Considerando que muitos cursos de Licenciatura em Artes Visuais, aqui no Brasil (mais de 70%), atualmente formam professores que, pouco a pouco, perdem o sentido da reflexão sobre sua própria experiência (analisado na dissertação de mestrado da pesquisadora desse artigo)[i] e, também, do lugar dos saberes profissionais, se faz necessário compreender o contexto político/social/educacional ao adentrar em pesquisas que investiguem a forma como são implantadas as “competências” que constam em documentos legais relacionados à Educação, desde a década de 1980, e que hoje se intensifica, sobretudo, na Base Nacional Comum de Formação de Professores (BNC - Formação de Professores), assim como na Base Nacional Comum Curricular (BNCC/2018) da educação básica, diretamente ligada à formação desses futuros profissionais.
A Base Nacional Comum de Formação de Professores (BNC - Formação de Professores), assim como na Base Nacional Comum Curricular (BNCC/2018) foram os dois documentos analisados nesse artigo.
Partindo da pesquisa de doutorado focando nas “entrelinhas” de documentos, evidenciamos a distância existente entre o aprender a ensinar as práticas e o saber ensinar e aprender no desenvolvimento da formação de um professor de Artes Visuais, tendo como pressuposto a formação de um profissional autônomo e emancipado cultural e intelectualmente. Para isso, essa análise, teve como objetivo entender as competências desenvolvidas em dois documentos legais, em uma abordagem qualitativa, que teve como base reflexiva Cellard (2012) ao abordar e enfatizar a necessidade do pesquisador ter uma visão aprofundada do contexto histórico na qual o documento está inserido, evidenciando assim o que está em andamento atualmente.
O texto organiza-se em duas partes: a primeira aborda a formação do professor de Artes Visuais, conceitos, dilemas e possibilidades e a segunda, trata de um olhar sobre o tema das competências presentes tanto na BNCC como na Resolução CNE/CP Nº2 de 2019 (BNC – Formação), nos levando a refletir sobre o discurso e o significado das “competências”, trazendo um questionamento sobre as reais intenções que estão na base dessas orientações.
[i] Moreira, Ana M. A. A Arte na Educação Escolar: entre concepções e práticas. Dissertação de Mestrado defendida em 2015 na Universidade Católica de Santos – UNISANTOS.
A FORMAÇÃO DO PROFESSOR - ARTES VISUAIS
Partindo do pressuposto de que formar um professor é formar um profissional humanizado com percepção suficiente para aprender a desenvolver, em si e no outro (estudantes), a vontade de conhecer o mundo e as coisas do mundo, entendemos que o professor de Artes Visuais, mas não só ele, ao trabalhar com pessoas que têm suas próprias histórias de vida e que, por meio de uma formação autônoma, ética, estética, responsável e comprometida com a educação (FREIRE, 1996), participem do desenvolvimento da autonomia dos estudantes - nos pensamentos e ações – e que possa compreender a importância social do desenvolvimento humano.
Nesse sentido, formar profissionais de desenvolvimento humano não é formar nem executantes nem técnicos com autonomia limitada, mas pessoas que tenham concepções de educação voltada para um processo autônomo de organizar seu próprio trabalho sabendo adentrar nesse universo compreendendo que ensinar é perceber que a trama pela qual vivemos e compartilhamos conhecimentos é fundamental para a humanidade.
Nóvoa (1995, p.24), ao afirmar que “a formação dos professores tem ignorado, sistematicamente, o desenvolvimento pessoal confundindo formar com formar-se”, nos faz acreditar que para o professor formar-se necessita compreender que a bagagem de contextos históricos e conceitos sobre si, as coisas e as ações, farão parte do seu envolvimento com o conhecimento que irá desenvolver no seu processo formativo, pois a maneira como o sujeito vive com relação à ética e à observação do seu papel diante da vida, traz informações de quem ele será como profissional.
Portanto, um processo formativo não se inicia nem acaba nos cursos de Licenciaturas, pois, ao tratar da formação de professores de Artes, busca-se dar significado a uma formação ao longo da vida, no qual o profissional possa se apropriar e se comprometer no enriquecimento e no desenvolvimento de seu trabalho e em sua ação docente crítico/reflexiva.
Nesse mesmo sentido, o conceito de professor crítico/reflexivo nos aproxima da origem de repensar a formação como valorização docente: um profissional dotado de conhecimentos técnicos/científicos, amparado pela experiência e pela reflexão crítica na/sobre a experiência docente. Os saberes abordados por Pimenta e Anastasiou (2014) sobre o conceito de ensino/aprendizagem mostra que não basta apenas a experiência e os conhecimentos específicos, é necessário também o aprender e o ensinar adquirido na reflexão do seu próprio saber, construído, historicamente, ao longo da formação docente.
Envolvido num processo de formação crítico/reflexivo, o professor necessita entender a importância do conhecimento teórico/prático com objetivo de transformar a realidade presente. Pimenta (2005) ajuda nessa compreensão afirmando que,
a superação desses limites se dará a partir de teoria(s), que permita(m) aos professores entenderem as restrições impostas pela prática institucional e histórico-social ao ensino, de modo que se identifique o potencial transformador das práticas (PIMENTA, 2005, p.25).
Portanto, abordar o ensino como uma atividade reflexiva, permite ao professor se perguntar: o que é a profissionalização docente e a autonomia intelectual, diante de condições impostas pelas competências situadas somente no universo da racionalidade técnica? Uma questão de base para que o docente reflita sobre a mera prática do fazer (reflexão-ação).
Desenvolver a capacidade reflexiva sobre a prática, na qual a teoria contribui na construção do conhecimento, é importante, porém não é só isso, pois concordando com Libâneo (2005) e Contreras (2002) ao afirmarem que o problema da reflexividade está na compreensão do contexto histórico/político/social, isto é, na realidade que contém cada conhecimento, é limitado pensar somente na reflexão das ações cotidianas dos professores ou dos problemas da sala de aula relacionados aos conteúdos pré-determinados, pois esses conteúdos nem sempre estão de acordo com a realidade histórica.
Nesse sentido entendemos que compreender a distância existente entre a reflexão do saber/apreender, embasado numa práxis/crítica em contraponto com o saber/aplicar, entendendo como transmissão de conhecimentos reduzidos às práticas, é fundamental para a formação de um professor que necessita ser alimentada por um conjunto de situações que estimulem não só sua autonomia intelectual como também reforce a valorização e o respeito humano, pois, segundo Freire (1996),
A educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/ou aprendidos implica tanto o esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento. Dialética e contraditória, não poderia ser a educação só uma ou só outra dessas coisas. Nem apenas reprodutora nem apenas desmascarada da ideologia dominante. (FREIRE, 1996, p.98)
A reflexão que nos traz Paulo Freire sobre a reprodução da ideologia (transmissão de conhecimentos) na educação precisa sempre ser evidenciada e em todos os momentos históricos e, para isso, a formação de um professor autônomo intelectual e culturalmente se faz necessário.
Infelizmente, no Brasil, o professor por enfrentar um conjunto de adversidades como a desvalorização profissional, a desqualificação e os baixos salários dentre outras, acaba, muitas vezes, aderindo à transmissão de conhecimentos por falta de tempo para poder expandir seus próprios conhecimentos, como aponta a pesquisa de Palazzo (2011) sobre a baixa atratividade da profissão docente que vem aumentando e apresentando preocupação com o recrutamento e a seleção de professores ‘eficazes’. Uma ideologia neoliberal.
Nesse cenário, no caso do professor de Artes, acrescenta-se a desvalorização das Artes na Educação, porém acreditamos ser necessário adentrar na formação de um professor crítico/reflexivo para que ele possa perceber em sua prática educativa, a condição de poder transformá-la. Freire (1996) afirma que,
Mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais e políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos, geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei, também, que os obstáculos não se eternizam (FREIRE, 1996, p.54)
Na intenção de compreender o que envolve os conhecimentos nessa área do ensino das Artes e no que diz respeito a uma formação de professores baseado em diretrizes que prevalecem as competências de um profissional pronto para transmitir conhecimentos direcionados ao mercado de trabalho, decidimos refletir sobre documentos legais que tratam, direta (ou indiretamente) da formação do professor em geral e, diante dessa explanação, entender qual lugar ocupa as Artes - ferramenta de comunicação – para a educação básica.
Para adentrar no significado das competências, buscamos - por meio da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que são diretrizes da educação básica, isto é, uma base Nacional que organiza as Matrizes Curriculares - entender a Resolução CNE/CP nº2 de 2019 que impõe a Base Nacional Comum para Formação de Professores da Educação Básica (BNC - Formação) tratando das diretrizes da formação inicial e continuada dos cursos de Licenciaturas visando à progressão na carreira profissional, com o objetivo de melhorar a “qualidade” do ensino oferecido aos estudantes e que possa valorizar o professor.
Segundo o Conselho Nacional da Educação, a BNC - Professores é baseada em três eixos que norteiam a formação inicial e continuada dos docentes de todo o país, entendidos como competências que, segundo o documento são:
[...]conhecimento, prática e engajamento. No conhecimento, o professor deverá dominar os conteúdos e saber como ensiná-los, demonstrar conhecimento sobre os alunos e seus processos de aprendizagem, reconhecer os diferentes contextos e conhecer a governança e a estrutura dos sistemas educacionais. (MEC, 2019)
Nesse sentido, se faz necessário compreender o que significa tais competências para o desenvolvimento humanizado, tanto do professor como dos estudantes.
AS “COMPETÊNCIAS” NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DIANTE DOS ATUAIS DOCUMENTOS LEGAIS.
Apesar de estar tratando aqui da formação de professores de Artes Visuais, essa reflexão pode ser direcionada a todas as Licenciaturas.
Partindo da premissa de que qualquer professor deve ter autonomia intelectual e cultural e refletindo sobre as Políticas Educacionais no âmbito de um sistema neoliberal (supracitado), Dardot e Laval (2016) afirmam que, na ótica do neoliberalismo, por meio de ações padronizadas, que envolvem a competição e o governo de si, vem dificultando as formas democráticas, socializadoras e emancipatórias de ser-estar no mundo e que, atualmente influenciam diretamente na formação desse professor.
Essas padronizações de conhecimentos nos permitiram entender o porquê de existirem modelos específicos nas organizações curriculares, pondo em cheque o significado das competências desenvolvidas nas diversas instituições de ensino, que têm como discurso a emancipação, mas que, na prática, veladamente, obstruem o direito e a liberdade de uma formação autônoma em todos os níveis, desde a educação básica até as Instituições de Ensino Superior (IES). Portanto, compreender as formas dessa implantação socioeconômica com efeitos desdobrados nos processos da construção de políticas, é fundamental.
Vale lembrar que entre 2003 e 2016 foi se criando - em vários países ligados direta ou indiretamente, à Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Banco Mundial - novas orientações curriculares padronizadas com base em uma concepção neoliberal. Nas palavras de Freitas (2018):
A ‘nova direita’ neoliberal disputou intensamente os rumos da educação brasileira, inclusive nos governos de coalizão do PT (2003-2016). Nesse período, expandiu-se com a organização de uma rede de influências com novos partidos políticos, fundações, inserção na mídia, organizações sociais, institutos e associações (FREITAS, 2018, p.15).
Mas antes do ano de 2000, mais precisamente, a partir dos anos de 1980, com a intensificação do processo de globalização da economia os sistemas de formação, em geral, se apropriaram da noção de competências relacionando-as a flexibilização da produção e a uma reestruturação das ocupações, como a polivalência dos trabalhadores. Isso significa que o foco estava (e está) no mercado de trabalho e não na formação humana.
Seguindo pressões das instituições econômicas em conjunto com as autoridades dos sistemas educacionais começaram a criar programas de ensino incorporando estratégias que pudessem capacitar e desenvolver determinadas competências para o trabalho (SAVIANI, 2013), servindo como base para a eclosão de uma série de projetos financiados por organismos internacionais.
Adentrando nas Políticas Educacionais, a OCDE, na década de 1990, organizou um grupo para a Definição de Seleção de Competências (DeSeCo), considerando os resultados apontados pelo Programa Internacional para Avaliação de Estudantes (PISA)[i]. Esse grupo tinha como proposta encontrar uma definição do termo competência - minimamente consensual – e que pudesse caracterizar, identificando quais competências seriam indispensáveis a qualquer sujeito que tivesse ligado ao mercado de trabalho.
Mediante a esse propósito foi fixado 10 competências básicas para o desenvolvimento do indivíduo, assim como para a cidadania ativa, a inclusão social e o emprego, que interpretamos da seguinte forma. São elas:
- Comunicação na Língua Materna – Importante, mas compreendendo que antes de se comunicar necessitasse conhecer e entender que existem outras formas, como pelas Artes (música, dança, teatro, imagens, etc.), e pela cultura, portanto, não é só nessa base que se faz a comunicação.
- Comunicação na Língua Estrangeira – escolhida pelo estudante ou pelas normas impostas pelo mercado econômico?
- Competência matemática – muito genérico para entender o que, de fato, significa competência matemática, pois pode-se entender ou como aprofundamento dos conceitos e símbolos matemáticos ou aprender como formula prática de transmissão.
- Competência básica em Ciências e tecnologia – porque básica e não com aprofundamento?
- Competência digital – como já citado acima, o mesmo sentido pode ser abordado à competência digital, muito genérico para entender o que, de fato, significa digital como conhecimento.
- Aprender a aprender – Aqui tem uma dicotomia linguística, isto é, ensinar e aprender, como movimento do conhecimento ou aprender a aprender técnicas de ensinamentos, desenvolvendo as aprendizagens, tão discutida atualmente. Esse tema daria outro artigo.
- Competência interpessoal – entendendo que essa competência faz parte de aprender a ter habilidades para lidar eficazmente com outras pessoas de forma adequada às exigências da situação. Porém compreendemos que as relações interpessoais se desenvolvem no próprio convívio, tanto pessoal como educacional e não por habilidade eficácia.
- Competência cívica - nos permite a pensar na plena participação das pessoas na vida cívica, promovendo valores, atitudes e práticas democráticas e que, necessita ter como base o conhecimento sobre os conceitos de democracia, justiça, igualdade, cidadania e direitos cívicos, no entanto vivemos em uma democracia desigual. Nesse sentido, entendemos que, competência cívica, em um mundo cada vez mais globalizado, é preciso ter uma pedagogia que capacite os estudantes, desde cedo, a entender quem manda e quem obedecer no sistema social.
- Espírito empreendedor – aprender “como” e a “quem” se deve dirigir seus anseios de trabalho. Suas características principais nesse espírito empreendedor são: pensar sempre em oportunidades; persistir, mesmo quando tudo der errado; correr riscos; se exigir com “qualidade”, eficiência e com o compromisso de se manter atualizado no mundo, estabelecer metas e planos para ser “empregado” como autônomo. Mas entendemos que existe uma grande frustração desse profissional por causa das desigualdades no mundo globalizado na qual o trabalho não é para todos.
- Expressão cultural – entendemos que antes de ter uma competência de expressão cultural, que a nosso ver não tem sentido algum, necessitamos conhecer, apreender e vivenciar conhecimentos culturais com a intenção de entendermos o outro na sua diversidade e compreendendo o seu significado para uma sociedade.
Essas 10 competências vêm orientando, desde a década de 1990 os países da OCDE reformulando seus currículos e incorporando ao ensino propostas relacionadas a fatores econômicos com estímulos mercadológicos. Concordamos com Sacristán (2011) ao afirmar que tais competências ao partirem de princípios mecânicos e/ou mercadológicos, com conhecimentos separados e fragmentados, estabelecem ações na qual todos os estudantes precisariam desenvolver para se realizarem pessoalmente e profissionalmente na sociedade atual. Nesse sentido, acaba-se perdendo o foco que deveria ser uma formação humanizada e integradora do homem social, independente do trabalho ou mesmo do mercado econômico.
Começando por uma análise mais ampla, percebemos que as 10 competências anteriormente citadas e exploradas na BNCC seguem a OCDE de forma enfática, porém, a BNCC, adota outros mecanismos de expressão, com outras palavras.
As competências gerais para a educação básica são definidas como “a mobilização de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (Brasil, 2018), na qual os termos: valorizar, utilizar, exercitar, identificar, nomear, representar, selecionar, são empregados e distribuídos, veladamente, nas dez competências como apropriação do conhecimento.
No entanto, a nosso ver, as palavras que deveriam estar associadas ao desenvolvimento dos sujeitos como: conhecer, compreender, investigar, refletir, apreender, seriam ações norteadoras de um conhecimento mais profundo, instigante, curioso e de abrangência universal e que não constam nesse documento.
Atualmente no Brasil, as maiores tensões existentes estão nas bases dos currículos tradicionais (fechados, fragmentados e diretivos) que intencionam desenvolver o processo de ensino-aprendizagem como algo pronto e acabado, implicitamente aceitável (SILVA, 2016, p.65), como evidencia a BNCC, importando “saber se as crianças ou jovens eram (são)[ii] bem-sucedidos ou não nesse currículo”, portanto, a “preocupação era (é) com o processamento de pessoas e não com o processamento de conhecimentos”. Entendemos, também, que os pensamentos não são neutros, assim como todas as outras formas de pensar no currículo, pois estes carregam funções e intenções determinadas pelas políticas econômico-educacionais.
Essas tensões curriculares aparecem principalmente nas atividades de planejamento dos professores, pois é nesse processo - entre intenções e ações - que o currículo se efetiva como guia de produção de uma realidade. Segundo, Hernández (2000, p.30) “Precisamos restabelecer o significado do saber escolar, pois nesse modelo que seguimos, as disciplinas escolares são o resultado da alquimia que a instituição escolar exerce sobre os saberes culturais.” Essa afirmação de Hernandes nos fez refletir sobre a questão: de que forma e como se organizam as bases curriculares dos cursos de Licenciatura em Artes Visuais sobre esses modelos? Levando em consideração as legislações que estão vigentes, foi se evidenciando - pela ampla análise feita no doutoramento[iii] - um currículo de base tecnicista e que em parte, abordamos nesse texto.
Partindo da apresentação do Ministério da Educação implantando a BNC - Formação, documento baseado em três eixos (conhecimento, prática e engajamento) que vão nortear a formação inicial e contínua de docentes de todo o país, entendemos que o objetivo está centrado em adaptar uma determinada “qualidade” do ensino colocando o professor numa posição de transmissor e reprodutor de conhecimentos vindo ao encontro do que determina a BNCC.
Não iremos adentrar no significado de qualidade sobre esses moldes, mas vale ressaltar que o conceito de qualidade depende do contexto na qual está inserido e nesse sentido, verificamos que, na BNCC (BRASIL, 2018) e em outros documentos internacionais da educação básica, o foco de qualidade está colocado sobre um conjunto de competências que contraria o verdadeiro significado da palavra competência educacional que, na sua etimologia competentia (Latim) significa a “capacidade decorrente de profundo conhecimento que alguém tem sobre um assunto”[iv] sendo, claramente, confundida com competere (Latim), que atualmente está associada à palavra competência, que significa “uma aptidão para cumprir alguma tarefa ou função” [v] e é assim que tais documentos se mostram.
A BNC - Formação aponta que o professor “deve” planejar ações de ensino que resultem nessa aprendizagem efetiva e, ao gerar ambientes de aprendizagem, ter condição de avaliar o que foi ensinado, conduzindo às práticas pedagógicas dos objetos determinados como do conhecimento, das competências e das habilidades previstas pela BNCC, na qual os pilares dessa formação, no que diz respeito à qualidade, estão embasados em dominar, por meio de competências, os conteúdos e saber como ensiná-los, demonstrar conhecimento sobre os estudantes e seus processos de aprendizagem conhecendo a governança e a estrutura dos sistemas educacionais estabelecidos.
Dessa forma, entendemos que, tanto a BNCC (BRASIL, 2018) como a Resolução CNE/CP nº2 de 2019 (BRASIL, 2019) sobre a Base Nacional Curricular de Formação de Professores (BNC – Formação), representam documentos diretivos e impositivos, quanto aos conhecimentos por competências, definidos por um conjunto de ‘especialistas’ que vinculam a educação ao mercado econômico/educacional e não a uma educação integrada ao desenvolvimento dos sujeitos para viverem o seu tempo contemporâneo.
Para analisar mais profundamente os conteúdos desses dois documentos foi importante criar um roteiro (com sete perguntas) encontrando apoio em Cellard (2012) ao considerar que “uma análise documental parte de um documento surdo exigindo do pesquisador interpretações dentro de um contexto histórico” (p.296) e em Creswell (2007) ao afirma que “[...] há leis ou teorias que governam o mundo e que precisam ser testadas ou verificadas e refinadas para que possamos entender o mundo” (p.25)
Mediante as perguntas formuladas e aos conteúdos propostos, baseados em Franco (2008), superemos vários obstáculos ao desconfiar de inúmeras armadilhas, antes de estar em condição de fazer uma análise em profundidade de seu material, avaliando a sua credibilidade, assim como a sua representatividade no campo educacional. A seguir, apresentamos o quadro com as repostas dos documentos analisados.
Quadro 1 – Documentos analisados: BNCC – Artes/2018 e Resolução CNE/CP nº2/2019.
Perguntas para análise. |
BNCC – Artes/2018 |
Res. CNE/CP Nº 2 de 20/12/2019 |
Orientações para organização da MC |
Propõe que a abordagem das linguagens articule seis dimensões do conhecimento. Não se trata de eixos temáticos ou categorias, mas de linhas maleáveis que se interpenetram, constituindo a especificidade da construção do conhecimento em Arte na escola. As dimensões são: criação (fazer artístico); crítica (impressões para novas compreensões); estesia (experiência sensível em relação ao espaço); expressão (exteriorizar e manifestar por meios artísticos); fruição (deleite) e reflexão (construir argumentos sobre as fruições) |
Base referência BNCC O desenvolvimento das competências gerais e específicas em três dimensões: conhecimento profissional, prática profissional, engajamento profissional. |
Quanto aos fundamentos teóricos |
Assegurar o desenvolvimento das competências relacionadas à alfabetização e ao letramento ao possibilitar o acesso a leitura das diversas linguagens. |
Visão ampla do processo formativo e socioemocional como relevante para o desenvolvimento das competências e habilidades que o estudante precisa saber para aplicar em sala de aula. |
Quanto às práticas |
Saberes referentes a produtos e fenômenos artísticos que envolvem a prática de criar, ler, produzir, construir, exteriorizar e refletir sobre formas artísticas. |
Para o domínio dos conteúdos pedagógicos que devem ser aplicados. O aprendizado da dimensão prática do conhecimento e do desenvolvimento das competências e habilidades previstas para o estudante da educação básica. |
Relação com a fruição cultural |
O compartilhamento de saberes e de produções por meio de exposições, saraus, espetáculos, performances, concerto, recitais, intervenções e outras. |
Adoção e valorização da história, cultura e Artes nacionais.
|
Temas relacionados com a criatividade e expressividade |
Criação refere-se ao fazer artístico, quando os sujeitos criam, produzem e constroem. Expressão refere-se às possibilidades de exteriorizar e manifestar as criações subjetivas por meio de procedimentos artísticos. |
Como objetivo de aprendizagens para a Educação Infantil que se resume em: traços, sons, cores e formas. |
A relação com o desenvolvimento da autonomia intelectual e profissional |
Esse documento tem base nas aprendizagens do ensino básico, portanto pretende desenvolver a autonomia intelectual no sentido de estimular o próprio processo construtivo do aluno. Expandir o repertório e ampliar a autonomia. |
A autonomia está relacionada a responsabilidade ao protagonismo para o desenvolvimento profissional. Autonomia alinha à BNCC. |
Palavras recorrentes dos documentos |
Em 8 páginas: Competência - 8 vezes Produto - 4 vezes Prática - 17 vezes
|
Em 20 páginas: Competência – 51 vezes Profissional (atividade) – 20 vezes |
Fonte: pesquisadora.
Na análise mais aprofundada percebemos que esses documentos foram basilares para entender como a formação do professor e, sobretudo do professor de Artes Visuais e do ensino de Artes na educação básica, vem se construindo e percebendo seus propósitos, seu lugar e a importância que a Arte tem para a formação no contexto escolar, histórico, político e social.
Ao fazer uma leitura flutuante (FRANCO, 2008) e sistemática, abstraímos de cada documento interpretações complementares, percebendo que existem intenções comprometidas com um sistema político/educacional que dialoga com medidas que definem um profissional alinhado às exigências do mercado de trabalho, cuja educação passa a ser vista como um produto, na qual estão focadas políticas voltadas para a construção de mão de obra e não de uma formação humana para o mundo trabalho.
Tal observação nos levou a confirmar nas entrelinhas dos conteúdos mostrados nesses documentos que se apresentam como produtos técnicos ao mercado de trabalho, por meio do ensino das Artes. Assim, o desenvolvimento de aprendizagens como algo pronto e acabado tenciona o debate crítico em relação à imposição de conteúdos específicos para o ensino das Artes. Neste contexto, Nóvoa (1995, p.22) nos faz refletir afirmando que “é preciso reconhecer as deficiências cientificas e a pobreza conceitual dos programas atuais de formação de professores”.
Essa afirmação de Nóvoa (1995) corrobora com a compreensão de que, a partir de 2018, com a implementação da BNCC e, logo após, da Resolução CNE/CP Nº 2, de 20/12/2019 (BRASIL, 2019) fica evidente que, ao instituir como diretriz da BNC - Formação de Professores o desenvolvimento de competências gerais e específicas divididas em três dimensões: conhecimento profissional, prática profissional e engajamento profissional, o aprendizado ficou focado no desenvolvimento de competências e habilidades previstas para o estudante da educação básica, excluindo o professor de um documento que é direcionado à sua formação, estabelecendo assim, uma docência coadjuvante da BNCC, com atividades prescritas.
Sob esta ótica, os estudantes de cursos de Licenciaturas precisariam aprender a transmitir o que a BNCC tem como princípio de aprendizagens (competências e habilidades), o que confunde formação (um processo abrangente, crítico e reflexivo) com aplicação de conteúdos (transmissão e reprodução - de forma acrítica).
Para entender tais interpretações, a estratégia investigativa partiu da coleta de dados referentes ao número de vezes que aparece a palavra competência nos documentos, verificando e refletindo sobre as intenções e considerando no documental, tanto o seu contexto histórico como o social.
A cada dia se mostra necessário o desenvolvimento de propostas e projetos curriculares organizados numa perspectiva aberta, responsável e consciente, com vozes que se oponham ao autoritarismo cada vez mais presente em nosso cenário educacional.
Com base nos documentos analisados, observamos que, no Brasil, estamos aquém da evolução reflexiva no ensino da Arte e na formação autônoma e emancipada cultural e intelectualmente dos estudantes - futuros docentes dessa área.
A educação em geral, e especificamente, nas Artes Visuais, bem como o ensino e as aprendizagens em todos os níveis educacionais vêm, ao longo dos anos, e fortemente a partir da década de 1980, sofrendo com o processo desencadeado de um sistema educacional que se caracteriza como uma empresa ao implantarem Políticas Educacionais (BNCC, BNC - Formação), fragilizando e tirando conhecimentos de uma formação humanizada, e emancipadora.
Observamos que existe intencionalidade em promover sujeitos não pensantes, reflexivos e críticos, pois quando se aborda sobre a profissionalidade - antes de tratar dos processos de conhecimentos dos sujeitos envolvidos com o próprio conhecimento – parece-nos que o foco está no produto final, com a oferta de um processo formativo superficial que não vai à raiz dos conhecimentos.
Assim, o universo das áreas de Ciências Humanas, sobretudo da Comunicação e das Artes vai perdendo o sentido em documentos construídos de forma racional, padronizada e homogênea, com uma lógica que não privilegia o processo que envolve ensino e aprendizagem e sim somente a aprendizagem pela prática - muito repetida nos documentos analisados - e num apagamento de experiências estruturantes, deixando o sujeito reduzido à repetição e a transmissão de conhecimentos, configurando o ensino e as aprendizagens como um valor a ser promovido por competências estipuladas e demarcadas.
Portanto defendemos que é de fundamental importância e de direito rever os dois documentos analisados para que o sujeito possa buscar na Educação o acesso digno à partilha dos bens produzidos socialmente, pois ele necessita ter autonomia para escolher, com dignidade, que bens (sociais ou culturais) ele quer compartilhar, o que fica comprometido nas restritas e padronizadas orientações legais como a BNCC e a BNC - Formação que apresentam, salvo melhor juízo, a intenção de reproduzir mecanicamente conhecimentos e de priorizar práticas docentes, em detrimento de processos de adensamento teórico e de integração de saberes e fazeres.
[i] Moreira, Ana M. A. A Arte na Educação Escolar: entre concepções e práticas. Dissertação de Mestrado defendida em 2015 na Universidade Católica de Santos – UNISANTOS.
[ii] O programa Internacional de Avaliação de Alunos – PISA é um programa internacional de avaliação comparada que tem por finalidade produzir indicadores sobre efetividade dos sistemas educacionais. Cada país participante tem sua própria coordenação, mas seguindo as regras da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
[iii] Grifo da autora.
[iv] Moreira, Ana M. A. Arte como direito? A formação do professor de Artes Visuais na região da Baixada Santista e no município de São Paulo/SP. Tese de Doutorado defendida em 2021 na Universidade Católica de Santos – Unisantos/SP.
[v] Dicionário Aurélio (on line). Disponível em: https://www.dicio.com.br/competencia/ Acesso em: 01/12/2019.
[vi] Significados: conceito de direito (On Line) Disponível em: https://www.significados.com.br/competencia/ Acesso em: 01/12/2019.
[vii] Base Nacional Comum Curricular (BNCC) - 4.1.2. Arte. Competências específicas de Arte para o Ensino Fundamental. p.198 – 193. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf Acesso em: 26/02/2021.
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