Metadados do trabalho

Práticas De Leitura Para A Formação Do Sujeito-Bebê Leitor: A Abordagem De Temas Feministas E Antirracistas Em Creches

Denise Aparecida de Paulo Ribeiro Leppos

Este artigo tem como objetivo refletir sobre as práticas de leitura para a formação do sujeito-bebê leitor a partir de literaturas que versem sobre os temas feminismo e antirracismo. Apoiaremos-nos nas pesquisas realizadas por pesquisadoras como Anete Abramowicz (1995), Josette Jolibert (1994), Fúlvia Rosemberg (1975/1996), Ana Lucia Faria (2005/2006), Andrea Moruzzi (2012/2017), Gabriela Tebet (2017), as quais se debruçaram sobre os estudos da infância no Brasil. Além de Eni Orlandi (1995), para tratar desse possível silenciamento no que se refere a ausência e/ou a pouca presença de livros de literatura de cunho feminista e antirracista destinadas aos bebês.  Vislumbramos, apoiados na leitura desses textos, a responder à seguinte questão geral e norteadora de artigo: por que a prática de leitura, sobretudo no que tange aos temas feminismo e antirracismo, na primeira infância é relegada ao silêncio?

Palavras‑chave:  |  DOI: 10.12957/riae.2020.45966

Como citar este trabalho

LEPPOS, Denise Aparecida de Paulo Ribeiro. Práticas de Leitura para a Formação do Sujeito-Bebê Leitor: a Abordagem de Temas Feministas e Antirracistas em Creches. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2022 . ISSN: 1982-3657. DOI: https://doi.org/10.12957/riae.2020.45966. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/482-pr%C3%A1ticas-de-leitura-para-a-forma%C3%A7%C3%A3o-do-sujeito-beb%C3%AA-leitor-a-abordagem-de-temas-feministas-e-antirracistas-em-creches. Acesso em: 16 out. 2025.

Práticas de Leitura para a Formação do Sujeito-Bebê Leitor: a Abordagem de Temas Feministas e Antirracistas em Creches

Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável (CANDIDO, 2011, p. 193).

 

 

A respeito do que afirma Candido (2011) na citação em epígrafe, o respeito dos direitos humanos bem como seu acesso a eles vai além dos bens básicos e indispensáveis, “como casa, comida, saúde, coisas que ninguém bem formado admite que sejam privilégio de minorias. Mas será que pensam que o seu semelhante pobre teria o direito de ler Dostoiévski ou ouvir os quartetos de Beethoven?” (CANDIDO, 2011, p. 174).

Se o exercício da leitura promove, entre outras tantas descobertas, o desenvolvimento da fala, o letramento, o conhecimento de mundo, a socialização, a capacidade de solucionar problemas, a construção de regras, a cooperação e a solidariedade, o diálogo, o respeito a si mesmo e ao próximo, por que será, então, que essa preocupação com a formação desse sujeito-bebê leitor[1] não se dá desde os primeiros anos de vida da criança? Desta maneira, em nossa pesquisa de doutorado, objetivamos demonstrar como práticas de leitura nas escolas de educação infantil e no ambiente familiar são eficazes para a formação leitora de bebês.

Nosso enfoque buscará abordar a especificidade e a relevância de se ler obras que abordem temas como o do feminismo e do antirracismo desde cedo, e para isso formularemos algumas perguntas norteadoras como: há produções literárias infantis com esse tema? São produções reconhecidas e premiadas? São adotadas nas creches? Exigem por parte dos mediadores dessa leitura alguma formação específica? São obras com qualidade estética e não meramente obras com finalidade pedagógica instrumental no trato desses temas? Por essas razões, a leitura na Educação Infantil é um dos meios mais eficazes de desenvolvimento da linguagem e da personalidade, pois trabalhar com a linguagem é lidar com o ser humano (JOLIBERT, 1994).

 

 

DO DIREITO À LEITURA À PRÁTICA DE LEITURA EFETIVA: A VEZ DOS BEBÊS

 

            É direito de todos os bebês o acesso à leitura e à cultura. De acordo com Candido (2011, p. 177), em Direito à Literatura, “a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo”. Infelizmente, ainda é muito frequente a oferta de livros sem características literárias, sem personagens representativas e que se aproximem da realidade de que alguns grupos de bebês fazem parte. Muitos desses livros que são lidos e oferecidos estão enviesados por uma ideologia hegemônica, reducionista, preconceituosa, em geral patriarcal, moralizante e cristã. Candido (2011), em sua obra, enfatiza a leitura da literatura que emancipa e humaniza, sem finalidades pedagogizantes e instrumentais para doutrinar ou acostumar os sujeitos a certas práticas, pois a “literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas” (CANDIDO, 2011, p. 178).

            Precisamos refletir sobre o ato de ler livros enquanto fazer sociocultural, mas também saber fazer escolhas que possam acolher todos os tipos de infância. Construir critérios para que essas seleções sejam feitas, uma vez que, bebês são tão sujeitos produtores de cultura quantos crianças alfabetizadas, são seres pensantes e capazes de apreender os saberes e (res)significá-los. Não podemos reduzi-los, deste modo, a uma folha em branco, à espera de um adulto para desenhar os seus passos. Isso porque a formação do sujeito-bebê leitor não acontece no vazio. Ler, como diz Perrotti (1990, p. 63), “não é um ato natural, mas cultural e historicamente demarcado”, a leitura é apreendida a partir do meio histórico e social em que vivemos. Por isso, a leitura pode proporcionar o desprendimento daquilo que é imposto.

            Ler é um ato de resistência e direito de todos, e a escola é um dos espaços institucionalizados que pode assegurar que isso ocorra por meio da figura do professor, que mediará essa apreensão em rodas de leitura (SAMPAIO et al., 2015). O que percebemos é que a escola, aos poucos, vai se tornando o espaço onde ocorre a promoção da leitura, o ambiente que disponibiliza certos livros em detrimentos de outros, de acordo com suas concepções pedagógicas, ideológicas, culturais, políticas e sociais.

            Sabemos que há muitos estudos e projetos cujo objetivo é incentivar a prática da leitura entre as crianças em início de alfabetização, mas pouco se olha para a formação do sujeito-bebê leitor avant la lettre. Onde fica o lugar dos bebês nesse espaço social da leitura? Como vimos, certas práticas de leitura, de certos gêneros e autores, conduzidas de certas maneiras podem proporcionar muitos benefícios na formação do sujeito e em sua formação como leitor. Ora, se ela promove tantos desenvolvimentos, por que não dispomos ainda de investimentos adequados, de medidas sérias, de ações coletivas com vistas à formação precoce, de qualidade, lúdica, inventiva, sensível e humanizadora das pequenas leitoras e dos pequenos leitores?

As crianças possuem cultura e há um modo muito específico de percebê-las em produção e atividade. Para o campo dos Estudos Sociais da Infância, as crianças são sujeitos sociais e de direitos e apropriam-se do mundo de modo criativo, produtivo e interpretativo. Reproduzem o mundo adulto em que se inserem, mas fazem uso dele a partir de suas próprias referências, reinventando maneiras de agir, de se portar, de se relacionar e de construir histórias sobre si mesmas. Considerar que há uma cultura infantil sendo produzida pelas crianças, nas relações interpessoais com seus pares e em seus grupos, oportuniza a visibilidade de suas diferentes linguagens. Com base na compreensão de que as crianças se expressam por meio de diferentes linguagens, comunicam-se entre si e estabelecem relações de interação também com os adultos permite tornar reconhecida sua potência, sua inventividade ou mesmo sua intempestividade (ABRAMOWICZ; LEVCOVITZ; RODRIGUES, 2009). As crianças falam, mas nem sempre as escutamos. Uma nova epistemologia para a infância, baseada na escuta e na reinvenção das formas de escutar as crianças se faz necessária. É neste ponto que inicia-se a discussão (MORUZZI; ALONSO, 2020, p. 655).  

 

            Neste texto, refletiremos sobre a pouca presença de temas fraturantes e decisivos na formação dos sujeitos em nossa sociedade, nas obras destinadas ao público infantil, especialmente aos bebês, em sua pouca diversidade e presença nas bibliotecas das instituições públicas hoje encarregadas da promoção dessa prática e da garantia desse direito às pequenas e aos pequenos, que nesta pesquisa pretendemos refletir sobre a formação do bebê leitor orientando nossa busca e análise para a produção, formulação e circulação de obras literárias que abordem temas feministas e antirracistas, como meio de formar, desde cedo, sujeitos capazes de experenciar o respeito mútuo, de exercitar sua capacidade de empatia, de exercer e de garantir aos outros o direito de praticar a liberdade, como gesto de resistência humanizadora.

            Afinal, tornamo-nos sujeitos mais plenos quando aprendemos princípios humanísticos como o da igualdade entre os seres, o da importância de ser e nos tornarmos um agente de transformações sociais e culturais decisivas para a vida em sociedade. Disso se justifica a relevância da figura do mediador que escolhe o que ler, que lê de maneira a tornar essa prática prazerosa por ser significativa, na medida em que suas escolhas podem formar sujeitos sociais mais preparados para a vida em comum, com suas contradições a reconhecer e com suas desigualdades a combater.

            Soa estranho pensar que muitas escolas, compostas majoritariamente por bebês negros, não possuam a cultura de realizar leituras de obras antirracistas. Segundo Rosemberg (s/d, p. 36), “a educação [dos bebês e] da criança pequena, se associa a um intenso desconhecimento de nós pesquisadoras/es sobre as relações raciais que se constroem no âmbito da creche e da pré-escola e da pequena infância”. Isso torna necessário repensarmos as práticas educativas no que concerne à adoção de obras literárias representativas. Rosemberg (s/d, p. 38), levanta, ainda, o seguinte questionamento: “a política de creche brasileira sustenta e provoca desigualdade racial?”, e ela responde que sim, não apenas discriminação contra a criança e/ou sua família estão presentes como também as “desigualdades regionais, econômicas, de gênero e, sem dúvida, de idade”. O que percebemos, desse modo, é que “a pobreza tem, entre outras coisas, cor” (ABRAMOWICZ, s/d, p. 51), uma triste realidade naturalizada em nossa sociedade e, por isso, vista também em creches, instituições que, em sua grande maioria, exercem a função disciplinar e normatizadora, promovendo e reforçando as desigualdades, os preconceitos e estereótipos cristalizados.

            E é justamente porque a sociedade é profundamente desigual, e elege os grupos que ocuparão essas posições desiguais, que é preciso conduzir ações que contribuam para que ela deixe de ser. Daí nosso interesse em refletir, de início, sobre a importância da representatividade, de todos os grupos que constituem nossa sociedade, desde cedo, nas ações de leitura e de condução das atividades pedagógicas junto aos bebês, que têm o direito de ouvir histórias nas quais se identifiquem com as personagens principais e não se vejam em versões estereotipadas e preconceituosas indiferentes à sua condição de ser no mundo, de ser em sociedade. Também é preciso pensar sobre as formas de fomentar a igualdade racial e de gênero de maneira progressiva, naturalizada, posto que, os bebês enquanto sujeitos históricos são capazes de (re)produzir, ao seu modo, os valores culturais  que os cercam, que se impõem sob a força do consenso. É preciso desconstruir alguns consensos perversos, e isso com gestos e práticas constantes, variados e engajados no compromisso de promover uma sociedade mais sensível, solidária e socialmente justa.

            Contudo, fica difícil cobrar tal postura das unidades educacionais bem como dos educadores uma prática que desconstrua essas ideologias homogeneizadas, quando instituições governamentais não promovem esse tipo de ação, por exemplo, no catálogo de livros do Plano Nacional de Leitura (doravante PNL) para bebês de 0 a 2 anos, não há um livro que aborde a temática feminista ou antirracista. Como propor, desse modo, políticas educacionais que consigam transpor as barreiras das desigualdades sociais, de gênero e de cor? É preciso, pois, romper essas barreiras e promover práticas de leitura que sobrelevem a igualdade de raça e de gênero.

            Conforme aventa Rosemberg (1996, p. 64), “o caminho mais adequado para superar este intrincado jogo de subordinações de classe, raça, gênero e idade que vem prejudicando as crianças na educação infantil seria o da formação e da qualificação trabalhadora”, ou seja, daqueles que participam ativamente dos cuidados dos bebês.

 

 

A VEZ E A VOZ DOS BEBÊS

 

Infâncias tão conhecidas e tão desconhecidas, tão saudáveis e tão doentes, tão inteiras e tão fragmentadas, tão presas e tão livres, tão verdadeiras e tão escondidas. Um mundo de infâncias a desvendar! (FRIEDMANN, 2020, p. 46).

 

 

            Adriana Friedmann (2020, p. 46) apresenta em A vez e a voz das crianças as oposições que permeiam a infância, tornando-a única e heterogênea. Não é de hoje que o sistema educacional brasileiro, sobretudo, o da educação básica, precisamente, o da educação infantil, apresenta sérios problemas ainda de ordem quantitativa, mas principalmente de ordem qualitativa. Ao longo dos anos, o que pudemos ver foi o descaso com a educação, em especial, com a falta de incentivo à prática de leitura voltada para bebês. Apesar de haver, hoje, relativo estímulo a essa experiência, ainda é baixo o investimento em literaturas que fujam dos ideais hegemônicos, moralistas e conservadores.

            Tradicionalmente, as produções acadêmicas desenvolvidas a esse respeito inscrevem-se nos campos da sociologia da infância e da formação e da constituição do sujeito leitor a partir da alfabetização. Por este motivo, a presente pesquisa também almeja contribuir com tais campos, por intermédio de uma abordagem discursiva de um de seu objeto, ao agregar suas inter-relações com outras esferas e instituições sociais, a saber, a formação do bebê leitor.

            Gabriela Tebet (2019) e Renata Souza e Juliane Motoyama (2016) são pesquisadoras que tem se dedicado aos estudos da infância, mais precisamente aos diálogos possíveis da sociologia e os estudos de bebês. Tebet (2019), traz à tona a importância de se estudar os bebês, uma vez que, são também sujeitos sociais, mesmo que num âmbito mais familiar, particular e privado. Andrea Moruzzi e Giovana Alonso (2020) vão trazer a noção de criança subalternizada, a qual é possível traçar um paralelo ao espaço dado aos bebês, que foram colocados à margem por não dominarem a linguagem oral. Num momento, a falta do domínio da fala os colocavam na condição de excluídos, num outro, já com o domínio da fala, lhes são tirados a voz por não dominarem a leitura de textos verbais.

A criança é subalternizada, assim como o são a mulher, o(a) negro(a), o(a) pobre, o(a) homossexual, o(a) indígena etc. A criança é subalternizada por distanciar-se em corpo e expressão do adulto. A criança é subalternizada por não se comunicar tal como o adulto, por não falar tal como o adulto, por não pensar tal como o adulto, por não comer tal como o adulto, por não agir tal como o adulto e por não garantir, tal como ele o faz, que a lógica capitalista da produtividade se mantenha constante. A criança é colocada à margem, é perifericamente excluída das relações, é epistemologicamente silenciada ao basear-se a sua educação e sua socialização em determinações que não consideram sua potência, sua agência, seu protagonismo, sua interferência, os relacionamentos que estabelece e a sua produção no mundo. Pelo contrário, as referências para sua educação e socialização invocam imperativos da passividade, da quietude, da retaguarda, esquadrinhamento, de governança e de proteção, proteção que por vezes é mascarada pelo abuso de poder (MORUZZI; ALONSO, 2020, p. 654).

 

            Já Souza e Motoyama (2016, p. 25), tecem reflexões sobre como os espaços de leitura propostos para “atender adultos letrados e crianças em fase de alfabetização [foram se expandindo] para bebês com poucos meses de vida: a Bebeteca”. Para contextualizar o que seria essa bebeteca, posto que, num primeiro momento, tal termo nos causa certo estranhamento, vejamos o que as pesquisadoras falam sobre essa expressão:

 

seria um espaço criado recentemente na história das bibliotecas. Desde o século XX todos estão habituados a observarem bibliotecas nas escolas de ensino fundamental. No entanto, oferecer livros aos bebês, em local organizado para isso, é algo novo, e junto com essa novidade, vem a reconfiguração e reconstrução não só do espaço, mas também dos materiais oferecidos às crianças na primeiríssima infância, com livros diversos e de diferentes materialidades (SOUZA; MOTOYAMA, 2016, p. 26).

 

            Ora, por que não considerar os bebês como sujeitos que estão em processo de se tornarem leitores? Investir em bibliotecas e espaços organizados e acervo de qualidade, com temáticas atuais que representam efetivamente as crianças assim como sua realidade, possibilita que “bebês e as crianças bem pequenas [tenham] oportunidades únicas, como por exemplo iniciarem seu processo de formação como leitores” (SOUZA; MOTOYAMA, 2016, p. 31).

           

 

QUAL É A VEZ DOS BEBÊS, DE FATO, NAS PRÁTICAS DE LEITURA?

 

            A Sociologia da Infância (e também a História da infância) irá nos ajudar na contextualização do cenário brasileiro de formação de leitores na infância, de identificação dos consensos que em geral regulam as formas e as finalidades de como lidar, ensinar, tratar as crianças. Como metodologia de análise dos dados, iremos nos valer da AD[2] para interpretar o modo como os discursos são formulados e circulam na sociedade, de como certos dizeres ganham validação, de como outros caem no esquecimento e não adquirem força de valor de verdade, que nos permitirá investigar os silenciamentos desses temas ou nos vieses ideológicos adotados no tratamento desses assuntos na literatura destinada aos pequenos seja para tratar da ordem social em que as personagens que configuram o corpus de pesquisa se enquadram. Com vistas a ilustrar nosso procedimento metodológico, formulamos um breve exercício analítico, levando em consideração a abordagem de pesquisa etnográfica e de estudo de caso, de um dos objetivos propostos em nosso trabalho.

            No processo de escrita deste artigo, e de modo a aventarmos eventuais impactos dessas regulações do ensino de leitura na primeiríssima infância e a circulação ou não de obras que abordam direta ou indiretamente esses temas, visitamos um centro de educação infantil, aqui denominada de Creche 1, com o objetivo de conhecermos a biblioteca e/ou o acervo de livros infantis disponíveis para a prática de leitura. Para tanto, antes da visita, foi realizada uma lista de livros premiados e indicados por especialistas que trazem à tona a temática feminista e antirracista, são eles:

 

  • Malala, a Menina que Queria ir Para a Escola, por Adriana Carranca
  • Luna Clara e Apolo Onze, por Adriana Falcão
  • Bisa Bia, Bisa Bel, por Ana Maria Machado
  • A Fada que Tinha Ideias, por Fernanda Lopes de Almeida
  • Na Casa Amarela do Vovô, Joaninja como Jujubas, por Jaqueline Conte
  • Procurando Firme, por Ruth Rocha
  • Coleção antiprincesas, de Nádia Fink e Pitu Saá
  • O Mundo no Black Power de Tayó, de Kiusam de Oliveira e Taisa Borges
  • As cientistas: 50 mulheres que mudaram o mundo, de Rachel Ignotofsky
  • Para educar crianças feministas, de Chimamanda Ngozi Adichie
  • Histórias de ninar para garotas rebeldes, de Elena Favilli
  • Coisa de menina, de Pri Ferrari
  • Coisa de menino, de Pri Ferrari
  • 1º Lugar Prêmio Jabuti (2020) Da Minha Janela, de Otávio Júnior
  • 1º Lugar Prêmio Jabuti (2019) A Avó Amarela, de Júlia Medeiros e Elisa Carareto  
  • 1º Lugar Prêmio Jabuti (2011) Obax, de André Neves
  • 2º Lugar Prêmio Jabuti (2010) Carvoeirinhos, de Roger Mello
  • Sem colocação Prêmio Jabuti (2003) Sebastiana e Severina, de André Neves
  • Sem colocação Prêmio Jabuti (2002) Meninos do Mangue, de  Roger Mello
  • Vizinho, vizinha, de Roger Mello (Prêmio Hans Christian Andersen)
  • Letras de Carvão, de Irene Vasco e Juan Palomino (Prêmio Selo Distinção Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio)
  • A cor de Coraline, de Alexandre Rampazo (Selo Distinção Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio)
  • Rosa, de Odilon Moraes (Premiação The White Ravens)
  • A Boca da Noite, de Cristino Wapichana (Premiação The White Ravens)

 

            Após uma busca minuciosa, livro por livro, nessa unidade escolar, não foi encontrado nenhum exemplar que verse sobre a temática feminista, já sobre a antirracista encontramos o título “Menina bonita do laço de fita[3]”, de Ana Maria Machado, muito utilizado pelos docentes para desenvolver projetos que contemplem a lei 11.645/08 que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena. Considerando a ausência de livros de temática feminista e a pequena quantidade de livros com temática antirracista, é preciso entender, primeiramente, como acontece o processo de escolha e de aquisição dos livros de literatura, quais são os parâmetros políticos, sociais, culturais usados para fazer essa escolha, além de se fazer necessário compreender e identificar os empecilhos que não oportunizam escolhas mais democráticas e representativas.

            O que vimos, na Creche 1, que fica localizada em um bairro periférico em uma cidade do interior de São Paulo, é que há pouquíssimos livros sobre as temáticas aqui abordada, o que nos permite problematizar algumas questões de pesquisa i) quais são as razões para a pouca oferta de obras que versem sobre esses temas? e ii) quais são as dificuldades e entraves na disseminação, no acesso e na mediação da leitura de obras com esse teor. Entendemos que, mesmo havendo livros desses temas nas bibliotecas das instituições públicas concernidas, isso não é garantia de que eles estejam sendo lidos e, se lidos, de que eles contem com uma mediação capaz de lançar luz sobre os temas, de forma não redutora, não preconceituosa, não instrumentalizada, considerando que na leitura por um mediador se pode suprimir ou modificar a história bem como adotar outras palavras, de acordo com suas crenças ou por julgar que o bebê seja incapaz de compreender o texto apresentado tal como foi ou, ainda, em função de eventuais exercícios de autocensura. Essa supervisão, por vezes, feita inconscientemente, nega ao outro a possibilidade de aceder a determinados temas  ou apresentados de ângulos menos estigmatizantes e preconceituosos.

            Essa fiscalização pode produzir uma autocensura, disfarçada de liberdade de expressão. Diferentemente da censura exógena do Estado, o “autocensurar-se” é uma forma de limitar certos discursos que, na boca de um professor engajado, soa como resistente e progressista. Tal comportamento significa e produz efeitos de sentidos no modo como ocorre o processo de desenvolvimento da formação e da subjetivação do sujeito-criança leitor/a, sendo a “disciplina um prinpio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras” (FOUCAULT, p. 36, 1996).

            Já sobre a falta de livros que versem sobre literatura feminista, essa ausência não está ausente de significado. Longe disso, esse “silêncio não é vazio, ou sem sentido; ao contrário, ele é o indício de uma instância significativa” (ORLANDI, 2007, p. 68), pois ele está entre as práticas educativas, principalmente, atravessando-as de novas significações. Por isso, o silêncio produz efeitos de sentido diversos. Logo, ele não pode ser tomado como o ‘vazio’ – a falta de livros que abordem temas fraturantes, mostra a realidade social cujo governo corrobora para as desigualdades sociais, étnicas e gênero. Dessa maneira, esse silêncio é a própria condição de produção de sentido, aparecendo como um lugar ou um espaço que permite à prática de leitura significar e significar-se.

 

 

 

          Acreditamos que a pesquisa proposta possa contribuir com a produção acadêmica que envolve os estudos de gênero e de raça, corroborando reflexões sobre como são construídas as políticas públicas que envolvem práticas de leitura e como podemos transformar a leitura enquanto dispositivo e instrumento fundamental de saberes, ideias, valores e, por esse motivo, contribuírem para a democratização da cultura e do próprio ambiente escolar, com vistas à emancipação dos sujeitos e à garantia de sua melhor participação na vida política de nossa sociedade.

            Embora estudos venham sendo realizados ao longo desses anos sobre as práticas de leitura para bebês, ainda são poucos os trabalhos desenvolvidos nessa área. Desta forma, acreditamos ser significante a realização deste artigo por apresentar no i) âmbito acadêmico-científico, análises de textos oficiais/institucionais numa abordagem sociológica e discursiva, que compreende a formação do sujeito-bebê leitor avant la lettre e no ii) âmbito social-político, observando as bibliotecas e/ou espaços e acervos de livros destinados aos bebês em creches, seus modos de ação e as resistências que lhes são interpostos.

            O desenvolvimento desta pesquisa também é justificável pela especificidade daquilo que queremos investigar em termos de fomento precoce da leitura entre bebês, e de como nesse processo não há ainda guarida para se introduzir temas “fraturantes” e “disruptivos”, tidos como do universo adulto por sua densidade, impacto e dureza. No entanto, apesar da delicadeza da convocação desses temas em período tão precoce da formação leitora e do sujeito-bebê, são temas que podem e devem ser abordados em sua formação, de forma a combater e a desfazer uma série de barreiras, de preconceitos, de naturalizações  que são erguidas muito cedo no cotidiano de formação da criança em nossa sociedade e que farão dela, no futuro, um sujeito mais propenso a naturalizar ou a questionar essas barreiras e preconceitos.     

            Além disso, o presente trabalho visou, como resultado, contribuir para a melhoria da formação leitora no Brasil, ao se dedicar ao estudo das carências no trabalho de leitura com bebês nas instituições públicas que se ocupam desses sujeitos, em especial pela ausência de obras literárias nos acervos de livros e objetos de leitura disponíveis nos centros de educação infantil e que contribuam para um mundo mais igualitário, justo e sem preconceitos.

[1] Usaremos o termo sujeito-bebê leitor pensando o bebê como sujeito que também produz discursos, uma vez que ela pode ser entendida como sujeito histórico. Segundo Orlandi (2009, p. 50-53), não devemos pensar o sujeito “apenas numa concepção intemporal, a-histórica e mesmo biológica da subjetividade – reduzindo o homem ao ser natural – é preciso compreendê-la através de sua historicidade. [...] Ao dizer, o sujeito significa em condições determinadas, impelido, de um lado, pela língua e, de outro, pelo mundo, pela sua experiência, por fatos que reclamam sentidos, e também por sua memória discursiva, por um saber/poder/dever dizer, em que os fatos fazem sentido por se inscreverem em formações discursivas que representam no discurso as injunções ideológicas”.

[2] A AD nos permite buscar as relações de paráfrase entre o que é enunciado, tanto no plano material, linguístico do enunciado, quanto no plano semântico, de produção socio-histórico-cultural dos sentidos, como efeitos de sentido.

[3] Faz-se necessário refletir sobre a escolha significativa dessa obra, apesar de trazer discursos que circundam o politicamente correto, há estudos que analisam algumas questões que aparecem na história reafirmando a sociedade patriarcal da qual fazemos parte (por exemplo, o pai da menina não aparece na história e nem é mencionado), o fato da menina ser ‘aparentemente’ uma criança solitária precisando se socializar com um coelho, a construção estereotipada e sensual da mãe mulher negra etc. Cf. “Onde estão os coelhos pretos no livro ‘A menina bonita do laço de fita’?” de Simone Alves Pedersen e Jussara Cristina Barbosa Tortella. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/326468139_ONDE_ESTAO_OS_COELHOS_PRETOS_NO_LIVRO_A_MENINA_BONITA_DO_LACO_DE_FITA. Acesso em: 22 de agosto de 2022.

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. 5. ed. São Paulo: Scipione, 2002/2009.

ABRAMOWICZ, Anete. A menina repetente. Campinas: Papirus, 1995.

BAMBERGER, R. Como incentivar o hábito de leitura. 7. ed. São Paulo: Editora Ática, 2002.

BENTO, M. A. S. Educação infantil, igualdade racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos, conceituais. São Paulo: Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica; Coordenação Geral de Educação Infantil; UFSCar/NEAB; CEERT, 2012. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/cadernos_pedagogicos/edinf_igualdade.pdf. Acesso em: 05 de setembro de 2021.

BIBIAN, Simone. Literatura Infantil: reflexões e provocações. In: Borba, A.; Colinvaux, D. (Orgs.) Educação Infantil: participação, autoria e aprendizagem. São Paulo: Editora do Brasil, 2012, v. 01, p. 215-236.

CANDIDO, A. O direito à literatura. In.: Vários escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: 2011, p. 171-193.

CARVALHO, D. B. A. de. As crianças contam as histórias: os horizontes dos leitores de diferentes classes sociais. Teresina: EDUFPI, 2011.

CHARTIER, R. A aventura do livro. Do leitor ao navegador. São Paulo: Editora Unesp, 1999.

CHAMBOREDON, J.-C. Une sociologie de la petite enfance. In: Espaces Temps: L’enfant n’existe pas. Approche d’une condition humaine. 1985, p. 85-90. Disponível em: https://www.persee.fr/docAsPDF/espat_0339-3267_1985_num_31_1_3292.pdf. Acesso em: 01 de setembro de 2021.

FARIA, Ana Lucia Goulart de. Políticas de regulação, pesquisa e Pedagogia na educação infantil, primeira etapa da educação básica. In.: Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 92, p. 1013-1038, Especial - Out. 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/hPWVkh5NchdwbqLsSXnmkTQ/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 03 de setembro de 2021.

FARIA, Ana Lucia Goulart de. Pequena infância, educação e gênero: subsídios para um estado da arte. In.: Cadernos Pagu, v. 26, janeiro-junho de 2006, p. 279-287. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/MWbkd5gNtMT77mSwpRtPMry/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 03 de setembro de 2021.

FERNANDES, F. As “Trocinhas” do bom retiro. In: Fernandes, Florestan. Folclore e mudança social na cidade de São Paulo. São Paulo: Anhambi, Cap. 2., p.53-257, 1961.

FÉRNADEZ, Karia de F. S.; SANTOS, Laís S. dos. A formação do leitor pela leitura imagética do texto literário. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/rce/article/view/1525. Acesso em: 30 de agosto de 2021.

FRIEDMANN, Adriana. A vez e a voz das crianças: escutas antropológicas e poéticas das infâncias. São Paulo: Panda Books, 2020.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1996.

JOLIBERT, Josette. Formando crianças leitoras. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

LIMA, E. A. de; VALIENGO, A. Literatura infantil e caixas que contam histórias: encantamentos e envolvimentos. In: CHAVES, M. (Org.). Práticas pedagógicas e literatura infantil. Maringá: Eduem, 2011. p. 55-67.

MORUZZI, Andrea. B. A pedagogização do sexo da criança: do corpo ao dispositivo da infância. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2012.

MORUZZI, Andrea B.; TEBET, Gabriela G. de C. Sociologia da infância, pedagogia e currículo da educação infantil: algumas aproximações. In.: Nuances estudos sobre a educação. Presidente Prudente, v. 28, n. 3, set./dez. 2017, p. 166-185. Disponível em: file:///Users/deniseleppos/Downloads/4617-20415-4-PB%20(1).pdf. Acesso em: 05 de setembro de 2021.

MORUZZI, Andrea B.; ALONSO, Giovana. Bebês e crianças bem pequenas no debate sobre cultura infantil. In.: Revista Interinstitucional Artes de Educar. Rio de Janeiro, V. 6, N.2, p. 653-675 maio-agosto de 2020. Disponível em: 10.12957/riae.2020.45966. Acesso em: 11 de setembro de 2022.

ORLANDI, Eni. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.

PASCUAL, I. R. Para una sociología de la infância. CIS: Centro de Investigaciones Sociológicas, 2007.

PERROTTI, E. Confinamento cultural, infância e leitura. v. 38. São Paulo: Summus, 1990.

RAMOS, Maria Rita N.; AUAD, Daniela. Por uma leitura feminista da Educação Infantil com vistas à democracia. In.: Cadernos de gênero e tecnologia. Curitiba, v. 14, n. 43, jan./jun. 2021, p. 394-407. Disponível em: file:///Users/deniseleppos/Downloads/12538-51817-1-PB.pdf. Acesso em: 04 de setembro de 2021.

ROSEMBERG, Fúlvia. A escola e as diferenças sexuais. In.: Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 15, fev. 1975, p. 78-85. Disponível em: http://publicacoes.fcc.org.br/index.php/cp/article/view/1814/1787. Acesso em: 07 de setembro de 2021.

ROSEMBERG, Fúlvia. Educação infantil, classe, raça e gênero. In.: Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 96, fev. 1996, p. 58-65. Disponível em: http://publicacoes.fcc.org.br/index.php/cp/article/view/814/824. Acesso em: 07 de setembro de 2021.

ROSEMBERG, Fúlvia. Criança pequena e desigualdade social no Brasil. Disponível em: http://www.diversidadeducainfantil.org.br/PDF/CRIAN%C3%87A%20PEQUENA%20E%20DESIGUALDADE%20SOCIAL%20NO%20BRASIL%20-%20F%C3%BAlvia%20Rosemberg.pdf. Acesso em: 27 de agosto de 2021.

SAMPAIO, Mariana; LIMA, Elieusa A. de; PRIETO, Mariana N; MARCO, Marilete T. de; VALIENGO, Amanda.  Práticas educativas na educação infantil: aspectos de pesquisa sobre as atividades de leitura e de contação de histórias. In.: I Encontro sobre Currículo II Encontro de Educação Infantil. 2015. Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/Home/Eventos/2015/iencontrosobrecurriculoiiencontrodeeducacaoinfantil/praticas-educativas-na-educacao-infantil-_-sampaio.pdf. Acesso em: 30 de agosto de 2021.

SADOCK, Virginie. Dire et ne pas dire chez les profissionnelles de la petite enfance. In.: Revue [petite] enfance. n. 109, 2017. Disponível em: http://www.revuepetiteenfance.ch/?p=188. Acesso em: 06 de setembro de 2021.

SIROTA, Régine. L’enfance au regard des Sciences sociales. In.: AnthropoChildren, 1, 2012. Disponível em: https://popups.uliege.be/2034-8517/index.php?id=937&file=1&pid=921. Acesso em: 06 de setembro de 2021.

SOUZA, Renata. J. de. Literatura infantil e primeira infância: políticas e práticas de leitura. In.: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP. n. 17, dez. 2016.

SOUZA, Renata J. de.; MOTOYAMA, Juliane F. M. Bebeteca: espaço e ações para formar o leitor. In.: Brazilian Journal of Information Studies: Research Trends, 2016 p. 25-31.

TEBET, Gabriela G. de C. (Org.). Estudos de bebês e diálogos com a sociologia. São Carlos: Pedro & João, 2019.

 

Encontrou algo a ajustar?

Ajude-nos a melhorar este registro. Você pode enviar uma correção de metadados, errata ou versão atualizada.