Metadados do trabalho

Relações Com Os Saberes De Jogos E Brincadeiras De Matriz Africana

Pedro Gabriel Viana do Amaral

Este artigo teve enquanto objetivos: compreender os modos com que crianças do 4º e 5º ano do ensino fundamental, se relacionam com os saberes dos jogos e brincadeiras africanas, narrar sobre este processo de ensino-aprendizagem e investigar como as estratégias utilizadas pelo professor-pesquisador, contribuíram para uma educação que valorizasse as relações étnico-raciais. Por meio da perspectiva metodológica das relações com o saber de Charlot (2000) e da pesquisa-ação de Engel (2000), observou-se que as crianças construíram relações identitárias com as vivências e experiências, refletindo, discutindo, questionando, pesquisando e valorizando estes saberes assim como incorporando algumas das brincadeiras aprendidas no cotidiano escolar.

Palavras‑chave:  |  DOI: 10.22456/1982-8918.46895

Como citar este trabalho

AMARAL, Pedro Gabriel Viana do. Relações Com Os Saberes De Jogos e Brincadeiras De Matriz Africana. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2022 . ISSN: 1982-3657. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.46895. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/413-rela%C3%A7%C3%B5es-com-os-saberes-de-jogos-e-brincadeiras-de-matriz-africana. Acesso em: 16 out. 2025.

Sumário

Relações Com Os Saberes De Jogos e Brincadeiras De Matriz Africana

Quando uma criança negra é assassinada com tiros no peito, durante uma ação da Polícia Militar, em Porto de Galinhas (SANTOS, 2022), urge-se a necessidade de pensar uma educação para as relações étnico-raciais, decolonial, antirracista dentro das escolas. Contudo, também me pergunto se nós, pessoas brancas, estamos realmente dispostos a sermos atravessados, ouvir e agir acerca das responsabilidades que a branquitude tem na manutenção do racismo brasileiro, ou a sala de aula permanecerá enquanto palco de reprodução dos nossos narcisismos?

 

A Lei de Diretrizes e Bases Nacionais (LDBEN), 10.639/2003 e 11.645/2008, dispõe que o conteúdo programático deve trabalhar as lutas dos povos negros e os saberes de matriz africana, valorizando-os para a formação da sociedade brasileira (BRASIL, 2021). Contudo, ainda que a referida lei tenha se construído por meio de inúmeras lutas do movimento negro, a mesma é atravessada e gerida pela modernidade eurocêntrica colonial, que reproduz o discurso de que pessoas negras são sujeitos passivos, acomodados e acríticos (GOMES, 2019).

 

Historicamente, este discurso colonial vem produzindo signos fixos, que simbolizam algo rígido e imutável, como também degenerados e demoníacos, paradoxos que vacilam entre o “que está sempre "no lugar", já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido (BHABHA, 1998, p. 105), como a hiperssexualização dos corpos negros.

 

Desse modo, refletir sobre os efeitos nocivos da modernidade/colonialidade na sociedade brasileira possibilita rever nossas práticas e discursos, o que poderá ajudar a superar os obstáculos constatados na realidade do sistema educacional brasileiro e a produzir estratégias para modificar o padrão racista que tem guiado as relações étnico-raciais no país (BORJA; PEREIRA, 2018, p. 267).

 

Contudo, assumir este dever é entender que a cultura africana e afro-brasileira é múltipla e diversa, constituída de relações sócio, histórico e culturais amplas, sendo necessário estabelecer um recorte sobre o que se pretende adensar o olhar acerca destes saberes, para não cair na armadilha da repetitividade colonial, como é o caso da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Neste documento normativo, é esperado que do 3º ao 5º ano desenvolva o objeto de conhecimento “Brincadeiras e jogos de matriz indígena e africana” a fim de:

 

(EF35EF01) Experimentar e fruir brincadeiras e jogos populares do Brasil e do mundo, incluindo aqueles de matriz indígena e africana, e recriá-los, valorizando a importância desse patrimônio histórico cultural.

 

(EF35EF02) Planejar e utilizar estratégias para possibilitar a participação segura de todos os alunos em brincadeiras e jogos populares do Brasil e de matriz indígena e africana.

 

(EF35EF03) Descrever, por meio de múltiplas linguagens (corporal, oral, escrita, audiovisual), as brincadeiras e os jogos populares do Brasil e de matriz indígena e africana, explicando suas características e a importância desse patrimônio histórico cultural na preservação das diferentes culturas.

 

(EF35EF04) Recriar, individual e coletivamente, e experimentar, na escola e fora dela, brincadeiras e jogos populares do Brasil e do mundo, incluindo aqueles de matriz indígena e africana, e demais práticas corporais tematizadas na escola, adequando-as aos espaços públicos disponíveis (BRASIL, 2018, p. 229)

 

Analisando estas “habilidades”, há uma espécie de discurso que seduz o leitor a acreditar que há uma preocupação sobre as relações étnico-raciais. Entretanto, algumas expressões ou conceitos se encontram soltos, sem um aprofundamento cuidadoso, fazendo-me questionar: por que se distingue jogos populares do Brasil de jogos de matriz indígena e africana, sendo inclusive alguns reconhecidos como Afro-brasileiros? A lei 10.639/2003 não estabelece a importância destes saberes para a formação nacional? Por que demarcar uma separação entre o que é Brasil, o que é indígena e o que é de matriz africana?

 

Essas e outras questões me mobilizaram a realizar um projeto que traçasse uma possibilidade com o trabalho de jogos e brincadeiras africanas e afro-brasileiras, de modo a dedicar-se sobre suas origens, seus povos, suas línguas e seus biomas, apoiado pelo livro “Brincadeiras Africanas Para A Educação Cultural” de Débora Alfaia da Cunha (2016).

 

Portanto, lanço luz a seguinte pergunta: o que se ampliou do debate acerca dos saberes africanos, ao se trabalhar com os jogos e brincadeiras deste continente com turmas do 4º e 5º ano do ensino fundamental? Logo, para promover reflexões a respeito deste questionamento, tenho enquanto objetivos: compreender os modos com que estas crianças se relacionam com estes saberes; narrar sobre este processo de ensino-aprendizagem; e investigar como as estratégias utilizadas pelo professor-pesquisador, contribuíram para uma educação que valorize os saberes africanos e afro-brasileiros. 

Este projeto foi desenvolvido por mim, professor de Educação Física, em diálogo com a pedagoga da turma e o estagiário de Educação Física, os quais, compreenderam a necessidade em se pensar ações que fossem para além da reprodutibilidade colonial, mas que buscassem as particularidades dos jogos e brincadeiras de matriz africana.

 

Séculos de discriminação racial e alienação colonial não serão superados com a legislação. Estado e todas instituições responsáveis precisam agir para a mudança desse mundo, tal qual a constante luta do movimento negro por mudanças concretas ao longo da história brasileira. É preciso migrar do campo da subjetividade para a objetividade. (GOMES, 2018, p. 14)

 

Com esse propósito, cuidamos para não nos munir daquilo que Lins Rodrigues (2010) e Gomes (2018; 2019) nomearam de desespero reparatório que, ao desenvolver questões multiculturais, escolas e professores promovam ações folclorizadas, desconexas e acríticas acerca das questões raciais, como por exemplo, ao trabalhar a brincadeira “Labirinto” e não discutir sua origem, sua cultura, seu povo, mantendo este saber sem tempo e lugar no mundo (GOMES, 2008).

 

Portanto, esta pesquisa se detém a olhar sobre um processo de desenvolvimento de jogos e brincadeiras, pesquisas, vídeos de curiosidades, leitura de contos[1], atividades, rodas de conversa, e, a fim de propor uma avaliação final acerca do tema: construir um jogo inspirado no jogo de perfil[2], que agrupassem os saberes vivenciados nas aulas.

 

AS RELAÇÕES COM O SABER E AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA ESCOLA

 

Tendo em vista que o trabalho se detém acerca de saberes e relações, opta-se por pesquisar por meio da perspectiva teórico-metodológica da relação com o saber, que entende que o sujeito, ao nascer, é obrigado a aprender um mundo pré-existente (CHARLOT, 2000). Por meio daquilo que o autor nomeia de figuras do aprender, o sujeito constitui relações consigo, com o outro e com o mundo.

 

(...) a relação com o saber é o conjunto  das relações que um sujeito mantém com um objeto, um “conteúdo de  pensamento”, uma atividade, uma relação interpessoal, um lugar, uma  pessoa, uma situação, uma ocasião, uma obrigação, etc., ligados de uma  certa maneira com o aprender e o saber; e, por isso mesmo, é também  relação com a linguagem, relação com o tempo, relação com a ação no  mundo e sobre o mundo, relação com os outros e relação consigo mesmo  enquanto mais ou menos capaz de aprender tal coisa, em tal situação (CHARLOT, 2000, p. 81) .

 

Alguns autores que se enveredam sobre este campo, como Venâncio et al (2021), discutem acerca de questões sobre injustiça social na prática docente, apontando que, para uma perspectiva crítica da didática, é preciso que os professores tenham consciências das implicações do racismo nas práticas pedagógicas. Ora, se o sujeito aprende a confrontar o mundo ao nascer, o que se aprende em um mundo racista? O que é valorizar saberes africanos em um mundo que estigmatiza tais saberes?

 

(...) para entendermos o racismo, é preciso que tenhamos conhecimentos da diversidade dos povos negros e das consequências diaspóricas sobre cada ser humano negrə, abrangendo os corpos, as demandas ambientais, os elementos culturais e a intersubjetividade nos movimentos. Há tabus – assentados em preconceito e discriminação – que tornam desafiadora a identificação de quem é negrə no Brasil (VENÂNCIO, et al., 2021, p. 16).

 

A escola deste artigo, caracteriza-se enquanto uma instituição privada que se localiza na região centro-sul de Belo Horizonte. As crianças participantes cursam o 4º e 5º ano do fundamental (9-11 anos) e são majoritariamente, brancas. Ainda que se tenham alguns estudantes negros, como trabalhar as questões étnico-raciais neste contexto onde as identificações não oscilam tanto, mas pesam? Quais são as possibilidades em se adensar as discussões acerca das lutas dos povos negros e dos saberes de matriz africana?

 

Para entender a relevância acerca deste projeto, vale lançar luz acerca do conceito de racismo que dialogo: “uma doutrina pseudocientífica, que afirma a existência de raças humanas – diferenciadas hierarquicamente em qualidades psicológicas, físicas, morais e intelectuais – e a crença na superioridade ou na inferioridade entre as raças” (VENÂNCIO et al,. 2021, p. 16). Assim, compreende-se que as aulas de Educação Física precisam construir caminhos que valorizem os saberes e as lutas dos povos negros a partir de uma perspectiva antirracista, sendo necessário tencionar as múltiplas violências que a população negra vem sofrendo no Brasil (VENÂNCIO et al., 2021).

 

A discussão sobre o racismo remete ao processo histórico e à desconstrução crítica do contexto das escolas, fundamentadas em um conceito higienista e racista de purificação dəs brancəs e de segregação dəs negrəs. Essas questões, segundo əs estudantes, perpassam situações cotidianas “pela falta de preparo dəs professores em discutir com propriedade sobre esse tema em aulas com əs alunəs (VENÂNCIO et al., 2021, p. 27).

 

Portanto, ainda que a teoria da relação com o saber entenda o sujeito como singular, para que se tenha um olhar cuidadoso acerca dos saberes de matriz africana, é fulcral entender que todos estamos inseridos em um mundo pré-existente de saberes diversos (VENÂNCIO et al., 2021), ainda que a hegemonia branca e eurocentrada se imponha e fixe seus discursos coloniais.

 

METODOLOGIA

 

A perspectiva metodológica desta investigação, pauta-se no entendimento de que os sujeitos estão em constante movimento, engajados e participantes, em uma abordagem qualitativa e hermenêutica (BICUDO, 2009), que assume como os sujeitos das pesquisas estabelecem significados com os saberes de matriz africana, seja pelas brincadeiras, história ou cultura.

 

Uma das aproximações teórico-metodológica escolhidas é a teoria das relações com o saber de Charlot (2000), que compreende que o pesquisador deve atentar-se às quatro figuras do aprender: o saber-objeto, presente em alguém ou em algum lugar; objeto de domínio, em que o sujeito deve explorar, para adquirir um saber; a atividade de domínio, como, correr, saltar, arremessar; e os saberes relacionais, como cumprimentar, brigar, discordar, concordar. Não se deve esquecer das discussões acerca das relações epistêmicas – que parte da premissa que o aprender é se apropriar de um objeto que não está no sujeito, mas em outros objetos, lugares ou pessoas; e das relações identitária – em que, ao se identificar com determinado saber, por meio da sua história, cultura, língua, o sujeito deseja se aprofundar e engajar acerca do objeto e confrontar o mundo. Para o autor, sujeito é:

 

(...) um ser humano, aberto a um mundo que não se reduz ao aqui e agora, portador de desejos movidos por esses desejos, em relação com outros seres humanos, eles também sujeitos; um ser social, que nasce e cresce em uma família (ou em um substituto da família), que ocupa uma posição em um espaço social, que está inscrito em relações sociais; um ser singular, exemplar único da espécie humana, que tem uma história, interpreta o mundo, dá um sentido a esse mundo, à posição que ocupa nele, às suas relações com os outros, à sua própria história, à sua singularidade (p. 33)

 

Levando em consideração que eu, professor-pesquisador deste trabalho, faço parte do processo, buscarei superar lacunas entre teoria e prática, tencionando e adensando os acontecimentos a partir da pesquisa-ação. Este tipo de pesquisa caracteriza-se pela procura de se “intervir na prática de modo inovador já no decorrer do próprio processo de pesquisa e não apenas como possível consequência de uma recomendação na etapa final do projeto” (ENGEL, 2000, p. 182).

 

Sendo assim, será narrado o processo de trabalho com a temática de jogos e brincadeiras 4 países africanos. O aprofundamento acerca desta temática se fez por meio da brincadeira, das pesquisas, das leituras de contos, assistindo à vídeos de curiosidades, para casas e, a construção do jogo de perfil, o qual as cartas começam a apresentação de cada país trabalhado.

 

A pesquisa-ação é um instrumento valioso, ao qual os professores podem recorrer com o intuito de melhorarem o processo de ensino-aprendizagem, pelo menos no ambiente em que atuam. O benefício da pesquisa-ação está no fornecimento de subsídios para o ensino: ela apresenta ao professor subsídios razoáveis para a tomada de decisões, embora, muitas vezes, de caráter provisório (ENGEL, 2000, p. 189).

 

PLANEJANDO NOSSA VIAGEM

 

Quando o tema foi decidido e levado até as crianças, percebemos que seria interessante oportunizar que elas observassem o mapa da África e toda sua amplitude a fim de possibilitar questionamentos, descobertas, constatações, identificações, fazendo com que esta escolha fosse pensada com o cuidado devido.

 

Figura 1 retirada do site: https://images.app.goo.gl/WqvPQhar8c2aArNw5

 

A partir desta figura, as crianças foram localizando países que já conheciam, como: África do Sul, Nigéria e Angola. Paralelamente, surpresas aconteceram, como não saber que o Egito ficava na África. Logo, sugerimos que as crianças decidissem quais seriam os países que nos aprofundaríamos durantes as aulas de Educação Física, sendo Egito, África do Sul e Moçambique decidido por elas e Argélia decidido pelo professor como “pontapé” inicial das aulas. As decisões variavam tanto em questão de interesse em conhecer novos países, quanto por uma identificação anterior, como com o Egito, por exemplo.

 

VIAJANDO PELOS PAÍSES

 

Figura 2: acervo do autor (2022)

Representa três cartas do jogo de perfil relativo à Argélia

 

O primeiro país vivenciado foi Argélia, a qual experimentamos duas brincadeiras: Txila e Tenglach. “Txila” é uma brincadeira jogada com bola dividida em duas equipes: a primeira tem seus participantes organizados em duplas e a outra individuais. Os que estão em dupla devem tentar queimar a outra equipe o mais rápido possível, com o desafio de correr e lançar a bola sem desfazer a dupla. Ao fim da partida, trocam as funções de cada equipe e recomeça o jogo. Ganha quem conseguiu encerrar a partida em menos tempo (CUNHA, 2016).

 

Esta primeira vivência foi desafiadora para todos. Entender novas lógicas, seus tempos, modos de jogar que não conheciam. “Como assim uma equipe fica em dupla e outra não? É injusto”. Se adaptar a novos jeitos de brincar também deve ser um desafio quando tencionamos os modos de brincar hegemônicos a fim de propor outros. Inclusive, na primeira experimentação, as crianças tiveram tanta dificuldade em trabalhar em grupo que, membros da mesma equipe ficavam se atrapalhando durante o processo, ou perdiam tempo discutindo para saber de quem foi a culpa por demorarem tanto a queimar alguém. Mas, quando as crianças entenderam que precisavam um do outro para ganhar, ficaram mais animadas e buscavam repetir as partidas para alcançar novos recordes.

 

A criança mobiliza-se, em uma atividade, quando investe nela, quando faz uso de si mesma como de um recurso, quando é posta em movimento por móbeis que remetem a um desejo, um sentido, um valor. A atividade possui, então, uma dinâmica interna. Não se deve esquecer, entretanto, que essa dinâmica supõe uma troca com o mundo, onde a criança encontra metas desejáveis, meios de ação e outros recursos que não ela mesma. (CHARLOT, 2000, p. 55).

 

Na brincadeira “Tenglach”, esses processos ocorreram de modo diferente. A estética e a dinâmica não propõe uma competição, mas a ideia da circularidade, “um valor afro-civilizatório, que remete a igualdade, o respeito ao outro, a integração e a vida coletiva" (CUNHA, 2016, p. 67), muito comum nas brincadeiras de matriz africana, provocou as crianças de outra forma. Era preciso que uma criança ficasse no centro da roda, encolhida, sendo protegida por alguém que permanecesse em pé, sendo seu guardião/guardiã. Quem estava à margem da roda, deveria tentar encostar em quem estava no meio da roda, sem ser pego pelo guardião. Caso acontecesse, saía do jogo (CUNHA, 2016).

 

Diferente da primeira, vivenciaram posições de ataque, defesa e cuidado. A posição central foi a mais esperada por todos. Paralelamente, elas perceberam um desequilíbrio na dinâmica: era difícil o guardião proteger a pessoa quando todos investiam ao mesmo tempo, sendo necessário equilibrar as funções. Foi então decidido em conjunto que no máximo 2 crianças, de cada vez, iriam tentar encostar na criança do meio. Isso tornou o jogo mais desafiador e as partidas se prolongaram por mais tempo, desafiando as crianças a criarem outras estratégias.

 

O aprender também se constitui em uma relação epistêmica de domínio, porém não de uma atividade, mas de uma relação. O aprender é tornar-se capaz de regular a relação consigo mesmo, com os outros e encontrar a distância conveniente entre si e os outros, intitulado saber relacional. (SANTOS et al, 2015, p. 210)

 

Para ampliar os saberes acerca deste país, compartilhei o vídeo “ARGÉLIA | 10 CURIOSIDADES QUE PRECISA CONHECER #42” do canal “África como você nunca viu[3]” a fim de que as crianças pudessem se aprofundar um pouco mais acerca da temática.

 

Figura 3: acervo do autor (2022)

Representa cinco cartas do jogo de perfil relativo ao Egito

 

O Egito foi o país em que as crianças revelaram saberes mais amplos. Não obstante foram elaboradas mais cartas do jogo acerca de diversas curiosidades. A princípio brincamos de duas brincadeiras: O Silêncio é de Ouro e Concentração ao Número. “O Silêncio é de Ouro” é uma brincadeira cênica, em que um participante é escolhido para representar o Faraó, tendo enquanto função fazer troças, barulhos e cócegas nos colegas. Nestes momentos, os outros não poderiam rir ou fazer barulho (CUNHA, 2016). Esta brincadeira é a favorita das crianças, sendo que todas costumam pleiteiar a posição de Faraó para fazer múltiplas expressões e contagiar o outro. Contudo, ainda que esta brincadeira seduza o participante ao torná-lo o centro do jogo, este também corre grande perigo se não pensar no que o seu público/povo deseja, pois já aconteceu de algumas vezes as crianças tentarem fazer gracinhas e encenações diversas, mas não conseguirem tirar uma risada do grupo, sendo necessário ou passar a vez, abdicando deste poder, ou buscar outras expressões.

 

Desde já, foi possível perceber que esta dinâmica de poder vivida no Faraó, indicava um saber prévio das crianças com alguns dos amplos saberes do Egito, portanto, transitavam entre uma relação epistêmica – ao descobrir novos desafios – e uma relação identitária – ao se mobilizarem a aprender por já conhecerem esta região (CHARLOT, 2000).

 

Na brincadeira “Concentração ao Número”, as crianças também possuíam um saber prévio, pois a mesma lembrava uma outra brincadeira chamada “Vice-Vice, Presi-Presi”. Portanto, foi possível complexificar o modo de jogar, deixando da seguinte forma: cada jogador tem um número de 1 à 11 (total de crianças e adultos). A partir desta numeração era decidido um ritmo e o jogador que começaria a chamar os participantes, exemplo: 7,7; 4,4. Como neste momento a brincadeira estava mais difícil, o novo desafio era que, na vez do número 4, neste exemplo, ele deveria chamar o seu número, o número que o chamou e o número que ele chamaria, exemplo: 4,4; 7,7; 3,3 (CUNHA, 2016). Todos os participantes, crianças e adultos, sentiram dificuldades com as novas regras, mas, juntos buscaram aprender a dinâmica, em relação (CHARLOT, 2000).

 

O jogo com os número é importante para demarcar os saberes desta região que, historicamente, teve grande importância para os modos que conhecemos a matemática (CUNHA, 2016) e, paralelamente, fazer o ritmo, lembrar seu número, quem te chamou e o próximo a chamar, mobilizava as crianças a se envolver profundamente com esta brincadeira, já que o nível de habilidade e concentração eram elevados.

 

Uma figura que se mostrou relevante neste processo foi a da Cleópatra. A partir da curiosidade trazida por uma estudante – “vocês sabiam que a Cleópatra está mais perto da época da pandemia do que da criação da primeira pirâmide?” – nos levou ao questionamento, afinal quem era a Cléopatra? Uma Faraó? Existia Faraó mulher? Era outro cargo dentro da política do Egito?

 

Para ampliar os saberes acerca deste país, compartilhei o vídeo “EGITO | 10 CURIOSIDADES QUE PRECISA CONHECER #2” do canal “África como você nunca viu” a fim de que as crianças pudessem se aprofundar um pouco mais acerca da temática.

 

Figura 4: acervo do autor (2022)

Representa duas cartas do jogo de perfil relativo à África do Sul

 

À medida que as crianças se identificavam mais com a temática, curiosidades iam surgindo: “você sabia que o veneno da Mamba-Negra é letal?” Parecia-me que algo neste processo de ensino aprendizagem estava sendo construído de maneira diferente daquilo que Bhabha (1998) atentava-se sobre o jogo do sistema colonial:

 

(...) é crucial para seu exercício de poder, o discurso colonial produz o colonizado como uma realidade social que e ao mesmo tempo um "outro" e ainda assim inteiramente apreensível e visível. Ele lembra uma forma de narrativa pela qual a produtividade e a circulação de sujeitos e signos estão agregadas em uma totalidade reformada e reconhecível. Ele emprega um sistema de representação, um regime de verdade, que é estruturalmente similar ao realismo (p. 111).

 

Ao apresentar curiosidades diversas acerca dos países africanos, as crianças não reproduziam um discurso vazio, genérico ou violento acerca destes saberes, dos seus povos e culturas, pelo contrário, mostravam que queriam aprender mais. Não obstante, a próxima brincadeira que brincamos foi de “Mamba”, que consistia em uma pessoa selecionada para ser a cabeça da cobra, ter o desafio de pegar as outras e fazer o seu corpo crescer – que seria composto pelas pessoas pegas segurando umas nas outras (CUNHA, 2016).

 

Esta brincadeira era difícil, porque, à medida que a cobra pegasse alguém, a dificuldade de correr aumentava, o que mobilizava as crianças a sempre entrarem em um acordo quando estavam na cobra, e, quem estava fora da cobra, buscava lugares de difícil acesso para se esconder e fugir dos pegadores. Mesmo não sendo um jogo cênico, as crianças incorporavam a Mamba em suas corridas, imitando o bote e o barulho da cobra.

 

Para ampliar os saberes acerca deste país, compartilhei o vídeo “ÁFRICA DO SUL | 10 CURIOSIDADES QUE PRECISA CONHECER #1” do canal “África como você nunca viu” a fim de que as crianças pudessem se aprofundar um pouco mais acerca da temática.

 

Figura 4: acervo do autor (2022)

Representa duas cartas do jogo de perfil relativo à Moçambique e um para casa

 

Tendo sua origem em Moçambique, a brincadeira Labirinto foi a predileta das crianças. Sendo necessário dividir duas equipes, uma de um lado e outra de outro, com o objetivo de que as crianças atravessassem de um lado para o outro mais rápido que o adversário. Contudo, era uma espécie de corrida em que os adversários se encontravam no meio do caminho e precisavam decidir no “pedra, papel ou tesoura” quem iria continuar a correr e quem voltaria para fila (CUNHA, 2016).

 

Durante a proposta as crianças passaram pelo processo de entender a dinâmica do jogo e foram tomadas pela emoção de ter um jogo dentro do outro: a corrida e o “pedra, papel ou tesoura”. Isto aumentou a ludicidade e o desejo das crianças em brincar.

 

Na atividade de para casa proposta, em que as crianças registravam por meio de desenhos a brincadeira que mais gostaram, o Labirinto e o Silêncio é de Ouro aparecem em peso, sendo estas extrapolando os momentos de aula de Educação Física e compondo parte de seu cotidiano em momentos de pátio livre, atualmente. O interessante é que nas representações, algumas crianças optaram por registrar o jogo como ele é, e outras construíram um labirinto “tradicional”, reforçando que, para se relacionar com o saber, precisa-se de tempo de inscrição.

 

(...) não se busca uma “verdade ontológica”, mas compreender como as pessoas, enquanto sujeitos da experiência, percebem o que as afetou no seu processo de formação intelectual, profissional e humana, e como a narrativa aguça sua reflexividade para compreender o habitus e o habitar (PASSEGGI, 2014, p. 233);

 

Para ampliar os saberes acerca deste país, compartilhei o vídeo “MOÇAMBIQUE | 10 CURIOSIDADES QUE PRECISA CONHECER #48” do canal “África como você nunca viu” a fim de que as crianças pudessem se aprofundar um pouco mais acerca da temática.

 

O JOGO DE PERFIL

 

(...) mesmo em suas formas mais simples, ao nível animal, o jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. Ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa "em jogo" que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. Não se explica nada chamando "instinto" ao princípio ativo que constitui a essência do jogo; chamar-lhe "espírito" ou "vontade" seria dizer demasiado (HUIZINGA, 1938, p.7).

 

O jogo se constitui enquanto uma possibilidade de avaliar o processo de ensino dos jogos e brincadeiras de matriz africana, e, ao mesmo tempo, a partir de uma dinâmica lúdica, valorizar e adensar estes saberes, em relação. Frases como: “eu não sabia que existiu uma mulher Faraó”, “eu sei qual é o animal nacional da Argélia e ele é muito fofo”, “a Mamba-Negra pode ser verde?”, “O Egito não é o país que tem mais pirâmide?” – amplificaram o repertório e as curiosidades das crianças acerca dos países abordados.

 

Sua estrutura é composta por 22 cartas, sendo que, cada carta tem em média 5 a 7 dicas, ordenadas da primeira, a mais difícil, até a última, a mais fácil. Na sua vez, a criança deve solicitar a dica em sequência, por exemplo: quando se tira uma carta, a primeira criança pede a dica 1, a segunda criança a dica 2 (...) assim por diante, até alguém acertar ou não – e neste meio tempo os jogadores vão elaborando hipóteses sozinhos e com o grupo a partir dos saberes vivenciados.

 

A medida que perceberam as dificuldades do jogo, as crianças começaram a apresentar um certo desânimo, mas, conforme as dicas fáceis apareciam, acertavam as respostas e voltavam a se animar. Outras questões observadas foram que, durante o jogo, algumas lembravam da vivência e da experiência, mas não do nome específico, seja do país ou do jogo, então era acordado, coletivamente que: se fossem explicadas as regras e os exemplos acerca da resposta da carta, a criança marcava ponto.

Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades — as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência (KRENAK, 2019, p.16)

 

Os horizontes ampliados a partir da experiência de brincar, pesquisar e discutir acerca dos saberes de matriz africana, possibilitou com que se relacionassem com diversos saberes, como: a importância do Egito para os conhecimentos matemáticos, os 10 prêmios Nobel ganhos por diferentes países africanos, as curiosidades acerca da Cleópatra, os perigos da Mamba-Negra, dentre outros - não reproduzindo fetichismos ou folclorizando povos e culturas.

 

O jogo de perfil evidencia como as crianças apresentavam, em algumas cartas, maiores relações identitária do que em outras, revelando outras formas de mostrar que aprenderam um objeto-saber. Contudo, este projeto assim como as análises feitas neste artigo, ainda possuem limitações acerca do trabalho com as questões étnico-raciais, pois, seria preciso um acompanhamento mais contínuo deste processo e como sua vivência reverberou no cotidiano destas crianças ao longo de sua formação.

 

Portanto, o que se almejou traçar aqui é uma possibilidade de trabalhar com as relações étnico-raciais de modo a valorizar a história, a cultura, os saberes e as práticas, múltiplas e diversas, de matrizes africanas e afro-brasileiras, para que, adultos e crianças, questionem e tencionem os estereótipos fixos construídos pela modernidade racista e eurocentrada.

[1] Neste trabalho, focarei nas aulas de Educação Física, mas a pedagoga da turma também trabalhou pesquisas sobre a Origem do Humano e alguns contos africanos do livro “África recontada para crianças” por Avani Souza Silva. Portanto o projeto se desenvolveu interdisciplinarmente.

 

[2] No tabuleiro, a pessoa da vez escolhe um número de um a vinte. Quem possui a carta deverá falar a dica escolhida; se a pessoa souber, ganha a rodada e anda o número de dicas correspondente às dicas que sobraram no tabuleiro. Se não souber, passa a vez para o próximo, que escolhe outra dica, e assim sucessivamente.

 

[3] Estas sugestões de vídeos, que serão propostas para cada país, foi feito via Google Classroom.

África do Jeito que Nunca ViuÁFRICA DO SUL | 10 CURIOSIDADES QUE PRECISA CONHECER #1. Youtube, 2021 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8frBCSxRKVs> Acesso em: 13 de jul de 2022.

 

África do Jeito que Nunca ViuARGÉLIA | 10 CURIOSIDADES QUE PRECISA CONHECER #42. Youtube, 2021 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=f3D8IXpNp0E&t=61s>. Acesso em: 13 de jul de 2022.

 

África do Jeito que Nunca Viu. EGITO | 10 CURIOSIDADES QUE PRECISA CONHECER #2. Youtube, 2020 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=s0N93_5gn70>. Acesso em: 13 de jul de 2022. 

 

África do Jeito que Nunca ViuMOÇAMBIQUE | 10 CURIOSIDADES QUE PRECISA CONHECER #48. Youtube, 2021 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=2qEdO7tphVs> Acesso em: 13 de jul de 2022.  

 

BHABHA, Homi. Capitulo 3: “A outra questão. O estereotipo, a discriminação e o discurso do colonialismo”. In: O local da cultura. tradução de Myriam Avila, Eliane Livia reis, Glauce Gonçalves. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1998. 

 

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