Metadados do trabalho

Caminhos E Andanças Da Chegança De Divina Pastora-Se

Bruno Dias dos Santos

O objetivo deste artigo é analisar a Chegança do município de Divina Pastora-SE considerando os seus caminhos e andanças como verdadeira expressão da cultura de um povo. Ela atraca e desembarca em terra firme, vamos juntos nos debruçar nos “Caminhos e Andanças da Chegança em Divina Pastora-SE”. Com isso, surgiu o grande questionamento: O que é Chegança? Quais seus caminhos e andanças na construção da formação cultural do povo divina-pastorense?   E se justificou pela necessidade de explicitar o folguedo de cultura popular em análise. Assim, buscou-se estabelecer ligações da Chegança, com o contexto histórico e suas repercussões como elemento da cultura local. Foi por meio da metodologia de característica qualitativa-descritiva e bibliográfico que este trabalho se desenvolveu. Foram analisadas fontes primárias com o objetivo de agregar conhecimento já sedimentado ao trabalho sobre cultura popular. Foi através dos objetivos específicos que contextualizamos o município em estudo e sua expressão no campo da Cultura Popular, identificando a Chegança como folguedo. Por fim, concluiu-se que a Chegança transmite legitimação social para os brincantes e para os moradores da cidade, também colabora para a compreensão e a sistematização das raízes e da história das artes inseridas na cultura e nas tradições populares em Sergipe.

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Como citar este trabalho

SANTOS, Bruno Dias dos. Caminhos e Andanças da Chegança de Divina Pastora-SE. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2022 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/447-caminhos-e-andan%C3%A7as-da-chegan%C3%A7a-de-divina-pastora-se. Acesso em: 16 out. 2025.

Caminhos e Andanças da Chegança de Divina Pastora-SE

Atracam, desembarcam. Domados de valentia chegam em terra firme trilhando os Caminhos e Andanças da Chegança de Divina Pastora-SE. Com arruaça e prontos para o combate, assim surge a Chegança construindo os caminhos e mostrando suas andanças na história local. Dessa forma, importa debruçar-se e criar conexões do folguedo Chegança presente no mundo das artes, do teatro e da cultura popular, desvendando seus caminhos trilhados pelo imaginário do povo de Divina Pastora-SE.

Alguns fatores me instigam a estudar a Chegança do município de Divina Pastora. Do ponto de vista pessoal trata-se da paixão que tenho pelas artes, pelo teatro e o apreço com a cidade onde nasci e me criei. Desde criança acompanho as chegadas, embarques, desembarques, lutas e vitórias do folguedo. O drama teatralizado trilhando caminhos e andanças nos eventos da cidade sempre foram causas de encantamento, alegrias e entretenimento por completo para toda a criançada e adulto da cidade. A percepção de que a Chegança contribui para a formação da cultura e da identidade do povo divina-pastorense me foi imediata. A manifestação folclórica é constituída por pessoas, lugares, histórias do popular, memória de um povo a ponto de resistir e persistir até os tempos de hoje passando de geração para geração. Então, cabe dizer que o folguedo seria uma manifestação do passado fecundando o presente.

Adentrar no universo da cultura popular sergipana é uma responsabilidade exigente e gratificante por serem constituídos por um campo que, se por um lado é vivencialmente rico e revelador da genuína expressão de vida das comunidades locais, mas por outo lado, ainda é pouco explorado na área artística, da produção acadêmica. Nesse contexto importa atentar para o fato de que as pessoas que transmitem legitimação social por meio da Chegança, são humildes e lidam diariamente com suas labutas. Cada uma delas se esforça para manter a tradição que resiste diante de uma sociedade cada vez mais modernizada e que com o passar dos tempos vai perdendo força em suas raízes culturais, isso por conta de uma contemporaneidade que abraçou unilateralmente certo determinismo tecnológico. Nessa perspectiva, Stanislavski (2020, p.45), crê que “só o nosso tipo de arte, embebido que é nas experiências vivas dos seres humanos, pode reproduzir artisticamente as impalpáveis nuanças e profundezas da vida”.

 

 

 

 

Este estudo justifica-se pela necessidade de explicitar os caminhos e andanças da Chegança no imaginário popular do povo divina-pastorense. Como também, contextualizar a Chegança, gerando assim metodologias com o objetivo de agregar ao já conhecimento sedimentado ao trabalho de criação de artes e da cultura popular.

Diante disso, houve a sensibilidade de tentar estabelecer um diálogo entre a Cultura Popular e a Chegança. Por isso, surgiu o grande questionamento: O que é Chegança? Certamente, tentando responder a esta pergunta se pode perceber e trilhar diversos caminhos do imaginário artístico popular brasileiro. A questão se amplia e vincula-se a outras que se relacionam como: o que é a Cultura Popular? Até que ponto a Chegança, em suas expressões, se inserem nos eventos da cultura popular local e como tal folguedo têm se manifestado no município?

Do ponto de vista da história recente, importa considerara que a Chegança São Benedito da cidade de Divina Pastora estava “esquecida” há bastante tempo e foi resgatada em 2001, com o apoio de incentivos das forças públicas da cultura local e pelos antigos brincantes desejosos por resgatar as manifestações culturais que aprenderam com seus antepassados. Não se sabendo ao certo por quanto tempo ela ficou esquecida, o fato que se registra é que sua origem data aproximadamente 100 anos, conforme relato do mestre da Chegança. Resgatá-la nesse momento é trazer à tona as memórias como elementos fundamentais da identidade cultural do povo divina-pastorense. Com o passar do tempo foi sofrendo alterações e se adaptando para que as novas eras pudessem acompanhar o folguedo. A Chegança comporta uma série de elementos que envolvem as artes, o teatro, a cultura popular nos seus aspectos sagrados e profanos, entre outros.

O objetivo central deste artigo é refletir e acompanhar a trajetória, os caminhos e andanças da Chegança do município de Divina Pastora, SE, e como tem se manifestado nos eventos da cultura popular local. Para dar conta da pesquisa, no alcance do objetivo geral, foi necessário desmembrá-lo nos seguintes objetivos específicos: contextualizar historicamente o município de Divina Pastora-se e sua expressão ou presença no campo da Cultura Popular; Identificar a Chegança como folguedo; e, ainda: explicitar e analisar caminhos e andanças Chegança no município.

A metodologia abordada no presente trabalho teve característica qualitativa-descritiva, bibliográfica e documental. O estudo exigiu análises de algumas fontes rigorosas para que pudesse ser construído um diálogo entre elas. Teve como repertório: levantamento e análise da pesquisa bibliográfica de campo na busca de estudos já publicados anteriormente, como: livros, artigos científicos, monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado, com o objetivo de subsidiar os pressupostos teóricos da pesquisa.

 

 

Assim, os instrumentais de pesquisa implicaram: entrevistas semiestruturadas, memórias, vídeos, livros e artigos.  Sempre existem novos caminhos com tamanhos, cores, formas e espessuras diferentes a serem trilhados. Criar uma obra capaz de responder a questionamentos nunca documentados é algo novo. Porém, a obra a qual me refiro já tem nome, formas e espessuras. Sua história é contada e dramatizada pelo próprio povo. O que se refere aqui é à Chegança, que remonta aos processos de criação, aos modos e às maneiras peculiares do seu povo.

O artigo está estruturado em três subitens. O primeiro aparece como introdução, no segundo, caminhos e andanças onde fazemos uma breve caracterização do município de Divina Pastora, com um breve recorte sobre a economia, localização geográfica e cultura local. Ainda nesse subitem abordamos assuntos como a cultura e cultura popular, visto que ela pode ser compreendida como a produção das classes subalternas, o que implica, certamente, conceber o povo como ator principal. Ainda nele, tratamos sobre festas, folguedo e tradições. Apresentamos uma visão sobre as andanças da Chegança nos momentos festivos presentes no município. No terceiro e último subitem tratamos sobre a Chegança em Divina Pastora e os moldes que a cercam.

CAMINHOS E ANDANÇAS da chegança

O município de Divina Pastora é conhecido como a cidade da Fé, do petróleo, da renda irlandesa, da Chegança São Benedito e Fausto Cardoso. Surge lá no alto entre morros e vales as paisagens que servem como colírio para os olhos, trazendo tranquilidade para quem mora e aprecia as belezas raras do interior do estado sergipano. Segundo o último senso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2014), a cidade tem uma população de aproximadamente 5.000 habitantes, e está situada na região central do estado de Sergipe e na microrregião do vale do rio Cotinguiba, a cerca de 39 km da capital do Estado, Aracaju.

Conforme dados oficiais, a fundação do município ocorreu em 15 de dezembro de 1938. Desenvolveu-se a partir de mais de 100 currais, conhecido por povoado Ladeira, cujas origens remontam ao final do século XVIII. No dia 12 de março de 1938 ganhou independência própria desmembrando, assim, do município de Maruim. Segundo Nigra (1944), a comunidade urbana se originou como paróquia datada de 1833 e elevado à categoria de vila em 1836. A denominação de Divina Pastora se deve à devoção de origem ibérica, introduzida pelos portugueses em 1782.

A Igreja Matriz de Nossa Senhora Divina Pastora é uma herança cultural deixada pelos missionários. É embelezada por predominar o barroco e enfeitada por cenários bíblicos de cenas do evangelho. Cumpre notar também que, em virtude da importância de São Benedito para o município, a comunidade local em tempos ergueu por volta do século XVIII uma capela em honra ao santo e, associado a ele, a referida capela também foi dedicada à Virgem do Rosário, ambos santos protetores dos negros a quem a Chegança trilha seus caminhos reverenciando e homenageando-os efusivamente.

A Chegança, nos moldes que ocorre no município de Divina Pastora, é parte de um evento cultural mais amplo que se trata dos folguedos. Daí que, preliminarmente, importa tecer comentários que sejam capazes de contextualizá-la no conjunto dos folguedos praticados no estado de Sergipe.

De acordo com Queiroz (2013), em Antropologia e cultura, os folguedos são festas populares que envolvem: músicas, danças e teatro. Essa manifestação folclórica, carregada de vivacidade, é muito peculiar em alguns municípios do estado de Sergipe. Nesse sentido, deve-se notar que: “o volume maior de folguedos brasileiros tem origem religiosa. As raízes culturais dessas manifestações [...] são híbridas: matrizes africanas, indígenas e portuguesas” (QUEIROZ, 2013, p.208). Com isso,

Apesar de os folguedos estenderem-se pelo território nacional, é no Nordeste que podemos visualizar intensamente a presença dessas festas. Nessa arte do fazer, é o povo que assume o papel principal. São os poucos dias de calendário anual que os pobres são alçados espontaneamente para o palco social. (QUEIROZ, 2013, p.209).

Nesse contexto, Queiroz (2013) considera que entre os principais folguedos se destacam: o Bumba meu boi, a Congada, e a Folia-de-Reis. Aqui, para efeito deste estudo e considerando a região Nordeste, deve ser inserido também o Cacumbi, Maracatu, e a Chegança como legítimas manifestações do povo brasileiro. A maioria desses grupos é de caráter religioso e mistura o sagrado com o profano em suas dramatizações lúdicas, apresentados em momentos festivos nos municípios. Deve-se ainda considerar que:

Dramas sacros construídos na mistura de sagrado, profano, lúdico e carnavalesco que culminaram em espetáculos populares [...] cada espetáculo popular apresenta formas particulares de arte e dramaturgia coerentes com o estrato cultural e social brasileiros [...] inserida em formas, cores e gestuais capazes de delimitar determinada identidade visual. (MOURA, 2010, p.3).

 

 

 

 

De acordo com Vargas (2014), para melhor entender essas festas populares nas quais os folguedos trilham seus caminhos e andanças, deve-se considerar que tais festejos religiosos, já a partir da Idade Média, passaram a ser manifestos também nas ruas. Essa transposição, assim como a Chegança, foi introduzida no Brasil pelos colonizadores ibéricos ganhando identidade própria. Nesta análise, o conjunto de festas populares circunscreve vários eventos em que o povo coaduna para fazer acontecer, manifestam-se de forma festiva e espontânea, essas festas expunham o tempo na relação dos grupos e indivíduos entre si. Aqui se inserem os Pastoris, Reisados, Cheganças, Guerreiros, Taieiras, Cacumbis, dentre outros; folguedos religiosos e de importância singular na vida e na construção de identidade dos sergipanos e que encontram um lugar privilegiado para apresentação no encontro cultural de Divina Pastora-SE, festa esta celebrada uma semana antes dos festejos carnavalescos.

Segundo Guarinello (2001), “a festa não se opõe ao cotidiano, mas faz parte e está integrada com ele”. Ou seja, as festas culturais fazem parte do cotidiano em datas significativas, servindo para intervir diretamente na vida social. Ele pontua também que as festas são providas de regras e que devem ser fielmente respeitadas levando assim em consideração as comemorações:

Festa é, portanto, sempre uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que se dá num tempo e lugar definidos e especiais, implicando a concentração de afetos e emoções em torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujo produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na esfera de uma determinada identidade. Festa é um ponto de confluência das ações sociais cujo fim é a própria reunião ativa de seus participantes. (GUARINELLO, 2001, p.972).

De acordo com Vieira (2013, p.14), “como forma de lazer, a festa denota sentidos e significados diversos, tais como ordem, desordem, diversão, trabalho, segurança, conflito, devoção, convivência, efervescência, excesso, ambiguidade, gratuidade e espontaneidade”. E, nesse contexto, as análises de Rosa (2002) indicam que a festa que é traduzida em celebração, fruição, diversão, evento, espetáculo, brincadeira, investimento, exaltação, trabalho filantrópico e econômico, deve ser encarada como uma das manifestações da cultura do povo. Isso se deve ao fato de ser o tempo e o espaço para a manifestação e expressão da rebeldia, da devoção, da reivindicação, dentre outros. Com isso, Carlos Rodrigues Brandão, em “A cultura na rua” (1989, p.13), advoga que “uma festa popular é uma mistura, ao mesmo tempo espontânea e ordenada, de momentos de rezar, cantar, dançar, desfilar, ver, torcer”.

Nesse sentido, Bakhtin (1993, p. 7) afirma que “as festividades tiveram sempre um conteúdo essencial, um sentido profundo, exprimiam sempre uma concepção de mundo”. Partindo desse pressuposto e das considerações discutidas neste trabalho, se considerarmos que o encontro cultural de Divina Pastora-Se é uma festa popular, protagonizada e tecida pelo povo, em caráter religioso, chegaríamos à conclusão de que o folguedo em estudo é produzido pela mesma camada social e que os discursos sobre o passado construídos por eles é o tempo todo remontado e relembrado no presente por meio das suas formas artísticas de expressão.

     Importa considerar que, tradicionalmente, a festa de São Benedito antecede 15 dias ao carnaval e acontece juntamente com o encontro cultural da cidade. Nesta feita, grupos culturais de todo o estado de Sergipe são convidados para participar de um cortejo que ocorre após a celebração da Santa Missa na capela de São Benedito. Assim, a Chegança e outros folguedos se deslocam da praça do cruzeiro, percorrendo os caminhos das principais ruas e avenidas da cidade com destino à Igreja Matriz Nossa Senhora Divina Pastora. Um outro evento que acontece nos arredores da cidade é a festa da padroeira do Estado de Sergipe Nossa Senhora Divina Pastora, que ocorre no mês de novembro onde a Chegança faz sua belíssima apresentação na igreja matriz, vale aqui ressaltar que é o único dia do ano que a chegança adentra a referida igreja para agradecer a santa local.

As festas são caracterizadas fortemente pelo aspecto religioso a partir do qual procedem à devoção e à reverência dos brincantes, isso por acreditar que devam homenagear os santos: São Benedito e a Virgem do Rosário e Nossa Senhora Divina Pastora. Nesse contexto é que a apresentação da Chegança e de outros folguedos assumem o caráter de obrigação e, também, de devoção dos traços fortemente católicos como aspecto religioso entranhados nas manifestações locais.

Importa notar que a presença ativa dos adultos, jovens e crianças nos folguedos e nas manifestações artísticas e culturais é a garantia da manutenção e vivacidade das tradições divina-pastorense. Essa manifestação se enquadra satisfatoriamente no contexto criativo, artístico e cultural próprio dessa comunidade que se destaca não apenas na apreciação, mas pela aptidão do lúdico, do festivo presente na alma do povo sergipano.

Nesse sentido, deve-se notar que nos tempos passados seu nome era Chegança São Benedito, entretanto, em suas andanças, passou a ser chamada Chegança Mirim Almirante Afonso dos Santos, garantindo o fortalecimento e a perpetuação do grupo. Esse tombamento ou registro que passa de geração a geração ocorre de forma orgânica e por meio de mestres que seguramente aprenderam com os seus antepassados. Nisso, fica patente uma maneira cuidadosa de salvaguardar as tradições orais e locais, impedindo, assim, o desenraizamento das gerações futuras, antes ao contrário, sejam salvaguardadas: a história, os caminhos e crenças e as tradições da comunidade. É nesse contexto da Chegança em Divina Pastora no folclore brasileiro, que aqui, nos propomos apresentar por meio deste artigo, que registramos a expressiva e encantadora tradição dessa região, a Chegança, anos passados, está perdendo força e com isso percebemos que tudo está mudado e tendendo mesmo a desaparecer de uma vez.

Diante disso, a contemporaneidade se mostra complexa e variada, por conta de uma vasta gama de valores e concepções de mundo que coexistem. A modernidade revela ainda que tais valores e concepções “são implementados socialmente, através de complexos mecanismos de produção e divulgação de ideias, como se fossem ou devessem se tornar, os modos de agir e de pensar de todos.” (ARANTES, 1981, p. 10), o que equivale a perceber claramente a instrumentalização que se faz com o termo “cultura” ou “cultural” ao vinculá-lo a alguma forma de dominação e mesmo exclusão e discriminação social.

Diante disso, importa considerar que:

A civilização exclui os populares do seu discurso sobre sua própria identidade. Por outro lado, a cultura pressupõe a diversidade, o que, a princípio, inclui. Esse percurso da construção dos discursos sobre a identidade brasileira é perceptível na própria linguagem. [...] O próprio termo cultura demorou bastante para ser utilizado pela intelectualidade brasileira, vindo à tona já no século XX. (OLIVEIRA. 2006, p.30-31).

Nesse sentido, fica visível que:

No Brasil, é possível perceber semelhanças se pensarmos no lugar de desvalorização que as culturas populares ocuparam ao longo da história e que foi questionado pelo modernismo [...], tal qual o que Burke localiza na Europa no momento em que a intelectualidade começa a se interessar pelo tema (OLIVEIRA, 2006, p.30).

A criação de um novo olhar sobre as culturas subalternas possibilita um encontro entre territórios distintos. No Brasil, é possível encontrar uma vasta gama de manifestações culturais e folclóricas influenciadas por diversos povos diferentes. A exemplo da Chegança, que foi introduzida pelos portugueses e espalhada pelos quatro cantos do Brasil.

Assim, a cultura popular que conjuga os elementos das culturas europeia e africana, embora distintos, na verdade são os elementos fundamentais e indispensáveis na construção de um novo sistema, que coaduna naquilo que consideramos folguedo. Deve-se notar que, embora essa concepção verdadeiramente ainda seja considerada cultura menor, isso não significa que estejamos vivendo um processo de regressão quanto a sua importância e valor. Antes, ao contrário, essas manifestações começaram a se impor pela sua originalidade, persistência e resistência, lutando assim por um lugar de fala e reconhecimento universal, expressivo e convincente. Nesse sentido, segundo Oliveira (2006, p.27) “Participar de um folguedo popular pode ser, então, uma forma de resistência de um grupo social. Tal ação pode, quem sabe, significar maior visibilidade e voz para esse mesmo grupo”.

Chegança

A Chegança como forma específica de folguedo presente nas festas populares do Nordeste, e no caso em estudo em Divina Pastora é um drama teatralizado onde os marinheiros relatam suas aventuras durante a navegação. No entender de Mário de Andrade (2002, p. 112), este termo liga-se às expressões “chegar” ou “chegado”, que indicam, certamente, trabalhos no mar. Diz ainda que, o termo “chegar”, de forma mais precisa, significa “dobrar as velas quando o navio chega”, e “chegado” indica “abordar de um navio a outro”. Já em terra firme é que eles vão contar tudo aquilo que ocorreu no mar, os sofrimentos, as vitórias e os livramentos. Vão procurar um santo de louvação para prestar os seus louvores por serem salvos dos naufrágios. Ou seja, é na chegada que são contatas as histórias de mar, de marinheiros.

Conforme o Dicionário do Folclore Brasileiro, a dança da Chegança em Portugal, que remonta o séc. XIII, fora proibida por D. João V no ano de 1745, pois era considerada lasciva e sensual, embora gozasse de grande popularidade a ponto de ser recitada e cantada pelo povo, conforme Cascudo, nos seguintes versos: “Já não se dançam cheganças, que não quer o nosso rei, porque lhe diz Frei Gaspar Que é coisa contra a lei”. (CASCUDO, 1954, p.172). Nesse sentido,

As cheganças não vieram com aquelas características lascivas, que as tornaram indesejáveis na península. Foram transplantadas para cá e aqui permaneceram como cenas dramatizadas de episódios da navegação marítima dos tempos em que os lusitanos, senhores dos mares, nunca antes navegados dominaram tantas outras  terras e tantas outras gentes, dilatando a fé e o império. Tornaram-se, assim, danças verdadeiramente brasileiras, mas sob motivos históricos portugueses, que aceitamos e adaptamos como se foram nossos. (GOMES, 1949. p. 2)

Consoante ao pensamento de Barbara Lito,

Chegança é um designativo que reúne manifestações que não são homogêneas e que têm características próprias, grande número de variantes e adaptações, o que torna difícil qualquer descrição unificada. São elas também o resultado da mescla de elementos múltiplos, provindos de uma miríade de espaços culturais distintos, que foram se acomodando por um longo período de tempo, num processo incessante, característico das manifestações culturais em geral. Dessa maneira, encontramos, tanto no passado como nas manifestações que permaneceram sendo encenadas, um conjunto semelhante de símbolos em diferentes combinações de sentido, particulares a cada manifestação. Porém, para esses estudos, o fio temático-formal que as uniria sob a mesma denominação seria aquele em que coincide, em ambas, a encenação da trajetória de um barco em viagem. (LITO, 2017, p. 160).

Essa percepção certamente ajuda na compreensão mais adequada sobre as singularidades e diversidades das Cheganças, mostrando as contribuições das diversas jornadas de como ela se manifesta e se adapta variando de região para região e se transformando ao passar do tempo. “Chegança dos marujos”, “Marujada”, Chegança dos Mouros”, “Barca”, “Fandango”, “Marujada”, são diversas as denominações da Chegança, mas como quer que a chamem ou encenem, a Chegança é a teatralização com cenas tradicionais que varia de região para região, mas no fundo apresentando com o mesmo sentido.

No Brasil, a representação do auto popular intitulado por Chegança é ligada ao ciclo natalino em louvor de São Benedito e a Virgem do Rosário, ambos protetores dos negros. Luiz Antônio Barreto (1994, p.150) diz que: “é mais particularmente a festa de Santos Reis, as quais estão associadas a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário com suas igrejas e seus andores. A devoção e as imagens destes santos foram trazidas da África e, segundo a igreja católica, são padroeiros dos negros”. Os tripulantes estavam em uma nau, passando por uma grande tempestade e perigos, foi através de orações, promessas e pedidos que chegaram em terra firme sãs e salvos.

No dia 6 de janeiro a embarcação ancorou em terra firme e seus tripulantes desceram para cumprir com a promessa, visitando assim a igreja de São Benedito, primeira igreja encontrada por eles, onde contaram encantos e coreografias, todos os perigos que passaram no mar. (SERGIPE, 2010 p.58).

O contexto marítimo está presente a todo o momento. Esse cenário se torna relevante no imaginário de diversas manifestações culturais brasileiras. Na Chegança de Divina Pastora, as encenações invadem lugares distintos: praças, ruas e igrejas são transformadas em palco, onde as cenas transcorrem nos portos simulando uma grande viagem naval. Como mostra na figura 1 abaixo:

Figura 1: Chegança de Divina Pastora

[Imagem local removida]

Fonte: Silva, 2022

Além disso, a Chegança, no Brasil, também representa a briga em que os cristãos batizam os mouros. É as forças do mal contra o bem. Ou seja, os mouros foram obrigados a catequisar-se, caso contrário morreria nos porões dos navios. Na encenação, acabam sendo vencidos, optando pela ritualização e renovação do mito por meio da estética do batismo. Nesse sentido, Almeida (2013) afirma que:

Os mouros míticos brasileiros são expressões culturais híbridas que contaram (e ainda contam) com a interação e o auxílio de diferentes grupos e contextos sociais, muitas vezes regidos no passado pelo signo da conversão ao catolicismo, que acabava sendo vivenciada de uma maneira particular e distinta da vertente imposta. (Idem, p.25).

 Em todo caso, importa também considerar que a Chegança é caracterizada como folguedo tradicional da cultura popular e que é composta por valores e elementos específicos, podendo variar de acordo com cada região. O drama teatralizado presente no enredo faz com que o expectador se relacione com o espetáculo de forma orgânica e quase sempre imperceptível ao sensível, utilizando, na maioria das vezes, o grande jogo da imaginação.

O folguedo é dividido em atos ou jornadas. É perceptível a existência de instrumentos musicais, músicas e danças legítimas. Encontramos Chegança em vários cantos do país. No estado de Sergipe, por exemplo, frequentemente é encontrado nos municípios de Itabaiana e Lagarto, onde são denominadas de marujadas, porque não há combate nas apresentações. Já as de São Cristóvão, Laranjeiras e Divina Pastora são similares por conta da representação dos personagens e têm o enredo parecido.

A Chegança da cidade de Divina Pastora tornou-se referência dentre os folguedos atuantes no município, por sua dimensão cultural, pode-se dizer que se trata de um dos mais importantes da localidade. É difícil determinar uma data exata de quando foi fundada a Chegança na cidade de Divina Pastora, mas sabe-se que é uma das mais antigas do estado de Sergipe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para responder de forma mais consistente ao tema proposto neste trabalho, intitulado por Caminhos e Andanças da Chegança em Divina Pastora, Sergipe, foi necessário percorrer um caminho que se desdobrou em vários elementos, passando por seus objetivos e requisitando uma metodologia apropriada para esse fim. Com isso, percebe-se que a Chegança transmite legitimação social para os brincantes e para os moradores da cidade. Deve-se considerar que este trabalho quer colaborar para a compreensão e a sistematização das raízes e da história das artes inseridas na cultura e nas tradições populares em Sergipe.

Deve-se considerar ainda que as ações culturais próprias da cultura popular induzem o homem e a mulher a assumirem um protagonismo necessário oriundos dessa própria criação cultural. Tal fato é resultado de uma conscientização histórica que vem sendo gestada a custo de muitos avanços e retrocessos nos dias atuais. Essa realidade deve ser refletida, quando se percebe

que o movimento de cultura popular assume o seu caráter histórico de ser reflexivo, consistente e proponente de uma livre, autônoma e aberta cultura nacional e não uma mera reflexão.

Dessa maneira, para que a cultura popular se estabeleça e produza efeitos transformadores e libertários, como estamos argumentando, isso implica desdobramentos diversos ainda que não ocorram de forma única e simultânea, visto que toda ação popular e comunitária demanda outras variáveis: união, planejamento, decisões, organização, entre outros, considerando ainda que nem tudo ocorre ao mesmo tempo. Assim, o que realmente importa é a persistência e a organização de eventos por meio dos quais a cultura popular possa ser representada e expressada de forma original e que revele a realidade dos sujeitos envolvidos na ação cultural. Eles quem são efetivamente os autores e atores do processo da ruptura inovadora, como se pode perceber na comunidade em estudo e que tem se revelado por meio da Chegança.

Convém destacar ainda que os caminhos e andanças da Chegança como manifestação cultural de Divina Pastora está enraizada na vida do povo divina-pastorense, ela expressa resistência de uma cultura viva e que luta para manter-se até os dias atuais.

Com isso, diante da Chegança de Divina Pastora, deparamo-nos com uma vasta gama de signos, significados, representações e personagens que de certa forma preservam e ritualizam a memória cultural da comunidade e que é revivida ciclicamente em cada festejo. Convém afirmar que a Chegança carrega traços do nosso imaginário e, como elementos de ritualização, contém parte de nossas histórias, em meio à rica linguagem simbólica, plástica e estética, teatralizando a identidade cultural do povo divina-pastorense.

Por fim, importa assegurar que as tradições populares do Nordeste, em especial a Chegança, possuem uma riqueza cultural expressiva e ganham um espaço especial nas artes onde se integram e constituem a cena e o imaginário do brasileiro. São longos os Caminhos e Andanças da Chegança, o que envolve os sons, cores e histórias a serem contadas pelos grupos folclóricos, fazendo com que o público compreenda o diálogo teatral e o associem às referências quando presentes nas representações. Neste sentido, deve-se admitir que a Chegança é parte de uma herança que sobrevive até os dias atuais encantando o público por onde passa com seu bailado e cantorias.

REFERÊNCIAS

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