Metadados do trabalho

Contextualização Das Abordagens Do Currículo De Educação Física Para Uma Reflexão A Respeito Do Corpo No Contexto Cultural

Edjane dos Castro

O presente trabalho tem o objetivo de fazer uma contextualização/síntese dos currículos da Educação Física para uma reflexão a respeito do corpo a partir do contexto cultural a partir de um ensaio teórico bibliográfico, trazendo como referenciais norteadores Tomaz Tadeu da Silva, Marcos Garcia Neira e Valter Bracht, tendo a perspectiva de que toda teorização pedagógica é uma teoria do currículo. Vindo confirmar, assim, que todas as abordagens da Educação Física são teorias do currículo, fazendo uma breve síntese de alguns principais currículos desta área. Por um último, tentamos trazer a educação física num contexto no qual o corpo também faz parte. Discutindo sobre a cultura dentro da cultura corporal do movimento, ou seja, Educação Física. O trabalho faz uma crítica à laudação que havia e há sobre o aspecto biológico, estrutural e cartesiano que algumas abordagens da Educação Física faz do corpo e se desfecha fazendo alusão sobre a possibilidade que o currículo cultural tem em tratar sobre a temática do corpo na Educação Física Escolar.

Palavras‑chave:  |  DOI:

Como citar este trabalho

CASTRO, Edjane dos. CONTEXTUALIZAÇÃO DAS ABORDAGENS DO CURRÍCULO DE EDUCAÇÃO FÍSICA PARA UMA REFLEXÃO A RESPEITO DO CORPO NO CONTEXTO CULTURAL. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2022 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/507-contextualiza%C3%A7%C3%A3o-das-abordagens-do-curr%C3%ADculo-de-educa%C3%A7%C3%A3o-f%C3%ADsica-para-uma-reflex%C3%A3o-a-respeito-do-corpo-no-contexto-cultural. Acesso em: 16 out. 2025.

CONTEXTUALIZAÇÃO DAS ABORDAGENS DO CURRÍCULO DE EDUCAÇÃO FÍSICA PARA UMA REFLEXÃO A RESPEITO DO CORPO NO CONTEXTO CULTURAL

A educação física desde o seu surgimento sofreu diversas transformações, somou conceitos e propostas através de projetos políticos pedagógicos com objetivos de sociedade e identidades ideais (DARIDO; RANGEL, 2008). A sua fundamentação sempre permitiu interferir nos corpos/identidades dos sujeitos. Ela tinha o objetivo maior de interferir Inicialmente através do aspecto racional e posteriormente por meio do controle psicológico, no disciplinamento de corpos sobre os quais se apoderava. O aspecto higienista é um marco que não pode ser apagado da história Educação Física com suas condutas sócio-sanitárias que influenciavam física e mentalmente os sujeitos que lhe eram submetidos, reflexo da Reforma Couto Ferraz defendida por Rui Barbosa em 1822 e que se estendeu até o ano de 1939, início da fase militarista (DARIDO; RANGEL, 2008).

A Educação Física, como qualquer outra área do conhecimento, reflete o contexto no qual ela está inerida. No seu quadro histórico e social ela passou por vários tipos de

 

abordagens ou modelos tidos como prática social. E através dessas abordagens ou métodos como ginásticos, esportivo e de práticas motoras tinham o objetivo de disciplinar os corpos, a moral e a aptidão física da população. Dentro desses objetivos tinha um modelo sistematizado no treinamento esportivo, favorecendo o esporte em massa e formação de atletas de elite como forma de garantia da eficiência social para com os sujeitos, principalmente entre as décadas de sessenta e setenta (BRACHT, 1999).

Agora, na contemporaneidade, vivemos numa sociedade em rede, na qual todos os sujeitos tem acesso a todo tipo de conhecimento e/ou informação. O modelo piramidal na qual a identidade dominante tinha sua hegemonia com conhecimentos e conteúdos de origem americanas e europeia tende a se tornar obsoleto com os novos movimentos que estão aparecendo, como por exemplo, o currículo cultural. Em rede, as classes periféricas tocam o centro – dos dominantes culturais – e impõem as suas tendências e ideias que antes eram vozes enfraquecidas, que não se ouviam. Numa sociedade em rede, essas imposições de grupos sociais diferentes estão levando a conflitos permanentes, esses conflitos refletem no currículo da Educação Física Escolar, que nos levam a diversos desafios da educação e às suas práticas pedagógicas em uma perspectiva que acolha a diversidade (NEIRA; NUNES, 2006).

Constata-se, de forma breve neste texto, o quanto o currículo da educação física tem um histórico dinâmico de práticas com tensões de significação permanente que se estendem até dias atuais. Verificou-se e verificam-se diversas práticas pedagógicas apoiadas em vários campos teóricos na tentativa de validar seus significados desde o século XIX (BRACHT, 1999). E essas práticas continuarão a se estender e se capilarizar de forma permanente a partir do contexto na qual estará inserida.

Assim, há, na atualidade, discursos romantizados pela possível mescla das diversas tendências pedagógicas específicas da educação física sem atentar para suas formas de relação saber-poder. São discursos dos sonhos que se configuram numa pedagogia do faz de conta (CHARLOT, 2013) e adentram num modelo neoliberal de silenciamento e incorporação de sua ideologia. Esse modelo tem um apelo universalizante e sedutor contra uma educação criticista, que torna o cognoscente ciente das relações de poder e das formas como instituições sociais como a escola formam representações que agem no e sobre o corpo de quem está sujeito à educação.

 

Vale ser destacado que a Educação Física, enquanto componente curricular, ao longo da sua caminhada histórica, sempre teve sua carga de comprometimento de transmissão de saberes e conhecimentos através do mecanismo de disciplinarização do corpo, por meio de orientações pedagógicas pautadas por diferentes tipos de teorias. Teorizações que culminaram na presença, respectivamente, do currículo ginástico, esportivista, psicomotor, desenvolvimentista, saudável (teorias não críticas); crítico-superador, crítico emancipatório (teorias críticas); e atualmente o cultural (pós-crítica) (SILVA, 2011; NEIRA; NUNES, 2006).

Toda teorização pedagógica, desta forma, é uma teoria do currículo, ou seja, um discurso sobre o currículo (SILVA, 2011). Se forem analisados os currículos da área da educação física em seu percurso histórico, verifica-se que seu movimento converge com os movimentos sociais e políticos da época.

Podemos perceber, então, que as abordagens/currículos de caráter não-críticos correspondem ao estado autoritário, da ditadura, tendo seu reflexo no ensino na Educação Física e nos corpos dos sujeitos; as críticas, é resultado de movimento acadêmico contrário às anteriores tendo como objetivo a construção de alunos críticos e emancipados, tem como respaldo político e social o início do estado democrático a partir da constituição de 1988; Já o currículo/abordagem cultural surge junto com as teorias pós-críticas dando lugar à diferença, aos sujeitos, à diversidade cultural, e também, dentro de um plano político e social democrático.

Assim, podemos destacar breves aspectos que sobressaem nos currículos não-críticos, críticos e pós-críticos da educação física. Esses aspectos são destacados, pois mostra que o contexto político e social da época tem uma forte contribuição nas discussões sobre currículo e na efetivação da sua prática. É importante salientar que os currículos que são mencionados neste texto são apenas uma parte de um universo muito maior que não poderá ser abordado. Desta forma, esta discussão tem o objetivo de fazer uma contextualização/síntese das abordagens ou currículo de educação física para uma reflexão a respeito do corpo a partir do contexto cultural.

No currículo não-críticoi da educação física há uma fundamentação que sobrepõe aspectos biológicos e práticas corporais à luz das Ciências Naturais. As aulas nesta vertente objetiva a fixação de técnicas corporais para alcance de padrões elevados de comportamento e controle sobre o corpo, e adoção de um estilo de vida ativo, regrado e saudável. O currículo não-crítico alcança as concepções ginásticas, esportivistas, psicomotora, desenvolvimentista, promoção da saúde ou saudável.

No currículo críticoii, ou seja, nas abordagens ou concepções crítico-superadora e crítico-emancipatória, a educação física começa uma estreita relação com as ciências humanas. Houve um movimento acadêmico contrário às concepções anteriores, mas agora voltado ao aspecto das relações que se estabelecem entre manifestações da cultura corporal e os problemas sociais e políticos, com objetivo de conscientizá-los na participação da gestão de seu patrimônio cultural, ou seja, o que se pretende é formar sujeitos que sejam emancipados das condições de opressão que a sociedade impõe que os alunos tenham consciência desse sistema opressor no qual está mergulhado. Tendo a educação física como um conhecimento opositor ao poder. Nunes e Neira (2009, p. 169) confirmam relatando que “o que está em jogo nas teorias críticas é a vontade de poder e o controle da epistemologia moderna, cujo acesso foi negado às classes dominadas por meio dos currículos não-críticos”.

Nesses currículos críticos e não-críticos se deixa desejar aspectos aos desafios que a escola contemporânea vem enfrentando. Apesar das teorias críticas terem colocado em pauta a função social do conhecimento, ela não conseguiu romper com os objetivos e métodos da escola moderna e da contemporânea que são voltadas para uma cultura universalizante, branca, heterossexual com caráter sexista, entre outras. Não sendo suficiente para romper problemáticas latentes.

Surgem as teorias pós-críticasiii que tenta romper com práticas culturais dominantes do currículo de educação física predominantemente euroamericanizados. O currículo cultural da educação física surge como uma alternativa às propostas curriculares totalizantes e dominantes.

O currículo cultural juntamente com as teóricas pós-críticas se configuram numa crítica radical às ideias e estratégias da dominação presente nos tempos atuais. Tenta fazer uma desconstrução dos discursos que legitimam as configurações sociais atuais da educação física. Ele traz a possibilidade de reconhecimento da cultura de grupos sem vez e voz. O currículo cultural da educação física busca uma política da diferença, da luta pela transformação social e se engaja numa busca pelo princípio de uma didática mais democrática como também em seus procedimentos.

Verifiquemos uma síntese dessas abordagens/currículos no quadro abaixo:

 

Quadro 1: Síntese das abordagens/currículos da Educação Física aludidas neste trabalho

Fonte: Elaborado pelo autor com base em Darido e Rangel (2008) e Bracht (1999).

 

Abordagens da Educação Física

Perspectiva

Principal Característica

Ginástica

Não-Crítica

Construção de corpos saudáveis e dóceis com caráter higienista.

Esportivista

Não-Crítica

Rendimento esportivo, recordes, competição ao extremo e vitória no esporte como sinônimo de sucesso pessoal.

Psicomotor

Não-Crítica

Focaliza-se na criança pré-escolar. Utiliza a atividade lúdica como impulsionadora dos processos de desenvolvimento e aprendizagem.

Desenvolvimentista

Não-Crítica

É dirigida às crianças de 4 a 14 anos. Oferecer experiências de movimento adequada ao seu nível de crescimento e desenvolvimento, a fim da aprendizagem de habilidades motoras adequadas.

Saudável

Não-Crítica

Promoção da prática de atividade física que conduzam ao aperfeiçoamento de áreas funcionais como fatores coadjuvantes na busca de uma melhor qualidade de vida por meio da saúde do corpo.

Crítico-Superadora

Crítica

Levanta questões de poder, interesse esforço e contestação. A Educação Física é um tipo de conhecimento denominado Cultura Corporal, que tem como temas: jogos, ginástica, esporte e capoeira.

Crítico-Emancipatória

Crítica

Centrada no ensino dos esportes, concebida para a Educação Física Escolar. Orienta o ensino num processo de desconstrução de imagens negativas que o aluno interioriza na prática como esportes domesticadores e autoritários.

Cultural

Pós-Crítica

Tenta romper com práticas culturais europeias e americanizadas que existe na Educação Física, dando espaço ao reconhecimento da cultura local, de uma política da diferença e da transformação social e da diversidade.

Temos todos esses currículos da educação física pelas quais passamos e vivenciamos. Cada uma com seus campos teóricos que lhes dão fundamentação, que lhes dão objetivos peculiares, com forma de desenvolver atividades específicas com conhecimentos a serem trabalhados que também são específicos.

Nesse sentido, na nossa percepção é difícil misturar essas propostas porque elas formam alunos diferentes, ou seja, pessoas com identidades diferentes. Essas teorias curriculares estão fundamentadas em campos epistemológicos distintos e elas se desenvolvem na escola de maneiras variadas. Então, mesclas de propostas não é possível na perspectiva deste texto, pois cada uma abordagem quer formar uma identidade diferente, ou seja, um determinado tipo de cidadão. Cada uma das abordagens curriculares da educação física quer contribuir de uma maneira específica para a produção de uma sociedade diferente. Cabe, então, a nós, professores e professoras de educação física, conhecer bem todas essas abordagens/currículo e sermos verdadeiros curriculistas para termos ciência das identidades que iremos formar e o que iremos trabalhar   com os estudantes, seja da educação física infantil ao ensino médio.

Trabalhando colaborativamente com professores e professoras, na visão dos autores deste texto, existe a possibilidade de desenvolver uma proposta de educação física coerente na escola, coerente com os seus objetivos e com as funcionalidades que uma ou outra comunidade quer para a sua escola. A proposta deste trabalho não tem o objetivo ou intenção em dizer que a melhor proposta da educação física é a cultural, mas tê-la como possibilidade de uma aprendizagem significativa aproximando de um currículo em que o estudante tenha uma relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo.

Desta forma, professores e professoras precisam conhecer bem as teorias e obras publicadas sobre tais currículos e que se possam escolher uma proposta que se aproxime de sua realidade, pensando na identidade do cidadão e da cidadã que irá formar. Não há busca de uma laudação à diferença no currículo cultural, mas problematizá-la, pois as condições de produção da diferença é um questionamento aos sistemas de produção de diferença nos seus significados. Assim, a abordagem pós-crítica propõe uma proposta de um currículo que promova ações solidárias e ao mesmo tempo sensíveis à diversidade cultural.

ENTRANDO NO TEMA DE UMA PERSPECTIVA CULTURAL...

 

A educação física enquanto disciplina do currículo escolar faz parte da área do conhecimento “Linguagens, códigos e suas tecnologias”. Desta forma, como os conteúdos da educação física estão organizados na educação basicamente, e mais especificamente, como o corpo é considerado? O que justificaria, hoje, uma educação corporal na instância escolar? E no currículo?

Justifica-se infiltrar-se nos meandros de corpo no currículo porque é um assunto, um fenômeno, uma temática indiscutivelmente relevante em tempos contemporâneos, uma vez que nos possibilitam a pensar e criar espaços de discussão sobre problemáticas em relação ao corpo na nossa sociedade. Tais temas como gênero, sexualidade, saúde, corporeidade, estética, consumo e tantos outros que se encontram no espectro do corpo quando é abordado em sala de aula com estudantes, traduz uma amplitude cultural significativa, lhes favorecendo a construção de um saber de caráter reflexivoiv, principalmente para com adolescentes estudantes. A problemática do tema neste viés nos leva a considerar o corpo e sua representação como resultado de sua relação biológica, social e cultural (LE BRETON, 2007; SILVA, 2002; NÓBREGA, 2005).

O corpo tem sido apresentado para os estudantes na sala de aula de forma fragmentado, sem forma, sem história e deslocado da realidade desses alunos. Apresenta-se um corpo padronizado, universalizado como uma amostra que se repete nas aulas sem considerar as várias diferenças de classe, cor, etnia, religião ou geração a qual o aluno pertence (CORREIA, 2017). Os aspectos biológicos são marcantes nos currículos das escolas, não trabalhando outras formas de abordagens com relação ao corpo que também são relevantes ao ensino (NÓBREGA, 2005). As dualidades e oposições são marcadas em todo momento como: rico/pobre, puro/impuro, alto/baixo, preto/branco, homem/mulher, feminino/masculino, sente/pensa, matéria/essência, mente/corpo, dentre outras.

Questões sociais e culturais do corpo que antes não se discutiam ou abriam espaços para serem dialogados se tornam necessárias destacá-las e abarcá-las, pois o nosso enraizamento com o mundo se dá a partir da nossa condição de corpo, ou mais especificamente, o mundo se constrói a partir das minhas relações com ele. David Le Breton (2007) expõe de maneira didática que o corpo, ou seja, a corporeidade humana foi se manifestando e sendo compreendida como fenômeno social e cultural, como objeto simbólico, de representações e significados.

 

Compreendendo que o corpo não é instrumento humano, mas o homem em sua manifestação cultural concreta, não é possível admitir o corpo como apenas instrumento de práticas educativas biológicas. Para Nóbrega (2005), a educação precisa ir além da sua instrumentalidade, para além de sua ilustração na Biologia e nas Artes e para além da sua movimentação mecânica na Educação Física. A escola precisa admitir o corpo como portador de tensões culturais, étnicas, de gênero, de pertencimentos sociais. Corpo de sujeitos que pensam, sentem, vivem e se relacionam com outros corpos.

Pensar essa proposta de educação do corpo pressupõe demarcar o conceito de diferença como orientação de análise. Em contraste ao conceito de diversidade, compreendido como uma essência social dada, qual seja, a tolerância da coexistência de distintas formas de existência cultural, aponta-se o valor da diferença, uma política de identidade ou, conforme Silva (2002, p. 42), “[...] um processo social estritamente vinculado à significação”. Isso posto, cabe compreender as concepções sobre o corpo em ambiente formal escolar, em tempos tão complexos para ser e estar no mundo como o nosso e discutir como ele articula-se com o currículo escolar.

DISCUTINDO NOÇÕES NO CURRÍCULO

 

Desta forma, como visto no percurso deste texto, a discussão do currículo escolar não é recente. O currículo não é somente uma série de conteúdos que são organizados e ministrados na escola num determinado período de tempo ou temas específicos que são direcionados ao preenchimento do tempo nas aulas das disciplinas que compõem a grade escolar. Ele está além dos conteúdos, integralizando a escola, os alunos, professores, funcionários, comunidade, ou seja, é uma rede articuladora que relaciona vários aspectos educacionais, escolares, históricos, culturais, sociais e de identidade (SILVA, 2002). O currículo é e pode ser o resultado de um planejamento estratégico que leva em consideração três reflexões ou questionamentos que devem ser considerados na construção do conhecimento que são: o que, como, e por que este conhecimento deve ser ensinado aos estudantes.

Deve-se refletir sobre quais conhecimentos devem ser considerados quando estamos levando em consideração a formação social, cultural e subjetiva dos alunos; Como devem ser considerados esses conhecimentos; e quais são os principais objetivos na escolha deste e não de outros. A partir de qual posição subjetivav o aluno deve ter acesso ao conhecimento do

 

corpo, mais especificamente? Esses e outros questionamentos são impulsionadores de reflexões e discussões sobre o currículo da Educação Física Escolar.

Esse currículo é transversalizado por relações de poder que faz parte de um conhecimento que é socialmente construído e faz parte da história da humanidade. Nas palavras de Silva (2002, p. 135) são essas relações de poder que “fazem com que tenhamos esta definição determinada de currículo e não outra, que fizeram e fazem com que o currículo inclua um tipo determinado de conhecimento e não outro”. Fica explícito que o autor realça a relevância do papel da linguagem e do discurso na perspectiva de currículo do ponto de vista dos Estudos Culturais. Neste, o conhecimento se faz socialmente construído e tem um espectro de relação íntima de produção de identidades dos alunos. Neste viés de sentido do qual faz parte o currículo, ele atua diretamente com o objetivo de (re)construção das identidades e como igualmente é também composto por elas. Ao mesmo tempo em que ele, o currículo, manipula ou constitui as identidades ele é manipulado por elas da mesma forma.

Assim, a descontextualização do conhecimento, a fragmentação e a irrelevância do currículo são características que se fazem presentes na realidade de distintas escolas. Dentre o universo de disciplinas escolares não há a preocupação de relação entre elas. Tem-se a impressão de que os estudantes são gavetas nas quais cada uma tem a função de guardar informações ou conhecimentos descontextualizados. Não se tem a intenção de levar os estudantes a uma relação de conhecimentos interligados entre as disciplinas e de relação com o mundo (CHARLOT, 2005). Há a ausência de uma abordagem sistêmica entre os diversos conhecimentos que são disponibilizados ou aprendidos na escola.

Os fenômenos ou conhecimentos que são disponibilizados são descontextualizados historicamente, política e socialmente do contexto cultural e das realidades nas quais os estudantes realmente vivenciam, um mundo à parte e envidraçado num conhecimento hegemônico sem sentido. Noutras palavras, um currículo no qual as diversidades culturais e sociais não são consideradas dando privilégio à supremacia do conhecimento dominante que se caracteriza numa relação de poder sobre os demais (NEIRA; NUNES, 2016). Na ótica do pesquisador de currículo e interdisciplinaridade, Jurjo Torres Santomé (1998, p. 58), as escolas, ou seja, as instituições de educação “organizam e trabalham com conteúdos culturais pouco relevantes, de forma nada motivadora para os alunos e alunas e, portanto com risco de perder o contato com a realidade na qual se encontra”.

 

Nesta ótica, os alunos não podem ser deslocados do seu contexto, pois não encontrarão sentido num currículo da escola que não tem conteúdos culturais que não fazem parte da sua realidade, do seu cotidiano, da sua vida. Os conteúdos referentes ao corpo, por exemplo, dentro do contexto em que Santomé (1998) faz crítica, não tem relação nenhuma com cotidiano dos estudantes, abordando temas que pouco ou nada tem de relevante à realidade cultural da qual fazem parte. Menosprezando a cultura local e valorizando outras as quais os alunos não têm nenhum contato direto e nem se identificam.

Por isso, a dimensão cultural é um aspecto que deve ser incluído dentro de todas ou quaisquer tipos de organização ou discussão no que diz respeito ao currículo como agentes (re)constituidores de identidades. O corpo nesta perspectiva de currículo é e precisa ser problematizado como uma construção de caráter discursivo, pois ele se constitui numa dimensão que vai e está além da materialidade que a perspectiva biológica impetra, o corpo concreto, estrutural é apenas um apêndice da constituição corpo. O conhecimento científico hegemônico, biomedicalizado e biologizante que nega o corpo que é socialmente construído e transversalizado por relações de poder, mantendo uma lateralidade cartesiana negando um corpo que é transcendente (NÓBREGA, 2005).

Nesse contexto, se torna necessário abordar o corpo no currículo de educação física para uma reflexão a respeito de sua (re)significação nas escolas, dando possibilidades para que os estudantes tenham condições de experienciar práticas corporais que compõe um currículo que leve em considerações o aspecto social, cultura, histórico e idiossincráticos dos estudantes (NUNES; RUBIO, 2008).

É necessário, desta forma, que façamos um breve comentário sobre como a cultura corporal do movimento, ou seja, a Educação Física está organizada na nova Base Nacional Comum Curricular.

A       EDUCAÇÃO       FÍSICA       NA       NOVA       BASE       NACIONAL         COMUM CURRICULAR/BNCC

A Educação física atualmente é um conhecimento que está integrado na área de Linguagens e suas Tecnologias. A corporeidade e a motricidade neste contexto são consideradas como atos de linguagem. Os estudantes da educação básica ao vivenciarem e participarem das aulas de Educação Física, ou seja, dos seus conteúdos como ginástica de condicionamento físico ou de consciência corporal, modalidades de esporte e de luta, esses se

 

movimentam com diferentes intencionalidades, que são construídas em suas experiências pessoais e sociais com a cultura corporal de movimento (BRASIL, 2017).

Segundo Brasil (2017), na BNCC, a área da linguagem e suas tecnologias, mais especificamente da Educação Física contribui para formar cidadãos capazes de usufruir, produzir e transformar a cultura corporal de movimento, a partir de tomadas de decisões éticas, autônomas, responsáveis, reflexivas, tendo ciência sobre o papel das suas práticas corporais na vida cotidiana e na sociedade.

No contexto educacional brasileiro da Educação Física, segundo Brasil (2017, p. 475):

A cultura corporal de movimento é entendida como o conjunto de práticas culturais em que os movimentos são os mediadores do conteúdo simbólico e significante de diferentes grupos sociais. Por isso, sua abordagem na educação básica exige que as experiências corporais dos estudantes sejam integradas à reflexão sobre a cultura corporal de movimento.

 

Na BNCC para todo Ensino Fundamental, o currículo da Educação Física procura garantir aos estudantes desse ciclo da educação básica chances de contato com conteúdos básicos e sua produção como brincadeiras, jogos, danças, ginásticas, esportes, lutas e práticas corporais que envolvam aventuras entre outras. Essas práticas deverão ser trabalhadas com tendências que os estudantes entendam suas origens; compreendam formas de aprendê-las como também ensiná-las; aprender a partir das práticas desses conteúdos a veiculação de valores, comportamentos, emoções e modos de viver e perceber o mundo; levar os estudantes à reflexão crítica sobre padrões de beleza, exercício, desempenho físico e também sobre a saúde; tenham ciência de relações entre as mídias, o consumo e as práticas corporais em voga; como também a presença de preconceitos, estereótipos e marcas identitárias (BRASIL, 2017). No que se refere ao Ensino Médio da Educação Básica a BNCC traz uma abordagem integrada da Educação Física, ou seja, da cultura corporal de movimento, tendo o objetivo de possível ampliação sobre o que foi trabalhado com os estudantes no Ensino Fundamental, na tentativa de criar oportunidades para que esses compreendam as correlações entre as representações que eles possuem e os saberes atrelados às suas práticas corporais, mantendo diálogo constante com a cultura e os diferentes domínios que alcançam a atividade humana

(BRASIL, 2017).

A Base Nacional Curricular Comum acrescenta ainda que, o currículo da educação física deve abordar temas como o direito ao acesso às práticas corporais pela comunidade, além da problematização da relação dessas práticas corporais com a saúde e o lazer. Além do envolvimento com as diversas eventualidades da cultura corporal de movimento a qual permitirá aos estudantes o desenvolvimento e obtenção de certas habilidades. Visando, desta

 

forma, não apenas autonomia nas práticas corporais, mas também de posicionamentos consciente, reflexivos e críticos diante dos discursos sobre o corpo e sua cultura que estão presentes nos diversos espectros da atividade humana (BRASIL, 2017).

Há um apelo na BNCC por um currículo que aludem os aspectos da cultura corporal do movimento humano. Mas há uma distorção sobre o ideal e o real, entre o que se deseja e como se é, entre o que se diz ter e o que se tem. Há de se desconfiar aspectos da cultura hegemônica presente nesta proposta. Se faz necessário convidar professores a duvidarem sobre propostas impostas por especialistas em reformulações de currículos e se tornarem curriculistas também, pois diante da história do currículo da educação física, professores desta e de outras áreas do conhecimento investiguem sobre as nossas lutas sociais, políticas e culturais do campo da Educação e da Educação Física, sobretudo as formas de discurso que são estabelecidas, pois há uma realidade do currículo que grita e parece não ser ouvida.

Todo e qualquer currículo é influenciado pelas relações de poder, pois é um processo de construção sociocultural. O currículo, desta forma, é identidade e forma identidades. Ao (re)pensar no currículo de Educação Física como constituidor de identidades é necessário que a instituição escolar colabore com espaços que contribuam na (re)construção de saberes que contribuam na (re)constituição dos corpos e dos sujeitos, pois ao selecionar determinados conhecimentos que farão parte de um currículo específico, estaremos automaticamente fazendo escolhas que contribuem na sua própria constituição, ou seja, na sua identidade. O currículo nunca é neutro, pois sempre tem uma carga de intencionalidade que constituem os sujeitos e que também é constituído por eles.

Neste sentido, o currículo e as práticas corporais da Educação Física podem e devem ser compreendidas a partir do contexto cultural, pois essa noção de cultura torna-se a lente pela qual a cultura corporal do movimento irá olhar para o corpo e suas práticas corporais como expressões humanas, com constituições de identidades, da diversidade, da solidariedade, de uma sociedade humana mais justa e consciente da sua origem e história que os antecederam e que ainda os mantém.

Desta forma, os discursos que constituem o currículo da educação física constroem e produzem corpos. Existem discursos sobre saúde, consumo, diferenças, etnias, gênero e entre outros. Desta forma, essas narrativas vêm construindo uma dimensão de corpos que nos permitem dizer que existem tantos corpos quanto às culturas e os discursos que os produzem.

 

Isso, partindo do pressuposto de que os sujeitos se constituem por aquilo que vê, lê, ouve, fala, veste, vivencia e considerando, também, que esses mesmos discursos produzem identidades. Desta forma, torna-se necessária a busca por currículos que abarquem e incorporem os espectro da diversidade cultural, do corpo, da sexualidade, questões de gênero, etnia, credo dentre outros posicionamentos numa busca permanente de compartilhamento de saberes, (re)construção de significados ao tempo que também está (re)significando suas identidades.

Verifica-se, então, a partir do histórico do currículo da educação física até os dias recentes a evidente variedade de práticas pedagógicas pautadas em campos teóricos diversos tentando valer seus significados. Fazendo valer uma cultura hegemônica que silencia o campo cultural, tentando regular e cercear as transgressões e resistências de grupos menos favorecidos. Numa tentativa de contenção ao hibridismo ou mistura étnica, social, de gênero, de sexualidades e até mesmo das culturas juvenis que agora ameaça a cultura dominante que é tida como universal (HALL, 2003).

Diante do exposto, neste texto, é necessário fazer questionamentos sobre esses movimentos de reformas e recontextualização do currículo tais: que tipo de currículo a escola e mais especificamente a Educação Física poderia elaborar para a atual demanda social? Seria este um currículo que estabelecesse uma democratização da relação de poder e convivência entre culturas múltiplas, garantindo equidade social e acesso ao patrimônio cultural e a diversidade humana? Talvez não encontremos respostas, pois tudo é sempre meio de caminho e nunca tem fim, mas podemos refletir sobre pequenos pontos de luz que encontramos na avenida do discurso do currículo.

BRACHT, V. A constituição das teorias pedagógicas da Educação Física. Caderno Cedes, ano XIX, nº48: 69-88, Agosto de 1999.

 

BRASIL. Base Nacional Curricular Comum: educação é base – Ensino Médio. Brasília: MEC, 2017.

 

CHARLOT, B. A mistificação pedagógica: realidades sociais e processos ideológicos na teoria da educação. São Paulo: Cortez, 2013.

 

CORREIA, E. S. Corpo humano e ensino de ciências: o que faz sentido aos alunos do oitavo ano do ensino fundamental. 2017. 158 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática) - Universidade Federal de Sergipe, 2017.

 

DARIDO, S. C.; RANGEL, I. C. A. Educação física na escola: implicações para a prática pedagógica. São Paulo: Guanabara Koogan, 2008.

 

HALL, S. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, Brasília: Representações da Unesco no Brasil, 2003.

 

NEIRA, M.G; NUNES, M.L.F. Pedagogia da cultura corporal: crítica e alternativas. São Paulo: Phorte, 2006.

 

NÓBREGA, T. P. Qual o lugar do corpo na educação Notas sobre conhecimento, processos cognitivos e currículo. Educação & Sociedade, São Paulo, v. 26, n. 91, p. 599-615, maio/ago. 2005.

 

NUNES, M. L. F; RUBIO, K. O(s) currículo(s) da educação física e a constituição da identidade de seus sujeitos. Currículo sem Fronteiras, v.8, n.2, pp.55-77, Jul/Dez 2008.

 

LE BRETON, D. A sociologia do corpo. Tradução de Sônia M. S. Fuhrmann. 2 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007.

 

SANTOMÉ, J. T. Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

 

SILVA, T. T. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

Encontrou algo a ajustar?

Ajude-nos a melhorar este registro. Você pode enviar uma correção de metadados, errata ou versão atualizada.