A capoeira é uma manifestação que surgiu como luta corporal de resistência dos povos escravizados de origem africana, contra a violência e opressão imposta (SOARES, 1999). Uma manifestação da cultura popular negra escravizada no contexto brasileiro (CAMPOS, 2001), que compôs a construção social brasileira, desde a formação do estado nacional, que se destaca hoje por possuir uma das maiores sociedades multirraciais do mundo, contendo números elevados de descendentes africanos (GOMES, 2011).
Sofrendo represálias desde 1890 e tida como crime, somente após adentrar a década de 30, com sua legalização (CAMPOS, 2001) e sua valorização em ordem nacional e internacional, através do reconhecimento da Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira (IPHAN, 2008) e da Roda de Capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade (UNESCO, 2014), outras visões, mais acolhedoras, são lançadas sobre a capoeira.
Dentro de uma perspectiva educacional, a capoeira adentrou os currículos educacionais da Educação Física (EF), como os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (BRASIL, 1998) e a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2017), permeando, consequentemente, os documentos orientadores dos processos formativos de professores(as) sobre os objetivos a serem alcançados em cada faixa de ensino na educação básica brasileira.
Ao pesquisar a capoeira e a prática docente dentro das aulas de EFE, inicialmente buscamos sua presença na formação de professores(as) em EF. Alves et al. (2019), ao investigarem a presença do conteúdo nos currículos dos cursos de EF, em especial licenciaturas, de 12 instituições de Fortaleza - Ceará, constataram que apenas 2 a ofertavam. De outra forma, investigando professores(as) de EFE sobre a presença do conteúdo capoeira na formação inicial dos(as) mesmos(as), Silva (2013) constatou que, de 30 docentes, 19 não o tiveram na formação inicial.
A repercussão da falta do tema no currículo universitário da formação em EF, se manifesta de diversas formas, dentre elas: docentes que não ministram o conteúdo na escola devido a insegurança e/ou falta de conhecimento, ou quando o ministram preferem ater-se apenas a uma abordagem teórica, excluindo a experimentação e vivência do conteúdo através de atividades e/ou jogos (ALVES et al., 2019; SILVA, 2013). Tal acontecimento torna o conteúdo ainda mais distante dos ambientes de aula da EFE e muitas vezes tendem a reforçar o vínculo do(a) professor(a) com apenas o “saber fazer”.
Não se sentir seguro(a) ou não dominar o tema, não conseguir adequá-lo de forma a promover a aprendizagem, são problemáticas relacionadas às “categorias do conhecimento do professor” propostas por Shulman (1986), que seriam habilidades e compreensões necessárias na atividade docente para atuar nas diversas situações de ensino de forma efetiva.
Ainda, compreendendo que “[…] os professores, no âmbito da prática pedagógica, também produzem e mobilizam outros saberes para além dos conhecimentos acadêmicos ou científicos” (JARDIM; BETTI, 2014, p. 216), entendemos que, as vivências e experiências formativas estão atreladas não somente ao ambiente institucional, o âmbito acadêmico, pessoal, emocional e profissional convergem, e a participação e envolvimento do sujeito com esses campos influenciam na construção do ser como professor(a).
Essa convergência de campos reforça a importância do estudo de narrativas docentes e de sua compreensão quanto as relações estabelecidas com as influências formativas ao longo da vida, que no presente trabalho decairá sobre essas relações com a capoeira.
A diversidade de conteúdos trabalhados na Educação Física Escolar (EFE), sobretudo relacionados as matrizes africanas, afro-brasileiras, e as relações étnico-raciais, tem sido foco de diversos estudos, como investigado por Mendonça, Freire e Miranda (2020) e Lima e Brasileiro (2020). Buscando contribuir ainda mais com o campo de produções, o estudo[1] teve o intento de identificar as relações entre as vivências e experiências com a capoeira e suas repercussões nas práticas pedagógicas de professores(as) de EF. Além de problematizar e refletir sobre a inclusão desse conteúdo nos ambientes de aula.
Logo, questiona-se como capoeiristas, que obtiveram formação em EF e atuam como docentes de EFE avaliam a atual formação em EFE quanto ao preparo de professores(as) para lecionar a temática capoeira? Como tais vivências em conjunto com a formação acadêmica puderam influenciar à prática pedagógica dos(as) professores(as) de EFE ao abordarem a temática? Quais as relações entre essas experiências no campo da capoeira com as metodologias e a didática desenvolvida pelos(as) docentes ao longo da carreira?
PERCURSO METODOLÓGICO
A pesquisa teve caráter qualitativo, permitindo a observação e reflexão sobre os problemas enfrentados pelo ser humano, presentes no mundo do qual faz parte (CHIZZOTI, 1995). A partir da entrevista narrativa, com base em um roteiro semiestruturado, a obtenção das narrativas docentes e posterior transcrição foi realizada segundo os pressupostos de Muylaert et al. (2014), que afirma que o método oportuniza a reconstrução dos acontecimentos pela ótica de seus informantes e seus valores atribuídos a cada fato, auxiliando na compreensão dos contextos e momentos. Tendo em vista os objetivos do estudo, assim como as considerações feitas por Huberman (2000) ao afirmar a importância das “narrativas docentes” no processo de compreensão e investigação envolvendo esses profissionais, o critério adotado para selecionar os(as) entrevistados(as) buscou por professores e professoras licenciados(as) em EF (considerando-se também as Licenciaturas Plenas), que atuassem ou já tivessem atuado como docentes na EFE e, antes da inserção no meio acadêmico, que praticaram capoeira ao longo de sua trajetória de vida, sendo selecionados 3 professores dentro dos requisitos citados, e devidamente apresentados a pesquisa, aceitando participar da mesma.
A fase do estudo destinada as entrevistas acabou sofrendo alterações devido a ocorrência de uma pandemia global em decorrência do alastramento da Covid-19[2], necessitando do uso de plataformas digitais online para a obtenção de dados e realização do roteiro de entrevistas. Diversas são as adversidades possíveis no momento da utilização de plataformas como essas, contudo, o método tem potencialidades nos estudos qualitativos realizados no contexto do distanciamento social necessário como forma preventiva ao Covid-19 (SCHMIDT; PALAZZI; PICCININI, 2020).
O questionário semiestruturado conteve dezesseis (16) perguntas abertas/pontos investigativos, divididas em 4 seções: sobre trajetória de vida e capoeira, sobre a formação acadêmica, sobre a prática pedagógica e reflexão final. Após a transcrição das entrevistas obtidas (LAKATOS; MARCONI, 1991) e a aprovação dos participantes sobre sua utilização pós devolutivas, a análise de dados teve início, sendo realizadas as primeiras leituras das entrevistas que foram divididas em etapas, uma vez que, buscar as zonas de intersecção dos ciclos de vidas docentes ou fatores em comum, é aceitar a existência de zonas de diferença, e que ambas relacionam-se inevitavelmente, o que torna complexo enxergar tais ligações (HUBERMAN, 2000), além de, o trabalho com entrevistas narrativas abrir espaço para o surgimento de questões não previstas pelo pesquisador (SOUSA; CABRAL, 2015). Assim, essa fase do estudo foi feita sempre com o objetivo de identificar e tornar mais claras as confluências e individualidades de cada trajetória de vida e narrativa, o que permitiu também a delimitação de seções temáticas de análise, onde a busca pelas questões iniciais de estudo e o confrontamento com o referencial teórico pôde ser realizado.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Após as leituras do material, foram criadas seções temáticas de análise, como forma de estruturar os dados e discussões obtidos, organizando as narrativas. Essa medida auxiliou o processo, uma vez que trabalhar uma temática buscando a compreensão de sua relação íntima com a vida e profissão desses docentes exigiu maior cuidado com a diferenciação entre as experiências envolvendo a capoeira, sejam elas advindas dos ambientes escolares e institucionais ou dos ambientes da capoeira[3].
Para compor a “roda das discussões acadêmicas”, pegamos emprestado os nomes dos instrumentos que dão musicalidade e sonoridade ao jogo e a roda de capoeira como forma de garantir o anonimato dos(as) professores(as) participantes, que a partir de então serão referenciados como: Professor Gunga, Professor Médio e Professor Viola.
RELAÇÕES ENTRE A VIDA E A CAPOEIRA
Nesta seção, serão tratados aspectos relacionados a trajetória de vida dos professores pesquisados, junto aos apontamentos feitos por eles sobre a participação da capoeira ou não, na construção de quem são hoje. Devido ao caráter individual das vivências e perspectivas, essa seção será dividida, permitindo a apresentação das trajetórias de vida de cada um dos 3 professores.
PROFESSOR MÉDIO
Professor Médio, nascido em 28 de setembro de 1974, atualmente com 47 anos, gênero masculino, casado, autodeclara-se preto, é formado em Educação Física pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), na qual ingressou em 2004. O professor trabalha a 15 anos com EFE, tendo lecionado em escolas públicas e privadas, e experiências no Ensino Infantil, Fundamental e Médio. Seu primeiro contato com a capoeira foi aos 14 anos de idade. Morava em Caucaia, e ao se mudar para Fortaleza - Ceará, para o bairro Quintino Cunha, em uma volta pelo bairro, acompanhado do pai e do irmão, viu pela primeira vez a capoeira e teve o seu primeiro encantamento com ela. Na época, com poucos meios de pesquisa e mídias, comparado a hoje, ele afirma que demorou para descobrir do que se tratavam aqueles “movimentos corporais” praticados por jovens, sem a presença de instrumentos ou outras características comumente associadas à capoeira. Após um período, “de acordo” com seu pai e “desacordo” com sua mãe, ele e o irmão iniciaram na capoeira, juntamente a uma série de colegas que os mesmos influenciaram a participar.
Dentro das falas do professor, o preconceito que a capoeira sofria foi ressaltado. Inicialmente devido a sua ligação com a cultura africana e, na situação vivida por ele, por conta da conduta de alguns praticantes de capoeira do bairro, que eram envolvidos em situações violentas e uso de drogas, gerando temor dentro da comunidade. O fato teria tornado seu início na capoeira permeado de complicações, mas seu irmão e amigos sempre estiveram mais focados no aprendizado da capoeira. Sobre esse grupo e o aprendizado da capoeira, um ponto de destaque surgiu:
Eles tinham iniciado a um tempo e tinham sido abandonados por um rapaz lá. E eles permaneceram e foi indo. [...] Que a gente não tinha um professor, a gente tava lá. Tava lá. O que os caras faziam a gente tentava fazer. Tinha dia que tinha vontade de ministra uma aula, ministrava. Ou então eles ficavam jogados lá... (PROFESSOR MÉDIO).
A relação com os estudos no decorrer da vida, também teve a participação da capoeira. O professor desenvolveu interesse em estudar capoeira, compreender sobre a história do Brasil e o processo de escravização no decorrer de sua constituição, dando início na busca por documentos e materiais que o auxiliassem nesse estudo para além das transmissões orais. Apoiado nessas inquietações geradas, o interesse pela formação superior surgiu:
“Por que Mestre, o senhor tem que ir embora e tal? A melhor parte do evento é amanhã [...]” “Não. Porque amanhã eu vou ter que fazer uma prova pra faculdade tal. Pra ser professor de faculdade.” Cara aquilo ali... Eu acho que era o quê... 98, 99... Aquilo ali mexeu muito com a minha cabeça. Eu só tinha o ensino médio naquele tempo. Que já era muito pra realidade que a gente vivia. E aquilo ali me chamou muito atenção. “Cara, eu tenho que fazer educação física também. Eu tenho que continuar. Tenho que continuar estudando” (PROFESSOR MÉDIO).
O ingresso na UVA aconteceu em 2004, após uma série dificuldades financeiras e familiares. A entrada no Ensino Superior modificou a relação dele com a capoeira pois, inicialmente, objetivava o curso de EF para melhorar seus trabalhos com a capoeira, porém, distanciou-se dela em seguida, e depois aproximou-se novamente, apenas em decorrência de uma disciplina de lutas ministrada por professor Heraldo Simões[4]:
Primeiro, a capoeira me levou pra educação física. Na educação física, eu deixei a capoeira um pouquinho de lado. E depois eu retornei, com a percepção de focar novamente na capoeira com a educação física. Não diferente, não separadamente, mas focar com a educação física na capoeira (PROFESSOR MÉDIO).
Ao ser questionado sobre às mudanças causadas pela capoeira na construção identitária do professor, o mesmo afirma que a mesma teve forte influência na formação do ser que ele é hoje, tanto profissionalmente quanto pessoalmente. Inclusive, o professor afirma não conseguir imaginar como seria sua vida se não tivesse tido contato com a capoeira ou caso tivesse desistido.
Esse contato é considerado como gerador inicial de diversas percepções sobre a cultura negra e reflexões sobre sua vida, principalmente com relação aos preconceitos, incluindo o “preconceito por ser capoeira” (PROFESSOR MÉDIO). O professor conclui afirmando que o processo de ressignificação causado continua acontecendo:
Foi a partir da capoeira, que me trouxe essa percepção né. Foi o primeiro contato com a cultura negra. Primeiro contato com a questão do preconceito, por ser capoeira. Então, começa por aí, começou por aí. Realmente eu sou um antes e outro depois né. E eu ainda continuo sendo. Renovando aí. Ressignificando aí, a cada momento (PROFESSOR MÉDIO).
PROFESSOR GUNGA
Professor Gunga, nascido em 14 de março de 1981, atualmente com 41 anos de idade, gênero masculino, divorciado, autodeclarou-se preto, iniciou na capoeira em 1991, com 10 anos. O professor trabalhou 11 anos com EFE, tendo lecionado em escolas públicas e privadas, e experiências no ensino fundamental e médio. O professor começou a dar aulas de capoeira, já em 1998, período no qual buscou qualificação profissional através da universidade. Ingressou na Universidade Estadual do Ceará (UECE) em 2002, e fez parte da terceira turma do curso de Educação Física (2002.2), na época licenciatura plena.
Embora a busca inicial pelo curso fosse pelo objetivo de qualificar-se ainda mais para o trabalho com a capoeira, o professor acabou se identificando com várias disciplinas que abordavam sobre educação. .
Em 2008, o professor conclui a graduação em Educação Física (permeada por duas greves no decorrer do curso). Em 2010 tornou-se professor de Educação Física do município de Fortaleza, optando por atuar dentro da educação básica devido ao gosto de trabalhar com crianças e pelas experiências anteriores. A entrada do professor nas escolas municipais, ministrando aulas de EFE , foi sempre acompanhada pela capoeira, seja implementada no currículo da EF por ele, ou introduzida no ambiente escolar por meio de projetos.
Ele buscava meios didáticos de trabalhar a capoeira sem a exigência técnica, diferenciando-a para o ambiente escolar. Tais tentativas resultaram em um sistema próprio de dar aula de EF com o tema capoeira, que culminaram no preparo de uma possibilidade metodológica envolvendo o conteúdo (apresentada em seu mestrado concluído em 2020)[5].
Quando questionado sobre a transformação da capoeira dentro do contexto da formação de sua identidade, o professor menciona que é difícil afirmar a existência de um “eu” antes da capoeira devido a sua inserção muito jovem na prática, atribuindo ainda um aspecto de continuidade:
[...] dentro da capoeira ainda está sendo uma eterna formação. Continuo me formando todo dia dentro da capoeira. Mas o que eu posso falar é que eu não sei como eu seria se eu não tivesse na capoeira. Não sei (PROFESSOR GUNGA).
PROFESSOR VIOLA
Professor Viola, nascido em 17 de setembro de 1980, atualmente com 41 anos, gênero masculino, casado, autodeclara-se pardo, é formado em EF pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com Mestrado pela Universidade do Porto e Doutorado na UFC. Atualmente é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), tendo experiências em escolas municipais e institutos federais, com o Ensino Fundamental, Médio e Universitário sempre com EF.
Após um primeiro contato breve com a capoeira, quando tinha 13 anos, deu inicio a prática 3 anos depois em um projeto comunitário, inicialmente buscando ficar bom de briga para enfrentar os preconceitos que sofria devido sua aparência na época. Após a conclusão da primeira graduação em 2004, a qual foi permeada pela necessidade de rompimento de vários paradigmas ligados a figura do capoeirista (ainda ancorada à reprodução de preconceitos e/ou as más experiências passadas na universidade com seus praticantes), no ano seguinte, foi para Portugal realizar mestrado, por meio de um acordo entre as universidades. Em busca do sonho de ser professor universitário, Professor Viola continuou a conciliar seus treinos e estudos com a criação de projetos e o ensino da capoeira, até mesmo quando esteve fora do país.
Sendo incentivado por seu orientador, o professor ingressa no doutorado, dando seguimento a linha de pesquisa da Educação Física adaptada e da Capoeira, sendo estes seus focos de produções e pesquisas durante a graduação e nas pós graduações. Esse ingresso foi seguido da entrada no IFCE de Canindé, conseguindo transferir-se para Fortaleza tempos depois, o que mudou sua faixa de ensino, dado que, enquanto em Canindé sua atuação seria no Ensino Superior, em Fortaleza seria no Ensino Médio.
Com um sistema de ensino dividido por modalidades, onde o aluno selecionava uma modalidade por semestre, o professor de início estranhou:
[...] Não é a educação física que eu concordo, que eu penso. Ela, ela... vamos dizer assim, ela é mais crítica, né. Há possiblidade também dos alunos vivenciarem o máximo possível da cultural corporal né, de elemento diferentes [...], mas se aqui o modelo é esse, e a proposta é a aula de capoeira, pra mim é dos males o menor (PROFESSOR VIOLA).
Embora as mudanças, os estudos e graduações, a capoeira continuou acompanhando o professor nos treinos, pesquisas e ensinos. Devido a isso, o professor definiu-se como um “capoeirista doutor” e não um “doutor capoeirista”.
Quando questionado sobre a transformação que a capoeira proporcionou na definição de seu “eu”, o professor afirma que:
Mudei muita coisa, porque eu era adolescente, comecei querendo brigar na rua, e depois faço trabalho social pra evitar uma série de problemas socias. Então mudei muito, mudei muito por conta não só da capoeira, do crescimento das influências que eu tive, familiares, uma boa base familiar, os meus amigos. Eu costumo dizer que eu sou muito grato as pessoas que me ajudaram, porque eu não seria nada sem as outras pessoas (PROFESSOR VIOLA).
DIFICULDADES E AUXÍLIOS NA TRAJETÓRIA
Sobre os diferentes atravessamentos vivenciados pelos professores, dificuldades foram relatadas devido ao preconceito ou aversão de alguns familiares quanto a prática de capoeira. Contudo, muitos destaques são feitos sobre os auxílios, em maior parte de ordem familiar, amigos e alunos, nos momentos de enfrentamento das dificuldades da vida, na continuidade dos estudos e no aprendizado da capoeira, ressaltando que a presença dessas pessoas foi de suma importância para o desenvolvimento destes sujeitos ao longo da vida.
Diversos preconceitos foram mencionados por esses três “trabalhadores da capoeira” no decorrer de suas tentativas de inserção profissional em alguns ambientes, como também é remontado por Falcão (2006) ao falar sobre esses trabalhadores. Assim como apontado por Silva (2007), os professores mencionam que a existência ou permanência da capoeira em alguns ambientes (principalmente de ordem educacional) estaria atrelada ao conhecimento, interesse e entendimentos do grupo gestor sobre/por essa manifestação. Para a efetividade dessa inclusão de temas na EFE, Martins (2021) afirma ainda que a inserção deve sempre estar ligada ao desenvolvimento de metodologias e as relações entre educadores e educadoras.
Dois campos narrados abordam sobre as dificuldades da relação entre capoeira e a universidade. Na capoeira, dotada de saberes e ancestralidades, alguns capoeiristas ainda apresentaram certo estranhamento quanto ao fato de Professor Gunga fazer parte de uma universidade, que constitui códigos formalizados ou institucionais. No caso de Professor Viola, este estranhamento foi percebido devido a errônea associação dele, feita por capoeiristas de um grupo de trabalho, como favorável as ideias dos Conselhos Regionais de Educação Física (CREFs), que na época tentavam tornar obrigatório o registro e associação dos mestres de capoeira junto ao conselho, processo visto por capoeiristas como uma forma de formalizar e prender a capoeira aos ditames sociais elitistas, assim como desvalorizar os mestres da cultura popular.
Já quanto a universidade, a dificuldade relatada por eles seria sobre a “ainda” não aceitação da capoeira como campo de investigação e pesquisa por parte de alguns professores e orientadores, dificultando a realização de estudos e evolução quanto aos projetos relacionados[6].
A FORMAÇÃO ACADÊMICA EM EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
A seção tem o objetivo de apresentar, de acordo com as diferentes vivências, a presença ou não da capoeira durante a formação em EF dos professores investigados. Consideramos o “contato com a capoeira” dentro da graduação, como a oferta do conteúdo dentro do currículo ou outras formas dentro do plano de curso oferecido, e que tenha sido vivenciada pelos entrevistados no estudo.
Em seus relatos sobre a graduação, Professor Gunga menciona que não teve contato com a capoeira, e que essa ausência foi impulsionadora de pesquisas dentro do curso sobre esse fato. Ao encontro da realidade narrada pelo professor, que iniciou sua formação em 2002.2, os achados de Alves et al. (2019), coletados 14 anos depois da experiência apresentada no estudo, demonstram que a ausência do tema nos currículos da formação superior ainda é uma realidade.
O contato com a capoeira foi apontado por Professor Gunga ao mencionar uma monitoria na qual participou, em uma disciplina ministrada por professor Heraldo Simões. Já Professor Viola relata o contato com a capoeira dentro de uma disciplina de lutas na graduação, dividida em três modalidades: karatê, judô e capoeira, na qual Professor Viola auxiliava a docente responsável pela modalidade no desenvolvimento das atividades e pesquisas da disciplina.
Esse contato, segundo Professor Médio, permitiu estudos sobre a riqueza e novas compreensões sobre a capoeira, que mesmo com 15 anos trabalhando com ela, ainda não eram tão visíveis, permitindo uma mescla entre as suas vivências e os conhecimentos acadêmicos da disciplina.
Ao serem questionados sobre a suficiência da disciplina no preparo de docente aptos(as) a ministrar o tema nas aulas de EFE, Professor Médio e Professor Viola concordaram ao mencionarem que apenas a disciplina não seria o suficiente, havendo a necessidade de uma vivência e maiores estudos. Contudo, afirmaram que nenhuma disciplina na graduação conseguiria preparar os futuros docentes completamente para a atividade de lecionar, mas promoveriam os primeiros contatos com os conteúdos e suas linhas de estudo, cabendo ao professor a busca pelo aprofundamento e as relações com suas atividades docentes específicas.
AS INFLUÊNCIAS DA CAPOEIRA NA PRÁTICA PEDAGÓGICA
A seção tem o objetivo de compreender as influências que a capoeira e as trajetórias de vida atreladas a ela tiveram sobre as práticas pedagógicas com a EFE segundo a percepção dos professores.
As experiências vividas nos ambientes da capoeira teriam proporcionado a Professor Médio, ao tornar-se docente, uma melhor capacidade de exercer liderança junto aos alunos, assumir formas de abordagem mais afetivas, além do chamado “lidar com quantidades” que, segundo ele, seria o estabelecimento de uma regência de sala diante de uma elevada quantidade de alunos por turma. Algumas questões relacionadas a liderança e autonomia são características também percebidas nas observações de Silva (2007) sobre a participação dos(as) alunos(as) em um projeto envolvendo capoeira.
Quanto a Professor Gunga, dentro de seus relatos há um destaque para a “via de mão dupla” que a capoeira e a EF estabeleceram, tendo, tanto a EF e suas abordagens (em especial e destacada pelo professor a abordagem crítico-superadora[7]) auxiliado no trato pedagógico com a capoeira, quanto a capoeira auxiliado nas perspectivas de conteúdos e didática da EFE.
Perspectiva semelhante foi destacada por Professor Viola ao mencionar que os conhecimentos dos trabalhos sociais realizados com capoeira, e a “chuva de conhecimentos” adquiridos no ensino superior sempre se entrelaçavam (“via de mão dupla”). O professor relaciona a capoeira ao desenvolvimento de uma segurança, o desenvolvimento das relações intra e interpessoais (o que teria facilitado nas conversas junto as gestões escolares ao entrar na área da EF), além da oportunização de um ambiente onde pôde perceber o gosto pela “transmissão de conhecimentos” e que, segundo ele, forneceu diversos feedbacks com relação a sua didática. Quanto a EF, a mesma teria influenciado em sua visão da capoeira, auxiliando a vê-la como uma “ferramenta educacional” e a compreender melhor sua responsabilidade no papel de liderança diante dos jovens e adolescentes para quem ministrava aulas.
A CAPOEIRA COMO COMPONENETE INTERDISCIPLINAR E SUA RELEVÂNCIA PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
A seção teve o objetivo de investigar as possibilidades interdisciplinares com a capoeira e sua inserção dentro dos currículos escolares, assim como a relevância da temática dentro da área da EFE, com base na visão dos professores.
Professor Médio afirma que, após o contato com a teoria das múltiplas inteligências de Gardner (1995), o mesmo começou a enxergar uma série de possibilidades do uso da capoeira de forma interdisciplinar. Contudo, afirma ainda haver dificuldades na implementação de programas interdisciplinares envolvendo o tema, uma vez que se torna necessário a mobilização e iniciativa de professores(as) de outros componentes.
Professor Viola menciona uma série de experiências interdisciplinares com outras áreas (artes, história e matemática), envolvendo a capoeira, e afirma que o mesmo pode ser feito com as demais disciplinas do currículo. O professor destaca se sentir chateado ao perceber que, em algumas escolas, a procura ou uso desses projetos interdisciplinares apenas ocorre durante a semana da consciência negra, invisibilizando uma temática ampla como as questões étnico raciais, que deveriam ser trabalhadas o ano todo não apenas em atendimento as leis educacionais, mas por sua importância. O professor critica ainda a falta de direcionamento nos documentos curriculares da EF sobre a capoeira, tornando o ensino do conteúdo de modo opcional ou caso algum professor tenha afinidade com o mesmo.
Professor Gunga também acredita no trabalho interdisciplinar com a capoeira, e menciona sua presença na Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2017), advertindo que algumas especificações dentro do documento (como a relevância social e regional) a tornam aplicável em outras faixas de ensino, não apenas as previstas no documento curricular mencionado.
Sobre a relevância da temática para a EF, Professor Médio afirma que seu caráter histórico favorece a compreensão da realidade e das lutas vinculadas a ela e a seus praticantes. O docente explica ainda que, embora caracterizada como luta, violenta em diversas manifestações do tempo de sua criação, a capoeira, como luta de um povo, tem caráter social de união. Inferimos que tal afirmativa se refere a “criação de novos espaços de encontro e de expressão de diferentes parcelas marginalizadas da população” (SILVA, 2007, p. 130), configurando-a, como afirmado por Silva (2007) em um ato de “resistência positiva”.
Em semelhança ao exposto por Campos (2001), Professor Gunga ressalta que, no contexto educacional brasileiro, onde há uma busca constante por conteúdos que gerem vínculo e identificação com os(as) estudantes, a capoeira, presente na maior parte das localidades e contextos comunitários dos(as) alunos(as), geraria esses sentimentos e contribuiria para o interesse e estudos dos(as) alunos(as):
Ele vê todo dia um cara passando com berimbau, negócio no braço, dando aula ali, ele vê ali, “isso é macumba ou não é?... É isso e aquilo...” Ele vê aquilo todo dia. Aí de repente o professor de educação física, “hoje a aula é sobre capoeira.” [...] Eu cansei de ter esses exemplos. “Tio, tem lá no meu bairro...” Pronto. Começa... O interesse já muda. Aí você não tem nem dificuldade. Pode ser a turma mais danada que for. Se eles se identificam, eles vão gostar. Eles vão fazer atividade, trabalho de casa, vão fazer tudo. Porque eles se identificam com aquilo. [...] Um dos maiores argumentos é isso. A identidade, a identificação com a criança, com o aluno que tá ali naquela escola (PROFESSOR GUNGA).
Um ponto de destaque nas três falas obtidas seria sobre a inserção da capoeira na escola, independentemente de quaisquer disciplinas. Seja como núcleo ou projeto dentro de cada escola, tendo metodologia estabelecida, voltada a valorização cultural, ou como parte da matriz curricular da educação brasileira junto a outras disciplinas devido ao seu caráter patrimonial e vínculo com a história brasileira e do povo negro brasileiro. Contudo, problemáticas são pontuadas pelos três docentes, como: quem estaria apto a assumir tais projetos? Como seria feita a inserção desses mestres da cultura popular no ambiente institucional? Quais os critérios utilizados para selecionar esses profissionais?
Entendemos que essa ânsia pela inclusão da capoeira no currículo escolar brasileiro, seja atrelada a EF ou não, se refere a necessidade de sua valorização histórica e cultural, tendo em vista o privilégio ostentado por temáticas com raízes europeias desde o início do componente de ensino na qual ela faz parte hoje (MARTINS, 2021). Ao encontro das narrativas, Noronha e Pinto (2004) afirmam ainda que a escola seria o espaço onde essas manifestações culturais populares deveriam ter seus conhecimentos e vivências perpetuados.
Uma das falas finais em destaque aponta para a existência de tantos argumentos a favor da capoeira “que realmente fica difícil quando alguém vem argumentar que não dá para ter capoeira na educação física escolar” (PROFESSOR GUNGA). O professor destaca ainda que, a presença de “um mínimo de capoeira”, dentro da formação do(a) professor(a) de Educação Física escolar, o fará compreender a importância da capoeira
A PRÁTICA PEDAGÓGICA COM A CAPOEIRA NA SALA DE AULA
Esta seção foi criada com o objetivo de investigar a prática pedagógica dos professores com a capoeira na EFE, que tipo de abordagem ou metodologia utilizam, em quais documentos se baseiam, assim como sobre a organização do conteúdo e participação dos alunos.
Sobre as influências das experiencias relacionadas a capoeira na atividade docente, Professor Médio destaca alguns pontos: uma facilidade em enxergar os possíveis recursos a serem utilizados dentro das aulas e atividades; uma postura influenciadora com os(as) alunos(as); a valorização dos conhecimentos prévios dos(as) alunos(as); a diversificação nos modos de estudo e pesquisa.
Professor Médio afirma ter cuidado ao trabalhar a capoeira, sempre esclarecendo aos alunos de início que a capoeira é uma luta, mas que na escola, na EFE, esse caráter combativo não será o foco dos aprendizados. O mesmo opta por trabalhar ela de forma lúdica, focando no jogo, promovendo uma compreensão geral da capoeira, sua historicidade, instrumentos envolvidos, organizando o conteúdo em no máximo 4 aulas. Quanto a sistematização didática de acordo com a faixa etária, o mesmo utiliza o lúdico ao dar aulas no 6º e 7º ano, usando do simbolismo, da musicalidade e outros recursos, dando início ao trabalho com o jogo da capoeira no 8º e 9º, ainda de forma lúdica, porém em menos proporções que nas séries anteriores.
Professor Gunga, sobre as influencias das vivências na capoeira na atividade docente, menciona que em alguns momentos tenta “deixar o capoeirista de lado”, obtendo sucessos e insucessos nas tentativas. Dentre as influencias o professor destaca algumas “facilidades”, como o manejo de instrumentos e o respeito ao nível maturacional dos(as) estudantes.
Professo Gunga, como mencionado, sempre ensinou a capoeira dentro das aulas de EFE, culminando na produção de uma proposta metodológica para ela no ensino fundamental I. O mesmo afirma trabalhar “a história da capoeira, numa visão crítica, no olhar do oprimido, trazendo a ludicidade” (PROFESSOR GUNGA), sistematizando o tema em 3 aulas, através de variações a depender da turma, comunidade escolar e nível maturacional das crianças com o uso de jogos e brincadeiras de diversas áreas.
Professor Viola, devido a estrutura diferente da EF nos Institutos Federais com os(as) alunos(as) do Ensino Médio, e das reformas nessa estrutura, menciona que o itinerário formativo da EF oferta uma disciplina de capoeira semestral, havendo a disciplina de Capoeira Iniciação I e Capoeira Aperfeiçoamento. No novo itinerário da EF a capoeira deixaria de ser uma disciplina específica, oportunizando aos estudantes experienciarem outras expressões da cultura corporal. Dentro desses sistemas, as aulas seriam no formato de aulas de capoeira.
O professor afirma partir dos movimentos mais básicos até os mais complexos, primando pelo uso de jogos, brincadeiras e do lúdico para ensinar os movimentos, usando documentários e a produção de instrumentos e materiais diversos para trabalhar outros aspectos da capoeira. Dadas as vivências na capoeira, o professor afirma sempre primar pelo diálogo, e pelo uso educacional dela, permitindo a formação de novas perspectivas de vida pelos(as) alunos(as). Segundo ele, essa metodologia, assim como a própria presença da capoeira no ambiente escolar teria permitido uma mudança na cultura esportiva e corporal da instituição, que antes era voltada apenas para os esportes. Assim como afirmado por Martins (2021), a inclusão de temas relacionados a cultura popular já seria geradora de um “tumulto no reino do esporte” (MARTINS, 2021, p. 157).
As abordagens metodológicas dos três professores seriam destaques nas aulas com o conteúdo, uma vez que, dentro dos achados de Alves et al. (2019), ao ministrarem aulas com o tema, uma maioria expressiva de professores de Educação Física ainda utilizaria de aulas teóricas, deixando o uso de jogos e brincadeiras em segundo plano.
Dentro da proposta de Professor Gunga, os movimentos específicos da capoeira não precisariam ser utilizados caso o(a) professor(a) não os dominasse, permitindo diversos recursos para a demonstração dos movimentos e golpes, concordando com Alves et al. (2019), que mencionam que o mais importante não seria o domínio de todos os aspectos técnicos da modalidade, mas sim a fomentação das discussões emergentes e a exploração dos conhecimentos que o tema possui.
Segundo a descrição de alguns aspectos metodológicos dos professores entrevistados, boa parte dos relatos nos remetem as categorias do conhecimento do professor, propostas por Shulman (1986).
Com relação aos “conhecimentos do conteúdo”, ambos os professores teriam conhecimento teórico e prático sobre a capoeira, demonstram entendimento quanto a importância da mesma, sua necessidade e rigor dentro da comunidade científica, assim como as múltiplas possibilidades de explorar o tema, junto as suas conexões com as demais áreas
Ambos demonstram, através do enfrentamento das dificuldades mencionadas dentro das aulas e da aplicação de adaptações nos conteúdos, tendo em vista a compreensão dos(as) alunos(as), tornando-o compreensível diante das dificuldades ou preconceitos existentes, que atendem a categoria sobre os “conhecimentos pedagógicos do conteúdo”.
Já com relação aos “conhecimentos curriculares”, ambos também atendem a ela, uma vez que demonstram uma compreensão ampla do conteúdo dentro de um planejamento curricular, sobre a diversidade de materiais e formas de trabalhar o tema, assim como as indicações específicas para cada série de ensino.
REFLEXÕES E MENSAGENS FINAIS
A seção de reflexões finais foi elaborada com o intuito de finalizar a entrevista com uma mensagem aos professores de EF (ainda em formação ou já formados) sobre a capoeira e com o desafio de definir a capoeira em uma palavra.
Professor Médio optou pela palavra resistência, devido a ligação com o histórico de resistência da capoeira, enquanto Professor Gunga escolheu a palavra vida, dentro de um caráter ancestral da mesma, compreendendo presente, passado, futuro. Professor Viola, afirmou que é impossível definir a capoeira com uma palavra dada a multiplicidade de manifestações nas quais ela poderia representar, mas que gosta da definição dada por seu mestre: “Capoeira é o que o momento determina” (PROFESSOR VIOLA).
Quanto a mensagem ao professor ou acadêmico, Professor Médio deseja que continue estudando e, principalmente, que se “envolvesse no mundo da capoeira”. De acordo com o professor, muito além de apenas levantar o pé, a capoeira estaria repleta de ritualísticas e comportamentos que deveriam ser vivenciados para uma melhor compreensão, entendimento e futuro ensino. Já professor Gunga pede para que o(a) acadêmico(a) ou professor(a) reflita sempre se está privando o(a) aluno(a) de algum conhecimento. Sendo essa reflexão necessária não apenas sobre a capoeira, mas sobre a atividade docente em si. Em sua mensagem, Professor Viola adverte que, o despertar de uma ideia de valorização cultural no(a) estudante só será possível se o tema não for negligenciado, portanto, mesmo que de modo inicial ou introdutório, o conteúdo deveria ser ensinado.
Todos os conselhos emanados podem ser possíveis soluções para uma problemática expressa na literatura quanto a atividade docente em Educação Física, que seria o, ainda, vinculo dos(as) professores(as) com o saber fazer, mencionado por Iório e Darido (2005), assim como a aversão de alguns profissionais da área ao estudo sobre determinados temas, devido à falta de conhecimento prático inicial sobre o mesmo, como mencionado por Poly (2015).
A apresentação das histórias de vida dos professores e das relações estabelecidas entre suas falas, nos apresentam o campo educacional sob a ótica daqueles que trabalham com ela dia a dia, seus desafios, enfrentamentos e perspectivas. Já a associação das histórias de vida desses professores com a capoeira, nos apresenta outra riqueza desse campo educacional: a formação do(a) professor(a), sendo entendida para além das instituições de ensino e dos campos formais de aprendizagem, afirmando e reafirmando que a constituição desses(as) profissionais, suas perspectivas e atuações sofrem influência de todos os processos antes, durante e após a graduação.
A capoeira esteve/está fortemente atrelada a vida de cada entrevistado de forma singular, perpassando todas as fases de suas vidas desde o primeiro contato com a manifestação cultural, seguindo a trajetória acadêmica e profissional como professores de Educação Física. Em cada narrativa percebe-se que, o desenvolvimento de posturas confiantes, a vivência em situações de liderança não autoritária, o aprendizado de abordagens didáticas efetivas, o respeito aos conhecimentos dos(as) alunos(as) e as suas individualidades, foram alguns aprendizados e experiências dentro da capoeira responsáveis pelo surgimento de uma série de características pessoais apontadas como de suma importância na abordagem desenvolvida com o tema e nas demais aulas de Educação Física escolar pelos docentes.
Além disso, a relação estabelecida entre a capoeira e os conhecimentos acadêmicos na formação teriam estabelecido uma via de mão dupla, permitindo uma convergência entre as metodologias e conteúdos da Educação Física e as matrizes libertárias da capoeira. De acordo com as perspectivas educacionais dos professores e a narração da didática assumida por eles em aula, o trato pedagógico utilizado por eles na Educação Física escolar estaria ligado as perspectivas educacionais críticas, que levariam em consideração as relações étnico-raciais envolvidas historicamente ao conteúdo, buscariam favorecer o início da construção de um currículo descolonizado, e que permitiriam a ampla participação dos(as) alunos(as) e de seus conhecimentos prévios, fomentando a superação das desigualdades e preconceitos relacionados a questões sociais e de gênero. Essa forma de ministrar o conteúdo, o tornaria gerador de pertencimento cultural, além de forte agente para confrontar questões que contribuíram para a formação de um sistema educacional brasileiro no qual ainda estão presentes estruturas do pensamento racista, machista e desigual socialmente.
Os anseios apresentados dentro das recomendações dos professores sobre a busca pela vivência e estudo sobre a capoeira, como forma de não privar os(as) alunos(as) dos conhecimentos referentes à cultura corporal que lhes é de direito, reflete parte da situação observada pelos mesmos e demonstrada na literatura sobre a falta do conteúdo dentro das escolas e universidades, o que contribui ainda mais para o encobrimento e preconceito referente as manifestações africanas e afro-brasileiras que constituem o arcabouço cultural brasileiro.
Embora poucos apontamentos ao documento curricular mais atual, BNCC (BRASIL, 2017), e sobre a ausência das lutas e da capoeira nos anos iniciais do ensino fundamental, segundo o documento, compreendemos que os anseios sobre um lugar reservado para a capoeira dentro dos currículos ou instituições, atrelada ou não a EF, tenham apontado lacunas dentro das leis e/ou documento curriculares da EF (PCN, BNCC, lei 10.639/03) no que tange ao tema.
As trajetórias desses profissionais, dentro de um contexto educacional onde o tema ainda é negligenciado e preso dentro de metodologias acríticas, ganham sonoridade dentro da roda das discussões acadêmicas no trabalho. A capoeira interferiu e ainda interfere na formação e atuação docente dos pesquisados em suas práticas pedagógicas com a Educação Física escolar, demonstrando a amplitude dos fatores e influências que corroboram para a formação e identificação do ser como professor(a).
Através do estudo, compreendemos que a capoeira ainda enfrenta diversas dificuldades para ser inserida no ambiente escolar e dentro das aulas de Educação Física, mas que seu reconhecimento mundial, sua ligação intrínseca com a cultura brasileira e sua população, assim como, seu potencial como temática reflexiva sobre racismo, desigualdades socias, violência, gênero e justiça social, a torna potente conteúdo a ser ensinado nas aulas, não podendo ser privada de fazer parte dos conhecimentos e vivências dos(as) alunos(as) nas aulas de EFE.
[1] O texto apresentado aqui tem origem do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do autor, aprovado para a obtenção do grau de Licenciado em Educação Física, na Universidade Federal do Ceará no ano de 2021. O termo de autorização de um dos entrevistados não foi obtido a tempo de entrar nos achados do TCC, sendo obtido posteriormente, permitindo a inserção dos achados aos resultados do presente trabalho. Para mais detalhes sugerimos a leitura do trabalho na íntegra: https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/63544.
[2] Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), no Brasil, de 3 de janeiro de 2020, a 12 de abril de 2021, 13.445.006 casos de Covid-19 foram confirmados, com 351.334 mortes reportadas à OMS. Sobre o município de Fortaleza - Ceará, segundo a plataforma IntegraSUS do Governo do Estado do Ceará, com informações coletadas em 12 de abril de 2021, referentes às duas semanas epidemiológicas (13 e 14), a incidência de casos de Covid-19 por dia/100 mil habitantes seria de 423,5, representando risco altíssimo. Enquanto o percentual de leitos UTI-Covid ocupados seria de 92%.
[3] Embora não apresentado nas narrativas ou utilizado como forma de diferenciação nas discussões, vale nota ressaltar a terminologia elaborada por Ferreira Neto e Silva (2017) estabelecendo a diferenciação sobre as diferentes perspectivas da capoeira presente no ambiente escolar: a capoeira “na” escola (desenvolvida no ambiente escolar através de projetos, trabalhada por capoeiristas, com ou sem formação acadêmica) e a capoeira “da” escola (ministrada nas aulas de Educação Física por docente capacitado, que não necessariamente seria capoeirista).
[4] Prof. Dr. Heraldo Simões Ferreira, atualmente professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Centro de Ciências da Saúde, Curso de Educação Física. O professor é mencionado nas narrativas de Professor Médio e Professor Gunga, tendo este exercido papel de monitor do professor em uma disciplina na graduação.
[5] Para mais detalhes sobre a possibilidade metodológica mencionada sugerimos o trabalho na integra: https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/30059.
[6] Sobre a importância da realização dessas obras e trabalhos universitários que corroboram para a reafirmação da capoeira e seu valor dentro dos saberes acadêmicos, vale ressalva a menção de algumas obras realizadas por alunos(as) do Instituto de Educação Física e Esportes da Universidade Federal do Ceará, como: Ferreira Neto (2018), Sousa (2018), Dutra (2020), que corroboram com as perspectivas educacionais sobre a capoeira e auxiliam na compreensão de suas ressignificações e ritualísticas.
[7] Vale ressalva que os autores e as autoras da abordagem crítico-superadora defendem a capoeira como indissociável de seu processo histórico e o seu resgate como manifestação cultural (SOARES et al., 1992).
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