Neste artigo, que se constitui a partir de uma pesquisa mais ampla, focalizaremos a organização do trabalho pedagógico no contexto do ciclo e sua relação com o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita. Para tanto, objetiva identificar em que medida o trabalho pedagógico realizado pelos professores alfabetizadores da rede municipal possibilita a consolidação da alfabetização e do letramento até o 3º ano do Ensino fundamental.
Todas as propostas de organização da escolaridade em ciclo têm em comum o desejo de caminhar rumo a uma escola inclusiva, que tem uma prática qualificada e que essa qualificação, aliada à extensão do tempo pedagógico, insida sobre os resultados da aprendizagem, reduzindo e/ou eliminando a reprovação, afiançando que, ao final do ciclo, oito anos de idade, 3º ano do Ensino Fundamental, toda criança esteja com seu direito à aprendizagem garantida, o que requer, necessariamente a parceria de todos nesse processo: estado, município, escola, família e comunidade, portanto, é preciso um grande “pacto”.
Do ponto de vista dessa discussão, significa dizer que a escola precisa repensar o trabalho pedagógico, o que implica: planejamento, acompanhamento e avalição do percursos de formação. Enfim, é preciso uma concepção elevada do papel do professor, como alguém que se compromete com a formação continuada, que compartilha e que exerce a autocrítica sobre o seu trabalho e que se compromete (PERRENOUD, 2004).
Nesse sentido, para embasar este estudo, ancoramo-nos em teóricos consabidos que dedicam seus estudos na temática aqui pautada, entre os quais destacamos: Thurler (2001), Perrenoud (2004), Fereira e Leal (2007), Soares (2003), Morais (2012), Kleiman (1993; 1995; 2008 e 2009), Weisz (2001), Albuquerque (2005), dentre outros que contribuem com as reflexões sobre as temáticas que atravessam a organização do trabalho pedagógico alfabetizador.
No campo metodológico, a pesquisa se abastece na abordagem qualitativa (Bogdan e Biklen, 1994), tendo como dispositivos de produção de dados a observação participante, com anotações em diário de itinerância (Barbier, 2007) e entrevista semiestruturada.
As colaboradoras diretas da pesquisa são constituídas por 14 professoras alfabetizadoras que atuam com crianças do 3º ano do Ensino fundamental, distribuídas pelas 9 (nove) escolas da rede, sendo que destas, cinco estão localizadas na zona rural do município. Portanto, tivemos cinco professoras trabalhando na zona rural e nove na sede do município.
Definida as colaboradoras da pesquisa, verificou-se que, seguindo uma tendência, todas são mulheres, com faixa etária compreendida entre 26 e 50 anos de idade e tempo de experiência muito variado, ou seja, compreendendo entre 4 anos (menor tempo) e 27 anos a professora com maior tempo de experiência na docência na alfabetização. No que se refere a formação das docentes pesquisadas, 6 delas informaram formação em magistério, 5 em Pedagogia, 2 em Letras com Espanhol e 1 em Geografia.
Esperamos que este estudo sirva de referência para os professores alfabetizadores no difícil processo de garantir a alfabetização e o letramento das crianças no primeiro ciclo, principalmente sob o ponto de vista da organização do trabalho pedagógico para o fortalecimento da aquisição e apropriação da leitura e da escrita das crianças. Além disso, esperamos que sirva como indicador para a promoção de políticas públicas alfabetizadoras efetivas, mobilizadoras tanto da base alfabética quanto dos mais diversos usos e funções da língua nos diferente eventos e práticas de letramento.
Organização do Trabalho Pedagógico no Ciclo da Alfabetização
O ciclo de aprendizagem vem sendo recontextualizado nas diversas redes de ensino de acordo com os contextos locais e se respaldando em experiências e concepções advindas de outras redes (STREMEL, 2011). Neste contexto de recontextualização, é imposta às escolas fazer frente a essas mudanças e se reorganizar, tanto do ponto de vista administrativo como pedagógico. Thurler (2001) e Perrenoud (2004) defendem que os ciclos têm que ser confiados a uma equipe de professores que assumem a responsabilidade pelo trabalho, constituindo-se como um trabalho de equipe. Para os autores, os alunos que ingressam no ciclo devem percorrer juntos os processos de formação, sob a responsabilidade dos mesmos professores. Orientam que os percursos de formação devem ser individualizados, no sentido de um trabalho ajustado às necessidades dos alunos, não havendo repetência, nem qualquer seleção ou certificado durante o ciclo.
Sublinham que, sendo confiados os ciclos de aprendizagem às equipes pedagógicas, a eles também é dada a autonomia de organizar o trabalho e de escolher os métodos pedagógicos que se fizerem necessários para que os alunos possam atingir os objetivos de final de ciclo. “Autonomia, símbolo de profissionalismo, têm um custo: ela obriga os professores a responderem coletivamente pela eficácia de sua ação” (THURLER, 2001, p. 1).
Aqui estamos falando de professores que assumem a responsabilidade coletiva pelo ciclo, de professores sujeitos da práxis que, no coletivo, definem as metas para cada ano, para direcionar o trabalho mas, também, que estabelecem o que vai ser ensinado (conteúdos) e avaliado na leitura e na escrita, ao longo dos anos, de forma que fique claro para todos e, inclusive para a família, a proposta de trabalho, portanto, que planejam as ações. Para isso, é preciso criar o hábito de pesquisador da sua prática, também de que estuda, aprofunda seu conhecimento para melhorar o seu fazer pedagógico, considerando que a proposta do ciclo é possibilitar à criança um aumento do tempo para a apropriação da alfabetização e a inserção em práticas de leitura e de escrita, participando de eventos de letramento. Diante desse desafios, é preciso que esse professor dê sentido ao planejamento. Um planejamento entendido e vivenciado como fruto de um processo de maturação, de buscas, de um ato refletido e comprometido com o aluno, pois:
É papel da escola ajudar os alunos a desenvolver capacidades para produzir e compreender textos oriais e escritos desde o início da escolarização, de modo a favorecer a participação em diversas situações extra-escolares e escolares. Sendo o ensino dessas capacidades uma prioridade a ser enfocada, a avaliação, em cada ano escolar, em cada um dos eixos de ensino da língua portuguesa, torna-se, portanto, tema privilegiado de estudo. (FERREIRA; LEAL, 2007, p. 25).
Como ficou explícito, ensinar a ler e produzir textos não é uma atividade tão simples assim, as autoras advertem que para desenvolver tais capacidades o indivíduo deve ter conhecimentos relativos a diferentes práticas sociais em que a escrita está presente; mas também que se aproprie das características sociodiscursivas dos gêneros textuais que circulam na nossa sociedade; é preciso que ele esteja alfabetizado (tenha se apropriado dos princípios do nosso sistema de escrita); além disso, é preciso que desenvolva estratégias de leitura e de organização textual. Dada a complexidade deste ato, tais capacidades precisam ser objeto de planejamento e avaliação, para que a intervençãopedagógica possa garantir tanto a progressão quanto as aprendizagens da leitura e da escrita e da produção de textos. É preciso que o planejamento seja flexível o suficiente para possibilitar a individualização dos percursos de formação, modulando o “modo e a intensidade do atendimento pedagógico e didático dos alunos [...]” (PERRENOUD, 2004, p. 18).
Este modo de proceder, diante da diversidade da sala de aula, vai demandar um trabalho que aposta na diversidade de agrupamentos possíveis; que esses alunos possam vivenciar, no dia-a dia da escola, uma variedade de atividades ricas, pensadas, planejadas, o que vai exigir a sensibilidade e o conhecimento do professor acerca do ponto de partida de cada aluno, pois todos eles têm, com certeza, pontos de partida diferentes, mas têm o direito ao mesmo ponto de chegada: pleno domínio da leitura e da escrita (BRASIL, 2010), sendo papel do professor, no uso de sua autonomia didática, oferecer as ajudas de que os alunos necessitam para atingir esta meta.
Concordando com Perrenoud (2004) os professores precisam conhecer os objetivos de final de ciclo e os objetivos intermediários, assim como outros pontos de referências devem estar a disposição deles para que possam planejar as aprendizagens e orientar as progressões mês a mês, de ano em ano.
Essas referências são “instrumentos de orientação [...]” (PERRENOUD, 2004, p. 23) para se atingir os objetivos do final do ciclo. No esteio desta afirmativa está o entendimento de que o autor não está se referindo a objetivos do final do 1º ou do 2º anos, mas aos objetivos núcleos, os objetivos de final de ciclo, isto é, a descrição precisa das aprendizagens e o nível do domínio visados, muito de encontro com o que foi proposto por nós em 2012. Os objetivos de final de ciclo, para o autor, vão definir o contrato principal dos professores, para nós a pactuação, em possiblitar que o maior número de alunos atinjam tais objetivos finais. “[...] o contrato do professor é fazer aprender [...]”. (PERRENOUD, 2004, p. 78).
A riqueza dessa orientação reside no fato de que os objetivos finais servem como orientadores do ciclo, ou melhor, do percurso de formação de cada aluno, tomando como referências tanto os conhecimentos adquiridos como a trajetória de cada um.
Com esta compreensão, o autor destaca o papel da avaliação como instrumento de regulação das aprendizagens, orientadora dos percursos de formação. E é dentro deste contexto que ele dá o salto qualitativo, destacando a avaliação formativa como uma possibilidade de intervenção justamente dentro de cada agrupamento construído, atuando como regulação interativa, cuja observação do professor vai exigir outras formas de planejamento para atender às necessidades dos alunos, diversificando os grupos e as atividades.
Um planejamento flexível o suficiente para comportar uma pedagogia diferenciada, isto é, que se ofereça sempre ao aluno situações significativas de aprendizagem, que se atue na Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), conforme orientou Vygotsky, que o professor intervenha ajudando, provocando. Requer que o professor saiba avaliar e propor atividades, a partir de vários tipos de agrupamentos possíveis, considerando a observação formativa,com o propósito de auxiliar o aluno a “ser mais” (FREIRE, 2005). É nessa direção que se pode falar em diferenciação do percursos. “Diferenciar é, então, jogar com os grupos de diversos tipos: grupos de aprendizagem, de necessidades, de níveis, de projetos” (MEIRIEU, 1989; 1990, apud PERRENOUD, 2004, p. 46).
Assim, fica claro que o trabalho em grupo é uma estratégia prática para atender aos alunos em suas necessidades, à medida que possibilita a vivência de situações que os ajudam a avançar em seus percursos. O importante é que os agrupamentos propostos visem a ajuda de que cada aluno e/ou pequenos grupos precisam para dar o salto qualitativo e que dessa análise, resulte na reorientação do planejamento, dos métodos, das atividades e das situações de aprendizagem que pensadas, refletidas, possam reorientar o processo e planejar o próximo encontro, isto é, a aula seguinte,a partir dos objetvos alcançados, ou, por alcançar, propondo situações a resolver e assim sucessivamente vai conduzindo nas sequências didáticas e projetos necessários para auxiliar os alunos a chegarem aos fins visados.
Como pode ser constatado, é preciso redimensionar o planejamento na escola para que este ocupe o lugar que merce no processo. Um planejamento sempre recorrido, atualizado, muito diferente do uso até então dado em muitas escolas Brasil a fora. Urge resignificar o planejamento, torná-lo vivo, isto é, que o professor possa:
[...] ir atualizando, considerando o conhecimento adquirido e rever sua programação. Diversificar os itinerários, senão para cada aluno, pelo menos para subconjuntos que apresentam traços comuns quanto a seu nível de partida, seu ritmo de trabalho, suas necessidades, sua maneira de aprender. (PERRENOUD, 2004, p. 82).
O que importa é focar no que realmente se pretende: que os alunos intencionalmente aprendam de modo tanto a diversificar as atividades propostas como a intensificar os objetivos de final de ciclo, isto é, os “objetivos núcleos”; então deve-se planejar a partir deles, trabalhar sistematicamente e intensamente, sem perder de vista a criança e seu processo. Nesse sentido, Perrenoud (2004) advoga que é preciso “[...] construir os módulos ‘em torno’ de um ou de dois objetivos-núcleos, sem temer atingir outros secundariamente, resistindo à tentação dos microobjtivos tranquilizadores, mas que não podem levar senão a uma ‘decoreba’” (PERRENOUD, 2004, p. 88).
Objetivos que exprimam, segundo o referido autor, a finalidade da escola e sirvam como instrumento de planejamento, regulação e avaliação. No nosso caso, alfabetizar e letrar todas as crianças até o final do ciclo da alfabetização. Da articulação desses objetivos depende do que se entende por alfabetização e letramento e os modos de ensinar. Significa dizer que a organização do trabalho no ciclo necessita reconhecer as várias facetas da alfabetização, conforme, anunciou Soares (2003), reconhecendo a distinção entre a alfabetização e o letramento e aceitando a complementariedade destes; nas palavras da autora, significa compreender a “[...] especificidade e, ao mesmo tempo, a indissociabilidade desses dois processos – alfabetização e letramento, tanto na perspectiva teórica quanto na perspectiva da prática pedagógica” (SOARES, 2003, p. 5), significa esclarecr que se faz mister que os alunos se alfabetizem no contexto do letramento, considerando o atendimento diferenciado, atividade diversificadas e sequenciadas, projetos didáticos, avaliação e acompanhamento, variedade de agrupamentos a partir das balizas traçadas, um trabalho de parceria escola/família, mas sempre em direção aos objetivos de final de ciclo/objetivos-núcleos. Significa manter:
[...] como rumo os objetivos finais, de modificar a estratégia e redesenhar o caminho e as etapas que levam a esses objetivos, cada vez queo estado de progressão, os obstáculos encontrados e o tempo que resta exigirem [...] Não são ações pontuais e caminhos traçados antecipadamente [...] mas estratégias abertas e móveis [...]. (SOARES, 2003, p. 105).
Também Thurler (2001) se posiciona chamando a atenção para a importância da equipe se concentrar de forma explícita nos objetivos de final de ciclo, que junto com uma verificação sistemática instaurada expressamente desde o início do percurso e a dilatação dos prazos de certificação permitem priorizar as aprendizagens essenciais:
O essencial é que esse planejamento seja suficientemente amplo para assegurar o desenvolvimento progressivo e controlado de competências de alto nível (saber resolver problemas complexos, redigir textos de tipos diversos, comunicar em função da pessoa à qual a mensagem é destinada). (THURLER, 2001, p. 3).
Como vimos, o ciclo implica muitos desafios, sobretudo, exige avançar, definindo, pelos profesores em equipe, o que e como ensinar, por quê e para que ensinar, sendo urgente, como já sinalizou Soares (2003), “reinventar o ensino da alfabetização”, como também concordou Morais (2012), reinventar o ensino da alfabetização reconhecendo a importância de se organizar o trabalho pedagógico no ciclo da alfabetização no processo que articule a alfabetização e letramento dada a amplitude que encerra a aprendizagem da língua escrita, o que Soares (2003) advoga é que ambos sejam “[...] objeto de ensino direto, explícito, sistemático” Soares (2003, p. 14), até porque, corroborando com a autora, a entrada da criança no mundo da escrita ocorre por esses dois processos e de forma simultânea, não se constituindo processos independentes. Muito pelo contrário, são processos interdependentes e, por assim dizer, indissociáveis:
[...] a alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização. (SOARES, 2003, p. 14).
A autora referida esclarece que embora a alfabetização e o letramento sejam processos interdependentes, indissociáveis e simultâneos, ambos são de natureza diferente e, portanto, envolve tanto conhecimentos, como habilidades e competências específicos, o que vai exigir tanto as formas de aprendizagem diferenciadas, como procedimentos diferenciados de ensino. Faz-se urgente que o trabalho pedagógico assuma as várias facetas envolvidas nos dois processos, isto é, que se reconheça a necessidade de estabelecer a distinção entre o que é letramento (imersão das crianças na cultura escrita, participação em experiências variadas com a leitura e a escrita, conhecimento e interação com diferentes tipos e gêneros de material escrito).
E o que é alfabetização (consciência fonológica e fonêmica, identificação das relações fonema-grafema, habilidades de codificação e decodificação da língua escrita, conhecimento e reconhecimento dos processos de tradução da forma sonora da fala para a forma gráfica da escrita). Ao mesmo tempo em que se reconhecem a possibilidade e a necessidade de conciliação, entre essas duas dimensões da aprendizagem da língua escrita, implica integrar a alfabetização e letramento:
[...] Implica reconhecer as muitas facetas de um e outro e, conseqüentemente, a diversidade de métodos e procedimentos para ensino de um e de outro, uma vez que, no quadro desta concepção, não há um método para a aprendizagem inicial da língua escrita, há múltiplos métodos, pois a natureza de cada faceta determina certos procedimentos de ensino, além de as características de cada grupo de crianças, e até de cada criança, exigir formas diferenciadas de ação pedagógica. (SOARES, 2003, p. 15-16).
Assim, entendemos que a organização do trabalho pedagógico em uma escolaridade perpassada pelo ciclo, em que todas as crianças possam gozar do direito de estar plenamente alfabetizada ao final dos oito anos de idade, lendo e escrevendo com autonomia, precisa reconhecer as muitas dimensões da alfabetização e do letramento e uma diversidade de metodologias, conforme sublinhou Soares (2003).
Resultados: o trabalho pedagógico e a sistematização da alfabetização com o letramento no final do ciclo
Alfabetizar a criança tem sido o sonho de qualquer professor alfabetizador, sobretudo, em tempos de acordos firmados (Pacto Bahia; PNAIC). Garantir que todas as crianças estejam alfabetizadas, no máximo, até o final do terceiro ano do Ensino fundamental tem sido um desafio para as escolas e agora se torna meta 5 do recém aprovado Plano Nacional de Educação[i]. Um dos grandes desafios do referido plano é erradicar o analfabetismo, desafio posto no Art. 214 da Constituição Federal de 1988, perseguido pelo Plano Nacional de Educação anterior (2001-2010) e agora, 26 anos após a promulgação da Carta Magna, vê-se que os esforços não foram suficientes naquela direção, sendo recolocado no Plano Nacional de Educação atual[ii].
Argumenta-se que, além das estratégias postas nos sistemas de ensino, esta meta requer diferentes frentes nas escolas, que vão além de condições de trabalho e recursos financeiros. Precisa-se de planejamento, avaliação, diversidade de métodos pedagógicos, implementação e acompanhamento das práticas pedagógicas, mas também de um processo de formação contínua para professores a partir das dificuldades: a compreensão dos fundamentos teórico-metodológicos da proposta do Ciclo da Alfabetização, concepções de alfabetização e letramento e organização do trabalho pedagógico, currículo e avaliação, visto que essas diferentes concepções vão organizar os processos de ensinar e aprender: alfabetizar letrando e a articulação com as áreas de conhecimentos, para melhorar as práticas de leitura e escrita no contexto da sala de aula e da escola.
Entre as muitas dificuldades percebidas nas escolas da rede municipal, destacamos a necessidade de superar o paradigma de educação centrado na transmissão de informações, que entende que só se ensina e se aprende nos limites da escola, confinados nas paredes de uma sala de aula. De um trabalho fragmentado, de excessiva ênfase na especificidade da alfabetização, pautada no método sintético, em que as letras são apresentadas uma a uma, formando sílabas, sílabas em palavras e palavras em frases, não favorecendo a reflexão sobre o sistema de escrita visto que as atividades não têm sentido e nem função comunicativo e social. O que tem dificultado a compreensão por parte do aluno do que realmente significa ler e escrever e, por extensão, o que é ser leitor e escritor, isto é, tornar-se um usuário competente da leitura e da escrita para responder aos desafios das práticas sociais.
Apesar de todo o esforço das políticas públicas da década de 1990 aos dias atuais, com vistas à transformação da alfabetização, orientar que a prática de ensino deva ter como ponto de partida e de chegada o uso da linguagem, ou seja, os usos possíveis, desejáveis aos alunos a partir das oportunidades criadas pela escola, de um trabalho com leitura, escrita e a escuta, que possibilite a compreensão ativa e de propostas de uso da fala e também da escrita, que leve em conta a expressão e a comunicação por meio de textos, como condição para se tornarem usuários competentes da leitura e da escrita, perpassado por um trabalho que possibilite a reflexão sobre a linguagem (BRASIL, 1997).
E, de todo o avanço do conhecimento científico, que vem, ao longo dos anos, ratificando a importância da utilização do texto como unidade mínima do ensino, a exemplo dos estudos de: Soares (2006); Tfouni (1995); Soares (2003); Simonetti (2007), alfabetizar letrando; Kleiman (1995), focalizando o letramento; Kleiman (1993), problematizando o ensino da leitura; Kleiman (2009); Oliveira e Kleiman (2008), focalizando os projetos de letramento; e Kato (1986), discutindo a produção de textos.
O próprio PCN (BRASIL, 1997) ratifica o texto como unidade de ensino ao mesmo tempo em que reitera o papel da escola de garantir a todos os alunos o acesso aos saberes linguísticos, fundamentais para o direito da cidadania, cujo aprendizado da língua é entendido como um processo abrangente de uso e de análise de seus significados socioculturais, a partir dos quais a pessoa “[...] defende pontos de vista, partilha ou constrói visões de mundo, produz conhecimento [...]”. (BRASIL, 1997 – Apresentação), além de BRASIL (2004), ratificar que o trabalho pedagógico precisa articular-se com a ludicidade, a alfabetização e o letramento e as áreas de conhecimento.
À vista de todo esse conhecimento e orientações disponíveis, o trabalho realizado nas escolas públicas do município em questão, além de apresentar uma compreensão limitada do processo de alfabetização, são muito poucas as oportunidades de atividades com práticas reais de leitura, escuta, de escrita e fala que possibilitem ao aluno a conquista do uso desejável e eficiente da linguagem, para que possam compreendê-la e utilizá-la adequadamente (BRASIL, 1997).
O que observamos, é uma prática que traduz o entendimento de que a presença de livros na sala de aula – livro didático -, ou um cantinho de leitura, presente em uma ou duas escolas, fosse suficiente para fazer do aluno um leitor, sem um trabalho sistemático, planejado/intencional nesta direção. O que vimos durante todo o período em que estivemos na sala de aula foi um trabalho focado na decodificação e no silêncio, não considerando que a finalidade do ensino da língua Portuguesa:
[...] é a expansão das possibilidades do uso da linguagem, assume-se que as capacidades a serem desenvolvidas estão relacionadas às quatro habilidades lingüísticas básicas: falar, escutar, ler e escrever, portanto, os conteúdos são selecionados em função de tais habilidades e organizados em torno dos dois eixos básicos: o uso da linguagem e a escrita e análise e reflexão sobre a língua. (BRASIL, 1997).
Habilidades estas, pouco presentes nas escolas da rede, quando observada a organização do trabalho pedagógico e também ratificada nas falas dos sujeitos quando solicitadas para descreverem sua rotina diária:
Quadro 1 - Rotina de trabalho diário das professoras da rede municipal
Prof. |
Rotina de Trabalho |
A |
Oração, depois distribuo o livro de leitura, tomo a leitura, correção de atividade e atividade do dia/conteúdo/atividade do conteúdo. Atividade para casa. Se tiver tempo, brincam. |
B |
Oração, conversa informal da aula passada, leitura, correção de atividade, assunto da matéria que já vem pronto na agenda. Vou para onde precisa mais |
C |
Acolhida Oração Chamada Hora da leitura Correção de atividade conteúdo Conteúdo do dia e atividade de português ou matemática: Despedida: jogos, brincadeiras, piadas |
D |
Oração, chamada, correção, assunto do dia, atividade de classe. Intervalo. Retoma atividade, corrigir. Antes olho de um em um. Dependendo do dia ainda dou assunto |
E |
Calendário Correção de atividades Explicação do conteúdo II momento Atividade referente ao conteúdo Explicação para casa |
F |
Ler história. Tomo leitura. Atividade no quadro, corrijo com eles chamando um para fazer; outro corrige ditado de palavras |
G |
Acolhida, oração, algo interessante a ser contado. Corrigi as atividades de casa. Texto. Atividade do texto. Disciplina do dia, matemática ou geografia. Para casa da disciplina do dia |
H |
Conversa informal, leitura pela professora, conhecer as letras do dia, assunto proposto do plano, atividade do dia, atividade para casa ou jogo |
I |
Chamada. Roda de leitura Atividade de casa/correção Exponho o assunto do dia |
J |
Oração. Correção de atividades A disciplina do dia. Se for um texto: interpretação, dinâmica do recorte/ortografia, Atividade escrita. II momento: Atividade escrita |
L |
Oração/chamada/correção de atividade. Segundo momento: conteúdo: exposição/atividade. Geografia e História Só. Tem cinco livros. |
M |
Oração, chamada, correção de atividades/ leitura escolhida pelo aluno conteúdo programado. Apresento/aula expositiva/questiono/atividade xerocada/quadro do assunto/correção coletiva/segundo conteúdo do mesmo jeito e fica para casa. |
N |
Oração Chamada, depois momento de revisão e correção de atividade, atividade xerocada. Trabalho o alfabeto. Tomo a lição e por último o para casa |
O
|
Sigo a rotina do município: 1º momento: oração, correção de atividade coletiva – coloco no quadro-, vou em cadeira corrigindo 2º: aula de Português: singular e plural e matemática: algarismo romano 3º para casa: produção de texto. |
Fonte: Dados produzidos pelas autoras por meio da entrevista.
Analisando o quadro acima se constata que as professoras seguem uma mesma sequência de atividades, como também foi observado em visitas realizadas: oração na sala de aula, chamada e, logo após, correção da atividade de casa oralmente. Apenas as professoras D, E e O têm a prática de circular pela classe, verificando quem realizou a atividade. Em seguida, as professoras partem para a atividade relacionada ao conteúdo previsto para o dia que é realizado a partir de aula expositiva, para a apropriação do sistema de escrita, sem que os alunos possam realizar a reflexão sobre esse objeto de conhecimento, sem interação, seguida de atividade do livro e cópia da atividade de casa.
Percebe-se que são poucos eventos de interação com a leitura na rotina das escolas. Não se constatou, a partir dos fragmentos acima, nenhuma proposta sistematizada de leitura e produção da diversidade de gêneros textuais, fato também observado nas visitas, à exceção de leituras de textos narrativos (fábula e histórias) advindos dos chamados projetos de leitura, apesar de os livros didáticos fornecidos apresentarem uma diversidade de propostas de atividades que potencializam o letramento e o sistema de escrita alfabético, restando para o professor a seleção destas, conforme os objetivos visados em cada aula e/ou sequência delas.
A assunção das leituras a que as professoras (A, B, C, F, H, I, M) se referem, localizam-se nos chamados projetos de leitura, que acontecem uma vez por semana, que se caracterizam pela leitura deleite e não a leitura para as diversas finalidades a ela relacionadas. De uma leitura feita pelo professor ou quando há atividades relacionadas às disciplinas de História e Geografia, como foi observado em uma das aulas realizadas pela professora G sobre os povos indígenas, em que esta fez a leitura do texto, sem provocações e questionamentos, e em seguida, solicitou a cópia no caderno para responder às questões propostas no livro, o que foi realizado individualmente, como na verdade são realizadas a grande maioria das atividades, isto é, individualmente.
Não existe, nas escolas investigadas, um trabalho coerente com as orientações curriculares emanadas do MEC e/ou SEC/BA, como atesta uma das professoras, quando perguntada sobre como alfabetiza: “Ou filha... Eu começo do nome do aluno e vai letra por letra, formação de sílabas, palavras...Termino o ano e o texto não produziu”, (Professora D), em detrimento de um trabalho que articule o aprendizado da língua escrita, a compreensão das regras e os modos do funcionamento da escrita e suas formas de manifestações, ao cultivo das práticas sociais que envolvem a escrita, seu uso cotidiano para responder a diferentes atribuições do dia-a-dia. Neste esforço, não há um trabalho sistematizado da aprendizagem da língua escrita e do seu uso da língua escrita. “É possível alfabetizar no contexto do letramento, de que são muitas as facetas” (SOARES, 2003).
Na realidade, as professoras não entendem que a alfabetização é uma construção conceitual e contínua de reflexão sobre o sistema, e essa falta de compreensão de como se dá esse processo e de que é possível alfabetizar letrando, faz com que toda a ação pedagógica gire em torno de um único método de ensino (método sintético), uma mesma atividade para todos, as diferenças individuais não são contempladas, isto é, não tem tratamento didático-pedagógico diferenciado.
Em observações das aulas na primeira etapa da imersão no campo empírico, pudemos identificar que conteúdos e atividades são priorizadas para ensinar o sistema de escrita alfabética e quais as práticas leitoras e escritoras são valorizadas[1], o que nos oportunizou perceber a partir da quantidade de atividade realizadas, a importância dada à alfabetização e ao letramento e sua articulação no espaço de cada sala de aula: alfabetizar letrando.
Quadro 2 - Quadro comparativo das atividades propostas de alfabetização e letramento
ATIVIDA-DE DESEN-VOLVIDA |
QUANTIDADE % |
|||||||||||||
Leitura |
A |
B |
C |
D |
E |
F |
G |
H |
I |
J |
L |
M |
N |
O |
Leitura da chamada |
100 |
100 |
100 |
100 |
100 |
100 |
100 |
100 |
100 |
100 |
100 |
O estudo realizado nos possibilitou constatar que as práticas pedagógicas das alfabetizadoras pesquisadas ainda estão distantes das orientações curriculares, mesmo com as contribuições de todo processo formativo do Pacto/Bahia e PNAIC. As ações pedagógicas estão pautadas numa concepção de escrita entendida como transcrição gráfica da linguagem oral e a leitura reduzida à decodificação de símbolos escritos, desconsiderando todo o conhecimento da área e dos documentos oficiais. Na realidade pesquisada, foi possível verificar que não se pratica a avaliação formativa e com isso não há um trabalho planejado e sistemático de alfabetização e letramento, predomínio de atividades que exigem a capacidade individual dos alunos, inconciliável com o uso que se faz da leitura e da escrita fora da escola e que não correspondem às orientações curriculares que a ele dão sentido; um trabalho pautado apenas na alfabetização desconsiderando os usos sociais da leitura e da escrita, assim como um desconhecimento dos objetivos do final de ciclo. O estudo evidenciou que as professoras apresentam uma compreensão muito limitada do processo de alfabetização, não têm clareza do que é letramento e, por isso, não sabem como o processo de alfabetizar letrando pode se efetivar na prática. Diante dos dados apresentados, podemos inferir que o trabalho pedagógico praticado na rede pública municipal não tem possibilitado à criança o direito de estar alfabetizada e letrada ao final do 3º ano do Ensino fundamental. Isso se revela, não apenas a partir dos dados aqui apresentados, mas outros tantos que foram produzidos no âmbito de um estudo mais amplo, sendo este apenas um recorte. [1] Plano Nacional de Educação (PNE) é um plano decenal que estabelece diretrizes, objetivos, metas e estratégias para todos os níveis, etapas e modalidades do ensino. O plano hoje em vigor foi aprovado em junho de 2014, e será implementado no período de 2014 a 2024. É o segundo plano nacional de educação brasileira. [1] Um estudo mais aprofundado dos desafios da educação brasileira encontra-se na Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) e dá outras providências. [1] Atividade epilinguística está relacionada à reflexão voltada para o uso, no interior da própria atividade linguística que realiza. ALBUQUERQUE, Eliana Borges Correia de. Conceituando alfabetização e letramento. In: SANTOS, Cami Ferraz. Alfabetização e Letramento: conceitos e relações. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. BARBIER, René. A Pesquisa-Ação.. Brasília: Liber Livro, 2007. v. 3. BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em Educação: fundamentos, métodos e técnicas. In: Investigação qualitativa em educação. Portugal: Porto Editora, 1994. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua portuguesa. Brasília, 1997. BRASIL. Resolução 07 CNE/CEB. Resolução n° 07, de 14 de dezembro de 2010. Fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de Nove Anos. CRUZ, Magna do Carmo Silva. Alfabetizar letrando: alguns desafios do 1º ciclo no Ensino fundamental. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2008. 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