Metadados do trabalho

Corpos E Visibilidades Nas Telas: Reflexões Em Tempos De Covid 19

Iara Cerqueira Linhares de Albuquerque

RESUMO: O objetivo deste artigo é pensarmos o quanto regras de normalização objetificam corpos e consequentemente como os discursos reproduzem normas sociais independentes do espaço-tempo. Para pensar o quanto a arte se faz necessária a vida pois apresenta com mais profundidade nossos modos de viver e consequentemente nos faz refletir sobre nossas escolhas e proposições foram escolhidas duas videodanças selecionadas para em um evento acadêmico. Ambas buscam romper com questões dominantes quer seja no âmbito pedagógico ou artístico, como por exemplo o estudo da arte na escola causando estranheza, separatismos como também o reconhecimento de si, e os corpos considerados descartáveis no cotidiano, por não estarem nos padrões constitutivos das convenções estabelecidas. Isto porque certos modos de operar em instituições e na vida não se encaixam em esquemas deterministas, assim nessas obras os autores buscam emergir outros estados corporais, tendo os processos artísticos como possibilidade de romper a visão patriarcal, heteronormativa e capitalista que nos assombram diariamente.

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Como citar este trabalho

ALBUQUERQUE, Iara Cerqueira Linhares de. Corpos e visibilidades nas telas: reflexões em tempos de COVID 19. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2022 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/409-corpos-e-visibilidades-nas-telas-reflex%C3%B5es-em-tempos-de-covid-19. Acesso em: 16 out. 2025.

Corpos e visibilidades nas telas: reflexões em tempos de COVID 19

Construindo conexões

 

 

(...)

Eu... A andorinha

contou que, sozinha,

canta, mas não faz verão.

Tem boi na linha.

É o mesmo trem, a mesma estação.

Resumindo:

-Até logo, eu vou indo.

Que é que estou fazendo aqui?

Quero outro jogo,

que este é fogo de engolir

(BELCHIOR)1


 


 

Estudos e produção de videodanças nesse período que ainda estamos vivendo de crise sanitária trazem testemunhos do quanto é possível materializar discussões sobre quem está sobrevivendo nesse momento apocalíptico e que de alguma forma faz-se necessário a análise de alguns fenômenos, assim como isso pode vir a contribuir ao campo da dança, consequentemente da vida. Nossa intenção é utilizar duas experiências de escritas crítica partilhadas no Laboratório de Crítica (Labcrítica) que aconteceram no encontro da ANDA – Associação Nacional de Pesquisadores em Dança, a saber, no VI Congresso Científico Nacional de Pesquisadores em Dança – Edição Virtual Ano 2020 e VI Congresso 2a. Edição Virtual 2021 a partir de uma seleção pessoal, como ponto de ignição para pensarmos materialidades dos corpos nas telas a partir de autores como Boaventura de Souza Santos, Ailton Krenak, Katz&Greiner, dentre outros. Essas duas experiências escolhidas e transformadas em texto a partir da apreciação dos vídeodanças foram: Quando ações fazem mais que mil palavras –TEMPO REI, Ó TEMPO REI, Ó TEMPO REI.. (2020), do videodança ‘Nós, professoras de Dança (2019)’2, de Josiane Franken Corrêa e “OCEAN”. Em CORPO, DANÇA e imagens corporeográficas (2021) do videodança OCEAN(2020)3 de Victor Isidoro. Ambos colaboram para pensar a respeito de temas pertinentes, pontuais e que atuam fortemente em nossos corpos em tempos de COVID 19.

Estamos interessados nas potencialidades que esses corpos em suas visibilidades são capazes de produzir a partir dos discursos nas telas e o que eles proõe para além disso, ou seja, apresentar e apontar o quanto estamos (re)vivendo enquanto sujeitos sendo atravessados por uma ordem social determinista, normalizadora, patriarcal, heteronormativa, racista, homofóbica e neoliberal. Pensar sobre esse estado atual e buscar pontos de fuga a partir de estudos e referenciais de corpo, nos faz criar conexões profundas com discussões já apresentadas anteriormente, mas por conta do momento que atravessamos ganha mais visibilidade e aparência, um modo de eficaz proceder na mídia digital. Buscar reconhecer essa ordem hegemônica com responsabilidade, nos coloca frente a frente com questões éticas e estéticas que convivemos diariamente (KATZ&GREINER, 2005) e o quanto essas discussões vem sendo empurrada para debaixo do tapete há séculos e agora se mostram necessários em nossas questões artísticos pedagógicas.

A partir de duas experiências feitas no Laboratório de Crítica (Labcrítica), torna-se possível tê-las como ponto de partida para pensarmos processos de criação em dança, contextos e singularidades. Nessa perspectiva é necessário estarmos atentos às transformações no qual estamos vivendo e quais tipos de consequências e desequilíbrios nos perturbam enquanto seres humanos. Parece ser fundamental estarmos conectados literalmente, numa prática que como atores sociais requer repetições e assim sermos capazes de produzir em vez de somente reproduzir pensamentos, discursos e ações, gerando deslocamentos e transformações sobre o modo de viver. Não podemos deixar de citar o quanto o hábito nos tornou maquínicos (GUATTARI, 2012), nos fazendo disponíveis a determinadas forças reprodutivas de ressentimentos, favores e revoltas, gerando angústias e neuroses.

Participamos do Laboratório de Crítica (Labcrítica) em 2020 e 2021, buscando partilhar práticas e teorias em estudos críticos de dança, dramaturgia e performance. Criado em 2012, trata-se de um projeto de pesquisa e extensão, vinculado aos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Dança do Departamento de Arte Corporal da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Uma parte interessante dessas experiências colaborativas além do trabalho coletivo de estudos de textos, vídeos e discussões em grupos, foi a possibilidade de podermos estar juntos em um processo intenso observando práticas artísticas diversas em suas singularidades, ampliando e detalhando todo e qualquer tipo de questão apresentada.

Assim, ao escrevermos um texto crítico imediatamente pensamos quais regimes de poder atuam sobre aqueles corpos em cena e adentramos a questões que podem ser não somente vinculadas as cenas apresentadas e visivelmente mostradas, mas marcas apagadas, banidas e até excluídas de nosso convívio. Esse espaço perceptivo foi ampliado a partir de nossas várias incursões nos materiais trazidos pelos pesquisadores do Labcrítica na figura do coordenador professor Sérgio Andrade(UFRJ).

Visivelmente inspirada pelas ações desse laboratório e nutrida intelectualmente pelos experimentos compartilhados, adentramos nas telas rompendo metaforimente a bidimensionalidade trazida pela crise sanitária, e no consumo das mídias digitais trouxemos duas experiências a seguir para continuar nos alimentando de possibilidades e tornar visíveis falas e corpos sem abertura para outros e outras lugares. De partida entendo o Labcrítica como um espaço, uma ação política/artística que potencializa estados de corpos insistentes em insubmissão e assujeitamentos oportunistas como também politicamente corretos.

1 Fonte : https://www.letras.mus.br/belchior/344911/ Acesso: 10.07.2022

Experiência 1: Quando ações fazem mais que mil palavras –TEMPO REI, Ó TEMPO REI, Ó TEMPO REI...

No dia 18 de setembro de 2020, se encerrou a mostra artística virtual do VI Congresso Científico Nacional de Pesquisadores em Dança – ANDA 2020. Nesse dia passamos uma hora, vinte minutos e cinquenta e seis segundos de olho na tela, sendo que antes já estávamos outras tantas horas de atividades do evento (ufa!!). Fui dormir com os ecos da seguinte fala: “para mim, é o que vale ser educador”, uma frase que finaliza o documentário, ‘Nós, professoras de Dança (2019)’, dirigido por Josiane Franken Corrêa, último obra a ser apresentada naquela noite.

De fato, uma longa jornada de trocas, quedas de conexão e aprendizagem, um momento que já estávamos vivendo e se materializou em ação, um congresso de pesquisadores de dança online. O título do evento QUAIS DANÇAS ESTÃO POR-VIR? TRÂNSITOS, POÉTICAS E POLÍTICAS DO CORPO, sugere que façamos algo, pensemos juntos nesse espaço passível de transformação. Imediatamente nos transportamos ao momento atual com mortes diárias, confinamento, luto que estamos atravessando (que alguns infelizmente negam), que somos artistas além de docentes e o quanto precisamos continuar nossas ações, especulando formas de agir. Mesmo nas telas há um tempo, nosso corpo parece continuar em busca a acompanhar tudo, habituando-se cognitivamente a esse jeito de viver, sentados frente às telas.

Enquanto participante do Labcrítica, temos a possibilidade de escolhermos qual ou quais espetáculos iremos nos debruçar e fazer nosso experimento crítico. A noite foi de belas montagens, porém foi o documentário de Josiane Franken Corrêa, único naquela noite dedicado a pensar o profissional de dança, que nos mobilizou. Debruçamos sobre aquelas professoras e imagens, repetindo sobreo que vale ser educador’ como uma possibilidade de escavarmos e retomarmos aos momentos que partilhamos enquanto professora da rede municipal no Alto de Santa Cruz. De partida, Salvador é distante geograficamente de Pelotas, onde foi feito o documentário, porém as questões apresentadas nas falas das professoras gaúchas Ana Paula Reis, Tainá Albuquerque, Roberta Campos, Taís Prestes e Jaciara Jorge nos possibilitaram a esse reencontro com o passado, ou não seria encontro (?), com a Escola Artur de Salles, na qual lecionamos de 2007 a 2013. Talvez esse texto seja aparentemente sentimental, mas seria incompleto e errado se não fosse escrito a partir desse olhar.

Nós, professoras de dança’ nos arrebatou naquela noite. Esse nós, no qual me incluo, entendo como um afeto, produzindo impressões, abraços, lembranças e expectativas em nosso corpo e agora em nossa casa, um lugar político, habitável, um espaço, limite, assim como a realidade que vivemos e atuamos como professora. Por afeto, compreendemos as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é diminuída ou aumentada como nos ensinou Espinosa (JAQUET, 2011). Neste sentido, nos sentimos atravessadas por momentos alegres, ao encontrar com esse documentário, aumentando nossa capacidade de reflexão. Ao assistirmos novamente a obra (precisamos retornar ao registro da mostra na semana seguinte por desejo de nos demorar mais um pouco com aquelas imagens e depoimentos), vejo quão fortes e insistentes somos nós artistas da dança e docentes. As professoras em cena/tela ativam sensações com as falas pessoais, nas emoções que desabafam, nas ações e desafios diários para suprimir um mundo no qual poderes e ordem sociais desagradáveis insistem em nos aterrorizar, tentando nos tornar ainda mais submissos.

Arrebatada pelo documentário retornamos à Escola Municipal Artur de Salles para imaginar nosso espaço de aula e assim convocarmos outros pensamentos e materializarmos o chão da escola que ensinamos durante 6 anos. Foram muitas ações, projetos, discussões, embates, reformulações, conversas e realizações, hoje, dizemos juntas: Ocupamos

 

[Olhar para trás após uma longa caminhada

pode fazer perder a noção da distância

que percorremos, mas se nos detivermos

em nossa imagem, quando a iniciamos

e ao término, certamente nos lembraremos

o quanto nos custou chegar até o ponto final,

e hoje temos a impressão de que tudo

começou ontem. Não somos os mesmos,

mas sabemos mais uns dos outros.

E é por esse motivo que dizer adeus se torna

complicado! Digamos então que nada se

perderá.

Pelo menos dentro da gente...]1

 

Vemos no depoimento tranquilo da professora Tainá, sentada e falando pausadamente de suas ações, sua prática em sala de aula. Uma sala toda enfeitada e colorida, dando voz aos alunos nos desenhos colados na parede, tendo uma frase que se destaca: ‘O poder do crespo e o empoderamento’. Com essa imagem ela descreve enquanto mídia de si mesma seu dia a dia, sua rotina, sua maneira de trabalhar e seu propósito enquanto professora, ou seja, um desdobrar-se em si mesma fazendo disso sua luta diária. Uma ação focada e corpada no seu cotidiano profissional.

O desabafo de Tainá nos convoca a continuarmos juntas(os) quando declara que trabalha mesmo com salários atrasados, na precariedade. Infelizmente, isso não é novidade. Os poderes que querem nos dominar feito escravos, seguem diminuindo nossa potência de operar a todo custo. No documentário, a voz de Tainá luta pela qualidade da educação, quando apresenta seu reconhecimento pela comunidade aonde trabalha.

Declarações, experimentos, experiências que tomam corpo e fazem da escola um lugar de tornar-ser, transformar-ser, poetizar-ser, ou simplesmente estar, denotam resistência que interseccionam particularidades, pensamentos, sonhos, desejos, imagens em mistura de “vontades” de sensações e de mudanças. A frase novamente aparece em nosso corpo: para mim, é o que vale ser educador. Ela novamente se materializa na voz da professora Ana Paula sobre o desafio inicial de uma prática docente, na continuação com o pouco entendimento sobre o ensino de dança pela equipe gestora da escola, minimizando a importância de estudarmos dança nesse contexto. Já Taís, outra professora questionadora, reflete o tempo todo sobre seu fazer prático, se cobrando constantemente, (e quem de nós, professoras de dança, não faz isso diariamente?). Ela ainda sinaliza que, ao chegar a escola para trabalhar, se interrogou sobre o ser/fazer professora e nesse percurso entendeu que nada pode ser feito sem acordos, sem diálogos, principalmente na relação entre ela e os alunos.

Em outro momento, o “desconhecido” e o “não visto”, além da escuta tomam a cena. Os espaços a serem adentrados, que tem uma rotina a ser seguida e que normalizam o lugar “escola” tomam força e fazem a voz da professora Jaciara reagir. Ela nos conta emocionada sua experiência na EJA (Educação de Jovens e Adultos) com alunos de idade diversa, na maioria adultos, que vêem no estudo uma possibilidade de inserção no mercado de trabalho como professor(a) ou em outras áreas. Com ela, pensamos em Paulo Freire - devemos lutar pelos nossos direitos e com o objetivo de viver e fazer os outros viverem dignamente. Somos surpreendida ao escutar seu relato sobre alguns alunos após uma rotina diária de trabalho na rua.

Aqueles que antes achavam arte desnecessária, agora, depois da dedicação da professora Jaciara reconhecem arte em todos os lugares com a Pietá de Michelangelo, ou como eles falaram e nos conta a professora “a dor de uma mãe segurando seu filho”, depois de identificarem alguma semelhança com uma cena de novela na televisão, ela se emociona, [nós também].

Já a professora Roberta comenta sobre os desafios de ensinar é estar aberta a aprender, um exercício contante e necessário, por isso ela foi fazer sua pesquisa em Salvador, buscando outros movimentos de dança, além de encontros com sua ancestralidade. Com Roberta, vemos os frutos de investigação contínua no corpo de quem quer aprender para ensinar dança e tem na curiosidade e na pesquisa sua fonte primeira e, assim a partir de um olhar diferenciado, construído dessa experiência, tenta romper com a massificação do ensino.

Observamos nas vozes que o momento é esse, buscar outros caminhos, ocupar, agir, estar em conexão, ser/estar com/no mundo. Imaginamos o que Guimarães Rosa (1962) nos proporciona e traz de forma metafórica, em sobre, a necessidade de viver as águas, ora calmas, ora violentas de um rio, e assim se chegar ao lugar almejado. Sigamos.

Assistindo a ‘Nós, professoras de dança’ nos sentimos absolutamente contemplada por todas as falas. Observo e percebo que a prática docente nos faz aprender a lidar com a vida, nos amolece (em alguns momentos percebemos a voz embargada nos depoimentos). Agora mais do que nunca, neste momento que atravessamos entre medos e tensão, nos perguntamos sobre esse ajuste constante, sobre o que está por vir: afinal, quais danças estão por vir? Talvez a que nos faça ensinar/aprender/escutar/enfrentar/modificar e viver, estagnar jamais. O professor é esse semeador, aquele que planta, que colhe e que alimenta o belo em cada aluno, quer seja no EJA, nos ensinos fundamental ou médio e/ou na universidade, em trocas constantes entre professor e aluno, aluno e professor. E sobre quais danças estão por vir, nós talvez possamos responder: já estão aqui, no nosso corpo, nas casas, mesmo sem aquele chão plenamente “adequado”, por vezes até sem teto e, ainda, nas telas e/ou nos espaços abertos, nas ruas, nos jardins e campos.

Tempo Rei (1984)2, música de Gilberto Gil que faz parte da trilha sonora do documentário, performa com os depoimentos, interage com os corpos das professoras e em alguns momentos conosco diante da tela. Gil canta, encanta e nos provoca: “(...) tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei transformai as velhas formas do viver...” e nessa tonalidade os depoimentos se organizam como tentativa de aproximação aos corpos dos alunos e na continuação ao reconhecimento de um processo, mais do que o produto final. Ou seja, não é somente ensinar, mas acompanhar e participar com cada aluno sobre os temas, exercitando o ensino que se atualiza constantemente, em processo. A arte nos aproxima, enquanto seres humanos de questões que nos atravessam cotidianamente e como lidar e falar de tantas outras realidades? Seguiremos nos perguntando.

Por ora, precisamos passar a palavra/ocupação a Amanda Gurgel, rememorando seu depoimento durante audiência pública sobre educação na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, em maio de 2011. Na época, sua imagem foi amplamente difundida nas redes sociais e como tudo na mídia digital, subitamente desapareceu.

 

(….) Diga-se de passagem, nós não temos recurso para nos alimentar diariamente fora de casa, não temos pra isso. São muitas questões mais complexas, questões muito complexas que poderiam ser colocadas aqui, mas infelizmente o tempo é curto e eu gostaria de solicitar isso em nome dos meus colegas que comem o cuscuz alegado, em nome dos meus colegas que pegam três ônibus pra chegarem ao seu local de trabalho, em nome de Jéssica que está sem assistir aula nesse momento, mas que fica sem assistir aula por muitos outros motivos: por falta de professor, por falta de merenda… É isso que eu quero dizer (GURGEL, 2011).

 

Rememoramos o discurso dessa professora para romper com o modelo espectral de comunicação (BASTOS, 2010), que se caracteriza por picos de transmissão e desaparecimento nas redes digitais. É preciso relembrar a todos e todas dessa colocação importante de tantos anos atrás, que agora nos reporta imediatamente a esse documentário. As palavras de Amanda Gurgel ecoaram (e continuam ecoando) em nós ao longo de todo documentário de Josiane Franken Corrêa.

Enquanto artistas e docentes, acreditamos que as práticas de ensino/educação se tornam efetivas quando se fazem afetivas, transversais e dialógicas. Essas práticas são potentes somente quando buscam romper com toda tentativa de transformar as relações entre professoras/es e alunas/os em meros atores de um processo de docilização que ambienta toda a estrutura disciplinar de uma escola formal. Nós também, assim com Amanda, comemos muito cuscuz alegado e, assim como todas as professoras do documentário ‘Nós, professoras de dança’ sabemos o quanto precisamos ser/estar nessas escolas. Faz muita diferença, diante das regras de objetificação e normalização de quem ensina e faz arte.

 

Experiência 2: “OCEAN”. Em CORPO, DANÇA e imagens corporeográficas

 

Inicio o texto aproximando memórias afetivas ao revisitar experiências em dança, publicações e práticas artísticas que nos fazem também recordar o início da nossa gravidez, atravessadas com as muitas imagens de OCEAN como um corpo/feto que viria ao mundo a partir de um olhar bidimensional da ultrassonografia e as várias impressões desse corpo que estava por vir. Trazer algumas memórias dessa época nos faz acessar questões referentes ao momento atual, para reconhecer e seguir em frente ou mesmo rever quais configurações que estão em processo no campo da dança nesse momento, principalmente nas artes da cena.

Não podemos deixar de lembrar o quanto pensar sobre esses caminhos percorridos nos fazem retornar às práticas profissionais e projetos de pesquisa artística. Acredito que esse caminho proposto nos faz reconfigurar outras trilhas, outros olhares e quais tessituras estão sendo processadas nesse momento que debruçamos a olhar um processo a ser apresentado.

No dia 03 de junho de 2021, foi apresentado nas Trilhas Digitais3 o videodança OCEAN que integra o projeto de iniciação científica: corpo, movimento, visibilidade: um processo híbrido de criação em dança contemporânea CNPq/PIBIC Unicamp, sob a orientação da professora Dra. Juliana Moraes e com concepção, edição e vídeo de Victor Isidoro e captação de imagem de Gabriel Pestana. Primeiramente o rosto/ruído parece estar sendo apresentado propositadamente como prólogo, ou um grande oceano por vir (metáfora que instiga a pensar uma aproximação corpo/mar em fluxo contínuo e geradores de movimento/mundo). Se formos pensar na imensidão de um oceano, podemos olhar as cenas apresentadas e fazer uma relação com uma proposta de dançar para suspender o mar, ou como sugere Ailton Krenak em seu livro, Ideias para Adiar o fim do mundo (2019) dancemos como uma experiência mágica de suspender o céu, ou, ampliar nossa perspectiva existencial mantendo-se fiel às nossas visões e poéticas de existência, como um saber profético para caminhar com respeito ao diverso e nos mantermos vivos.

A partir desse ponto de vista nos aproximamos de OCEAN para pensar o quanto essas imagens nos faz compreender nossas subjetividades a partir de uma interdependência corpo e mente, ou como nos tornamos sujeitos que somos em nossas ações, nas relações com os outros, nas nossas escolhas e como podemos criar um espaço capaz de mergulhar e nadar livremente. O espaço (i)limitado que a cena nos apresenta, com o corpo aparecendo em diversos planos gera uma plasticidade que parece descrever o momento atual que estamos compulsoriamente confinados e dominados pelo medo. A cor vermelha e os sons promovem uma cinestesia que mesmo nesse lugar restrito, limitado e bidimensional somos capazes de dançar, inventar e compartilhar afetos, receios e atrair para um dançar coletivo, pois foi essa sensação que nos capturou no momento que assistimos essa obra, nossa sensação foi, vamos nos unir (sic). Impossível olhar as tonalidades expostas e não falar sobre desigualdade, egoísmo, racismo, e o negacionismo nesse momento de crise sanitária e que se faz revelar em cenas de desabafos, ações e muita resistência (respiro).

Nas imagens apresentadas localizamos esses e outros lugares e suas condições adversas, de moradia, saúde e educação que resvala num sentimento de impotência, pois atualmente é impossível quantificar o número de pessoas ocupantes das ruas expostas a essa precariedade. Durante esse percurso o encaminhamento das cenas traduz um efeito que nos leva a outros espaços, fiquei pensando: O que isso pode vir a gerar? Qual relação existe no texto que emerge daquela ação corpórea? O que fez meu coração acelerar? Não proponho respostas, podemos pensar juntos.

Se formos levar pela imaginação, podemos pensar no ambiente imerso em vida, que o plástico pode ser roupa e ao mesmo tempo asas, buscando nos deslocar de um espaço a outro, de um universo a outro, assim como para uma outra “realidade” por vir (materialidades infinitas). Podemos também pensar em nadadeiras, afinal a tradução do título da performance nos coloca nesse mar e assim podermos em vez de afundar, nadar e boiar. Saliento que as imagens apresentadas ao interferir no meu estado cinestésico de corpo/escrita, pode variar em outros corpos, cada qual com suas diversidades de experiências, contextos, preferências e capacidades de articulação sensorial. Enquanto espaço de escrita, no nosso caso elas potencializam ao desafio de refletir e interpretar sobre o que está sendo apresentado correlacionando a essa atual situação.

Durante a apreciação, um subtexto se fez presente. Momentos de instabilidades, incertezas e motivos que nos deixaram/deixam em alguns momentos incertos para onde devemos seguir (pausa). A presença nas telas, o distanciamento físico, as mortes, os cenários confusos, e os efeitos que nos causaram e causam, não são suficientes para desistirmos (pausa). Na continuação as cenas se fazem potência para continuar, inicialmente com dúvidas sobre esse processo de vida que quase nos destruiu, mas isso foi se transformando e produzindo bons encontros, inclusive testando nossa capacidade de adaptação. Reflitamos sobre experiências passadas e logo pensaremos, ao aumentarmos nossas ações aqui e acolá, partilhando, inventando, aproximando, tensionando e tecendo afetos/encontros nesse ambiente, podemos ver e sentir a importância de um agir consciente e coletivo nos impelindo a desejar novos atravessamentos e outros modos de existir ou re (existir).

Logo após, aparece uma imagem que me referencia a um empacotamento. Pouco depois o corpo tonalizado de vermelho, lembra-nos do encharcamento de informações diárias que aparece na TV e em redes sociais e o quanto nós “vemos” gente sendo empacotada aos montes e diariamente nas esquinas da vida. São multidão de corpos que se aglomeram nas UPAS e hospitais diante de um número que notifica somente alguns corpos. Se pararmos para pensar, números existem, porém se formos nos guiar pelo que está sendo dimensionado, estaremos de fato cometendo um terrível erro, face às desigualdades que atravessam nosso país.

Quando as cores começam a mudar, o tonalizar da cena, nos faz refletir em relação à complexidade de uma investigação que compõem esse fazer artístico e seus entrelaçamentos de vida-morte-vida. Retornamos a primeira imagem, e lembramos do olhar daquele corpo nos direcionando a pensar questões relativas a corpos não binários, geralmente sacrificados por serem minoritários. Nossa referência é Madonna, mesmo existindo outras referências mais atuais, sua capacidade inventiva e articulada politicamente nos remete a essa cena, para que possamos pensar determinadas normatividades insistentes e sua busca em romper estereótipos estigmatizados e cheios de poeira.

O artista na tela maquiado de azul (pode ser como ele olha o mar, a vida, as pessoas ou como nós vemos o mar, e ele nos atravessa) parece querer relacionar seu cotidiano com cores “diversas” ou talvez um recurso para pensar questões de gênero e sexualidade, pois o figurino que veste e reveste também em alguns momentos, nos remete a um(a) bailarino(a) em uma caixinha de música, uma discussão que avança quando pensamos o que Boaventura de Souza Santos (2019) cita quando a continuidade da dominação segrega um senso comum capitalista, racista e sexista que serve as forças de direita, até porque é reproduzido incessantemente por grande parte da opinião pública e pelas redes sociais.

Trazer a questão de gênero para essa discussão se faz necessário e pontual. A imagem disforme com o plástico que parece sufocar e o corpo intensifica um estado de aprisionamento e nos remete o quanto precisamos nos adentrar nessas discussões e partilhar, apoiar e intensificar uma luta em comum. Pensando em quantas mortes diárias somos notificados, pois o vermelho que aparece recorrente também lembra o sangue desses corpos sacrificados e as carnes penduradas nos açougues, envolvida em plástico filme, prontas para serem vendidos nos mercados a qualquer preço. Não é qualquer carne, mas uma carne que se apresenta colorida, diversa, transvestida, maquiada. O que isso pode significar? Dissidência. Todas as materialidades ali geradas nos convocam a tencionar um sentimento de cumplicidade, para que vidas geradas possam continuar seguindo, existindo, reivindicando. Inicialmente com a cor vermelha observo e intersecciono com uma placenta que gera vida, continuidade, uma convocação em conjunto para viver, na luta contra a morte que nos circunda na atualidade. Trazemos Madonna novamente para pensar sobre essas políticas de vida ao dar sentido nas imagens que ela nos apresenta (entendo que algumas pessoas podem divergir sobre a subversividade ou não em relação as suas imagens), como provocação, ícone da cultura, ou pop. Não entendemos sua imagem distante de uma crítica às reflexões de vida. Se nos aproximarmos de sua história pessoal, perceberemos que seu caminho durante um período foi apresentando temas como sexualidade e continua presente em todos os seus atuais momentos artísticos, mesmo sendo apreciada como produto, “rainha pop” ou da linha da espetacularização. E com isso, retornamos a outro momento, quando os giros se intensificam. O que emerge enquanto espectadora e como crítica é uma sensação de cansaço com tantos discursos de aparência e pouco engajamento de si e do outro.

Um corpo que dança produz também emoções (ficamos abafadas em alguns momentos) a partir das imagens codificadas, afinal o plástico mesmo já sendo usado em produções artísticas nos faz pensar em insubmissão dos corpos, mais que cair e tremer, uma ode a reflexão para o reexistir a partir de um desejo coletivo, sendo unos. A possibilidade desse espaço artístico como produção de afetos é um convite a se pensar politicamente e decidir sobre o que queremos para nós, afinal estamos todos vivendo juntos, mais juntos do que nunca, mesmo estando separados.

 

1 ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. 19 ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.26

 

2 Fonte: https://www.letras.mus.br/gilberto-gil/46247/ Acesso em 10.07.2022.

 

3 Trilhas digitais faz parte do 6. Congresso ANDA – 2ª. Edição Virtual . Uma programação de pesquisas e experimentos artísticos de dança em mídias digitais, idealizado e sob a curadoria de Elke Siedler e Sérgio Andrade. Nesse ano foram apresentados 30 trabalhos, organizados em cinco trilhas compostas de danças áudio visuais, documentários, live-performances e plataformas digitais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

 

Como descrevemos no início do texto, a proposta quando apresentamos os exemplos experienciados em um laboratório de crítica não é responder questões, mas continuar nos alimentando desses atravessamentos nos dias atuais e com isto tecer algumas considerações que possam nos fazer refletir ou quem sabe, potencializar avanços em relação a tornar visíveis modos de operar com responsabilidade, como nos fora apresentado nas videodanças exemplificadas.

Avançando sobre as transformações ocorridas durante esse processo de participação no Labcrítica, observamos o quanto a arte em tempos de crise sanitária possibilita uma dimensão estética capaz de produzir inúmeras possibilidades, inclusive explicitando questões como já fora dito anteriormente – colocadas debaixo do tapete, como a homofobia, a desigualdade social, a heteronormatividade, a dissidência, dentre outros. As videodanças aqui ilustradas apresentam de fato o modo como vivemos ou já vivíamos nessa atual sociedade plataformizada ou algoritmizada, agora nesse estágio de pós COVID 19 intensificando determinadas práticas reflexivas que extrapolam contornos fixos e intensificam tessituras e materialidades em movimento, na tentativa de romper com dualismos e discriminações disseminados pelo pensamento daqueles que vivem nesse ambiente, na ilusão de liberdade em um espaço praticamente ilimitado.

Ao apresentar estados do corpo constituídos a partir de atravessamentos dos dispositivos de poder e dos fluxos que se organizam em pensamento, parece ser possível refletir sobre quais questões estamos de fato aptos a escolher, produzir e colocar no mundo e nesse contexto a dança enquanto prática artística e pedagógica, se faz importante e fundamental para criar conexões e modos de ser/estar no mundo.

 

Referências


 

BASTOS, M.T.A. Espectral: sentido e comunicação digital. 2010. TESE (Doutorado) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

GUATTARI, Félix. As três ecologias. 21 ed. - Campinas, SP: Papirus, 2012.

GURGEL, Amanda. Discurso escrito. Disponível em: https://cantinhodaweb.com/variedades/discurso-professora-amanda-gurgel-por-escrito/. Acesso em 02 julho 2022.

JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.

KATZ, Helena; GREINER, Christine. Por uma teoria do corpomídia. In: O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das letras, 2019.

ROSA, J. G. Primeiras estórias, 37 ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1962.

SOUZA SANTOS, Boaventura. Boaventura: Descolonizar o saber e o poder. 2019.Acesso em 21.06.2022 Link: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/descolonizar-o-saber-e-o-poder/

 

 

 

 

 


 


 

 

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