida meramente material, sem levar em consideração sua cultura, história ou ciência. É preciso se atentar às interações entre ideologia e estrutura socioeconômica, reconhecendo o papel da consciência no processo histórico evitando, desta forma, fazer uma análise sob uma perspectiva materialista mecânica.

A autora explica que, ao estudar períodos remotos, é importante se atentar para as ambiguidades e irregularidades que existem nos dados arqueológicos e históricos. É primordial estar atento as tensões internas, as opções alternativas, e a perspectivas ideológicas revolucionárias e conservadoras que definiram como, quando e onde as mudanças principais iniciaram. Para compreensão de nosso tempo, é preciso entender as tensões internas ao sistema, seus entendimentos e desentendimentos (LEACOCK, in Engels 2012, 284-289).

Conforme dito por Leacock (in Engels 2012, p. 294), a consciência e intencionalidade humanas trazem uma complexidade para as operações da sociedade que não existe no resto da natureza. A humanidade, se quiser sair desta desordem na qual entrou, precisará pensar, a partir de uma compreensão marxista, o atual estágio da história e os demais momentos históricos.

No que diz respeito ao caráter particular da opressão das mulheres pelos homens, Leacock (in Engels, p. 265-271) afirma que ela só ficará clara quando ambos possuírem direitos iguais legalmente. No entanto, a igualdade perante a lei, somente, não basta para solucionar o problema. Assim como na relação entre capitalista e trabalhador, a igualdade legal revela a especificidade da opressão econômica vivida pelas mulheres e é a partir desta igualdade legal que se nortearão as mudanças que precisam ser realizadas. A libertação das mulheres só virá com a reincorporação de todo o sexo feminino à indústria social, a supressão da família individual como unidade econômica da sociedade e o fim da propriedade privada.

É crucial para as mulheres, e para toda a humanidade, compreender que a família monogâmica como unidade econômica da sociedade de classes é a base de sua subjugação. Não é o fato de dar à luz que torna uma mulher inferior. As mulheres da classe trabalhadora, ao reivindicar da sociedade que assuma a responsabilidade por suas crianças, estão colocando em cheque a legitimidade da família individual como unidade econômica, sendo ela o fundamento de sua própria exploração e o pilar central da sociedade de classes. (LEACOCK, iin Engels, 2012, p. 265-271)

Desde o fim da Guerra Civil, as lutas das mulheres das classes trabalhadoras foram deslegitimadas. Hoje em dia, no entanto, existe maior compreensão não só com relação a como todas as relações opressoras estão interligadas e fazem parte de nosso sistema como um todo, mas também com relação a necessidade de um esforço conjunto para que a mudança real aconteça. Infelizmente, apesar de ser reconhecida a importância da articulação entre os diferentes movimentos que buscam reinvindicações específicas, não houve grandes avanços destas articulações em seu sentido prático. Não se construíram laços organizacionais entre os diferentes movimentos sociais. (LEACOCK, in Engels 2012, p. 270-271)

Além do mais, o aprofundamento teórico é extremamente necessário para avançar a luta das mulheres. Segundo Leacock (in Engels 2012, p. 283-284), a supremacia masculina e a arrogância de homens, inclusive daqueles dedicados à mudança revolucionária, ainda fomenta a atitude anti-homens de algumas mulheres do movimento feminista. A raiva provocada nos indivíduos oprimidos não deve ser utilizada de maneira imprudente, assim como também não nem devemos deixar que ela se dissipe, ela deve ser utilizada como combustível para um significativo avanço da organização em direção à emancipação. O aprofundamento do estudo das comunidades primitivas e sua organização social pode nos oferecer um pontapé inicial na busca por um horizonte de superação das limitações da ordem social vigente.

 

BEZERRA, Ciro De Oliveira et al.. Trabalho pedagógico em pesquisa no âmbito da leitura imanente. Anais IV CONEDU... Campina Grande: Realize Editora, 2017. Disponível em: <https://www.editorarealize.com.br/artigo/visualizar/38692>. Acesso em: 20/07/2021 23:54

 

CHILDE, Vere Gordon. O que aconteceu na história? 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.

 

COSTA, Gilmaísa. Indivíduo e sociedade: sobre a teoria de personalidade em Georg Lukács. São Paulo, Instituto Lukács, 2012.

 

ENGELS, Friedrich. A Origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

 

MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003. Disponível em: http://docente.ifrn.edu.br/olivianeta/disciplinas/copy_of_historia-i/historia-ii/china-e-india/at_download/file. Acesso em: 20 jul. 2021.

 

SERVICE, Elman. Os caçadores. Rio de Janeiro, Zahar, 1971.

 

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Cortez, 2013. Disponível em: https://www.ufrb.edu.br/ccaab/images/AEPE/Divulga%C3%A7%C3%A3o/LIVROS/Metodologia_do_Trabalho_Cient%C3%ADfico_-_1%C2%AA_Edi%C3%A7%C3%A3o_-_Antonio_Joaquim_Severino_-_2014.pdf. Acesso em: 19 jul. 2021.

 

WILLIAMS, Raymond. O povo das Montanhas Negras. São Paulo, Companhia da Letras, 1991.

1 Podemos citar Leacock (in Engels 2012, p. 255) para esclarecer um pouco o que eram as gens. A autora, enquanto caracterizava o tipo de organização familiar que Morgan chamou de “sindiásmica”, no posfácio da obra de Engels, nos explica que as gens seriam uma organização clânica dos povos agricultores primitivos, nos quais as relações comunais de trabalho e distribuição de bens permaneceram mesmo naqueles grupos que se tornaram relativamente grandes e estáveis, chegando a ter de 25 a 40 pessoas vivendo juntas.

2  Segundo Leacock (in Engels 2012, p. 278-283), a escravidão existiu em quase todas as sociedades. Ela foi a primeira forma de trabalho que não era livre. Nas comunidades primitivas, os prisioneiros de guerra eram escravizados e lhes eram atribuídas as tarefas mais onerosas.  Eles podiam até mesmo serem mortos em rituais como sacrifícios. No entanto, é importante salientar que o trabalho escravo ainda não era parte mais significativa da produção, por isso, a produtividade do trabalho escravo só seria economicamente relevante quando houvesse excedente suficiente, para além do custo de sua reprodução, permitindo, assim, o surgimento de uma classe exploradora considerável a partir dele. Nas sociedades primevas, os descendentes de escravos não eram necessariamente escravos, eles podiam ser reconhecidos como autênticos membros do grupo. Os escravos inicialmente treinavam para serem trabalhadores especializados e artesãos. Seu padrão de vida estava acima daquele do camponês agricultor, e sua situação era diferente daquele em que se encontrava o escravo de bando. Entende-se que o termo escravidão engloba diferentes tipos de agrupamentos. Se compararmos o México central e a antiga Mesopotâmia, veremos que houve uma transição que trouxe o fim dos grupos de parentesco e do controle comunal da terra, e fez crescer a propriedade privada na mão de elites urbanas. As mulheres escravizadas na Mesopotâmia eram importantes na produção de lã ou fio. Vale salientar, que em algumas sociedades as relações comunais primitivas transformavam-se em relações feudais sem que houvesse uma fase na qual o escravismo fosse predominante. O trabalho escravo, seja ele proveniente da escravidão de prisioneiros de guerra ou escravidão por dívidas, era usado para produção de bens agrícolas e de luxo para o consumo da aristocracia ou para empreedimentos estatais.

 

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