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Uma Sombra Do Passado: Figurações Do Monstro Gótico Em Tolkien

Anderson Amaral de Oliveira; Ulisses Karnikowski

O gótico apresentou antagonistas sombrios e monstruosos que confrontam o conceito de bem e mal, tal como ocorre com Gollum, nas obras de Tolkien. Esta pesquisa é uma análise narrativa que tem como problema de pesquisa: “quais elementos do gótico estão presentes na figuração do Gollum”. Como percurso metodológico optou-se pelo conceito de figuração, proposto por Reis (2018) que considera a história da personagem além dos recursos da superfície narrativa. Percebeu-se na figura de Gollum, a partir das descrições da aparência e do ambiente, do discurso da personagem e da sua história, elementos simbólicos do gótico, tais como imagens de animais peçonhentos e viscosos, ambientes sombrios que trazem sombras do passado e a própria posição dual no enredo, ora antagonista, ora ajudante. Assim, como o monstro Gótico, Gollum escancara a natureza humana individualista e selvagem, oscilando entre o bem e o mal.  

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Como citar este trabalho

OLIVEIRA, Anderson Amaral de; KARNIKOWSKI, Ulisses. Uma Sombra do Passado: Figurações do Monstro Gótico em Tolkien. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2022 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/481-uma-sombra-do-passado-figura%C3%A7%C3%B5es-do-monstro-g%C3%B3tico-em-tolkien. Acesso em: 16 out. 2025.

Uma Sombra do Passado: Figurações do Monstro Gótico em Tolkien

As séries cinematográficas de O Senhor dos Anéis e O Hobbit foram das mais bem sucedidas da história, totalizando diversas premiações e colocando de vez o universo de John Ronald Reuel Tolkien na cultura pop através de brinquedos, camisetas e diversos produtos que vemos no cotidiano. Porém, de toda a gama de elementos dessas adaptações cinematográficas, um que se destaca é o personagem Gollum. A estranheza causada por essa figura atraiu pesquisas diversas, em especial acerca das tecnologias cinematográficas usadas para sua adaptação.   

Gollum se mostra um personagem dualizado, sombrio e pernicioso, destoando das já consagradas influências folclóricas de Tolkien. A criatura Gollum parece lembrar muito mais personagens e figuras de outra época da literatura inglesa, o gótico. Figuras como Dr Jekyll e Mr Hyde, Drácula, Frankenstein e Erik, de O Fantasma da Opera, parecem evocar características muito próximas a Gollum. 

A presente pesquisa tem como problema de estudo: “quais elementos do gótico estão presentes na figuração do Gollum”. Tal questionamento surgiu graças à curiosidade acadêmica em relação à personagem Gollum e as diferentes inquietações que ela proporciona com sua leitura. Parte-se da hipótese de estudo de que o estilo gótico pode contribuir para entender um pouco mais alguns aspectos da personagem. Esta pesquisa pode contribuir para entender Gollum por uma interpretação que o aproxima de temas que dialoguem com a sua monstruosidade física e moral.

Esta pesquisa busca trazer contribuições pelo viés narratológico, por buscar entender a personagem através de suas complexidades internas e em seu universo diegético. Além disso, entende-se que este trabalho possa contribuir para valorizar o autor e a fortuna crítica acerca de John Ronald Reuel Tolkien, através da investigação da complexidade de uma de suas figuras, expandindo a gama de influências que fizeram seu universo ganhar existência literária.

            Dessa forma, esta pesquisa objetivou averiguar de que forma elementos do gótico se fazem presentes através da personagem Gollum, das obras O Hobbit e O Senhor dos Anéis de Tolkien. Para conduzir a análise utilizou-se do conceito de figuração da personagem ficcional, trazido por Carlos Reis (2018), em que se considera a história da personagem além dos aspectos da narração e da descrição.

Assim, a condução teórica e metodológica desta pesquisa apresenta, inicialmente, a fundamentação teórica da figuração da personagem, apresentando compreensões sobre o que é o monstro gótico, e, finalmente realizando a análise literária da personagem Gollum. O percurso metodológico da análise consistiu em perceber, em um primeiro momento, os elementos góticos presentes na narração e no discurso da personagem; tais aspectos levaram em consideração o seu retrato, as descrições que são feitas de suas ações e ambientes e a forma como ele se expressa e fala. Aliado a isso, as figurações góticas do Gollum foram, enfim, averiguadas através da sua história, explorando a figuração da personagem.

A escolha de realizar a análise literária por meio da descrição, do discurso da personagem e da história se deu pelo entendimento de que tal recorte de pesquisa favorece a percepção dos elementos góticos do monstro e da influência do passado na gênese de Gollum, conforme apresentados na seção “O gótico: a estética e o monstro de todos nós” deste artigo.      

Figuras e figurações: revendo a narratologia da personagem

Os estudos modernos acerca da personagem ficcional expandem a narratologia clássica Genettiana, que se debruça apenas sobre os aspectos discursivos e da narrativa. Estudiosos como o português Carlos Reis (2018) e o americano James Phelan (1989) passam a considerar, também, a história do personagem, ou seja, sua diegese. O próprio Carlos Reis considera o trabalho de Genette como “a carta constitucional da narratologia”, em especial o texto “Le discours du récit” (1972) presente em Figures III (1972) em que Genette apresenta a tríade da narratologia: a história, o discurso e a narração.

A personagem é um signo narrativo e é conceituada por Reis como “a representação de uma figura humana ou humanizada que, numa ação narrativa, contribui para o desenvolvimento da história e para a ilustração de sentidos projetados por essa história” (2018, p.388). Dessa forma, podemos perceber como a personagem está totalmente atrelada à ação da narrativa, é ela que conduz os acontecimentos, é participante do mundo narrado e com ele interage. Ação e Enredo estão, assim, intimamente ligados.

Tal percepção também é defendida por Massaud Moisés (2013), quando ele afirma que “é no fluxo da ação que a personagem mostra as tendências caracterológicas que a distinguem das outras” (2013, p.359). Além das ações, Reis (2018) nos indica que podemos perceber a personagem como signo através dos elementos interligados do nome próprio, da caracterização (ou retrato) e do discurso da personagem. Tais características são colocadas em comparação com outros personagens da própria narrativa e com outras histórias.

            Dessa forma, podemos entender o personagem como figura, cujas características “podem atingir, de forma residual ou consistente, entidades representadas em textos não literários” (REIS, 2018, p.393). Isso se dá quando percebemos a sobrevida da personagem e ela atinge o imaginário e a prática cotidiana da vida real, sendo referência em textos diversos e sendo reinterpretado e ressignificado de várias formas. Tal perspectiva entende o processo de apropriação dos atributos que constituem a personagem e o seu uso intertextual e transmidiático através de adaptações, fanfics e releituras.

            Além da caracterização dos atributos da figura, percebemos que seu discurso é elemento fundamental dentre a gama de ações que a personagem realiza. Reis (2018) nos afirma que o discurso é toda e qualquer forma de atividade verbal da personagem, podendo estar presente seus pensamentos e divagações e estando limitadas às competências linguísticas imaginadas à ela. É pelo discurso que ela se expressa e manifesta-se ideologicamente e transmite sua personalidade.

            Ainda, Reis (2018) traz os elementos da narratologia de Genette ao nos lembrar que o discurso pode ser percebido por seu nível mimético e seu desprendimento do narrador. A distinção clássica entre discurso direto e indireto é também entendida como o discurso citado, aquele que reproduz fielmente a dramatização e a fala da personagem (direto); e o discurso transposto, que passa pelo filtro do narrador (indireto); além do indireto livre, o qual personagem e narrador mesclam-se na ação.

            Para se entender a figuração, é importante destacar os três dispositivos de figuração apresentados por Reis (2018): o retórico-discursivo, o qual se manifesta a narratologia clássica de Genette; o de ficcionalização, que se manifestam as capacidades de transpormos as ações ficcionais para nossa realidade; e o dispositivo de conformação acional, em que são perceptíveis os elementos subjetivos da personagem, entendendo-a como uma manifestação do humano, com questões morais, ideológicas e psicológicas próprias.

            Se a figuração propicia que olhemos as personagens como seres individuais e possuidores de um universo psicológico subjetivo, para analisarmos o gótico na figura do Gollum, faz-se necessário que apresentemos alguns pontos acerca da teorização da estética que consideramos na análise, principalmente com ênfase no monstro gótico.

           

O gótico: a estética e o monstro de todos nós

A Literatura Gótica teve origem nos séculos XVIII e XIX, mas não se trata de um estilo de época puramente desse período. O Gótico é uma estética que condensou elementos simbólicos já trazidos antes, com os medos do futuro pós industrialização, dando-lhes exageros estéticos particulares e extremamente sombrios. Botting (1996) nos elucida que a escrita gótica, apesar de não ser um termo puramente negativo, flerta com símbolos e temáticas que o são, tais como irracionalidade, imoralidade e ameaças sobrenaturais.

A tese defendida por Botting, em Gothic (1996), é de que a literatura gótica possui um viés duplo de entendimento estético: o excesso e a transgressão. Tais elementos são frutos de um momento em que a própria sociedade passava por mudanças culturais profundas, em termos religiosos e tecnológicos (BOTTING, 1996). A explosão de possibilidades científicas frente a uma pesada carga de tradições medievais, por vezes colocando em xeque o que se pensava ser real ou não, ajudou aos fabulistas do gótico a extrapolarem os limites do imaginável.

É importante destacar que o gótico não foi um estilo de época exclusivo e finito uma vez que, de acordo com Botting, “Os excessos góticos, não obstante, o fascínio pela transgressão e a ansiedade sobre os limites e fronteiras culturais continuam a produzir emoções e significados ambivalentes em seus contos de escuridão, desejo e poder”[1] (1996, p.1, tradução nossa). Esses três últimos elementos apresentados por Botting são como auras temáticas para o estilo gótico reverberando-se em outras narrativas que rompem formalmente o estilo, mas mantêm seu espírito. Porém, das características da estética, Júlio França (2018) destaca três elementos que são basilares para entender o Gótico: o locus horribilis, a presença fantasmagórica do passado e a personagem monstruosa.

O elemento para o qual direcionamos a análise é o monstro, porém, todos os três elementos trazidos por França (2018), monstro, locus e o passado, além de não serem exclusividade do gótico, atingem maior significação quando empregados juntos. Ainda, isso em concomitância com um modo narrativo sombrio e com auras de suspense exploram o que a estética tem de mais profunda.

Quanto a isso, Botting (1996) traz o exemplo arquetípico do locus horribilis: o castelo medieval, predominante no início da estética gótica. Construção com uma carga simbólica imensa, recheado de passagens secretas que podem esconder qualquer forma de monstruosidade e paredes que viveram um passado de guerras, o castelo resume o ápice de uma estrutura social decadente, mas que ainda assombra o presente. Além dele, como afirma Botting, “o castelo foi ligado a outros edifícios medievais—mosteiros, igrejas e especialmente cemitérios — que, geralmente em estado de ruínas, remonta a um passado feudal associado à barbárie, superstição e medo” (BOTTING, 1996, p.3)[2].

A evolução da Literatura Gótica fez com que, também, tal elemento evoluísse, e o castelo deu lugar à casa velha, construção cheia de lembranças de um passado familiar e que serve de palco para as diversas ansiedades modernas das personagens que ali habitam. Ansiedades estas que Botting (1996) traz como motor fundamental das personagens góticas, podendo ter sua origem como “revolução política, industrialização, urbanização, mudanças na organização sexual e doméstica e descoberta científica”[3] (1996, p.3). De qualquer forma, tais ansiedades refletem a realidade atual do mundo da personagem, -se assombrado pela pesada carga do passado.

É a partir daí que a literatura gótica explora o caráter de exagero através da figura de seus personagens, transformando-os em monstros. Tal definição se dá por diversos fatores da adjetivação “monstruoso”, podendo ser de forma literal, com a monstruosidade física ou podendo ser metafórica com a monstruosidade moral. Como analisa França (2018), o monstro possui um papel mimético dentro da narrativa gótica, servindo como um construto, uma representação dos medos e desejos de uma determinada época ou espírito temporal.

De acordo com Punter e Byron (2004), a etimologia da palavra “monstro” remete à sua função narrativa: “the monster is something to be shown, something that serves to demonstrate (Latin, monstrare: to demonstrate) and to warn (Latin, monere: to warn)” (2004, p. 263). Ainda conforme Punter e Byron (2004), desde a tragédia grega os monstros são figuras de excessos, podendo ser uma combinação de diversas criaturas ou seres com partes corporais a menos; de qualquer forma, seu teor grotesco serve como símbolo moralizante, algo que demonstra os problemas dos vícios e conduz o comportamento do leitor/espectador em direção à virtude.

Porém, o monstro gótico possui um traço distinto na narrativa, visto que ele também representa o “outro”. França (2018) traz para a discussão o papel da figura monstruosa de ser o diferente, o conflito com o outro que não queremos reconhecer, seja um outro cultural, ou um outro moral, um duplo. Pode-se perceber, ainda que dessa complexidade moral surge um personagem que rompe o maniqueísmo, colocando o monstro gótico em um limiar em que o mundo do Homem entra em conflito com o mundo Divino; o Bem e o Mal são ambos pertencentes à mesma figura.

Dessa forma, é possível perceber que o monstro gótico herda de seus predecessores gregos a função narrativa de antagonista, porém, diversas de suas características acabam sendo reproduzidas também pelos protagonistas. Isso se dá, em parte, pela própria forma fabular do gótico romântico, que apresenta figuras complexas e ambíguas, em especial através do vilão. Quanto à isso, França (2018) afirma que tais ambiguidades se fazem presentes “quando a personagem monstruosa passará a figurar a tensão entre as convenções sociais e as noções de liberdade e de individualidade” (FRANÇA, 2018, p.4); fazendo dessas figuras ao mesmo tempo “heróis” e “vilões”.

O entendimento do monstro gótico como uma figura de transgressão se dá por sua característica de alteridade, como podemos ver em Punter e Byron (2004), visto que o monstro gótico transgride o próprio humano:

Textos góticos repetidamente chamam a atenção para a natureza construída do monstro, para os mecanismos de produção do monstro, e revelam precisamente como o outro é construído e posicionado como estranho e inferior. Por sua vez, isso desnaturaliza o humano, mostrando que o ser humano supostamente superior é, como a alteridade do monstro, simplesmente o produto de uma luta contínua na construção discursiva e reconstrução do poder. [4] (PUNTER e BYRON, 2004, p.285, tradução nossa).

            O movimento de alteridade proporcionado pelo monstro gótico faz com que ele transgrida a própria essência tradicional do monstro. Conforme apontam Punter e Byron (2004), Mary Shelley traz, com o romance Frankenstein, uma oportunidade de nos comovermos com o monstro; ele não é mais apenas uma figura de terror e amedrontamento, mas nos convida para o entendermos e simpatizarmos com seus próprios desejos e medos. Assim, Punter e Byron (2004) afirmam que o monstro gótico vai além de sua função narrativa e mostra que há facetas com potencial para corrupção e violência em todos nós; e que o horror surge quando confrontamos a nós mesmos e percebemos tais figuras e o que elas podem fazer.

Dessa forma, o monstro gótico rompe com a estrutura narrativa, já que gera sentimentos de empatia que entram em conflito com seu papel tradicional de antagonista. A dualidade horror e atração pode ser apontada como uma das forças desse tipo de personagem e que se mantém uma constante em obras até hoje. França (2018) cita algumas obras literárias e audiovisuais do final do século XX e início do XXI, como o filme O Silêncio dos Inocentes (1991) e o romance Androides sonham com ovelhas elétricas? (1968). Demonstrando o poder de reflexão que o monstro gótico gera e também as possibilidades inúmeras de recriação sobre esse tipo de figura.

Assim, independente do estilo ou escola à qual a obra faça parte, o monstro gótico parece possuir vida própria e é adaptável, não sendo dependente de uma obra puramente gótica que o acolha.         A análise, na sequência, buscou aliar os apontamentos contidos nessa seção, deixando de lado temas externos como o estilo da obra para se debruçar acerca dos simbolismos do monstro gótico na figuração da personagem Gollum.

 

A decadência e a sombra de Sméagol: o gótico na figuração de Gollum

A criatura Gollum é uma personagem com uma faceta dupla. Conforme defende David Callaway (1984), a personagem é um herói mal compreendido e possui características vilanescas e heroicas. Ainda conforme a análise de Callaway (1984), é uma figura que apresenta um conflito interno entre ajudar Frodo a destruir o Anel de Poder ou mantê-lo sob seu controle; como apresentado na análise.

Gollum é uma personagem secundária das obras O Hobbit e O Senhor dos Anéis, e sua participação nas duas tramas está diretamente ligada ao Anel de Poder que dá nome à segunda obra. Gollum é, uma criatura amaldiçoada, maligna e mesquinha, que passou mais de cinco séculos escondido do mundo e de todos em uma caverna subterrânea no interior de uma montanha, apenas guardando seu maior tesouro: o Anel de Poder (TOLKIEN, 2002 e 2009).

Porém, para que os elementos góticos da personagem sejam percebidos é necessária uma visão meticulosa sobre alguns aspectos específicos.

            A análise tomou como ponto de partida a obra O Hobbit, cujo enredo apresenta a personagem pela primeira vez. A partir daí, foi feita a investigação dos elementos góticos que constituem a caracterização do Gollum na obra supracitada e em O Senhor dos Anéis. Após, analisou-se o discurso da personagem, tentando perceber sua dualidade moral por meio da fala, iniciando, novamente pela ordem em que a personagem foi apresentada ao leitor. Além disso, aqui optou-se pelo texto original, em inglês, pela fidelidade aos recursos sonoros presentes. Ainda, investigou-se a figura por meio de sua história, tal como contada pela personagem Gandalf em O Senhor dos Anéis, buscando de que forma o passado assombra o presente do Gollum, como ocorre no período.

A primeira descrição que é feita do Gollum, em O Hobbit, é antecedida por sua ambientação: “algumas dessas cavernas tiveram origem em eras anteriores aos orcs, que apenas as alargaram e interligaram com corredores, e os proprietários originais ainda permanecem lá em cantos escuros, movimentando-se furtivamente e farejando tudo” (TOLKIEN, 2009, p.72). A narrativa funciona como uma antecipação ao aparecimento do personagem Gollum, fazendo reminiscências a um passado muito distante, fator que é fundamental para reforçar o teor misterioso do monstro gótico.

O passado está presente nas narrativas góticas através da ambientação, e como no gótico clássico, o que assombra o presente é o medievo e seu elemento simbólico mais significativo é o castelo. Botting (2005) diz que essa era pode ser considerada menos civilizada e bárbara, cujas construções, na maior parte castelos, possuem passagens secretas e câmaras obscuras, que podem esconder coisas que ainda estão ali e passaram despercebidas. Botting (2005) inclusive afirma o poder que alguns elementos naturais sombrios, como a caverna e as rochas possuem para simbolizar o clima melancólico típico do Gótico.

     Para Gollum, sua caverna possui função simbólica semelhante aos castelos medievais em relação ao gótico. Além do formato visual semelhante ao de um lugar extremamente alto, intransponível e com um pico que se eleva acima de todo o seu redor, a caverna em que Gollum vive possui diversas entradas e cantos escuros, tal como as passagens secretas do castelo gótico. Ainda, como a Terra Média de Tolkien não se situa em um período de modernidade como o gótico, a dualidade “presente moderno e passado medieval” é substituída pela dualidade “presente medieval e passado pre-civilizatório”. Percebe-se que o elemento do passado que assombra o presente da Terra Média é a própria natureza e o seu estado de selvageria.

Outro elemento do ambiente que se destaca é a catacumba, presente no subsolo dos castelos, já que a caverna subterrânea do Gollum funciona como uma espécie de catacumba para a montanha, e até mesmo os orcs evitam o lugar, “a não ser que o Grande Orc os mandasse. Algumas vezes ele sentia vontade de comer peixe do lago, e algumas vezes nem orc nem peixe retornavam” (TOLKIEN, 2009, p.72). Porém, além dessa relação direta de semelhança entre a posição que a caverna de Gollum possui no coração da montanha, ela apresenta um simbolismo mais profundo para o personagem: o retorno ao primitivo.

            Em relação a isso, Chevalier e Gheerbrandt (1982) trazem a caverna como um símbolo de origem e nascimento, sendo o local o qual a criatura Gollum aparece como tal, sofrendo sua transformação física e moral. Além disso, a caverna é também, de acordo com esses autores, um local de descobrimento do eu interior, mas um eu primitivo (CHEVALIER e GHEERBRANDT, 1982). Assim, em uma primeira análise, Gollum parece simbolizar um ente primordial e primitivo, que se entrega a sentimentos mesquinhos e consumistas e não percebe nada a não ser suas próprias necessidades. Já em um segundo plano, a caverna traz para ele um momento de autodescoberta, um novo nascimento de um indivíduo com seus próprios traumas, como será colocado durante a análise de sua história.

É interessante perceber como o narrador instiga a curiosidade antes da criação do retrato da personagem, já que, em O Hobbit, os orcs são os principais antagonistas da história e essa descrição deixa claro que há coisas mais sombrias e perigosas do que eles, criando um clima de intenso estranhamento e curiosidade. Além disso, nos é antecipado que o personagem é uma criatura híbrida, sendo pessoa possui subjetividade e conflitos internos, como animal, rasteja, preda e come carne crua.

Após isso, a primeira descrição da personagem, de fato, arremata esse hibridismo, além de reforçar sua origem misteriosa e sua monstruosidade: “o velho Gollum, uma pequena criatura viscosa. Não sei de onde veio, nem quem ou o que ele era. Era um Gollum - escuro como a escuridão, exceto por dois grandes olhos redondos e pálidos no rosto magro” (TOLKIEN, 2009, p.72). A monstruosidade do Gollum se dá pelo mistério e seu caráter de “criatura”, que, apesar de possuir um nome próprio, é referido pelo narrador através de recursos indefinidos e dúbios (“o que era” e “um”) para se referir a ele.

Assim, vemos que o retrato inicial do personagem, feito em O Hobbit, é propositalmente incompleto para que o leitor possa preencher as lacunas deixadas. Os únicos elementos que temos é de que ele é pequeno, viscoso, possui um rosto magro com dois olhos grandes e pálidos. Após, o narrador dá mais algumas pistas sobre a aparência do Gollum: “ele impelia o barco com os pés grandes pendendo das bordas, mas nunca erguia uma onda na água. Não ele. Olhos pálidos feito lamparinas, ele procurava peixes cegos, que agarrava com os dedos longos num piscar de olhos” (TOLKIEN, 2009, p. 72). Todas as descrições complementam sua monstruosidade física através de seus membros desproporcionais e a magreza extrema, além de demonstrar que Gollum é um caçador, um predador, reforçando sua periculosidade.

Já em O Senhor dos Anéis, segunda narrativa em que Gollum aparece, seu retrato é novamente antecipado, porém não mais pelo narrador e sim pelo discurso da personagem Sam, ajudante do protagonista Frodo: “Olhe para ele! Parece uma aranha rastejando numa parede” (TOLKIEN, 2002, p.643). A comparação feita ajuda a criar uma imagem mental muito específica, mas que possui recorrência no gótico. Botting (1996) e Punter e Byron (2004), trazem a imagem de aranhas e seres correlatos como escorpiões, lagartos e vermes em Drácula, de Bram Stoker, e em poemas de William Blake, animais perigosos e que trazem sentimentos de repulsa e medo. Após a evocação de tais sentimentos, pela comparação de Sam, o retrato do Gollum, em O Senhor dos Anéis é feito pela descrição:

Descendo a face de um precipício, íngreme e quase lisa ao que parecia no luar pálido, uma pequena figura negra vinha com suas finas pernas abertas. Talvez suas mãos e pés moles e pegajosos estivessem encontrando fendas e apoios que um hobbit jamais poderia ter visto ou usado, mas parecia que ele estava simplesmente descendo com patas viscosas, como algum bicho grande à espreita, semelhante a um inseto. E estava descendo de cabeça para baixo, como se farejasse o caminho. De vez em quando erguia a cabeça devagar, jogando-a para trás sobre seu pescoço longo e fino, e os hobbits viram de relance duas pequenas luzes brilhantes, os olhos dele, que piscavam à luz da lua por um instante, e em seguida eram rapidamente cobertos pelas pálpebras outra vez. (TOLKIEN, 2002, p. 643).

 

Na comparação com a descrição feita em O Hobbit, é perceptível que a relação do personagem com seu passado misterioso não aparece, tendo em vista que nesse ponto da narrativa, já ficamos sabendo sobre ele (algo que apontaremos na análise da sua história). Aqui Gollum não é mais demonstrado pela faceta da incompletude das descrições, mas sim de uma forma direta e com intenso uso da comparação, não só a uma aranha, mas também a um inseto. O esforço do narrador em criar um símile mental para que Gollum seja atrelado mais a um animal do que a um ser racional é contundente, visto que além de completar a antecipação de Sam, usa o termo “como algum bicho grande”.

A monstruosidade do Gollum é percebida pelo mistério e a estranheza que o comportamento da criatura causa. Para os protagonistas Sam e Frodo, Gollum é um indivíduo como eles, porém, age como um ser animalesco que, tal como as aranhas, pode dar o bote em sua presa a qualquer momento. Isso dá a Gollum não só o retrato de um ser perigoso, mas também demonstrando sua ausência de humanidade. Como na figura do monstro gótico, Gollum choca por sua aparência e comportamentos não civilizados, sendo parte do cenário, ambos são o elo que liga o presente ao passado sombrio e selvagem.

            Após a construção do retrato de um ser que evoca periculosidade e animalidade, feita pelo narrador, o que se percebe no discurso do Gollum é dúbio. A primeira fala do Gollum, em O Hobbit, se dá quando a figura encontra o protagonista Bilbo e o que se percebe é algo que vai ao encontro a seu retrato: "Bless us and splash us, my precioussss! I guess it's a choice feast; at least a tasty morsel it'd make us, gollum!" (TOLKIEN, 2011, p. 54). A personagem demonstra periculosidade através de seu discurso, dada a intenção de se alimentar do protagonista; além disso, há elementos simbólicos na fala do Gollum que reforçam a figuração de um predador noturno tal como o seu retrato. Há uma forte aliteração com o som de “S” que permeia a fala da personagem, assemelhando-se ao sibilar de uma serpente, inclusive sendo alongado o som da letra ao final da palavra “precious”, ao qual a figura se refere constantemente.

            Gollum é uma personagem dual: ao mesmo tempo antagonista e ajudante, a figura demonstra, através de suas falas, constantes mudanças de comportamento. O uso de plurais é algo que antecipa, de maneira simbólica, a dualidade da personagem, como quando pergunta a Bilbo, em O Hobbit: “What's he got in his handses?”(TOLKIEN, 2011, P.54). O fato do Gollum colocar uma segunda marcação de plural (-es), além do “s”, bem como nas palavras: “eggses” e “orcses”,  reforça que ele vê a si mesmo como dois, já que conversa constantemente sozinho. Além de falar com Bilbo indiretamente como se tivesse perguntando a alguém sobre ele, demonstrado pelo pronome “he”, Gollum fala de si como se fossem mais de uma pessoa, já que usa “us” ao invés de “me”.

            Gollum é descrito e fala como um ser peçonhento, porém, percebe-se inteligência e malícia no conteúdo de seu discurso. Como visto em O Hobbit, após se demonstrar agressivo, ao ver que Bilbo estava armado com uma espada mágica, Gollum passa a ser amigável: “Praps ye sits here and chats with it a bitsy, my preciousss. It like riddles, praps it does, does it?" (TOLKIEN, 2011, p.54). O estranhamento causado pela construção do discurso do Gollum se dá pela tentativa de ser educado e polido, principalmente pelo uso constante de “praps” (talvez) contração de “perhaps”; ao qual a personagem parece se esforçar em falar de forma subjuntiva, retirando o peso de suas afirmações.

            Porém, além de usar uma contração, causando a impressão da falta de um conhecimento rebuscado, Gollum mantém sua imagem animalesca e peçonhenta pela repetição da aliteração em “s”. A mesma mudança de comportamento é percebida em O Senhor dos Anéis, quando a personagem tenta emboscar Frodo e Sam e é capturado pelos dois. Após, Gollum concorda em servir como guia do grupo pelas terras selvagens:

‘Yess, yes indeed,’ said Gollum sitting up. ‘Nice hobbits! We will come with them. Find them safe paths in the dark, yes we will. And where are they going in these cold hard lands, we wonders, yes we wonders?’ (TOLKIEN, 2011, p. 234).

            Apesar da aparência animalesca e peçonhenta do Gollum, seu discurso apresenta uma personagem esperta e inescrupulosa, contrastando com a bondade do protagonista Frodo; assim, sua monstruosidade não é apenas física, mas moral. Gollum não segue qualquer tipo de honra ou código de conduta, sendo guiado por sentimentos oscilantes entre os egoicos primitivamente humanos e os instintos animais; como França (2018) aponta, monstros, no gótico, são “indicadores de demarcações sociais, e reforçam códigos culturais e morais, além de assinalar as fronteiras das práticas e comportamentos que são socialmente aceitáveis.” (FRANÇA, 2018, p.2). Assim, o discurso do Gollum escancara a natureza selvagem e caótica do homem que mistura instinto e astúcia e coloca em xeque constantemente a moralidade e a bondade do protagonista; demonstrando a Frodo que caso haja como Gollum, de forma selvagem e mate a criatura, será um monstro como ele.

Além da aparência e do discurso, a história é um elemento fundamental para entender a figuração do Gollum com maior profundidade. Uma das características de maior força do gótico é a de como o passado influencia o presente, seja através do mistério, seja através de linhagens familiares ou até mesmo da tentativa de esquecer quem um dia fomos e fizemos. Nas histórias da Terceira Era da Terra Média, período em que são ambientados O Hobbit e O Senhor dos Anéis, o passado influencia tanto o presente que é justamente  o Um Anel, artefato forjado na Segunda Era (TOLKIEN, 2002), que movimenta boa parte das ações nos dois enredos.

O passado assombra as personagens nas tramas da Terceira Era, conforme aponta Ferdynus (2016), elas constantemente se deparam com ruínas de cidades destruídas, monumentos a heróis antigos e diversas relíquias feitas há muito tempo; além de o passado ser perceptível através de cantigas e baladas homenageando lendas e narrativas lembradas pelos próprios personagens que remetem a grandes feitos. Tal como no gótico, o passado empurra o presente nos enredos da Terceira Era, seja de forma positiva com os heróis lendários, ou de forma negativa com maldições, artefatos e fantasmas com assuntos inacabados. 

Para Gollum, o passado afeta sua história diretamente, pois foi justamente um ato do passado que fez com que o hobbit Sméagol se tornasse a criatura Gollum. Em O Senhor dos Anéis, a personagem Gandalf, mago muito sábio e conhecedor das histórias do povo, conta para o protagonista Frodo a história da criatura e sua origem; a partir daí pode-se perceber como o passado tornou-se uma sombra para Gollum. Dessa forma, a história da personagem será analisada em dois níveis: o passado, contado por Gandalf e o presente, em O Senhor dos Anéis.

De acordo com a narrativa de Gandalf, Sméagol era membro de um povo aparentado aos hobbits, indivíduo ávido pelo conhecimento, além de ser de uma família abastada, governada pela avó, uma mulher conhecedora de histórias antigas. Acerca de Sméagol, Gandalf conta que:

Ele se interessava por raízes e origens; mergulhava em lagos fundos, fazia escavações embaixo de árvores e plantas novas, abria túneis em colinas verdes; com o tempo, deixou de olhar os topos das colinas, as folhas nas árvores, e as flores se abrindo no ar: sua cabeça e olhos só se dirigiam para baixo. (TOLKIEN, 2002, p. 54).

 

É perceptível a partir do início da narrativa de Gandalf que Sméagol possuía certa inclinação à melancolia e à introspecção, já que de forma muito simbólica, a cabeça do personagem só se dirigia para baixo, investigando o chão, parecendo procurar um lugar onde se esconder. A melancolia e o afastamento de elementos simbolicamente belos como as flores e as colinas se mostram como os primeiros passos de Sméagol em direção à sua monstruosidade.

Ainda conforme a narrativa de Gandalf (TOLKIEN, 2002), ele tinha um amigo chamado Déagol e certa vez, enquanto Sméagol fuçava as margens, Déagol pescava em um barquinho no meio de um lago. Após ser puxado para baixo da água por um enorme peixe, Deágol encontra na lama do rio um anel de ouro muito brilhante; e após regozijar-se com o achado, Sméagol pede o anel para si. Tendo o pedido recusado, Sméagol “segurou Déagol pela garganta e o estrangulou, porque o ouro era tão brilhante e bonito. Depois pôs o anel em seu dedo.” (TOLKIEN, 2002, p.55). Esse ato brutal acaba por selar o processo de transformação de Sméagol no monstro Gollum.

O assassinato de seu amigo acabará assombrando Gollum pelo resto de sua vida. O Anel do Poder que ele acabara de adquirir, lhe proporciona longevidade, mas consequentemente, aumenta seu sofrimento. Ao assassinar o amigo, Sméagol rompe de vez os laços que o unia a sua comunidade, pois Déagol simbolizava seu contato com o mundo, sua humanidade. Sméagol se entrega ao desejo instintivo e transforma sua melancolia em bestialidade, assemelhando-se ao monstro gótico, a personagem tensiona os valores morais em detrimento de sua própria individualidade.

As parcas tentativas de convívio depois disso escancaram sua transformação. Conforme contado por Gandalf, o anel deu a Sméagol a capacidade de tornar-se invisível, dom que a personagem usou para fins maliciosos e perniciosos, passando a roubar, espreitar e importunar. Como Gandalf analisa, “O anel tinha lhe dado poderes de acordo com sua estatura” (TOLKIEN, 2002, p.55), demonstrando que a natureza monstruosa apenas foi potencializada pelo artefato.

Sméagol passou a ser impopular entre sua comunidade, “estes o chutavam, e ele mordia seus pés” (TOLKIEN, 2002, p.55) e na passagem, Gandalf transforma Sméagol em um animal, bem como um cão de rua, sarnento e inoportuno. Sméagol estava agora marginalizado, andava pelas ruas resmungando e gorgolejando, daí recebeu o apelido: Gollum. Seu batismo como criatura animalizada vem do deboche, potencializando sua melancolia, e a cena diminui tanto a figura que proporciona um sentimento de piedade no narratário. Após ser expulso da comunidade pela avó, Sméagol:

Vagou sozinho, chorando um pouco pela dureza do mundo, e viajou rio acima, até chegar a um riacho que descia das montanhas, seguindo esse caminho. Capturava peixes em lagos fundos com dedos invisíveis e os comia crus. Num dia muito quente, quando se inclinava sobre um lago, sentiu algo queimando na sua nuca, e uma luz ofuscante que vinha da água doeu em seus olhos molhados. Surpreendeu-se com isso, pois havia quase se esquecido da existência do sol. Então, pela última vez, olhou para cima e o desafiou com o punho fechado. (TOLKIEN, 2002, p. 55).

 

A decadência moral do Gollum é demonstrada pelo seu comportamento animal, caçando e comendo animais crus. Seus “dedos invisíveis” possuem uma via dupla de significação, além da magia proporcionada pelo anel, é possível ver que se trata de um indivíduo que não mais existe no mundo, já que sua invisibilidade é também moral. Além disso, os elementos naturais que permeiam a narrativa de Gandalf potencializam a decadência completa do Gollum.

Assim como ocorre com o Gótico, a montanha e a caverna se colocam como símbolos da melancolia, um refúgio para esconder medos e fugir do mundo, em contraste com os astros, aqui o sol, que Gollum já demonstrou em seu discurso odiar tanto. Apesar de chorar, o ato simbólico de desafiar o sol marca seu instinto de manter-se vivo. Como um animal que gesticula e grita para marcar território, a personagem usa a melancolia para se manter ainda mais próximo do Anel do Poder e se afastar do mundo. Temendo o sol, Gollum:

Viajou de noite pelas montanhas, e encontrou uma pequena caverna, da qual corria o riacho escuro; e fez o caminho rastejando, como uma larva entrando no coração das montanhas; e sumiu de todo o conhecimento. O Anel entrou nas sombras com ele, e nem mesmo quem o fez, quando seu poder começou a crescer novamente, pôde saber qualquer coisa sobre o assunto. (TOLKIEN, 2002, p. 55).

 

A decadência do passado do Gollum é encerrada na narrativa de Gandalf de forma melancólica, escancarando o não-lugar da criatura que passa a definhar física e moralmente, sendo comparado a uma larva. As sombras ao qual adentra representam seu mergulho na própria individualidade e em sua animalidade interior, sumindo como sujeito e tornando-se parte do cenário, fundindo-se ao coração da montanha.

Após, no enredo presente em O Senhor dos Anéis, Gollum ressurge e ao acompanhar Frodo para a destruição do Anel do Poder, escancara os conflitos humanos adormecidos em sua caverna. Como defende o ensaio de Callaway (1984), Gollum demonstra virtudes e bondade ao longo da história, como quando caça coelhos para Sam fazer ensopados e quando assume papel de liderança durante a travessia dos Pântanos Mortos, já que Frodo e Sam estavam totalmente em suas mãos.

Sendo um herói ou vilão, Gollum tem a chance de utilizar-se de sua monstruosidade para se redimir, colocando-se em um conflito interno e escancarando seu amor/ódio em relação ao Anel de Poder. Ao fazer parte do mesmo núcleo da história que Frodo e Sam, Gollum é também uma vítima como qualquer indivíduo da Terra Média, e isso o recoloca como pertencente a um grupo, uma comunidade. Otimista, Sam divaga com Frodo acerca de possíveis baladas e canções que possam fazer de suas figuras caso consigam destruir o anel, colocando Gollum ao seu lado e se questionando: “Será que ele se considera o herói ou o vilão?” (TOLKIEN, 2002, p.751).

A complexidade da personagem em relação ao seu papel na trama é tamanha que é questionada dentro da própria diegese da história. Além disso, os conflitos internos do Gollum são tantos e seu sofrimento é tão digno que acaba por ter um final conciliador, recuperando o Anel e o destruindo acidentalmente em meio a uma felicidade extrema (TOLKIEN, 2002). Gollum gera sentimentos extremos, que vão do asco à consternação, mas sua existência triste e melancólica é poderosa por demonstrar o que podemos fazer e onde podemos chegar caso nos entreguemos ao desejo primitivo.

 

 

[1] “Gothic excesses, none the less, the fascination with transgression and the anxiety over cultural limits and boundaries, continue to produce ambivalent emotions and meanings in their tales of darkness, desire and power”. 

[2] “The castle was linked to other medieval edifices—abbeys, churches and graveyards especially — that, in their generally ruinous states, harked back to a feudal past associated with barbarity, superstition and fe

A partir da análise realizada, pôde-se verificar e concluir que a personagem Gollum se aproxima comparativamente ao monstro gótico. Estudar a sua figuração é uma tarefa desafiadora, graças à complexidade interior que possui, além do volume literário do universo de Tolkien, daí a escolha por não considerarmos o universo cinematográfico também. Porém, os mesmos fatores que dificultam a análise, também a tornam mais instigadora. Dessa forma, as respostas ao problema de pesquisa surgiram de todos os elementos da figuração pré-selecionados, ou seja, o gótico se mostrou presente na descrição, no discurso da personagem e na história do Gollum.

 Quanto a seu retrato, Gollum é um monstro típico, com mãos e pés desproporcionais, magro ao extremo e um aspecto sombrio que remete diretamente à maldade. O gótico se faz presente na aparência do Gollum principalmente pelas comparações que são feitas, seja uma aranha, ou algum animal pegajoso e rastejante, a sua aparência remete à uma figura decadente e horrível. Além disso, os simbolismos que podemos perceber quanto ao seu ambiente se mostraram extremamente poderosos quanto a visão do Gollum como um monstro gótico.

  A visão geral da aparência do Gollum, escondido em sua caverna, nas profundezas de uma montanha, se assemelha muito à mesma relação do castelo medieval para o gótico. Tal proximidade nos mostra como o retrato do Gollum também evoca a presença de um passado selvagem, anterior ao momento da narrativa e que afeta a forma como a personagem é; Gollum e sua caverna são como um, construindo um mesmo elemento visual em O Hobbit.

Em relação ao discurso da personagem, pôde-se notar a dualidade moral do Gollum e também seu conflito moral. Bem como o monstro gótico, Gollum é bom e mau ao mesmo tempo, é conflitante, confuso e pernicioso. A partir de sua fala, nota-se um predador e uma vítima, alguém cujo motor interno é sua própria natureza animal de sobrevivência a todo custo. Pela forma como fala, dá-se selvageria e inteligência equilibradas em uma balança simbólica construída através de intenso uso de aliteração na letra s, como um sibilar, um som de um animal peçonhento e perigoso. 

A moralidade dúbia e a sensação de horror e perigo eminente que Gollum causa através da fala somam-se a sua história e o assassinato do seu amigo, Déagol, mostra-se um fator determinante para o surgimento do Gollum. Apesar do personagem não ser assombrado ou o passado não se mostrar de forma direta, podemos percebê-lo na própria existência melancólica do Gollum, já que foi justamente ao responder a sua natureza gananciosa que sua vida mudou, deixando para trás a persona Sméagol, para assumir de vez sua bestialidade simbolizada pelo apelido pejorativo que recebia: Gollum.

A história apresentada por Gandalf aproxima afetivamente Gollum com o leitor, já que ao saber que a personagem nem sempre foi um monstro, torna-se possível entender sua complexidade interior e os motivos que levaram à sua monstruosidade, mesmo que não justificável. Essa mesma relação de atração velada há com o monstro gótico já que ao escancarar a bestialidade e a natureza, possibilita a reflexão de onde o humano pode chegar. 

Como visto, a ligação afetiva com Gollum se eleva quando na narrativa de O Senhor dos Anéis, os protagonistas ficam à mercê do monstro, sendo respaldados com uma atitude valorosa de um guia que cumpre com sua palavra. Gollum tem seu heroísmo apontado na própria história, pela voz de Sam, e tal apontamento não deixa dúvidas da complexidade da figuração de Gollum. Se por fora ele é um monstro, por dentro existe uma melancolia tão grande que o personagem vê a chance de transformá-la em virtude.

Assim, a partir da análise dos diversos elementos estudados e apresentados neste estudo, é importante que se entenda a figuração do Gollum como uma construção unitária complexa, aliando aspectos estruturais, semânticos, sintáticos e fonéticos das obras de Tolkien. Gollum se aproxima do monstro gótico por demonstrar a Frodo, Sam e Bilbo (e por consequência, ao leitor) os limiares entre a humanização e a bestialidade, sendo ele próprio mártir. Se o Gótico é uma estética de transgressão e excessos, o mesmo se pode dizer do Gollum: uma figura cuja existência é tão dissonante e perturbadora que sua aparência causa repulsa, mas seus conflitos internos atraem; sendo a própria personagem um jogo de adivinhas no escuro cuja resposta talvez seja: a natureza humana.

Agradecemos ao Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) pelo apoio financeiro para essa publicação.

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