A educação formal, realizada no âmbito escolar, tem como escopo o desenvolvimento integral do indivíduo visando o preparo para o exercício da cidadania. Essa missão pressupõe o ensino de determinados saberes valorizados socialmente e considerados necessários para que o estudante se torne capaz de atuar na sociedade como cidadão ativo e participativo, o que significa, que outros saberes são excluídos por não se encaixarem no modelo de formação pretendido.
Com a influência mercadológica cada vez maior na educação, essa seleção de saberes se torna mais do que uma questão pontual relacionada ao currículo. Como afirmam Alves, Barros e Viana (2018), o currículo não é atemporal e desvinculado da história e da sociedade, pelo contrário, é condicionado a formas específicas de organizar a sociedade e a educação, professando relações de poder e atuando nas formas de lidar com a realidade.
A sociedade, cultura e currículo caminham juntamente, fazendo parte da mesma tessitura. Na escola, o currículo é feito pelos sujeitos que a compõe (ALVES; BARROS; VIANA, 2018). Logo, numa sociedade movida pelas relações mercadológicas, essa retroalimentação é estruturada pela necessidade de desenvolver capacidades e conhecimentos promotores da eficiência e da produtividade que o sistema capitalista exige.
Isso foi garantido pelo documento norteador do currículo das escolas vigente no momento, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), implementada em 2017. Segundo Marchelli (2021, p. 5), a BNCC é uma formação por competências a serviço dos interesses do setor empresarial, tornando a educação “um sistema de formação técnica do trabalhador do futuro, voltado a produzir bens e riquezas para o país”. Trata-se de um currículo perpetuador de um ensino instrumental concebido para preparar os indivíduos para a atuação no mercado de trabalho, dentro do sistema capitalista e de sua demanda pelo lucro.
A formação por competências é um modelo defendido há décadas em iniciativas internacionais globais, lideradas pela Organização das Nações Unidas (ONU), cujas marcas ideológicas incorporadas no Brasil pela BNCC impõem a redução do conhecimento a esquemas e modelos, excluem as condições e necessidades locais e regionais, até mesmo do país como um todo, e silencia sobre quem são os indivíduos a quem se destina a abordagem curricular (ALBINO; SILVA, 2019). Ao prescrever os comportamentos a serem desenvolvidos pelos aprendentes, a Base indica quem eles precisam vir a ser, ou seja, o sujeito resultante do processo formativo escolar.
Em sua introdução, o texto da BNCC a conceitua como “um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica” (BRASIL, 2018, p. 7). Logo, é uma referência obrigatória para a confecção do currículo de todas as unidades escolares do Brasil, sob a justificativa de que é necessário garantir um patamar comum de aprendizagens a todos os estudantes, o que é feito a partir do desenvolvimento de dez competências gerais, sendo a competência definida como “a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL, 2018, p. 8).
Apesar da importância que possui a equiparação da qualidade do currículo em todo o território nacional, é fundamental que as escolas possuam liberdade e autonomia para contemplar, em seu currículo, aspectos da realidade em que se situam, algo essencial para garantir a participação da sociedade e o respeito à democracia e à autonomia (CÂNDIDO; GENTILINI, 2017). É importante, então, que haja uma conciliação entre o sistema e o local, em um documento que trace diretrizes gerais de orientação, e não que estabeleça um currículo pronto, engessado (CÂNDIDO; GENTILINI, 2017).
Ao contrário disso, a BNCC resulta de um processo do qual os maiores interessados foram excluídos, numa segregação que vai além da superfície material do documento, pois reverbera a reprodução das desigualdades e das injustiças sociais que marcam a sociedade hodierna. Conforme Arroyo (2015), as vivências, os saberes, os valores e as identidades advindos das experiências dos pobres e o processo histórico da produção da pobreza são excluídos do currículo da Educação Básica e do de formação docente, de forma que esses instrumentos-base do ensino não dialogam com essas pessoas.
Dessa forma, elas não se sentem pertencentes e contempladas naquilo que estão estudando, um conjunto de conhecimentos a serem apreendidos imbuído da cultura e do saber de outrem. Afinal, “o currículo da escola é sempre pautado na cultura dominante e transmitido cotidianamente através do código cultural dominante” (ALVES; BARROS; VIANA, 2018, p. 203). Isso é problemático, já que o sentimento de pertencimento faz parte de uma educação produtiva, contando com a participação efetiva dos usuários, além da compreensão do conhecimento de forma mecânica (ALBINO; SILVA, 2019).
Observa-se, assim, que há uma estreita ligação entre o sentido dado ao saber por determinada pessoa e a forma e a capacidade de aprendê-lo. É fundamental ao estudante não só entender como também se relacionar e se identificar com o que aprende. A importância disso se eleva quando se pensa que, consoante Charlot (2000, p. 52), assim que nasce, o indivíduo já é impelido a aprender, pois o ser humano, em sua origem, não é nada, está inacabado: “Deve tornar-se o que deve ser; para tal, deve ser educado por aqueles que suprem sua fraqueza inicial e deve educar-se, “tornar-se por si mesmo”. Em outras palavras, ser ou não ser está condicionado ao aprender, dentro de uma sociedade já estruturada de forma determinada e que, por isso, possui regras, modos e caminhos bem delineados para essa aprendizagem.
Ainda segundo Charlot (2000, p. 53), a construção do sujeito por meio do aprender se dá em “um triplo processo de hominização (tornar-se homem), de singularização (tornar-se um exemplar único de homem), de socialização (tornar-se membro de uma comunidade, partilhando seus valores e ocupando um lugar nela)”. Isso ocorre por meio do movimento da educação, cuja força propulsionadora é o desejo, de tal modo que se faz impossível caso a criança não tenha no mundo as possibilidades para essa construção (CHARLOT, 2000).
Nesse âmbito, são afetadas as possibilidades de crescimento das pessoas excluídas do processo educacional, pela via do currículo. Como afirma Charlot (2000), só aprende quem realiza um esforço individual, para o qual são essenciais o sentido, o desejo e o prazer. No entanto, diante do processo excludente que o currículo escolar instaura, ficam cada vez mais distantes as condições necessárias para que haja a vontade de aprender. O ensino, “deixando de perceber os estudantes como sujeitos inscritos em dimensões sociais, epistêmicas e identitárias [...] corre o risco de perder sentido para alguns que não se encaixam nessas exigências e imposição social (CORREIA et al., 2019, p. 134).
Com isso, os aprendentes não conseguem acompanhar a lógica da escola, não veem sentido nela, não a vinculam às suas vidas, a seus interesses particulares. Esses sujeitos singulares, munidos de diferentes formas de saber e de ver o mundo, não possuem escolha em relação ao aprender: estudar para passar na seleção de uma universidade, ter um diploma e trabalhar para gerar lucro ao mercado é o roteiro formulado sem a sua participação e que eles precisam seguir, levando-o por toda a sua existência.
Nesse contexto, é essencial compreender a aprendizagem considerando-se as diferentes relações que os seres humanos estabelecem com o aprender, em situações, interações e espaços distintos, pois “aprender é exercer uma atividade em situação: em um local, em um momento da sua história e em condições de tempo diversas, com a ajuda de pessoas que ajudam a aprender” (CHARLOT, 2000, p. 68, grifos do autor). Para tanto, recorre-se às noções de relação com o saber de Charlot (2000; 2009; 2014), buscando-se esse entendimento também a respeito da alimentação, que, como já explorado nesta dissertação, envolve diferentes saberes para além daquele posto com supremacia pelo currículo.
Os estudos desenvolvidos por Charlot (2000; 2009; 2014) e seu grupo de pesquisa sobre a relação com o saber tiveram como ponto de partida a questão do fracasso escolar, uma problemática que incomoda familiares, professores, gestores e autoridades da educação há muito tempo, se questionando o porquê do fracasso e sucesso de alunos na escola.
Charlot (2000) afirma que o saber não existe a não ser para um sujeito que esteja engajado em uma relação com o saber. O autor afirma que “qualquer tentativa para definir ‘o saber’ faz surgir um sujeito que mantém com o mundo uma relação mais ampla do que a relação de saber”, uma vez que esse sujeito possui várias dimensões com as quais se relaciona com o mundo, consigo mesmo e com os outros (CHARLOT, 2000, p. 59).
Assim, o saber não existe em si mesmo; ele é produzido no confronto com os sujeitos, envolvendo um tipo de atividade e estando em conexão com a linguagem e com o tempo (CHARLOT, 2000). Nessa perspectiva, o saber diferencia-se do conhecimento, pois este está ligado às propriedades afetivo-cognitivas e, dessa forma, não pode ser transmitido, enquanto que o saber pode tornar-se um objeto comunicável, além de estar submetido a processos coletivos de validação, capitalização e transmissão (CHARLOT, 2000).
Nessa seara, é importante abordar três conceitos apresentados por Charlot (2000) que se interpenetram no processo educacional: mobilização, atividade e sentido. O conceito de mobilização implica a ideia de pôr-se em movimento, de dentro para fora, e se diferencia da ideia de motivação, que remete a um movimento de fora para dentro, realizado por alguém ou por algo (CHARLOT, 2000). No caso da mobilização, há o elemento móbil, que impulsiona o agir e se distingue da meta, sendo esta o resultado esperado.
Ainda segundo Charlot (2000, p. 55), mobilizar também é movimentar recursos e mobilizar-se “é reunir suas forças, para fazer uso de si próprio como recurso. Nesse sentido, a mobilização é ao mesmo tempo preliminar, relativamente à ação (a mobilização não é a guerra [...] e seu primeiro momento [...] mas indica a proximidade da entrada na guerra)”. Desse modo, os recursos são os trunfos, as diferentes forças que se tem, passam por atualizações e são acionadas (VIANA, 2003).
Mobilização é também engajar-se em uma atividade, porque existem “boas razões” para isso. A atividade é definida como um apanhado de ações mobilizadas por um móbil e com vistas a uma meta. Deve-se lembrar que o saber se dá na relação com o mundo e, conforme Charlot (2000, p. 78), “apropriar-se do mundo é também apoderar-se materialmente dele, moldá-lo, transformá-lo. O mundo não é apenas um conjunto de significados, é, também, horizonte de atividades. Assim, a relação com o saber implica uma atividade do sujeito”. Logo, a atividade desponta como uma dinâmica por meio da qual o sujeito realiza trocas com o mundo, consigo próprio e com o outro.
Já o sentido diz respeito à significação de uma palavra, um enunciado, um acontecimento a serem postos em diálogo com outros em um sistema ou em um conjunto; o sentido remete às relações de algo com pensamentos e outros aspectos da vida do sujeito (CHARLOT, 2000).
A partir dessas conceituações, chega-se à definição de relação com o saber: de acordo com Charlot (2000, p. 80), “é a relação com o mundo, com o outro e com ele mesmo, de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender. [...] é o conjunto (organizado) das relações que um sujeito mantém com tudo quanto estiver relacionado com 'o aprender' e o saber". Ao estudante, compete gerar expectativas próprias acerca da escola e os sentidos que ela possui para a sua vida no presente e no futuro, dentro da sua dimensão subjetiva (CORREIA et al., 2019).
Como salienta Correia et al. (2019), em todo e qualquer tipo de aprendizagem inserido no âmbito pedagógico, com foco no estudante, o aprender é o retorno/resposta a um questionamento ou desejo desse indivíduo perante um saber. Dessa forma, não é necessariamente a prática docente que produz o saber no estudante, mas sim a atividade intelectual deste último, uma vez que, se ele não aceitar e não se mobilizar para a entrada nessa atividade, não aprenderá, por mais que a prática do professor seja inovadora e/ou eficiente (CHARLOT, 2014). Ainda assim, a prática docente é fundamental para a aceitação e a mobilização do estudante, tendo-se em vista que a aprendizagem e a relação com o saber são permeadas pelo social, dependem do outro e, com isso, a ação do professor atua como um elemento impulsionador.
Charlot (2000, p. 85) diferencia relações com o saber e relações de saber, definindo essas últimas como “relações sociais consideradas sob o ponto de vista do aprender” e baseadas nas diferenças de saber, dando como exemplo, entre outros, a relação entre engenheiro e operário. Porém, o autor pondera que a relação de saber não se confunde com a relação hierárquica, como ocorre, por exemplo, entre diretor e funcionário, apesar de o fato de não dominarem os mesmos saberes e de haver diferenças substanciais de legitimidade, de atividades e de formas relacionais ser determinante para a configuração dessas relações.
Em sua explanação, Charlot (2000) cita três dimensões da relação com o saber. A dimensão epistêmica envolve apropriar-se de um saber que não se possui, por meio da mediação do outro, de diferentes formas e em situações distintas (CORREIA et al., 2019). Disso, surgem as figuras do aprender, que são citadas por Charlot (2000) não exaustivamente, uma vez que aprender é uma atividade em situação e, sendo assim, são vários e inesgotáveis os modos como ocorre. O autor aponta as seguintes figuras do aprender: objetos-saberes, que são objetos aos quais, um saber foi integrado, diferentes de saberes-objetos, os quais são “o próprio saber, enquanto objetivado, isto é, quando se apresenta como um objeto intelectual, como o referente de um conteúdo de pensamento (a modo da Idéia em Platão)"(CHARLOT, 2000, p. 75); objetos cujo uso deve ser aprendido; atividades a serem dominadas; e dispositivos e formas relacionais.
Segundo Viana (2003), a aprendizagem de dispositivos e de formas relacionais funciona como mobilização do sujeito em relação à escola, ao passo que se torna uma importante via para estudantes das classes populares se sentirem valorizados e iguais às demais pessoas, o que contribui para as suas relações sociais.
A respeito da dimensão da identidade, Charlot (2003) afirma que “aprender faz sentido por referência à história do sujeito, às suas expectativas, às suas referências, à sua concepção de vida, às suas relações com os outros, à imagem que tem de si e à que quer dar de si" (CHARLOT, 2000, p. 72). Nisso está implicada a cobrança da sociedade para que o sujeito “seja alguém” através da educação, que é apontada como único caminho possível para essa construção. Esse alguém em que o indivíduo deve se tornar é bem delineado segundo os interesses do mercado, como já discutido nesta seção, de modo que ao estudante não é possibilitada a construção de outras identidades.
Isso reverbera na relação que possui com o mundo, com o seu eu e com o outro: num mundo marcado pelas desigualdades e movido pelo ter e pelo construir riquezas, um eu que precisa ser alguém dentro dele, ocupar uma posição, é interpelado por vários outros de diferentes modos — pais, professores, chefes, etc. —, não se identifica com a lógica imposta e acaba criando aprendizados que não irão servir para a sua adequação a ela, o que resulta no fracasso escolar e em consequências negativas levadas por toda a vida.
Inseparável da dimensão de identidade na relação com o saber está a dimensão social, visto que “não há sujeito senão em um mundo e em uma relação com o outro” (CHARLOT, 2000, p. 73). Ainda, conforme Charlot (2000, p. 85), a preferência por uma ou outra figura do saber tem conexão com a posição social que o sujeito ocupa, de forma que “cada um ocupa na sociedade uma posição, que é também uma posição do ponto de vista do aprender e do saber”, sem determinismos, mas sim considerando que o mundo está estruturado em relações sociais que, por sua vez, são relações de saber.
Por fim, importa tratar do prazer como elemento importante, mas não imprescindível, do aprender. Charlot (2000) diz que, para o aprender, é preciso não só o sentido, mas também o desejo e o prazer, porém uma aprendizagem pode não ser prazerosa e, anda assim, fazer sentido, como é o caso do estudo para processos seletivos. Sobre isso, Charlot (2014, n.p.) observa que, na escola, é cada vez mais difícil os estudantes encontrarem o saber como sentido e o aprender como prazer, uma vez que “o saber não se apresenta só como atividade e como patrimônio, mas, também, como mercadoria: o saber como passe, que permite passar de ano e passar no vestibular”.
Portanto, com base das noções da relação com o saber, entende-se que a aprendizagem não se constitui como um processo de transmissão linear, sendo, ao contrário, um processo complexo formado por diferentes dimensões indissociáveis e em constante relação (CORREIA et al., 2019). Dentro das diferentes formas e tipos de aprender, encontra-se a alimentação, um saber-objeto cuja aprendizagem é imposta pela educação escolar e é cobrada nos processos seletivos para a entrada no ensino superior, como o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Diante disso, é necessário abordar como esse saber está configurado no ensino básico, contemplando-se as aproximações e os distanciamentos de outros saberes e do comer.
Os vocábulos “saber” e “sabor” possuem a mesma etimologia, o latim sapere, cujo significado é “ter gosto”, o que denota que o conhecimento empírico é associado, em sua origem, ao sentido do gosto (CARNEIRO, 2005, p. 73). Em consonância, Maciel (2001, p. 151) afirma que “ter conhecimento e ter sabor se confundem - o gosto é também conhecimento”, ao passo que, através do sentido gustativo, tanto a informação quanto a emoção são experimentadas, dentro de um determinado contexto sociocultural.
É tendo em vista essa ideia que este texto busca tratar das relações entre a alimentação enquanto fenômeno e prática humanos e os saberes sobre ela, de uma maneira geral e, mais detidamente, acerca dos saberes escolares, institucionalizados na educação formal do ensino básico. Considera-se, a partir de Prado et al. (2016, p. 11), a “produção, necessariamente implicada, de conhecimentos e saberes, socialmente posicionada diante do mundo globalizado e organizada em função do acúmulo de capital material e simbólico”, formando uma teia de significados da qual o ser humano é refém, mas que foi construída por ele mesmo em suas relações (GEERTZ, 2008) e que, supreendentemente, serve aos ideais de liberdade e de realização humanas.
É, pois, uma rede de produção de saberes cuja criação obedece a uma continuidade, na medida em que o ser humano encontra-se e envolve-se com o fenômeno alimentar. Ainda assim, esse processo sofre direcionamentos, tal como uma força que, de modo invisível, orienta os sentidos que serão seguidos na produção da rede. Está-se falando da lógica e das influências da biomedicina, que faz o saber alimentar pender para um lugar restrito a um conhecimento e a um domínio sobre o corpo, esse corpo que desde o cartesianismo é tomado como campo de direito das ciências da saúde.
Com isso, o saber sobre “o que é bom para comer” é tomado como sinônimo de alimentação saudável, cuja definição, características e limites são postos segundo o pensamento biomédico. Consequentemente, a alimentação passa a ser cada vez mais submetida a processos racionais, nos quais saberes científicos que circulam com grande aprovação social são a via pela qual ocorre a relação entre ser humano e comida e, mais profundamente, as relações sociais em torno do comer.
Onde as “agências de propaganda dão o tom dessa nova comensalidade, baseada na escolha racional por evidências científicas” (KUWAE et al., 2016, p. 36). Nesse contexto, a rede de produção de saberes sobre a alimentação é formada por uma série de conhecimentos impostos à sociedade como fundamentais à proteção e manutenção da saúde pela via alimentar.
Consoante Vieira, Silva e Costa (2016, p. 1273), a experiência é um elemento que intrinsicamente faz parte da construção do saber no pensamento leigo, devido ao seu caráter imediato e sensível, e está em relação com o conhecimento científico, onde o gosto, a tradição e o valor são elementos individuais e culturais das práticas alimentares, no qual deve ser considerado o conhecimento científico relatado sobre.
Por conseguinte, embora o pensamento individual e coletivo esteja impregnado pela lógica biomédica normativa, os saberes leigos sobre a alimentação não seguem uma linearidade imposta, e sim estão no cerne de uma complexa teia marcada por diferenciações, contraposições e confluências que se constroem e (re)constroem de acordo com a dinâmica social. Em consonância, Kuwae et al. (2016, p. 54) dizem que “o pensamento leigo assimila a informação por processos não lineares, de simples absorção, mas complexos, integrando o novo conhecimento com conhecimentos anteriores, muitos de natureza não científica, cultural, ou seja, subjetiva”, e isso, na visão dos autores, é fundamental para entender não apenas a capacidade de impregnação que o saber institucionalizado sobre a alimentação possui em relação aos saberes individuais e coletivos, mas também (e principalmente) como esses são constituídos em si mesmos, sendo construções que trazem uma racionalidade em seu interior, diferente da racionalidade científica, que é linear, metódica e sistemática.
No que se refere à prática alimentar propriamente dita, ou seja, a ações em torno da alimentação devidamente concretizada, a ausência de total conformidade com o que prega o saber biomédico fica ainda mais manifesta. Isso é argumentado por Kuwae et al. (2016), ao afirmarem que não há uma total conversão das reflexões direcionadas à consciência dos indivíduos em ações racionalmente ligadas ao conhecimento imposto, mas sim há a instauração de uma ambivalência que impõe à pessoa a necessidade de pensar nos possíveis riscos advindos das suas escolhas, avaliá-los e, então, tomar decisões.
No entanto, as decisões também estão à mercê dos outros saberes e práticas com que o sujeito se depara no cotidiano, como demonstra a pesquisa de Silva (2008), que se debruçou sobre o saber leigo (ou seja, não científico) acerca da saúde na qual se observou que o contexto da cultura e das relações pertencentes aos indivíduos participantes foi mobilizado como justificativa para as suas opções alimentares: por exemplo, a menção ao fato de a região “ter uma carne muito boa” como motivo quase unânime para escolher a carne vermelha como alimento, apesar de o discurso biologicista apontar os riscos inerentes a esse consumo e de colocar o consumo de carnes brancas como mais aconselhável.
Isso sugere que, apesar de saber e comer estarem relacionados no âmbito das concepções sobre a alimentação, tecendo-se uma rede de significados que tentam moldar as relações dos seres humanos com os alimentos/comidas, os saberes, às práticas e os comportamentos alimentares também seguem critérios diretamente originados da sociabilidade e do vínculo com o lugar e com a cultura. Desse modo, ocorre uma espécie de concorrência entre essas diferentes formas de influência, que, ao invés de estarem separadas em lados opostos e distantes, estão em constante interpenetração, tendo-se em vista a integralidade que marca a vida humana e suas relações. Inclusive, a depender da situação, saberes e valores da tradição, como comer carnes no churrasco com a família, e prevalências da modernidade, tal qual o consumo de fast-food em um encontro com os amigos, podem ser mobilizados pelas mesmas pessoas (KUWAE et al., 2016).
A escola, sendo um espaço no qual existem relações, costumes e conhecimentos com características próprias, configura-se como um contexto cultural e relacional potencialmente instaurador de opções práticas individuais e coletivas, servindo de justificativa para que um determinado alimento seja escolhido como comida e não outro, para a adoção de um modo específico de comer à mesa ou fora dela, enfim, para que práticas e escolhas condenadas pela lógica biomédica sejam realizadas sem culpa, já que se está sob a proteção alentadora e motivadora da força pulsante que é a vivência escolar.
Silva, Gilaverte e Almeida (2021) inserem o lanche do recreio e as relações com as merendeiras entre as situações vivenciadas na educação escolar que mobilizam os indivíduos a se manterem no lugar de estudantes, frequentando a escola e superando os desafios, como uma forma de se adaptarem ao contexto escolar e de se inserirem socialmente.
Logo, a merenda integra a relação com o saber, fazendo parte da dimensão epistemológica, da identidade e do social. Com ela, pode despontar o desejo de aprender sobre os alimentos, de conhecer algum com que se está tendo contato pela primeira vez, até mesmo saberes relacionados à culinária. São possibilidades que se abrem aos discentes a partir da experiência da merenda escolar, até porque, como salienta Charlot (2000), as crianças e os adolescentes estão sempre aprendendo coisas novas na escola, independentemente do que é ensinado na sala de aula. Dessa forma, a merenda escolar gera uma multiplicidade de desdobramentos que, embora não sejam muito bem percebidos pelos estudantes, são determinantes para a sua formação, para a sua saúde física, já que influenciam as escolhas alimentares, e para os vínculos socioemocionais, considerando-se que é um momento essencialmente interativo.
Ou seja, direta e irrevogavelmente, a prática alimentar na escola pública está nas mãos de pessoas externas à escola e, muitas vezes, à comunidade em que ela se situa. Nesse âmbito, é importante proceder a discussões e caracterizações sobre o referido programa, para que seja possível o entendimento acerca desse contexto de fundo no qual e pelo qual a alimentação adentra o espaço escolar e nele se faz.
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