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A Questão Do Cânone E A Negritude Feminina: Ensaios Para Uma Formação Docente Crítica

Suzana Mary Andrade Nunes; Gildeane Hilglley Alves Silva; Mariana Saturnino Santos

O presente artigo tem como objetivo realizar uma reflexão sobre as causas que levam à ausência das mulheres negras no cânone literário, tendo como referência as Lei 10396/03 e a Diretriz Nacional para a Educação das Relações Étnico- Raciais de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, por entender a necessidade de professores engajados na reeducação étnico-racial.  Para alcançar esse objetivo, foi realizada uma pesquisa de cunho bibliográfico, levando em consideração os autores que têm se debruçado sobre os estudos desta temática, em especial no livro “Vozes insurgentes de mulheres negras”, de organização de Bianca Santana, que faz um levantamento de diversas mulheres negras marcantes para a história da arte e literatura brasileira. Além disso, tomaram-se como referências quatro nomes de mulheres negras e suas respectivas obras, para representar a importância da literatura feminina afrodescendente na história. São elas: Esperança Garcia, Maria Carolina de Jesus, Maria Firmina dos Reis e Conceição Evaristo, as quais apontam para a relevância do resgate da cultura das identidades negras no Brasil.

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NUNES, Suzana Mary Andrade; SILVA, Gildeane Hilglley Alves; SANTOS, Mariana Saturnino. A QUESTÃO DO CÂNONE E A NEGRITUDE FEMININA: ENSAIOS PARA UMA FORMAÇÃO DOCENTE CRÍTICA. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2022 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/502-a-quest%C3%A3o-do-c%C3%A2none-e-a-negritude-feminina-ensaios-para-uma-forma%C3%A7%C3%A3o-docente-cr%C3%ADtica. Acesso em: 16 out. 2025.

A QUESTÃO DO CÂNONE E A NEGRITUDE FEMININA: ENSAIOS PARA UMA FORMAÇÃO DOCENTE CRÍTICA

1.INTRODUÇÃO

O presente artigo é fruto de questionamentos e debates levantados durante o curso de Letras e em especial, no grupo de pesquisa “EAD, presencial e híbrido: vários cenários profissionais, de gestão, de currículo, de aprendizagem e políticas públicas”, assim como dos debates sobre a temática realizados pelo Grupo de Pesquisa Ressalt do Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe, pelo youtube,. Em reflexão, seja sobre as leituras, ou nas rodas de conversas realizadas durante as reuniões, foi possível chegar a uma pergunta em comum, pela qual perpassa toda a escrita deste material “Quais razões políticas, históricas e sociais, levam à ausência da negritude feminina no cânone literário, e como essa reflexão pode impactar a formação docente?”

Entende-se, pois, que essa não é uma pergunta fácil em virtude da complexidade do objeto, afinal é uma temática de grande abrangência e que pode ser observada sob aspectos sócio-histórico, culturais, científicos, entre outros. Assim, pretendemos trazer para o centro da reflexão a figura da mulher como personagem secundária nas obras literárias, a mulher que é ocultada como escritora de suas obras, a mulher negra que sofre racismo e preconceitos de gênero e que foi historicamente impedida nas suas produções literárias e a mulher que, em um dado momento histórico de escravidão, nem sequer teve acesso a ferramentas de alfabetização para produzir sua escrita. Essas questões ensejam fatores que podem ser tocados nesta abordagem: preconceitos de gênero, papéis de gênero, racismo, escravidão — Todos esses fenômenos não podem ser delimitados em um único recorte espaço-tempo, o que torna ainda mais desafiadora a presente pesquisa.

Neste sentido, o preconceito sobre a mulher, na nossa sociedade, faz interface as questões de Gênero à de Raça, uma vez que além de estar imersa na cultura patriarcal, de onde as desigualdades se evidenciam em oportunidades de trabalho, nos direitos de ir, vir e ser. A mulher negra sofre os resquícios de um legado colonial escravocrata que se reverberou em uma pseudolibertação, cujos valores, mentalidades e comportamentos se reproduzem disfarçadamente em violência simbólica e física, patrimonial.

Ao refletirmos sobre o desafio da presente pesquisa, não consideramos, porém, impossível de ser realizada, afinal muitos autores tem se debruçado sobre essa temática e realizado diversas produções enriquecedoras. Sendo assim, objetiva-se nesta pesquisa realizar um levantamento bibliográfico a fim de alcançar um cruzamento, ou pode-se dizer, um diálogo entre os autores e produções. E por fim, produzir uma reflexão acerca dos fenômenos estudados, não objetivando, contudo, esgotar a temática, vista a complexidade da abordagem.  

Diante das diversas lutas do movimento negro, uma das conquistas realizadas no Brasil, já no século XXI, foi a inclusão do ensino de história e cultura Africana nas escolas, alterando assim a principal Lei Educacional do nosso país, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional. Anteriormente, a LDB pouco citava sobre a abordagem da cultura afro-brasileira. A Lei 10639/03, de 9 de janeiro de 2003, cita em sua ementa que:

altera a lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996,  “estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "história e cultura afro-brasileira" e dá outras providências. “(BRASIL,2003)    

Em seguida, em 17 de junho de 2004, é lançada a Diretriz Nacional para a Educação das Relações Étnico- Raciais de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. O documento visava instruir pais, professores gestores e a comunidade escolar em geral sobre a mudança curricular realizada pela Lei 10639/03. Mudança que deveria, inclusive, não ser vista apenas como curricular, ou simplesmente um acréscimo de conteúdos, mas sim, uma transformação de mentalidade, de prática pedagógica, e de ações dentro e fora da escola. Em todo tempo, as Diretrizes reafirmam a importância de ações afirmativas e reparadoras para a população afrodescendente no Brasil, e a promulgação destas Leis é um passo para isso.

Contudo, entende-se que não é apenas a promulgação da lei que extinguirá todas as práticas de desvalorização do povo negro, é por isso que as Diretrizes vieram como um guia, uma abertura de caminho nesse processo. Apesar disso, as Leis e Diretrizes sozinhas não conseguem fazer o trabalho completo. É necessário a ação de toda a comunidade, seja negra ou não, cidadãos em geral, professores, pais, alunos e comunidade engajados nessa transformação.

Cada um dos componentes da sociedade tem papel fundamental nesse trajeto, porém, gostaríamos de dar especial destaque ao papel do professor. Este agente educativo está em contato com o aluno todos os dias e é o responsável por mediar o conhecimento, manusear ferramentas, apresentar bibliografias, e toda uma diversidade de leituras que irão compor o repertório do aluno. Se esse professor não entende o papel que exerce, e não está engajado na reeducação étnico-racial, todo esse caminho se torna mais difícil ainda de ser trilhado.

Possibilitar ao aluno reflexões sobre questões raciais, apresentar a literatura negra, história e cultura dos povos africanos e afro-descentes é obrigação do professor e da comunidade escolar em geral, afinal, está previsto em lei. Negar isso ao aluno é furtá-lo da sua própria história e identidade.      

Trata-se, portanto, esta pesquisa,  de um trampolim para aprofundar o debate, considerando essa temática      de grande relevância para a sociedade, pois é necessário questionar alguns moldes previamente estabelecidos, pensar e debater sobre racismo e preconceitos de gênero e levar o público a refletir de maneira crítico- construtiva. Além disso, é de grande importância para a área da educação, partindo do ponto de vista que se busca formar seres pensantes, que não apenas conhecerão as obras consagradas da literatura, mas também desejarão avançar para outras ditas não consagradas, ou apenas excluídas. E por fim, considera-se também a presente pesquisa como indispensável para a formação do professor, não apenas acadêmica, mas pessoal e humana.      

Optou-se por fazer uma pesquisa de cunho bibliográfico, que caracteriza-se por levantamento de dados, informações e conhecimentos já produzidos na referida área de pesquisa, além do diálogo e cruzamento de elementos produzidos por esses autores e suas respectivas obras. A presente pesquisa caracteriza-se também por uma abordagem qualitativa, uma vez que se busca analisar e compreender questões relacionadas aos seres humanos e suas relações sociais, realizando uma ação reflexiva sobre os fenômenos estudados.

Para desenvolver o debate, dividimos as sessões em algumas etapas. Inicialmente, foi realizamos uma reflexão sobre o processo de exclusão da literatura feminina negra no contexto do cânone, como consequência da desvalorização da mulher preta na sociedade. Posteriormente, avaliamos a respeito da linguagem como poder simbólico e a percepção da voz feminina silenciada ao longo dos tempos. E por fim, tratamos a respeito das produções literárias de algumas mulheres negras e as suas contribuições.

2 LITERATURA NEGRA FEMININA

Ao iniciarmos os debates sobre o Cânone literário, precisamos, de primeira via, entender o significado desta expressão. Podemos entender cânone, não apenas no meio da literatura dita “clássica”, mas também na religião, nas artes e em diversos campos de expressão humana. Cânone, seria, portanto, um grupo de obras consagradas, e inevitavelmente, separadas, levadas a um nível diferente em relação às outras. Assim como conceituaram Calegari e Moreira:

Com base na essência de suas origens, a palavra “cânone” passou a significar o conjunto de elementos elitizados ou mesmo uma lista de merecedores de destaque e, consequentemente, apartados do “comum” por meio de qualidades que o conferissem distinção. Intrínseca na definição, percebe-se a legitimação de elementos canonizados mediante a exclusão de agentes considerados inferiores, rejeitados ou não aptos. (CALEGARI; MOREIRA, 2016, p 41)

Ao entendermos que o cânone, ao incluir, imediatamente e igualmente exclui, poderíamos pensar em que parâmetros e critérios baseia-se a sua escolha. Se ficarmos no raso, pensaremos em diversos motivos estéticos, clássicos, poéticos e caímos até mesmo no risco de olharmos essa questão com os olhos da classe dominante: são escolhidas as melhores obras. Contudo, se nos esforçarmos um pouco mais em nossos questionamentos, começaremos a nos perguntar quem dita o que é considerado o melhor e a que interesses ele serve. Nos aprofundando um pouco mais no bojo das discussões, surgem diversas contribuições enriquecedoras, como a abordagem de Zahidé Muzart ao citar:

O estudo do cânone está ligado, pois, a várias coisas, principalmente à dominante da época: dominantes ideológicas, estilo de época, gênero dominante, geografia, sexo, raça, classe social e outros. Aquilo que, é canonizado em certas épocas, é esquecido noutras; o que foi esquecido numa, é resgatado em outra. Como Sousândrade, no Brasil, como Baudelaire, na França... entre outros” (MUZART, 1995, p. 86)

Observamos, portanto, que o que é canonizado está ligado, indissociavelmente, ao que é dominante, e nas palavras da mesma autora “São excluídos do cânone: o popular, o humor, o satírico e o erótico. O baixo é excluído. Permanece o alto”. Podemos citar, portanto diversos personagens excluídos nesse processo: o pobre, o negro, a mulher, e até mesmo correntes de pensamento e literárias, seja o que for que não esteja circunscrito dentro da cultura dominante, afinal “percepção de “boa literatura” está ligada à “boa cultura”, desprezando o diferente” (CALEGARI; MOREIRA, 2016, p.46).

Como podemos perceber, é um amplo leque de possibilidades de abordagem e de escolha sob qual prisma analisaremos o cânone, neste trabalho, porém, iremos voltar o nosso olhar para as mulheres negras. Sabendo disso, entendemos que podemos perpassar por diversas questões, seja escravidão, racismo, preconceitos e papéis de gênero, tudo isso incide diretamente na ausência feminina preta (ou dita ausência) na literatura. 

Quando falamos de ausência podemos olhar sob dois prismas diferentes: a mulher contada na literatura e a mulher como autora de obras literárias. Nesses dois aspectos, vemos um intenso processo de exclusão feminina, pois, ao aparecer na literatura apenas como personagem, ela é contada, somente, pelos olhos de quem a escreve. Surgindo como autora, ela foi, e é, muitas vezes ocultada e relegada, afinal:

O universo literário é rico na representação da mulher nos seus múltiplos estereótipos, como, por exemplo, o da mulher-anjo (doce, meiga e pura) e o da mulher-demônio (lasciva, ardilosa, irresponsável), mas nunca como protagonista de sua história e representação. Certamente essas estereotipias justificam o rebaixamento social da mulher e reforçam o modelo misógino do cânone em que a mulher é excluída enquanto escritora e secundarizada enquanto personagem, legitimando a condição subalterna da mulher na sociedade. (MARQUES, 2017, p. 232).

É, portanto, partindo do entendimento do cânone como um meio de expressão da imagem feminina, que percebemos o processo de silenciamento da mulher. Se considerarmos que a linguagem é um poder simbólico, como afirma Pierre Bourdieu, e que esta é uma construtora da nossa realidade, entenderemos também que as obras literárias são um forte meio linguístico de comunicação, e que o silenciamento da mulher nesse contexto diz muito sobre os moldes sob os quais a nossa sociedade tem se constituído. E é sobre este prisma que será abordado o próximo tópico.

2.1 LINGUAGEM: UM PODER SIMBÓLICO

Ao nos lançarmos em uma análise histórica do cânone literário, e de como ele tem se estruturado ao longo dos séculos, precisamos partir de um determinado entendimento de sociedade, de como seus campos são estabelecidos, e concomitantemente, estabelecem o poder dominante. Poder esse que chamaremos, na perspectiva de Bourdieu, de poder simbólico. “O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 1989, p. 7).

Sendo assim, o poder simbólico não se reduz a um poder econômico, ou político, exercido por algum mecanismo específico, mas um poder que é construído, e construtor da sociedade, na qual os indivíduos estão submetidos, mas, possivelmente, inconscientes de sua dominação.

Os ‘sistemas simbólicos’, como instrumentos de conhecimento e de comunicação, só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder Simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, ‘uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências. (BOURDIEU, 1989, p. 9)

Como é possível notar, esse poder seria, então, não apenas um formador da realidade, mas também da concepção que o indivíduo tem de si mesmo (e do outro) e de como ele se insere na sociedade. Neste contexto, para que esse processo ocorra, estão estabelecidos alguns sistemas simbólicos, considerados estruturas estruturadas e estruturantes, são eles: Língua, arte e religião. Para a presente pesquisa, voltaremos o nosso olhar mais especificamente para as manifestações linguísticas, sendo estas, instrumentos de conhecimento e construção do mundo dos objetos. Se considerarmos que os sistemas simbólicos são responsáveis por produções simbólicas, nas quais, as produções linguísticas podem ter sua contribuição, partimos do pressuposto de que elas também poder funcionar como instrumentos de dominação. Desta forma, mantém-se uma consciência simbólica que é responsável pela manutenção da cultura dominante, e seu perpetuamento.

A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante […]; para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções (BOURDIEU, 1989, p. 10).

Os sistemas simbólicos cumprem, assim, sua função social e política, a partir das suas produções, pelo acúmulo de poder material e simbólico da classe detentora desses poderes.  Sabendo disso, podemos entender com mais clareza a dinâmica que tem se estabelecido em relação ao processo canônico, afinal, se todos os âmbitos da sociedade estão inseridos nas relações de poder simbólico, quanto mais as manifestações linguísticas, que estão dentro do que considera Bourdieu, uma estrutura estruturante: a língua.

Os apontamentos sociológicos acima realizados abrem caminho pra um aprofundamento da reflexão a respeito da escolha do cânone literário, e consequente exclusão da mulher negra neste processo. Percebemos que a concepção de mulher gerada na consciência coletiva está diretamente ligada ao poder simbólico exercido na sociedade, através de estruturas estruturantes, das quais as manifestações linguísticas fazem parte. Ou seja, a forma como é apresentada a mulher na literatura é fruto de sistemas simbólicos, que, concomitantemente, representam e mantém uma concepção de mulher segundo a cultura dominante.

Como abordado anteriormente, estas concepções sustentam a visão da mulher negra sob prismas diversos: ora sexualizada, ora dócil, ora preguiçosa, ora materna, sempre segundo a voz de terceiros, mas nunca representada por si mesma, debaixo de seu próprio olhar. Esta terceirização que mantém a voz da mulher abafada ao longo dos séculos, tem sido trazido à tona atualmente em debates diversos. Pode-se considerar que apesar de todo o processo de silenciamento feminino, diversas obras de autoras negras foram e vem sendo produzidas. Nesse sentido, é necessário trazer luz sobre essas produções e fazê-las conhecidas nos diversos âmbitos da sociedade, iniciando pela educação. É nesse viés que abordaremos a etapa seguinte da presente pesquisa.

2.2 PRODUÇÕES DE MULHERES NEGRAS

Ao nos lançarmos na pesquisa sobre produções literárias de mulheres negras, enfrentamos o primeiro desafio: encontrar o registro desses materiais. Por muitos anos, buscou-se realizar levantamentos, mas, apesar da riqueza do material encontrado, muitos deles são recortes e com certeza não representam toda a vastidão das produções de mulheres que ficou perdida, esquecida, ao longo do tempo.

O segundo desafio é abordar estes diversos nomes e escritas literárias. Entendemos que realizar uma síntese seria impossível, afinal, o trabalho de milhares de mulheres não pode ser reduzido em umas poucas páginas, e sempre cometeremos o erro de deixar de citar variados nomes de grande relevância. Porém, para facilitar o processo de pesquisa, recorremos ao auxílio de autoras que já fazem estudos dentro desta temática, em especial, lançamos mão do livro “Vozes insurgentes de mulheres negras”, escrito sob a organização de Bianca Santanna. Sendo assim, muitos nomes aqui levantados, de mulheres negras brasileiras, do século XVIII até meados do século XIX, perpassaram por esse livro, o qual usamos aqui como fonte de pesquisa.

2.2.1 Esperança Garcia

Esperança Garcia foi uma mulher negra e escravizada. Segundo pesquisadores, ela nasceu na fazenda Algodões, pertencente aos Jesuítas, aprendeu a ler e escrever, casou-se, e aos 16 anos teve o seu primeiro filho. Porém, os catequistas foram expulsos pelo diplomata português Marquês de Pombal e a fazenda foi transferida para outros senhores de escravo. Logo depois, aos 19 anos, Garcia foi separada dos filhos e do marido, e enviada para outras terras.

Foi com essa idade que Esperança Garcia escreveu, em 1770, uma carta endereçada ao então Governador do Piauí, denunciando os maus tratos sofridos por ela, e outro grupo de mulheres. O documento, além de um pedido de socorro, contém fortes marcas históricas da época, inclusive a religiosidade adquirida sob influência dos jesuítas.

Eu sou uma escrava de V.Sa. administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, onde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.Sa. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha os olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda onde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha. De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia. (GARCIA, 1870).

A carta de Esperança Garcia, acima registrada, foi encontrada em 1977 pelo historiador Luiz Mott, no arquivo público do Piauí. Deste então, o nome dela tem sido utilizado como símbolo das lutas pelos direitos dos negros no Brasil. Além disso, devido às características jurídicas, a carta de Esperança Garcia foi considerada uma petição e em 2017, Esperança Garcia recebeu o título de primeira advogada do Estado do Piauí.

Apesar de não termos registros de textos literários escritos por Esperança, o seu nome é de grande importância para história do movimento negro no Brasil e a sua carta foi um grande símbolo desta luta, por esta razão, não poderíamos deixar de citá-la na presente pesquisa. 

      1. Maria Firmina dos Reis

Maria Firmina dos Reis foi uma escritora negra, nascida em 11 de março de 1822, em São Luís do Maranhão. Era filha de Leonor Felippa dos Reis, que foi escrava alforriada. Esse fator com certeza se tornou de muita relevância para Maria Firmina, inclusive em sua produção literária, afinal, ela era afrodescendente e vivia em uma sociedade ainda escravocrata.

Perdeu a mãe aos 5 anos e foi acolhida por uma tia materna, buscou investir na sua educação. Como fruto deste esforço, Maria Firmina formou-se e se tornou professora concursada em seu Estado, atuando como professora, principalmente do primária. Ao se aposentar, ela fundou a primeira escola mista e gratuita do Maranhão, devido à sua preocupação com a qualidade da educação das minorias, em especial, as mulheres. Infelizmente, a sociedade machista e escravocrata da época não recebeu essa escola com bons olhos, e dois anos e meio depois ela precisou fechar as portas. 

Em se tratando de produções literárias, essa autora é pioneira em diversos aspectos. Foi considerada a primeira romancista brasileira, com a publicação do livro Úrsula, em 1859, além de ser a primeira autora negra da literatura brasileira e a primeira escritora abolicionista da américa latina.

Maria Firmina escreveu diversos livros: Gupeva (1861, romance), A escrava (1887, conto) e contos à Beira (1871, poesia).Porém, foi o livro “Úrsula” que lançou o nome da escritora. Este romance retratava a história de amor impossível, como típico da sua época, entre dois personagens: Úrsula e Tancredo. Ambos eram personagens brancos, de vida financeira razoável. Porém, o grande diferencial desse livro são os personagens negros que, apesar de secundários, tem voz para contar a sua própria história, a exemplo da preta Suzana, que descreve seu sofrimento ao ser arrancada da sua terra e família para ser escravizada. O ato de dar voz a um personagem negro foi pioneiro e um grande marco na história da literatura brasileira. Vamos, portanto, ouvi-la:

Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura, até que abordamos às praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé, e, para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa: davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca; vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim, e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos! (REIS, 1859, p.88)

         E é dessa forma que Maria Firmina, uma mulher afrodescendente, fala daquilo que conhece e que viu seus pares sofrerem. Esse é um grande diferencial, uma vez que, diferente do que era comum à época, o personagem negro não estava sendo descrito a partir do olhar do branco, mas sim, sob a perspectiva de uma mulher negra, ou seja, sob seu próprio olhar.

      1. Carolina Maria de Jesus

Carolina Maria de Jesus foi também uma das primeiras escritoras negras do Brasil. Nascida na cidade de Sacramento, no sul de Minas Gerais, em 14 de março de 1942, era neta de escravos, filha de uma mãe lavadeira, dentre 8 irmãos. Carolina de Jesus chegou a estudar na infância, dois anos no colégio Allan Kardec, porém precisou deixar a escola por questões financeiras. Viveu na roça com sua família, porém, se mudaram para São Paulo em busca de um emprego melhor.

Lá, Carolina Maria de Jesus trabalhou como empregada doméstica, porém, ao engravidar e ser abandonada pelo parceiro, ela não foi mais aceita pelas patroas, que não viam com bons olhos mulheres solteiras. Sem ter para onde ir, morou na rua, até que chegou à favela de Canindé. Na época, São Paulo estava em crescimento comercial, e muitas pessoas iam para lá atrás do sonho de encontrar um emprego e uma vida melhor. Porém, o que encontravam era ainda mais dificuldades, e assim surge o nascimento e crescimento das favelas, um marcante acontecimento social da época.

Carolina Maria de Jesus era moradora de uma das 5 favelas de São Paulo, lá ela trabalhava como catadora de papel, e morava em um barraco junto com seus três filhos. Escrevia em seu diário relatos da fome que passava e do sofrimento que vivia com sua família:

Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A minha filha Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a dona Alice. Ela me deu a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos. E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual, a fome! (JESUS, 1992, p. 26-27).

Essas e muitas outras descrições feitas em seu diário foram compiladas no livro “Quartos de despejo” (1960), após o historiador Audálio Dantas encontrar Carolina de Jesus na favela. Conta-se, que ele estava em busca de informações sobre Canindé, quando ouviu Carolina de Jesus falar que colocaria o nome de alguém em seu livro. Esse encontro aparentemente casual, resultou na publicação do livro de Carolina, que se tonou conhecida no Brasil, e em diversos outros país, sendo Best-Seller de vendas entre alguns deles. A autora se tornou conhecida entre autores já famosos da época, a exemplo de Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira.

O livro “Quartos de despejo” representava uma forte critica, e apontava que as favelas seriam a estes “quartos” onde a sociedade dispensava tudo aquilo que não queria. A partir dessa publicação, Carolina de Jesus se tornou muito conhecida, viajou, mudou de casa, e saiu da favela esperando ter uma vida melhor. Porém, não foi bem recebida no bairro nobre onde foi morar. As publicações seguintes de Carolina de Jesus, já não fizeram o mesmo sucesso e aparentemente, depois do afã da sociedade da época, a autora voltou a entrar no esquecimento.

      1. Conceição Evaristo

Maria da Conceição Evaristo de Brito, nascida em 29 de novembro de 1946, é filha de Joana Josefina Evaristo, juntamente com mais 8 irmãos. Sobre o seu pai biológico pouco se sabe, mas seu padrasto, Aníbal Vitorino, era pedreiro. Devido às dificuldades financeiras, ainda na infância, Conceição foi morar com sua tia, Maria Filomena da Silva, e com seu esposo, carinhosamente chamado de tio Totó. Apesar de terem condições um pouco melhores, ainda sim enfrentavam muitos problemas financeiros — sua tia era lavadeira, e com 8 anos de idade Conceição Evaristo começou a trabalhar como doméstica.

Apesar das dificuldades, estudou em escola pública, e muitas vezes fazia faxina na casa dos professores em troca de livros para ela e seus irmãos.

Gosto, entretanto, de enfatizar, não nasci rodeada de livros, do tempo/espaço aprendi desde criança a colher palavras. A nossa casa vazia de bens materiais era habitada por palavras. Mamãe contava, minha tia contava, meu tio velhinho contava, os vizinhos e amigos contavam. Tudo era narrado, tudo era motivo de prosa-poesia, afirmo sempre. Entretanto, ainda asseguro que o mundo da leitura, o da palavra escrita, também me foi apresentado no interior de minha família que, embora constituída por pessoas em sua maioria apenas semi-alfabetizadas, todas eram seduzidas pela leitura e pela escrita. Tínhamos sempre em casa livros velhos, revistas, jornais.” (EVARISTO,2018).

Em relação às suas experiências escolares, Conceição sofreu na pele o racismo de diversas formas. No colégio onde estudava ocorria um tipo de “apartaid” educacional — no andar de cima, nas melhores salas, estavam os alunos brancos, no andar de baixo, no qual estava o porão, os alunos negros e pobres.  “Porões da escola, porões dos navios”, como afirma a própria autora.

Ao terminar o primário, em 1958, ganhou o meu primeiro prêmio de literatura, vencendo um concurso de redação que tinha o seguinte título: “Por que me orgulho de ser brasileira”. Ao terminar o Primário, fez um Curso Ginasial cheio de interrupções e, a partir dos meus 17 anos, viveu intensamente discussões relativas à realidade social brasileira. Foi quando se inseriu no movimento da JOC, (Juventude Operária Católica) que, como outros grupos católicos, promovia reflexões que visavam comprometer a Igreja com realidade brasileira.

Em 1973 Conceção imigrou para o Rio de Janeiro, depois de ter feito concurso naquele mesmo ano, para professora primária.  Deste então, o currículo da autora só cresce: Graduada em Letras pela UFRJ, Mestre em Literatura Brasileira pela PUC do Rio de Janeiro, com a dissertação Literatura Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade (1996), e Doutora em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense, com a tese Poemas malungos, cânticos irmãos (2011), na qual estuda as obras poéticas dos afro-brasileiros Nei Lopes e Edimilson de Almeida Pereira em confronto com a do angolano Agostinho Neto.

Conceição Evaristo estreou na literatura em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos Negros. Além disso, há uma série de outras obras publicadas pela autora, das quais a principal é “Ponciá Vicêncio” (2003). Este livro conta a história da descendente de escravos Ponciá e é repleto de relatos da sua infância da personagem, vida adulta, família, e mudança de cidade. Este livro é um marco quanto à representatividade, afinal, se trata de uma negra protagonizando uma narrativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, para alcançar sucesso na inclusão da literatura negra feminina nos âmbitos da sociedade, é necessário refletir a respeito do padrão estabelecido e agir em conjunto para transformá-lo. Por isso é tão importante ação da coletividade negra nesse processo. Muitos avanços já ocorreram: estudiosos, acadêmicos, grupos de pesquisa e os movimentos negros tem trabalhado para resgatar a cultura do povo afro descente através da literatura feminina, porém, muito ainda precisa feito. 

Passo a passo, caminhos vêm sendo trilhados nesse processo, com conquistas como a Lei 10639-03, a Diretriz Nacional para a Educação das Relações Étnico- Raciais de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, e outras ações afirmativas que buscam ressarcir o povo negro e valorizar sua história. Professores e comunidade escolar têm contribuído com esse processo através da realização de projetos escolares que contribuem com esse resgate da identidade do povo afrodescendente.

E assim, a história do povo brasileiro continua. As vozes de mulheres como Esperança Garcia, Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus, continuam ecoando e seus escritos permanecem inspirando outras mulheres a igualmente não se calarem, e tornarem-se protagonistas na contação da sua própria história.

REFERÊNCIAS

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