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Ensino Superior Brasileiro: Quando O Retrocesso Ameaça Os Avanços

Ana Maria Freitas Teixeira

O artigo objetiva analisar as políticas públicas implementadas no ensino superior a partir do início do século XXI. Apresentamos as modificações recentes no sistema de seleção para obtenção de uma vaga na rede pública, em especial na rede de instituições federais, com a implantação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o Sistema de Seleção Unificada (SISU). No âmbito da ampliação da oferta de ensino superior público destacamos o Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) visando, além da ampliação de vagas federais, inovações pedagógicas e combate ao insucesso e abandono. Tratamos também do Plano Nacional de Assistência aos Estudantes (PNAES), de 2010 e da Lei de Cotas para o Ensino Superior de 2012. No campo da oferta privada destacamos o Programa de Financiamento Estudantil (FIES), de 1999 bem como o Programa Universidade para Todos (PROUni) de 2004. Os avanços produzidos a partir da implantação dessas políticas não devem ser negligenciados frente ao ingresso de estudantes oriundos de setores sociais sistematicamente alijados dos níveis mais elevados de escolarização. Além disso, as recentes alterações ocorridas nestes diferentes programas indicam as disputas e ameaças à democratização do ensino superior brasileiro.

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TEIXEIRA, Ana Maria Freitas. Ensino Superior Brasileiro: Quando o Retrocesso Ameaça os Avanços. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2022 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/465-ensino-superior-brasileiro-quando-o-retrocesso-amea%C3%A7a-os-avan%C3%A7os. Acesso em: 16 out. 2025.

Ensino Superior Brasileiro: Quando o Retrocesso Ameaça os Avanços

Introdução

No Brasil, especialmente, nas duas últimas décadas, múltiplas foram as políticas públicas que marcaram o ensino superior brasileiro ensejando mudanças importantes no cenário educacional.

Essas mudanças causaram impactos variados dentre os quais podemos citar a instalação de instituições de ensino superior para além dos grandes centros urbanos, marcando o processo de "interiorização" da oferta de vagas, um dos ingredientes de um movimento mais amplo de democratização do acesso ao ensino universitário. Este movimento, apesar de seus limites, produziu mudanças no perfil dos estudantes universitários brasileiros: setores sociais antes excluídos tiveram maiores chances de ingresso e permanência. (TEIXEIRA, 2011)

Entretanto, a interiorização da oferta de vagas, apesar de sua importância, não foi o único eixo propulsor dessas mudanças. Ao contrário disso, a partir do ano 2000 um conjunto de políticas públicas foi implantado. Entre essas políticas, podemos destacar a adoção do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) como ‘porta de entrada’ para o ingresso em instituições públicas de ensino superior, desde 2009, e a implantação do Sistema de Seleção Unificada (SISU), criado em 2010, que informatizou a corrida por uma vaga em nível nacional.

Fazem parte, igualmente, deste panorama os programas do governo federal que visam, simultaneamente, ampliar a oferta de vagas tanto no ensino superior privado como no setor público. No campo do ensino superior privado, os destaques são o Programa de Financiamento de Estudantes (FIES), iniciado em 1999 e o Programa Universidade para Todos (PROUNI) de 2004.

Já no âmbito da oferta pública a última iniciativa importante voltada a redesenhar o ensino superior brasileiro, tem como referência direta o Programa de Reestruturação e Expansão da Universidade Federal (REUNI), que remonta a 2008, bem como o Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), do mesmo ano, e a Lei de Cotas para o Ensino Superior (Lei 12.711), de 2012.

A articulação dessas políticas pode ser considerada como a mais recente ação do estado brasileiro voltada a ampliação e elevação da escolaridade da população brasileira, ainda que possam ser consideradas como historicamente tardias, quando comparadas a países europeus, e mesmo com países latino americanos. Descentralização, flexibilização curricular, uso das tecnologias da informação, desenvolvimento regional, democratização, são alguns dos aspectos que marcam essas políticas (SHIROMA et al., 2000).

Assim, entre avanços e retrocessos procuramos apresentar um panorama critico destas políticas, observando suas reformulações, especialmente a partir de 20016, considerando não apenas seus limites mas, também, discutindo seus efeitos colaterais na educação brasileira ao longo do século XXI.

 

Quando os números falam

O ensino superior brasileiro possui uma estrutura complexa que, a rigor, não corresponde a um sistema, ainda que o termo seja utilizado quando se pretende fazer referência a este nível de formação. Vejamos: as instituições que fazem parte desta estrutura podem ser classificadas de acordo com seu tipo de financiamento e sua organização acadêmica. Ao considerar a fonte de recursos financeiros, as instituições são classificadas como públicas (federais, estaduais, municipais) e privadas. Já em relação à sua organização acadêmica, são classificados como: Universidades, Centros Acadêmicos, Faculdades, Institutos, Centro de Educação Tecnológica.

Ao concluir uma formação universitária, o estudante pode acessar um diploma de bacharelado, uma licenciatura ou um diploma tecnológico superior. A pós-graduação, por sua vez, está organizada em dois níveis: lato sensu (especialização) e stricto sensu (mestrado e doutorado).

Se o Censo da Educação Superior de 2000 indicava um total de 1180 Instituições de Ensino Superior (IES), assim distribuídas: 1004 (85%) eram privadas e 176 (15%) eram públicas. (BRASIL/INEP, 2000), vinte anos depois, em 2020[i], o Censo indica um total de 2.247 IES, sendo 304 (13,5%) públicas e 2153 privadas (95,8%) (BRASIL/INEP, 2020).

Quanto ao total de estudantes universitários no ano 2000 o Brasil tinha 2.694.245 estudantes inscritos nos cursos de graduação (presencial). Esses estudantes/matrículas estavam assim distribuídos: 33% (887.026) em IES públicas e 67% (1.807.219) em IES privadas. Para 2020 são 8.680.945, sendo 22,5% (1.956.606) nas IES públicas e 77,5% (6.724.339) nas instituições privadas.

Já no que se refere ao número de vagas por modalidade de ensino temos que em 2018, pela primeira vez, as vagas à distância ultrapassam a oferta presencial chegando a 53%. No ano seguinte, 2019 esse percentual se eleva a 63%. Os dados para 2020, ano em que a crise sanitária causada pelo patógeno SARS Cov-2 afeta todo o planeta provocando a pandemia de Covid 19 as vagas oferecias à distância atingem 68%. As medidas restritivas visando controlar a disseminação da Covid 19, tais como restringir aglomerações, distanciamento social, redução das atividades comerciais, restrição às atividades presenciais, dentre outras, levaram à suspensão das atividades acadêmicas presenciais ocasionando terreno fértil para a aceleração na multiplicação de matriculas não presenciais: 92% das IES suspenderam as aulas presenciais em 2020.

Dados do Censo da Educação Superior de 2020 indicam que enquanto as matrículas presenciais tiveram um acréscimo de 1, 30% em relação ao ano anterior, as matriculas a distância cresceram em 30% no intervalo de 12 meses. É importante também acrescentar que das 2.008.979 de vagas a distância em 2020 um total de 1.960.679 estavam na oferta privada (97,5%) (BRASIL/INEP, 2020)

Esses são números reveladores e seria possível supor que se trata de um sistema privado de ensino superior de massa voltado a oferta de ensino á distancia, um sistema mal avaliado e frágil no campo do desenvolvimento da pesquisa e do reconhecimento científico dos pesquisadores. Por outro lado, o perfil dos alunos que conseguem obter uma vaga em uma instituição privada de ensino superior é, geralmente, aquele de um jovem que teve acesso a um ensino básico marcado por lacunas na sua qualidade durante o qual esse jovem teve muitas dificuldades em desenvolver as habilidades requeridas pelo ensino superior (COULON, 2008). Em contrapartida, o processo de seleção do ensino superior privado é muito menos exigente do que aquele adotado pelas instituições públicas.

O Mapa do Ensino Superior no Brasil 2020 (INEP/Agência Brasil, 2020) indica:

O estudante das instituições de ensino superior brasileiras tem um perfil bastante claro: é branco, do sexo feminino, com idade entre 19 e 24 anos, estuda em instituições privadas à noite, fez o ensino médio em escola pública, mora com os pais e tem de trabalhar para ter uma renda de até dois salários mínimos.https://agenciabrasil.ebc.com.br/ebc.png?id=1307929&o=nodehttps://agenciabrasil.ebc.com.br/ebc.gif?id=1307929&o=node

 

Os dados do Mapa são ainda mais específicos e revelam o seguinte:

Tanto nas instituições de ensino superior públicas como nas privadas, a maior parte dos alunos é proveniente do ensino médio público. No caso do ensino superior privado, 68,5% dos alunos vieram do ensino médio público e 31,5% do privado. Já nas instituições de ensino superior público, 60,1% veio do ensino médio público; e 39,9% do ensino médio privado.

 

Para entender esse aspecto, é necessário especificar o fenômeno da pirâmide invertida que caracteriza a relação entre educação básica (ensino fundamental e secundário) e ensino superior: a maioria da população brasileira na faixa etária que compreende a escolarização na educação básica (6 a 18 anos) frequenta a escola pública. Apesar de alguns progressos, existem problemas significativos no nível de aprendizagem dos alunos que podem, com frequência não desprezível, completar a educação básica sem dominar os fundamentos da língua materna e da matemática. São estes alunos da escola pública que, em grande medida, preencherão as vagas disponibilizadas pelas instituições privadas de ensino superior. Por outro lado, os alunos que realizam a educação básica nas escolas privadas ocuparão os cargos de instituições públicas de ensino superior, reputadas como as melhores pela qualidade do ensino, qualificação dos professores, desenvolvimento da pesquisa, etc. Somente nos últimos anos, esta lógica foi desafiada, lentamente, com políticas educacionais que visam a democratização do acesso às universidades públicas brasileiras, em especial as instituições federais.

Assim, embora as instituições privadas sejam a maioria em termos de quantidade, as universidades públicas são as mais prestigiosas e desejadas pelos jovens e suas famílias. Na verdade, essas instituições são caracterizadas por uma competição muito forte, especialmente nas formações identificadas socialmente como profissões de prestígio (BOURDIEU, 2001).

Esse retrato em grande escala é um ponto de partida para tratarmos das múltiplas iniciativas governamentais nas duas últimas décadas, tal como se segue, visando um balanço desse período.

 

O que dizer das políticas educacionais para o ensino superior no século XXI

Como indicamos acima, nos últimos vinte anos, o ensino superior brasileiro sofreu transformações relevantes que contribuíram para ampliar o acesso e a permanência dos estudantes, principalmente os estudantes mais pobres egressos das escolas públicas de ensino médio.

Podemos sistematizar essas transformações em duas grandes linhas, quais sejam: as políticas públicas que impactaram a oferta de vagas no setor público do ensino superior brasileiro e as políticas públicas direcionadas a ampliar/financiar a oferta de vagas no setor privado. Ainda que o conjunto dessas ações dialoguem e se complementem num contexto mais amplo optamos por tratar de cada um desses setores separadamente, como estratégia de apresentação dos dados, fazendo o esforço de evitar uma visão parcial deste cenário mutável.

Iniciamos, assim com as ações que produziram seus efeitos diretos no ensino superior público que assistiu à eliminação do sistema vestibular como forma de seleção.

 

As políticas públicas para o ensino superior público

Durante décadas para que um jovem pudesse obter uma vaga no ensino superior ele deveria, obrigatoriamente, se submeter e ser aprovado no exame vestibular para o qual estaria apto desde que concluísse o ensino médio. Essa era a forma de recrutamento e seleção utilizada tanto pelas IES públicas como privadas que organizavam, de forma independente, seus processos seletivos.

Em 1998, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso estando o MEC sob a gestão do ministro Paulo Renato Sousa (professor e economista), foi criado o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) como instrumento de avaliação do desempenho dos estudantes no término da educação básica e esse instrumento foi utilizado com essa finalidade por aproximadamente dez anos tendo seus resultados considerados como parâmetros para orientação das políticas públicas.

Em 2009, já sob a presidência de Luís Inácio Lula da Silva, e tendo como ministro da educação Fernando Haddad (professor e advogado), o então chamado de Novo ENEM, teve suas provas reestruturadas com a ampliação do número de questões objetivas (de 63 para 180), a inclusão de uma prova especifica de redação e passa a ser realizado nos dois dias do final de semana. A partir desse momento o ENEM passou a se constituir em um Exame Nacional vinculado a obtenção de uma nota geral válida para concorre a uma vaga no ensino superior público, especialmente nas instituições federais.

Antes realizado em um único final de semana, desde 2017[ii] o Exame passou a ser realizado em dois domingos consecutivos, ocasiões em que o jovem realiza as provas de Redação, Linguagens e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Matemática e suas Tecnologias.

Já em 2021, sob o governo de Jair Bolsonaro e gestão de Milton Ribeiro (professor e pastor presbiteriano )[iii] como Ministro da Educação, ocorreu a primeira edição do ENEM Digital, com a finalidade de redução de custos já que até então as provas eram exclusivamente impressas. No formato de uma edição piloto a opção digital atraiu a inscrição de mais de 100 mil estudantes dentre os quais apenas 30 mil realizaram a prova. Vale observar que a diferença básica nesta edição piloto foi a substituição da folha de respostas impressa pelo registro das respostas diretamente online posto que as mesmas provas foram adotadas tanto no digital como no presencial e a redação deveria ser realizada de forma manuscrita. Além disso, os estudantes que optaram pelo formato digital também tiveram que se deslocar até os locais de prova a fim de garantir a segurança na realização do Exame.

Segundo o Ministério da Educação espera-se que este formato digital esteja consolidado até 2026 quando se pretende realizar as provas quatro vezes ao ano com agendamento prévio.

Mais recentemente, em março de 2022, o MEC, já sob a gestão do Ministro Victor Godoy[iv] apresentou o que seria mais um Novo ENEM, a ser aplicado em 2024, inclusive considerando aspectos relacionados a implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Quais as novidades anunciadas: i) inclusão de questões discursivas nas provas, 2) em um dos dias do Exame o candidato responderá questões baseadas no Eixo Comum da BNCC e fará a Redação e 3) no segundo dia as provas estarão focadas em questões relacionadas ao Itinerário Formativo escolhido no Ensino Médio.

Além disso, um outro anúncio feito pelo MEC chama atenção: os estudantes que, ao longo do ensino médio, fizerem o Itinerário Formativo ‘Formação Técnica Profissional’ terão um bônus na nota ao utilizarem o ENEM como passaporte para concorrem a uma vaga no ensino superior, para o que as IES terão autonomia para definir o uso das notas e aplicação dos bônus por área de formação/cursos ofertados. (BRASIL/Agência Brasil, 2022). A distribuição de bônus para egressos do itinerário de formação profissional pode sugerir várias interpretações que vão desde ressuscitar o projeto de tornar o ensino médio predominantemente profissionalizante mediante vantagens competitivas na corrida por uma vaga no ensino superior até, sendo otimista, favorecer o prolongamento da escolarização de jovens pobres.

Assim, em meio as suas sucessivas adequações, o Exame, foi, progressivamente, substituindo o vestibular como forma de ingresso nas IES federais uma vez que a maioria das instituições privadas continua a selecionar os candidatos através do vestibular.

Realizar o ENEM não é obrigatório para aqueles jovens que não almejam disputar uma vaga nas IES federais que, por sua vez, progressivamente passaram a adotar a nota obtida nesse Exame como forma de acesso. Caso o estudante pretenda uma vaga no setor privado ele deverá se submeter ao exame vestibular da instituição pretendida. Contudo, se esse estudante pretende fazer um curso superior privado utilizando uma das formas de financiamento governamental ele deverá fazer o ENEM, a exemplo do que ocorre desde 2015 para aqueles que buscam inscrição no Fundo Financiamento Estudantil (FIES), tal como veremos mais adiante.

Em 2014 o ENEM teve o maior número de inscritos: cerca de 9,5 milhões. Depois deste período, o que se observa é uma tendência decrescente no número de inscritos o que se agravou entre os anos de 2019-2021 diante da crise sanitária decorrente da Covid 19 quando as dificuldades inerentes a este contexto encontraram ‘uma mão amiga’ na gestão adotada pelo MEC resultando numa queda jamais registrada no número de inscritos e um recorde nas ausências. Assim, em 2019 as inscrições caem ao patamar de 5,1 milhões. Em 2020 apenas 3,9 milhões de inscrições. Em 2021 serão 3,1 milhões e em 2022 temos 3,4 milhões.

Assim, o ENEM, uma das políticas educativas, inicialmente limitada ao ensino médio, torna-se um dos ingredientes das mudanças mais recentes do ensino superior brasileiro, vinculada às políticas de ampliação do acesso ao ensino superior.

Paralelemente a nacionalização da concorrência por uma vaga pública no ensino superior e ainda na segunda metade dos anos 2000, em 2007, uma nova ação governamental será iniciada. Trata-se do Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), estabelecido pelo Decreto nº 6.096/2007. O foco, dessa vez, estava em expandir e interiorizar a oferta de vagas no ensino superior público federal num esforço de democratização do acesso, descentralizando o mapa das instituições federais, ampliando os cursos noturnos, promovendo inovações pedagógicas, combatendo as taxas de abandono, ampliar a taxa de concluintes e estabelecer a proporção de 18 alunos por professor.

Com esse Programa de Expansão o número de universidades federais passou de 45 para 59 em menos de 10 anos (+ 30%) e o número de campi em anexo a essas universidades aumentou em mais de 100 no país. Neste processo, houve uma tendência em ampliar a oferta de formação universitária em cidades localizadas no interior, ou seja, fora de grandes centros urbanizados e mesmo fora das capitais dos estados, um aspecto que não é insignificante quando trata-se de um país de dimensão continental, caracterizado por desigualdades significativas entre as regiões, inclusive no campo da educação em geral. Neste movimento 272 municípios receberam a instalação de Ifes visando estimular o desenvolvimento regional, garantir a expansão, e reduzir as assimetrias territoriais (BRASIL, 2012).

Em 2007 53 das 54 universidades federais existentes aderiram ao REUNI. Apenas a UFABC, criada em 2005, não participou do Programa pois já contava com as inovações pedagógicas demandas pelo Programa.

Paralelamente ao processo de expansão quantitativa estava o processo de inclusão de setores sociais historicamente excluídos do ensino superior, como jovens negros, povos indígenas e egressos da escola pública.

Os balanços sobre os impactos do REUNI reafirmam os resultados positivos do Programa no que tange a implementação de uma política nacional inclusiva e afirmativa. Ampliação do número de vagas na graduação presencial, a interiorização da oferta, a expansão física das IES, e a reformulação curricular com adoção de maior flexibilidade nos itinerários formativos são alguns dos aspectos positivos. Entretanto, é bom lembrar que a implantação do Programa, bem como as outras políticas aqui mencionadas encontraram resistência dentro e fora das IES evidenciando a disputa entre diferentes projetos sociais para o ensino superior e os desafios na construção de um ensino superior capaz de superar sua marca elitista. (RISTOFF, 2013; RADAELLI, 2013)

Em que pese os avanços e limitações do REUNI com o plano de expansão e interiorização das universidades públicas federais, uma outra iniciativa marca este mesmo período. Trata-se da implantação do Sistema Unificado de Seleção (SISU) pelo Ministério da Educação entre 2009 e 2010.

O SISU instaurou a unificação nacional do sistema de seleção para ingresso nas instituições de ensino superior públicas. Trata-se de um Sistema articulado a nota que o estudante obtém no ENEM: cada candidato pode escolher até duas opções de curso que podem ser alteradas ao longo do processo de seleção e em conformidade com suas chances de obtenção de uma vaga considerando a concorrência em cada um delas. A nota obtida no ENEM e a nota de corte definida a partir da concorrência nacional vai, então, definir se o candidato conseguirá uma vaga no curso que corresponde a sua primeira opção, ou a sua segunda opção.

A implementação deste Sistema tornou nacional a competição por uma vaga no ensino superior público. Anteriormente a concorrência estava definida por parâmetros mais locais/regionais mediante o dispositivo do vestibular organizado por cada instituição de maneira autônoma e com um calendário próprio o que tornava mais difícil, e mais oneroso, que um jovem de baixa renda pudesse se apresentar a diferentes concursos pagando múltiplas taxas de inscrição e deslocamentos.

Contudo, tendo em vista as consideráveis diferenças regionais na qualidade da educação, muitas vezes enfrentar ‘apenas’ a concorrência local/regional pode ser visto como uma situação de vantagem relativa diante da tendência a uma menor discrepância no nível de preparação dos candidatos que disputam uma vaga. Por outro lado, esse Sistema permitiu que jovens de origem popular, com suas notas, concorressem a uma vaga em todo o país. Mas, é preciso observar, que a possibilidade de mobilidade que esse Sistema inaugurou trouxe consigo outros desafios a democratização do acesso ao ensino superior: concretizar a mobilidade dos jovens pobres.

Então, se o SISU viabiliza acesso a qualquer vaga no território nacional, o que não ocorria com o vestibular, por outro lado produz efeitos colaterais especialmente sobre os jovens pobres: a conquista de uma vaga longe de casa implica em uma série de despesas incompatíveis a sua situação socioeconômica que pode se configurara em obstáculo intransponível.

É diante deste diagnostico que paralelamente ao SISU e no mesmo ano de 2010 foi criado o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), mediante o Decreto 7.234, com o objetivo central de ampliar as condições de permanecia dos jovens de baixa renda e/ou egressos do ensino médio público no ensino superior público federal, especialmente aqueles matriculados em cursos presencias, através de bolsas e auxílios vinculados a moradia, alimentação, transporte, apoio pedagógico, creche, dentre outras. Assim, esse Programa voltava-se a favorecer a igualdade de oportunidades entre os estudantes produzindo a melhoria do desempenho acadêmico e redução do insucesso e abandono dos cursos. Vale observar que as universidades têm autonomia para definir a utilização dos recursos do Programa em conformidade com o perfil de seus estudantes.

Seguindo nessa mesma direção de ampliação do acesso a formação universitária e conjugando-se às ações precedentes, em 2012 o Governo Federal sancionou a Lei de Cotas para o Ensino Superior (Lei 12.711/2012) estabelecendo que 50% do total de vagas, por curso e turno, deveriam ser reservadas para estudantes que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas. Os critérios que determinam aqueles que tem direito aos benefícios definidos por essa Lei, em verdade, articulam a condição de egresso da escola média publica ao recorte de renda familiar e ao recorte étnico-racial: do tal de vagas destinadas às Cotas metade se destina a aqueles egressos da escola pública (média) com renda familiar bruta per capita até 1,5 salários mínimos sendo que essas vagas devem ser proporcionalmente distribuídas entre negros, pardos e indígenas, conforme dados do demográficos. O mesmo ocorre com a outra metade das vagas reservadas pela Lei de Cotas, essas, por sua vez, destinadas àqueles com renda familiar bruta per capita acima de 1,5 salários mínimos.

A aplicação da Lei de Cotas ocorreu de forma gradual a fim de respeitar uma série de medidas já executadas, isoladamente, pelas instituições federais com fins de propiciar a democratização do acesso e a permitir, simultaneamente, que as instituições pudessem organizar seus processos seletivos. De todo modo a Lei prevê que seus efeitos e desdobramentos sejam avaliados em dez anos a fim de que posa ser definida a manutenção, ou não, da legislação.

Considerando os parâmetros dessa Lei podemos dizer que ela se caracteriza por seus aspectos de inclusão social e étnico-raciais tendo em vista que a universidade brasileira se caracteriza desde sua criação como locus da elite branca. O último Censo oficial da população brasileira realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE, 2010) registrou o que todos já sabiam: mais da metade da população brasileira é formada por negros e pardos; 50,7%. Vale aqui observar que nos anos que se sucederam ao Censo, estudos nacionais divulgados pelo IBGE mediante a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014 mostra o seguinte: 54,3 % declarou-se negro ou pardo e 45,5% brancos, alterando os dados obtidos em 2004 quando 47,9% se declarou preto ou pardo e 51,2% brancos. Já na PNAD Continua de 2019 (IBGE,2019) 42,7% dos brasileiros se declararam como brancos, 46,8% como pardos, 9,4% como pretos e 1,1% como amarelos ou indígenas. É provável que esses dados indiquem uma alteração na lógica e sentido que tem assumido a autodeclaração étnico racial no Brasil.

Alguns avanços podem ser indicados, quando se observa que, entre 2010 e 2019, se registrou um crescimento de 400% nas matriculas entre alunos negros (pretos e pardos) chegando a 38,0%. Ainda assim, as desigualdades não podem ser minimizadas: na população com 25 anos ou mais apenas 9,3%de negros tinham ensino superior completo em 2017, enquanto entre os brancos este percentual chega a 22,9%.

O fato é que a implementação da Lei de Cotas sancionada em 2012 produziu ampliação das demandas por recursos destinados ao PNAES, criado em 2010 ampliando a pressão das instituições federais por mais recursos à medida que os estudantes de origem popular se multiplicam.

Assim, na esteira da Lei de Cotas de 2012 e já em 2013 o MEC cria um outro programa voltado a permanência: Programa Bolsa Permanência (PBP), gerido diretamente pelo MEC consiste em conceder auxílio financeiro pago diretamente ao estudante matriculados em IES federais que estejam em situação de vulnerabilidade socioeconômica, estudantes indígenas e quilombolas.

Esse contexto tornou a política de assistência estudantil um enjeux importante no processo de concretização das medidas de ampliação de acesso e permanência voltadas aos jovens pobres. Vale, contudo, lembrar que a permanência estudantil não está exclusivamente vinculada a questões econômicas, ou seja, questões cognitivas, intelectuais e pedagógicas merecem atenção constante dos gestores universitários. (COULON, 2008; CHARLOT, 2000)

Independente das limitações das políticas implementadas, esse conjunto de medidas tem alterado, lentamente, o perfil do estudante universitário brasileiro, em especial aqueles que acedem as instituições federais numa dinâmica que produz tantas outras tensões internas a um ‘sistema’ universitário concebido para as elites e que processa mudanças em suas estruturas rígidas, também, lentamente.

Passemos então ás ações do Estado brasileiro que impactaram diretamente os ‘negócios educacionais’ no setor privado da educação superior.

 

As políticas públicas para o ensino superior privado

Uma outra iniciativa que se incorpora ao campo das primeiras ações de ampliação do acesso, especialmente às vagas disponibilizadas pelas instituições privadas, ocorreria em 1999, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso com a criação do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES)[1] vinculado ao Ministério da Educação. O objetivo era, e continua o mesmo nos dias atuais: financiar estudos universitários para jovens matriculados em instituições privadas.

O Programa sofreu algumas alterações, em 2003 e 2010 contudo, manteve seu eixo central. Trata-se de um financiamento concedido diretamente ao jovem estudante que deverá reembolsar os cofres públicos a uma taxa de juros relativamente baixa em relação à inflação ou à taxa do mercado financeiro. Até 2021 o estudante poderia iniciar o este reembolso 18 meses após a conclusão do curso universitário. Após este período inicial, ele ainda terá um período correspondente a três vezes a duração da graduação para começar a pagar esse "empréstimo" governamental mediante parcelas mensais. Entre outros critérios, o financiamento é validado apenas para matriculas em cursos presenciais que obtiveram uma avaliação considerada positiva pelo sistema de avaliação do Ministério da Educação, ou seja, pelo menos a nota três sendo o máximo a nota 5.

Entre fins de 2014 e início de 2015 as regras para obtenção do FIES sofreram alterações e se tornaram mais exigentes. Dentre os novos parâmetros podemos destacar:

- Media mínima de 450 pontos no ENEM;

- Nota na prova de redação acima de zero;

- Renda mensal familiar bruta per capita de, no máximo, até 03 Salários Mínimos (em 2022 o Salário Mínimo corresponde a R$1.212,00)

Segundo dados oficiais do Ministério da Educação em 2010, 76 mil alunos receberam esse financiamento. Em 2014, esse número aumentou para 731 mil. Em 2014, cerca de 26% dos estudantes matriculados em instituições privadas de ensino superior obtiveram esse financiamento (BRASIL, 2014)

Esses dados são tanto mais importantes quando observamos a forte concentração das matrículas nas instituições de ensino superior privadas, ainda que a ampliação desse tipo de ‘acesso’ possa reduzir a pressão sobre a oferta de vagas no setor público encorajando um certo tipo de estudante a buscar sua inserção em níveis mais elevados de escolaridade pela via da oferta privada de vagas.

Desde 2015 a adoção de regras mais restritivas de seleção dos estudantes, associadas a redução do orçamento destinado ao Fundo, tiveram reflexos importantes sobre as IES privadas que aderiram ao Programa. Diante desse cenário observou-se a multiplicação de ofertas de financiamento instituídas e administradas pelas próprias IES privadas no sentido de fazer face a retração do financiamento público.

Em verdade a crise econômica que afeta o Brasil desde 2015 produziu impactos em todos os níveis do ensino superior: o orçamento do Ministério da Educação foi um dos mais afetadas com uma redução de 9 milhões de reais.

As regras do FIES também sofreram alterações recentes. Para aqueles que obtiverem o FIES 2022 o pagamento do empréstimo terá início imediatamente após a conclusão da graduação: para aqueles que tiverem vínculo empregatício formal o desconto ocorrerá diretamente na folha de pagamento conforme a renda do beneficiado; aqueles que se encontrarem desempregados deverão pagar uma parcela mínima.

Segundo dados do MEC, em 2022, a inadimplência chega a 1 milhão de contratos considerando os financiamentos obtido até 2017, ou seja 51,7%. Esse quadro resultou na sanção de uma nova lei que procura reduzir inadimplência e oferecer possibilidade de pagamento das dívidas mediante descontos que variam de 99% para aqueles inscritos no Cad Único ou que receberam Auxilio Emergencial em 2021, a 77% para quem pagar o valor integral do saldo devedor.

Vale observar que o FIES, ao longo de seus 20 anos, tem contribuído para a expansão do ensino superior privado inclusive beneficiando grandes grupos empresariais que sobrevivem às intempéries econômicas graças ao financiamento público. Nesse período instituições privadas foram denunciadas por prática de estimulo ao endividamento junto a estudantes que não tinham real necessidade, especialmente entre 2010 e 2013.

O auge de vagas viabilizadas pelo FIES tem registro em 2016 quando o MEC liberou 325 mil matriculas que foram reduzidas a 100 mil/ano desde 2019. Certamente a redução de vagas tem impactos sobre aqueles que não dispõem de meios para custear seus estudos universitários no setor privado e não tem êxito nas seleções para uma vaga pública. Mas além disso, o Programa foi reestruturado e parte das vagas disponibilizadas passou a ser gerida por Bancos privados, através do chamado P-Fies, que são mais rigorosos quanto as garantias de pagamento dos candidatos.

Simultaneamente, o FIES convive com o espectro de um sistema de avaliação pouco transparente o que inclui as bases adotadas para a avaliação das instituições privadas, de seus cursos e a carência de estudos sobre a efetividade dos diplomas obtidos em termos de impactos socioeconômicos.

Ainda no início dos anos 2000, em 2004, uma outra iniciativa do governo Luis Inácio Lula da Silva se direciona ao ensino superior privado com o Programa Universidade para Todos (ProUni). Posto em execução em 2005, o ProUni concede bolsas de estudo (integral ou parcial) a estudantes matriculados em instituições privadas de ensino superior.

Podem concorrer a uma das bolsas do ProUni jovens egressos de escolas públicas ou aquelas que receberam bolsas de estudo integral em escolas privadas. Para obter uma bolsa integral do ProUni, o estudante deve comprovar uma renda familiar mensal bruta per capita de até um salário mínimo e meio. Para uma subvenção parcial, a renda é de até três salários mínimos por pessoa. Assim como para o FIES, é essencial que o demandante tenha realizado o ENEM, tenha obtido uma média geral de pelo menos 450 pontos e tenha obtido uma pontuação acima de zero no exame de redação. Como provável reflexo dessas exigências em 2005 o número de inscritos no ENEM sofre um acréscimo da ordem de aproximadamente 100% passando de 1,5 milhões para 3 milhões de inscritos.

O anúncio deste Programa provocou fortes reações negativas da comunidade acadêmica vinculada às instituições públicas, mas também na sociedade em geral, já que este programa, finalmente, transferia recursos públicos para instituições privadas com fins lucrativos, enquanto as instituições públicas reivindicavam, constantemente e sem sucesso, um aumento de seus orçamentos, ampliação do número de vagas, realização de concursos públicos para docentes, melhores salários e condições de trabalho. Além disso, as instituições privadas que aderem ao Programa têm isenções fiscais se destinarem 10% de suas vagas ao ProUni.

É oportuno lembrar que em 2020 o Brasil tinha 2457 instituições de ensino superior: 12,4% (304) eram públicas e 87,6% (2153) eram privados. Havia 8.680.354 alunos matriculados, dos quais cerca de 77,0 % eram de instituições privadas (BRASIL, 2020).

Em 2022, o governo de Jair Bolsonaro, sancionou a Lei 14350 ampliando o acesso ao ProUni. Se antes o Programa estava direcionado apenas aos egressos da educação pública e bolsistas de escolas particulares, desde julho de 2022 os estudantes de instituições particulares não bolsistas foram autorizados a se inscreverem. Quanto a renda as exigências permanecem as mesmas e não precisam ser comprovadas desde que os dados exigidos estejam disponíveis nos registros governamentais. Já em relação a definição das cotas no âmbito das vagas designadas pelo Programa o cálculo para as pessoas autodeclaradas pardos, pretos e com deficiência é feito separadamente tendo em vista dados estaduais do Censo Demográfico. A Medida define, também, uma lista de prioridades entre os candidatos: portadores de deficiência, professores da rede pública que buscam formação em pedagogia e licenciaturas, aqueles que cursaram o ensino médio integralmente na rede pública de ensino, os que estiveram nas redes pública e privada no ensino médio, os que tinham bolsa integral no ensino privado ao longo de todo o ensino médio e por fim estudantes pagantes ou com bolsa parcial na rede privada de ensino médio.

O direito de acessar o Prouni concedido a egressos do ensino privado atenta contra as bases do Programa e favorece os já favorecidos. Uma alteração dessa natureza em um Programa que atende 9 mil estudantes colocando em igualdade de condições os estudantes egressos da rede privada e da rede pública acaba por aprofundar as desigualdades no acesso à educação superior no Brasil e desvirtua a proposição original da política. Se, inicialmente, a crítica mais contundente feita, por diferentes setores sociais, ao Prouni estava relacionada ao fato do orçamento público financiar instituições de ensino privadas, o que dizer quando o orçamento público financia tanto a instituição privada, mediante o sistema de renúncia fiscal, como o indivíduo que dispõe de meios próprios para acessar o ensino médio particular?

Estudos apurados tem sido realizados sobre a efetividade do ProUni observando, em especial, a amplitude da isenção fiscal concedida às IES que aderem ao Programa e distorções produzidas em sua condução quando se observa que os bolsistas, oriundos das camadas populares, são direcionados aos cursos pouco procurados e de baixa qualidade. (FILHO, 2008; SCHWARTZMAN, 2006). Portanto, o debate sobre o ProUni segue de atualidade.

Em verdades segue de atualidade o debate sobre a educação brasileira, especialmente, quando se observa o aprofundamento de antigos problemas, tais como evasão, abandono, retenção, que encontraram reforço inegável no fracasso da gestão estatal frente aos efeitos da pandemia de Covid-19 tanto do ensino superior, como na educação básica pública.

O conjunto do balanço apresentado nos leva, obrigatoriamente, a perguntar o que veio depois em termos de novas ações voltadas a fortalecer, ampliar ou mesmo corrigir os rumos das políticas públicas para o ensino superior na perspectiva de assegurar os avanços conquistados e enfrentar as dificuldades. A resposta não é das mais animadoras quando se observa o panorama de nossos dias, em particular após o impeachment de 2016 quando a presidente eleita Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores-PT) perde o mandato, sem comprovação de crime de responsabilidade fiscal, e o vice-presidente Michel Temer (Movimento Democrático Brasileiro-MDB) assume a presidência até 2018. Vejamos.

O governo tampão de Michel Temer terá como sua marca a Emenda Constitucional 95/2016 - PEC dos Gastos- que limita os gastos públicos federais e corrige o limite máximo dessas despesas pela inflação do ano anterior. Sob a prerrogativa do ajuste fiscal, agora princípio constitucional, o teto de gastos deve ser mantido e o orçamento direcionado a educação, saúde, segurança, habitação foram diretamente impactados ante a ascensão da cartilha neoliberal: retrocesso na área social e ambiental, ampliação da legalização da terceirização, reforma da previdência, preparando o terreno para o que viria em seguida. No campo da educação superior o presidente Temer e seu ministro Mendonça Filho adotaram uma série de medidas restritivas: redução de vagas no FIES, no ProUni e Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) além de cortes nas bolsas para pesquisa na pós-graduação.

Entre 2019 e 2022, o Brasil, sob a presidência de Jair Bolsonaro, viu passar pelo MEC 4 ministros empossados além de outros indicados que não assumiram a pasta em virtude de informações falsas em seus currículos.

Heringer (2021), nos apresenta um quadro do que tem sido o Governo Jair Bolsonaro diante da descontinuidade e ingerência nefasta no ensino superior brasileiro. O desrespeito a autonomia universitária é uma das marcas: entre 2019 e 2020 das 29 nomeações de reitores apenas 11 dos mais votados das listas tríplices foram empossados. Em oito IES a reitoria foi ocupada pelo candidato menos votado na lista, enquanto em três outras instituições o segundo mais votado ocupou o cargo. Em sete universidade foram nomeados docentes que nem mesmo haviam participado do processo de consulta. A universidade pública foi tomada como cam

Palavras finais

É inegável que os programas governamentais em favor do ensino superior brasileiro, dentre quais apresentamos os mais relevantes e atuais, permitiram que setores sociais historicamente marginalizados tivessem acesso a esse nível de educação. Este movimento inaugurou um momento importante na educação brasileira no que tange a democratização dos níveis mais avançados de escolaridade, bem como a expansão da oferta de vagas no setor público e no setor privado.

Entretanto, essa expansão não parece ter sido equilibrada. Quando se observa o decênio entre 2006 e 2016 vê-se que o aumento no número de matrículas da ordem de 66,8% na rede privada e de 59,0% na rede pública. Já dados recentes da Organização para a Cooperação Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2021) apontam que apenas 21% da população brasileira entre 25 e 34 anos concluíram o ensino superior estando o Brasil atrás da maioria dos países latino americanos, tais como Colômbia (29%), Argentina (40%), Chile (34%) e mesmo a Costa Rica (28%), enquanto 44% é a média entre os países do Bloco.

Numa perspectiva otimista poderíamos supor que a expansão da esfera privada acima mencionada, sobretudo mediante a multiplicação das faculdades, poderia estar ligada a uma demanda reprimida que não encontra possibilidade de ser atendida na esfera pública, o que de fato ocorre, preservando o direito de todo cidadão realizar seus estudos superiores.

Contudo, apesar da multiplicação de vagas no campo da oferta pública federal a concorrência por uma vaga permanece mais elevada o que leva essas instituições a recrutarem os melhores estudantes. Mesmo com essa presença preponderante do privado e as preocupações que este desequilíbrio quantitativo e qualitativo provoca, podemos dizer que para muitos jovens brasileiros ser um estudante “fraco” e estudar em uma faculdade privada é a única possibilidade de avançar na escolaridade e ter a suposta chance de um futuro melhor para o qual não conta com garantias.

Por outro lado, as políticas de democratização do acesso e de permanência voltadas a oferta pública federal de ensino superior tem, progressivamente, viabilizado a presença de estudantes com um perfil distinto daquele que caracterizava essas instituições no início do século XXI com a presença de estudantes egressos das escolas públicas, originários de famílias com baixa escolaridade nas quais eles mesmos são os primeiros a ultrapassar a barreira do ensino médio. É certo que para essa parcela da população os desafios do ensino superior são inúmeros e ultrapassam os aspectos econômicos. Mas, ao mesmo tempo, a presença desses estudantes de novo tipo coloca em evidencia as disputas que caracterizam as políticas para o ensino superior brasileiro, bem como os inúmeros desafios já existentes, a exigir resistência ao retrocesso.

 

[1] O Censo da Educação Superior é realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Considerando a pandemia de Covid-19, e seus impactos sobre os calendários acadêmicos, a coleta de dados para o Censo 2020 foi estendida até junho de 2021.

[1] Em 2016 a presidente eleita, Dilma Roussef, é afastada do cargo mediante processo de impeachment e seu vice, Michel Temer, assume o cargo. A frente do MEC é nomeado o advogado Rossieli Soares da Silva.

[1] Pede demissão do cargo em março de 2022 depois de denúncias de envolvimento em esquema de corrupção envolvendo o Presidente Bolsonaro e pastores de igreja evangélica Assembleia de Deus no escândalo que ficou conhecido como “Bolsolão do MEC”. O pastor Milton Ribeiro foi o 4º ministro da educação do Governo Bolsonaro.

[1] O 5º ministro do Governo Bolsonaro.

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