Introdução
Este texto refere-se a resultados e reflexões produzidas a partir da pesquisa Jovens conectados e a educação conduzida durante os anos de 2020 e 2021 no contexto da pandemia da Covid 19 que trouxe angulações singulares a um trabalho que havia sido programado para se desenvolver antes de ser atravessado por esse acontecimento inesperado.
Anteriormente à pandemia eram constantes as referências ao fato de que as expectativas juvenis quanto ao uso de recursos digitais nas escolas não vinham sendo atendidas por uma forma de ensino que se encontrava em descompasso com o uso das inovações tecnológicas tão presentes no dia a dia juvenil. De fato, a onipresença da tecnologia na vida dos jovens e a ubiquidade da conectividade que vivenciam são centrais como elementos definidores dos modos de ser juvenis na contemporaneidade. Cada vez mais, em rede, no âmbito da cultura digital e midiática, jovens encontram os seus próprios modos de se expressar e de se relacionar. Sendo assim, difícil seria ignorar essa condição ao se analisar os modelos educacionais e o funcionamento dos sistemas de ensino vigentes.
Já era perceptível que as escolas brasileiras, especialmente as privadas, não ficariam imunes às ofertas das empresas de tecnologia para a aquisição de produtos e equipamentos ainda que os benefícios pedagógicos reais apresentados ainda pudessem ser considerados tímidos em relação às promessas anunciadas. Equipamentos como lousas eletrônicas, data-shows, tablets e computadores já vinham sendo introduzidos nas escolas nem sempre a partir de uma programação de uso a favor de um efetivo projeto pedagógico.
Esse movimento assumiu novas proporções com as exigências colocadas pelo fechamento das escolas como medida de isolamento social durante a pandemia do coronavírus. O uso intensivo de plataformas para aulas on-line ao vivo, gratuitas ou não – Skype, Google Meet, Zoom, Microsoft Teams – foi a principal novidade trazida pela pandemia complementadas às vezes com videoaulas gravadas e até mesmo com a utilização de aplicativos de mensagem. A transformação digital de muitas escolas foi acelerada com a compra de equipamentos e sistemas e, quando os recursos econômicos não foram suficientes para isso, ao menos houve por parte dos professores a utilização de aplicativos e meios digitais para dar continuidade às atividades escolares.
É, pois, justo considerar que o advento da pandemia acelerou um processo de intensificação do uso das tecnologias digitais em âmbito escolar ao mesmo tempo em que inaugurou uma modalidade de ensino totalmente remoto que sequer havia sido cogitado para a educação básica. Nesse período foram colocados em evidência processos sociais preexistentes e trazidos outros emergentes, ainda a serem completamente equacionados. Os especialistas consideram que o futuro carregará essa experiência em um formato híbrido no qual as atividades presenciais serão combinadas com outras on-line. Em um cenário de futuro pós-pandêmico devem surgir novas ofertas tecnológicas a serem ainda delineadas, no qual se sobressaem as plataformas adaptativas. Esse tipo de recurso que se utiliza de inteligência artificial para oferecer conteúdo e promover desafios personalizados para os estudantes já vinham sendo usadas antes do período pandêmico e continuam sendo a aposta mais presente em termos de tecnologias digitais para escolas de ensino básico. Sua aceitação pelas escolas, em especial aquelas que valorizam novas metodologias de ensino e aprendizagem, têm sido visível face a percepção das efetivas vantagens pedagógicas que parecem oferecer. Por outro lado, atravessar as turbulências ocorridas com a pandemia impactou a saúde econômica das escolas o que pode ser um obstáculo considerável para investimentos em tecnologia.
Com tudo isso, investigar os usos e práticas dos recursos digitais dos estudantes e seus professores assume uma relevância e uma complexidade manifestados por este trabalho devendo se firmar como um objeto de pesquisa a ser revisitado muitas vezes ainda por profissionais de diferentes áreas do conhecimento.
Objetivos e marcos teóricos
O objetivo da pesquisa realizada foi analisar a relação de ensino-aprendizagem mediada por recursos digitais a partir da visão de professores e alunos jovens. Pretendia-se, com isso, refletir sobre as práticas de estudo e docência que permeiam os processos de ensino e aprendizagem daqueles que nasceram em um mundo conectado. Procurou-se produzir um distanciamento das já surradas discussões sobre as distâncias geracionais a opor alunos e professores, vistos como desiguais na familiaridade com o uso de ferramentas digitais e buscar construir um grupo mais homogêneo para observar de que maneira essas tecnologias estavam entrando nos ambientes escolares, de forma institucionalizada, ou não, impactando nas formas de ensinar e aprender. Reunir alunos e professores jovens na mesma pesquisa trazia embutida a pretensão de verificar se havia pontos em comum nas suas formas de se relacionar com o uso das tecnologias para ensinar e aprender. Ao trazer os reais usuários e possíveis beneficiários do uso das tecnologias digitais nas escolas ressaltamos a importância da escuta desses agentes, o que nem sempre é considerado para o desenvolvimento de produtos pelas indústrias de tecnologia ou pelos responsáveis pelas políticas educacionais.
Isso nos encaminhou para questões relativas ao próprio conceito de juventude, e de adolescência, de forma que fosse possível estabelecer de que jovens se estaria tratando e como eles poderiam ser delimitados nas suas inserções geracionais. Já de início é preciso considerar que obedecer apenas aos limites cronológicos nos estudos sobre juventudes e adolescências, considerar essas fases da vida humana estritamente como faixas etárias, não dá conta da complexidade embutida nesses conceitos. As segmentações por idade de acordo com aspectos biológicos constituem apenas uma das referências a serem consideradas.
Os marcos etários institucionais são em certa medida arbitrários, apesar de remeterem a aspectos biológicos, o que é facilmente demonstrado pelas diferentes classificações encontradas. No Brasil, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por exemplo, são considerados adolescentes aqueles que se situem dos 12 aos 18 anos de idade. Em condições ideais os estudantes brasileiros alcançam o início das séries finais do Ensino Fundamental com 11 anos e concluem o Ensino Médio com 17 anos. Os alunos entrevistados estariam nessa faixa de idade. Pelo Estatuto da Juventude de 2013 são considerados jovens os sujeitos com idade compreendida entre os 15 e os 29 anos. Com isso os alunos e quase todos os professores entrevistados seriam considerados jovens. É, portanto, nesse intervalo de idades aproximadas entre a adolescência e a juventude que se encontram os protagonistas desta pesquisa.
Para o desenvolvimento do trabalho partimos de uma visão que problematiza o conceito de juventude e desconfia das formulações essencialistas. Entendemos a juventude como condição social, relacional e situada em contextos histórico-culturais determinados. As experiências juvenis são diversas e marcadas pela pluralidade. Não há como se referir ao “jovem” e ao “adolescente” como se pertencessem a um todo homogêneo. Há complexidades envolvidas no âmbito material e simbólico que se ligam aos processos constituintes das subjetividades juvenis a partir de contextos históricos e culturais específicos. Como resultado disso, já se tornou corrente considerar a existência de juventudes e adolescências no plural, abandonando-se formulações essencialistas e redutoras.
O esforço de ultrapassar a visão centrada em critérios sociodemográficos e incluir perspectivas sociohistóricas no estudo das juventudes põe em relevo a abordagem geracional que considera a importância do compartilhamento de experiências coletivas vividas por um grupo de acordo com condições sociohistóricas e culturais situadas. A isso deve se agregar a intenção de ruptura com fórmulas anteriores que se mostram insuficientes para os problemas compartilhados. Por fim, as implicações de tudo isso em processos de subjetivação e a reflexividade como o caráter de reconhecimento e de autoreconhecimento de que se pertence a um grupo geracional distinto.
Para os propósitos deste trabalho é importante considerarmos um outro possível elemento sugerido por Howard Gardner (GARDNER 2013) para o estabelecimento de diferenças geracionais. Esse conhecido psícólogo, responsável pelo alargamento do entendimento das habilidades humanas com seu conceito de inteligências múltiplas vai além das definições biológicas ou sociológicas incluindo as tecnologias utilizadas como elementos para a definição das gerações. A emergência de novas tecnologias ou mesmo a alteração nas formas de uso das já existentes, seriam também marcadores de gerações e seriam capazes de produzir alterações na percepção de seus integrantes. Detecta uma diminuição no tempo de duração das gerações baseadas nas tecnologias em relação aos critérios utilizados em outras abordagens, podendo uma mesma década abrigar mais do que uma.
Partindo, assim, de uma definição de geração marcada pela tecnologia dominante Gardner caracterizou os jovens atuais de App Generation. Ele enfatiza nessa classificação que a disponibilidade, a proliferação e o poder dos aplicativos estariam marcando a percepção dos jovens. O uso de dispositivos móveis permitindo que estejam permanentemente conectados e os aplicativos, de uso mais célere do que os web sites, estariam produzindo a expectativa do imediatismo, do “just in time”. Embora esse estudo já tenha quase uma década de publicação, suas ideias ainda são bastante instigantes em especial a inserção das materialidades tecnológicas como item importante para a definição de clivagens geracionais.
Ainda no que diz respeito ao relevo dado às diferenças geracionais no tocante ao uso das tecnologias digitais é corrente conferir aos jovens uma desenvoltura maior em relação aos mais velhos o que se confirma apenas em parte, pois tem sido cada vez mais frequente o uso da internet e de aplicativos em celular até por idosos. Ainda assim, o conceito de cultura prefigurativa de Margareth Mead nos convida a uma reflexão. Como nos conta Carles Feixa (2018), essa antropóloga norte americana escrevendo no pós-68 identifica uma condição específica na relação intergeracional de então. Se nas sociedades tradicionais a autoridade vinha do passado (pósfigurativa) e os jovens aprendiam com os adultos, naquele momento, as redes de comunicação de base eletrônica estariam oferecendo experiências aos jovens que os mais velhos não teriam acesso. Nessa situação os saberes dos adultos teriam pouco a oferecer aos mais jovens formando-se uma cultura prefigurativa na qual estes últimos assumiriam o protagonismo da construção do futuro.
Esse raciocínio se liga a uma percepção bastante frequente hoje em dia sobre o fato de que a familiaridade dos jovens, e até mesmo das crianças, com as inovações tecnológicas estarem invertendo o vetor da aprendizagem. Se antes os jovens aprendiam com os mais velhos, hoje seriam eles a serem ensinados pelas gerações mais novas quanto ao uso de recursos digitais. A possível mudança rápida de geração sugerida por Gardner ensejou que procurássemos observar a existência de fenômeno parecido em idades até certo ponto próximas como era o caso dos professores e alunos entrevistados.
Embora reconhecendo a diversidade das juventudes é preciso considerar a existência de uma rede de conexões globais que influem nos comportamentos juvenis. O uso intenso das tecnologias digitais e da conectividade se constituem novas formas de “perceber, ver, ouvir, ler, aprender” o que traz “novas linguagens, novos modos de expressão, de textualidades e escrituras” (LOPES, 2018). Esse novo sensorium, na acepção de Walter Benjamim, se traduz em experiências culturais, formas de escrita, percepção do mundo e representações de ideias singulares. Essas ideias convergem com a relevância conferida às mediações tecnológicas no âmbito dos processos comunicativos por Jesús-Martín Barbero na forma das “tecnicidades” (BARBERO, 1997).
Com tudo isso, importa também a observação da materialidade dos dispositivos e das ferramentas digitais utilizadas. Para tanto são muito úteis as reflexões provocadas pela teoria do ator-rede oferecida por Bruno Latour que inclui não-humanos entre aqueles que na qualidade de atores o são por produzirem com sua presença interferências nas associações móveis, fluidas e dinâmicas que identifica nos coletivos sociais. Para Latour “as coisas também agem”, são dotadas de “agência” elas podem “autorizar, permitir, proporcionar, encorajar, sugerir, influenciar, bloquear, dificultar” e na sua proposta de “seguir os atores” a ideia é “segui-los em seu entrelaçamento com as coisas”. (LATOUR, 2012, p.14)
Ainda que atentos a processos gerais que atingem as juventudes é preciso retornar ao que se pode observar de singular. Appadurai ( 2004) chama a atenção para o relevo da dinâmica entre os fluxos locais e globais quando analisa o comportamento da cultura no curso do processo de globalização dos fins do século XX. Ponderar os processos homogeneizantes globais em suas apropriações locais diferenciadas é lição que não se pode esquecer. Em suas palavras: “O problema no centro das interações globais de hoje é a tensão entre a homogeneização cultural e a heterogeneização cultural” (p.49).
Dirigir o foco para processos mais localizados como buscamos fazer entrevistando um grupo especifico de jovens em contexto situado e circunscrito, nos parece ser um bom caminho para avançar no mapeamento desses fluxos.
Metodologia
A metodologia da pesquisa centrou-se em uma abordagem de base qualitativa. Visando compreender de que forma se articulam juventudes, tecnologia e educação em um contexto específico foram entrevistados cinco professores e dez alunos de uma escola particular de ensino básico da cidade de São Paulo com grande interesse em novas metodologias pedagógicas e com investimentos significativos no uso de ferramentas digitais em seu cotidiano. A definição do grupo amostral se deu por características de “intencionalidade” (elementos selecionados de acordo com o objeto de pesquisa), “intensidade” (densidade dos elementos a serem observados) e ‘homogeneidade” (conjunto de características que permitem o estudo em profundidade) de acordo com sugestão de classificação de FRAGOSO, RECUERO e AMARAL (2011, p.76-81).
No contexto pandêmico a pesquisa de campo[ii] foi feita por meio de entrevistas em profundidade on-line, gravadas em vídeo realizadas ao longo do ano de 2021 a partir de questionários semiestruturados capazes de orientar uma primeira aproximação e permitir o encadeamento de uma fluência narrativa. Para a escolha dos professores participantes a baliza utilizada foi atrelada à ideia de “nativo digital”, ou seja, aqueles nascidos a partir de 1984, conforme a definição de Marc Prensky (2001). Isto porque esses professores, aqui considerados jovens, teriam também nascido no mundo tecnológico o que tornava relevante verificar como eles encaram o uso das tecnologias digitais para ensinar. Entretanto, buscamos também considerar a ocorrência de diferenças geracionais entre as visões e experiências de alunos e professores quanto ao mundo digital, ainda que entre eles houvesse alguma proximidade de idade. Como a escola já vinha utilizando recursos digitais antes da ocorrência da pandemia e a partir daí intensificou esse uso, a oportunidade de se comparar esses dois momentos por meio dos depoimentos dos agentes que os vivenciaram foi bastante útil para os objetivos deste trabalho.
Privilegiaram-se as narrativas juvenis como forma de acesso aos significados culturais mais profundos nelas embutidos. O foco de interesse se dirigiu para a linguagem e as representações, assim como para as práticas descritas. Compreendem-se os jovens como sujeitos de enunciação que se apropriam de suas experiências e sobre elas constroem sentidos. Cumpre destacar que se adotou a perspectiva de construir conhecimento “com” e não “para” ou “sobre” os jovens. Procurou-se estabelecer uma dinâmica na qual o entrevistado estivesse à vontade para relatar suas experiências com uso de tecnologia procurando-se evitar a situação de “perguntas e respostas’. Considerou-se, outrossim, a participação do entrevistador como parte constitutiva do processo.
Importou, também, considerar essas narrativas em sua enunciação no âmbito da cultura escolar. Nesse aspecto, os estudos de Nestor Garcia Canclini (CANCLINI, 2008) sobre processos de hibridização foram bastante úteis. Da mesma forma, com nítida inspiração em Raymond Williams (WILIAMS, 1979), procurou-se perceber o quanto esses discursos expressavam elementos “residuais” de uma cultura escolar tradicional, analógica, ou trazia elementos que podemos considerar “emergentes” quando avaliados em termos das formas de ensino e aprendizagem que valorizam.
Estudar e ensinar com tecnologias digitais: novos hábitos?
Entrevistamos cinco professores nascidos entre 1986 e 1995, que à época tinham de 25 a 34 anos. Todos eles pertencentes ao grupo geracional que nasceu quando as tecnologias digitais vinham se disseminando. Nas palavras de um deles, aqui chamado “Luís”, de 33 anos : “Essa minha geração foi bem a transição, o comecinho desse olhar para o digital”. Já Jorge, de 34 anos, se vê como uma mistura de tradicional e moderno, acha que pegou “uma grande transição” pois, por exemplo, teve aulas de datilografia e também de computação.
As experiências de todos eles guardam algumas semelhanças. Oriundos de camadas médias da população, tiveram acesso à educação básica em escolas públicas ou particulares de bairro, e frequentaram na maioria universidades particulares com maior ou menor dificuldade. Quase todos fizeram mais do que uma graduação, especializações ou mestrado. São, portanto, professores com ótima formação e alguma experiência profissional.
Em sua formação profissional frequentaram aulas tradicionais e seus professores usavam na maior parte do tempo giz e lousa; poucos deles adotaram apresentações em slides digitais ou vídeos. Nas palavras de Paulo, como alunos, pegaram “a transição do retroprojetor para tecnologia”. Certamente o modelo de professor que tiveram não contribuiu para que assimilassem ferramentas tecnológicas como recursos didáticos e exceto em um caso, não tiveram alguma disciplina que promovesse uma formação nesse sentido. Embora alguns deles já tivessem tido contato com alguns recursos no ensino básico, não parecem esperar que isso tivesse sido diferente no nível superior.
Mesmo com a diferença de quase uma década entre eles a utilização de recursos digitais não variou muito em suas vidas de estudantes. Usavam a internet basicamente para pesquisa, mas recorriam a livros físicos para estudo também. Para a Vitória, a descoberta de como se usar “palavras-chave” em mecanismos de busca significou uma abertura e um acesso ilimitado a fontes de pesquisa, gerando muita independência para explorar assuntos sem precisar de alguém que a orientasse. Começaram gradativamente a entregar trabalhos escritos digitalizados à medida que seus professores passaram a solicitar. Nem sempre tinham impressora, usavam a da faculdade ou de papelarias. Com o passar do tempo possuir uma impressora e computador próprio passou a ser uma necessidade – ao longo do tempo quase todos acabaram deixando o Desktop em prol do Notebook. Mas, continuaram fazendo resumos e anotações à mão em cadernos. Alguns tiravam fotos da lousa, mas como comentou Paulo, “isso acabava atrapalhando, pois não anotava e depois não recorria às fotos”.
Os grupos para trocas de mensagem entre colegas foram usados inicialmente para marcar encontros e combinar tarefas. À medida que os aplicativos evoluíram nos serviços oferecidos passaram gradativamente a servir para troca de materiais, inclusive vídeos e imagens substituindo os pen-drives e os e-mails. O armazenamento em nuvem ofereceu a princípio alguma preocupação, mas o seu uso foi incorporado aos poucos nas práticas estudantis. As redes sociais de troca de materiais também foram utilizadas, assim como houve um professor que mencionou o uso de plataforma gratuita de disponibilização de conteúdos. Esboçava-se a criação de uma comunidade de aprendizagem.
Basicamente aprenderam sozinhos a usar os recursos digitais sendo que somente dois deles tiveram aulas de informática no ensino básico. Apenas Antônio, professor de Física e Matemática, teve formação mais aprofundada em tecnologia em virtude de sua área de estudo. Mesmo ele, ainda hoje faz resumos e mapas mentais à mão para estudar, não usando aplicativos para isso. Considera que guarda mais conhecimento escrevendo à mão que usando aplicativos ou escrevendo no computador. Fazendo isso diz que “não esquece de jeito nenhum” fazendo coro com especialistas em processos de aprendizagem que veem vantagens na escrita à mão.
Atualmente utilizam redes sociais, uns mais outros menos, pertencem a grupos profissionais de Whatsapp, alguns jogam games – às vezes até para se aproximar dos alunos – usam celular para se comunicar ou responder e-mail e o computador para pesquisar e organizar os dados obtidos. Mas, ainda se observa a manutenção de hábitos tais como escrever à mão e imprimir textos escritos para ler. Compram livros pela internet mas preferem ler os livros físicos mais do que digitais em tablets. Revelam pouco interesse por leitores de livros digitais, como o Kindle.
Como se observa, a mescla de uso de recursos digitais e analógicos marcou a trajetória desses professores quando eram estudantes e em sua formação profissional, comportamento que ainda se verifica até hoje. Ao entrarem no mercado de trabalho trouxeram essa bagagem que foi, em alguns casos, enriquecida com formações em serviço, mas que contou sobretudo com a disposição pessoal de cada um para aprender a forma de usar recursos digitais em sua atividade profissional. A partir dos relatos, observa-se um descompasso entre a intensidade do uso de tecnologias para socialização, consumo de informações ou de produtos midiáticos do que para ensinar.
O advento da pandemia acelerou um processo que vinha transcorrendo de forma gradativa e o tornou generalizado entre todos os professores entrevistados. Tanto aqueles que já tinham desenvoltura para dar suas aulas com recursos tecnológicos, quanto aqueles mais presos a métodos tradicionais, tiveram que se adaptar às necessidades que o distanciamento social trouxe para as escolas. Na verdade, a pandemia trouxe uma oportunidade, não prevista, dos entrevistados poderem comparar as formas de estudo e ensino em situações diferentes: presencialmente, no período anterior à pandemia; totalmente à distância com as escolas fechadas durante a quarentena e no formato híbrido, com o retorno parcial às aulas presenciais.
Do que se depreende das entrevistas alguns deles continuaram apenas a se comportar nas aulas on-line ao vivo como se estivessem em uma sala de aula tradicional. Outros, dentre os quais se pode situar os que aceitaram participar da pesquisa – o que nos faz supor terem mais interesse em tecnologias – procuraram saídas menos óbvias para suas aulas. O fato de a escola adotar uma plataforma de aprendizagem durante a pandemia incentivou muito esse processo. Os livros didáticos passaram a ser digitalizados e recursos como videoaulas e exercícios personalizados para os alunos ficaram disponíveis. Mas, alguns professores foram além disso. Lançaram-se em busca de aplicativos que permitissem uma maior participação dos alunos, incrementaram suas apresentações, aprenderam a usar ferramentas de edição de vídeos, alguns gravaram pequenas videoaulas para os alunos e verificaram a aprendizagem com formulários digitais. Com tudo isso, a própria postura do professor em ambientes digitais também pode se encaminhar no rumo da mediação e não apenas da transmissão de conteúdos, movimento até então mais perceptível em aulas presenciais. Como comenta a professora Vitória: “com as tecnologias consegui mudar um pouco a minha posição na sala de aula onde eu não sou só a única pessoa que está ali passando slides, tem outras dinâmicas que as tecnologias permitem envolver os alunos”. Essa percepção de que os recursos de tecnologia oferecem maior atratividade para os alunos é corroborada por outros professores entrevistados, confirmando um dos argumentos mais usados pelos defensores do uso de recursos tecnológicos nas escolas.
O fato é que os professores entrevistados acabaram observando muitas vantagens pedagógicas no uso de recursos digitais que pretendem levar para o retorno às aulas presenciais. As palavras da mesma professora Vitória são contundentes: “As tecnologias otimizam muito as coisas que a gente já fazia na prática. A aula já poderia ser dinâmica, por exemplo reunindo em grupos, fazendo estações de trabalho diferentes, mas eu acho que junto com isso, as próprias estratégias pedagógicas foram evoluindo também a um ponto que agora a gente pensa agora os dois juntos, estratégias diferentes que já envolvam tecnologias”. E completa que voltando para a sala de aula “a minha aula será muito diferente ... agora não vou mais conseguir pensar sem ela (tecnologia), eu incorporei”.
Ainda que essa incorporação tenha ocorrido para esses professores, eles não deixaram hábitos anteriores para estudar e preparar suas aulas. A totalidade deles ainda faz anotações à mão em cadernos, e até mesmo os mais tecnológicos usam canetas de cores variadas, mesclam uso de livros físicos e internet para pesquisas, preparam a aula e fazem planejamento em papel. Luís comenta preferir “anotações à mão, faz setas rabiscos, é um pouco mais lento, mas você tem um processo mais orgânico de absorver aquilo, lidar com aquilo”. Essa persistência de hábitos antigos pode ser apego a formas de estudo já conhecidas, mas os depoimentos citados apontam para a noção de que essas estratégias permitem uma absorção mais efetiva dos assuntos de acordo com as suas próprias experiências cuja relevância merece ser considerada.
Da mesma forma, é notório que todos eles ainda prefiram as aulas presenciais do que as virtuais. Para o professor Antônio, por exemplo, nas aulas on-line, não é possível “atingir o mesmo nível de conhecimento” daquelas conduzidas presencialmente. Um ponto importante para ele é que, mesmo com os alunos ficando com as câmeras abertas – o que foi se tornando cada vez menos frequente ao longo do tempo durante a pandemia – não é possível acompanhar suas reações quando se está fazendo apresentação de slides ou usando outro aplicativo. Também a interação com os alunos e entre eles é menor, tornando “o presencial muito mais valioso que o remoto”.
No processo de aprendizagem a questão dos vínculos afetivos que se estabelecem entre alunos e professores tem grande importância. E, de acordo com os professores, sua construção e manutenção foi bastante prejudicada durante a pandemia, mais para uns do que para outros. Entretanto, todos eles disseram que estiveram atentos a isso. Mas, de acordo com o professor Paulo, no ensino remoto, a relação com alunos é mais fria em especial com as câmeras fechadas, e a dispersão ocorre com mais facilidade. Para evitar a dispersão e conseguir o engajamento dos alunos buscaram introduzir aplicativos diferentes e escapar das aulas transmissivas. Para a professora Vitória, a maneira como realizaram as aulas ao vivo guarda bastante diferença com o formato tradicional de Ensino à distância, mais engessado e com um ritmo muito diferente. Para ela, as aulas remotas ao vivo foram pensadas a partir da experiência das aulas presenciais. Nelas, de acordo com essa professora, “estamos o tempo todo on-line ao vivo com os alunos, fazendo atividades síncronas e assíncronas, porém o ritmo é de um curso presencial”.
Um outro ponto que emergiu do contexto pandêmico foi a construção de redes de apoio ente os professores em especial via grupos de whatsapp que foram muito utilizados para trocas de informações e orientações para uso de ferramentas digitais. Esse contato via aplicativos de comunicação foi fundamental para controlar a ansiedade que muitos sentiram, tanto em razão da pandemia em si, quanto pela necessidade de buscar novas formas de dar continuidade ao seu trabalho como professor.
Ainda que todos os professores entrevistados tivessem um bom nível de conhecimento no uso de tecnologias há uma percepção entre eles de que há diferenças geracionais nesse aspecto em relação aos alunos. Mesmo o professor mais jovem, Paulo, à época do estudo com 25 anos, sente essa diferença, mas apenas relacionada à quantidade de uso e não exatamente a dificuldades em aprender como usar. Já Antônio comenta que embora tenha a mesma facilidade para usar recursos de tecnologia que seus alunos “parece que eles nasceram sabendo isso e nós tivemos que aprender”. Vitória com cerca de 15 anos de diferença em relação a seus alunos, acha que estes usam mais redes sociais como o tik tok, gostam de vídeos engraçados, jogos que ela não conhece e nisso vê uma diferença de gerações. Ela sente que eles têm maior fluência e que ela sempre está “correndo atrás”. Todos relatam que não veem problema em pedir auxílio aos alunos quando têm alguma dificuldade durante as aulas e que estes têm muito prazer em ajudar.
A partir das falas dos professores não fica tão claro se há uma distância geracional curta quando se fala de uso de tecnologias, como sugere Gardner, embora haja uma percepção dos professores de que os mais jovens que eles têm mais desenvoltura quanto a isso. Outro ponto importante, é que os professores de alguma forma desconsideram a necessidade do aprendizado para o uso de tecnologias. Referem-se aos alunos como se apenas nascer em ambiente tecnológico já fosse suficiente para ter habilidade no uso desses recursos quando sabemos que a questão é mais complexa. Envolve nível de exposição às tecnologias e desenvolvimento de competências o que muitas vezes precisa de aprendizado específico.
Para conhecer a visão dos estudantes sobre uso de tecnologias no estudo e no aprendizado entrevistamos alunos das três séries do Ensino Médio, com idade entre 15 e 17 anos sendo 4 meninos e 6 meninas.
Em sua maioria esses alunos se acostumaram com a plataforma de aprendizagem digital adquirida pela escola que oferece o conteúdo de todas as disciplinas digitalizado, vídeos, videoaulas e exercícios personalizados a partir de evidências obtidas por meio de inteligência artificial. Mas as opiniões se dividem sobre vantagens e desvantagens no ensino digitalizado. Alguns se adaptaram e acham prático ter tudo ali condensado, celebrando o fato de não precisarem carregar livros para a escola, poder ir e vir nos conteúdos, alternar guias abertas. Outros, sentem falta do conteúdo impresso, dizem ficar mais cansados ao ler em telas. Embora usem os conteúdos digitais para ler e estudar, no computador ou tablet, é comum a todos a permanência do hábito de fazer em papel à mão: anotações, resumos, mapas mentais, esquemas, rabiscos e grifar passagens do livro. Até mesmo Pedro, entusiasta da plataforma, que diz ter se adaptado “muito melhor aos livros digitais em relação aos físicos” e que seu uso ajuda muito nos estudos, pois “tem tudo organizado, separadinho, pode grifar o que quiser, voltar e procurar alguma coisa”, para anotações usa sempre o caderno com canetas em cores diferentes. Para ler obras literárias prefere livros físicos a PDFs ou a leitores digitais. Nisso se junta aos outros alunos leitores entrevistados que também preferem os livros físicos. Laura, que não se interessa por e-books comenta que acha “mais profundo pegar o livro, virar as páginas” e que “com a internet se aprende rápido, mas não vai sentir da mesma forma, o sentimento tem que ter seu próprio tempo”.
Roger Chartier, historiador voltado ao estudo da cultura escrita, anunciava já nos fins do século XX que o texto eletrônico seria uma revolução da leitura, mais radical que a invenção da imprensa significando “um distanciamento em relação às representações mentais e às operações intelectuais especificamente ligadas às formas que teve o livro no Ocidente há dezessete ou dezoito séculos. Nenhuma ordem dos discursos é, de fato, apartável da ordem dos livros que lhe é contemporânea”. (CHARTIER, 1994, p. 106).
Embora a análise de Chartier faça muito sentido e nos parece que estamos seguindo na direção dessas transformações anunciadas, devemos inseri-la na perspectiva de uma história de longa duração. Foram séculos de predominância dos livros em papel que se inscrevem em nossa experiência coletiva. A partir dos depoimentos dos alunos entrevistados, já submetidos a uma exposição intensa a conteúdos e textos digitais, pode-se inferir que ainda estamos vivendo um cenário em que os livros e as escritas à mão permanecem ao lado de opções digitais sem que saibamos se haverá substituição de um tipo pelo outro ou se haverá acomodação entre formas diferentes de leitura e escrita coexistindo. Do ponto de vista de alterações cognitivas, ainda é preciso haver investimentos em muitas pesquisas multidisciplinares para concluir-se por mudanças significativas.
Para pesquisar assuntos novos ou para fazer trabalhos solicitados pelos professores, os alunos veem pouco sentido em buscar informações em livros físicos. Preferem fazer buscas pelo Google em sites sendo que os mais cautelosos conferem os dados em dois ou mais endereços diferentes ou preferem plataformas gratuitas dirigidas a estudantes. Retiram as informações que julgam relevantes, alguns as reúnem em documentos digitais compartilháveis, como o Google Docs, outros fazem anotações em papel, e já organizam os dados coletados em apresentações de slides agregando por vezes imagens ou vídeos realizados por eles ou obtidos pela internet. Há quem comente que tem reservas com a Wikipedia e ficam desconfortáveis quando perguntados se utilizam o expediente do “recorte e cole”, não assumido por ninguém. Recorrem também a videoaulas, alguns seguem edutubers recomendados pelos professores ou com os quais tenham afinidade. Mas, valorizam sobretudo as informações dos seus próprios professores da escola que servem de referência para checar a confiabilidade daquilo que assistem pela internet. Júlia nos dá alguns exemplos de sua forma de estudar: “uso anotações de sala, leio material no Geekie, faço resumo e sempre finalizo com uma videoaula; faço exercícios no material (plataforma), dou uma misturada no que vejo em sala, material on-line e anotações”.
Observa-se com relação a hábitos de estudo que estamos assistindo a uma mescla entre utilização de recursos digitais e analógicos. Os alunos demonstram que variam na percepção das vantagens de uns e outros, conforme a atividade que desenvolvem ou preferências pessoais. Mas há algumas permanências que chamam a atenção. Com relação à leitura há uma preferência significativa pelo livro físico em relação ao digital, como já apontamos. Embora todos tenham acabado por se adaptar ao estudo por meio da plataforma, apenas dois alunos preferem ler ali os conteúdos didáticos. Os demais manifestam preferência pelo estudo em livros em papel. De acordo com Telma: “Não sei explicar, para mim esse negócio de ter o papel assim, ler e reler, chega um ponto, que eu leio muito no computador, parece que as palavras perdem um pouco a ordem, acho que por causa da própria tela. A luz do computador me incomoda um pouco, tenho um problema de visão, chega um ponto que me atrapalha um pouco a tela o tempo todo, sinto que o papel não tem isso. Além da vantagem de poder rabiscar em cima, grifar, marcar texto.” Mesmo a ferramenta da plataforma que permite que o texto seja grifado, não parece ter o mesmo efeito para os alunos de grifar à mão que continua sendo a forma preferida.
No caso da escrita, apenas um aluno prefere fazer anotações de estudo no computador, embora diversos prefiram usar esse dispositivo para pesquisa. Apenas Pedro comentou que faz textos argumentativos, em prática de redação, diretamente no computador. Como há pouca demanda dos professores por trabalhos escritos, os comentários foram feitos em sua maioria em relação a anotações de aula e de estudo e não para outros tipos de texto. Quanto a isso, Mônica comenta que acha que aprende mais escrevendo à mão. Para ela, escrever diretamente no computador “não tem o mesmo efeito. Por exemplo, quando eu escrevo algo eu lembro da palavra e consigo voltar no que escrevi, digitado às vezes a gente está tão no automático que nem percebe o que está sendo digitado direito”. Larissa para estudar faz resumos, desenhos, esquemas e mapas mentais em papel, pois nos programas que existem para isso “não faz o mesmo efeito”. Há uma percepção frequente de que ao se escrever/desenhar em papel a retenção do que se estuda é maior.
A adaptação ao ensino remoto ocorreu de forma diferente para os estudantes entrevistados. Houve aqueles que logo se acostumaram e outros que tiveram mais dificuldades. Para Júlia foi “um baque, uma mudança bem brusca”. Teve tribulações de início para acompanhar as aulas on-line pelo fato de haver muitas distrações em casa. Isso foi confirmado por vários alunos. A saída para vencer o sono, ou o tédio, era por vezes fazer várias coisas ao mesmo tempo como a Júlia: “usando mais de uma aba no computador, fazendo lição e ouvindo música, almoçando enquanto fazia exercícios de matemática” tal como o melhor exemplo de um jovem multitarefa, como alguns gostam de ressaltar quando comentam as características das novas gerações. Telma também procurava se ocupar enquanto assistia as aulas com rabiscos, mexendo em alguma coisa para garantir o foco pois senão “a atenção navega, divaga”. Já Augusto, ficou mais “largado”. Em sala de aula, precisava anotar as matérias, mas em casa acompanhava “as aulas de pijama, sem tomar café, se não gostava da aula ia para embaixo da cama”. Para ele, “com o EAD mudou para pior”.
Apesar das experiências com o ensino on-line terem sido diferentes, há unanimidade na comparação entre as aulas remotas e as presenciais, a favor dessas últimas. É amplo o reconhecimento de que há maior concentração nas aulas presenciais. Além do que o contato direto com os professores é considerado muito importante para a compreensão dos assuntos tratados e para o esclarecimento de dúvidas. Para Larissa, “ver os gestos do professor, as demonstrações corporais presencialmente são diferentes do que ver por uma tela, estar na mesma dimensão do professor ajuda a entender melhor”. Os vínculos afetivos têm lugar de destaque nas vantagens conferidas às aulas presenciais, tanto em relação aos professores quanto aos colegas. Para a troca de ideias a vantagem da presença física dos outros estudantes também é ressaltada, considerando-se que isso ajuda na aprendizagem.
Se durante a pandemia a internet significou, como observa Laura, “um meio facilitador enorme para os estudos e pela comunicação com os professores e com a escola em si” houve uma grande ansiedade pelo retorno ao presencial. Além da necessidade de restabelecer o convívio com os colegas e professores, havia a preocupação com os estudos, em especial para quem já estava se preparando para os vestibulares e Enem. Há unanimidade na afirmação de que na aula presencial o nível de concentração dos alunos é significativamente maior. Precisam participar, responder às solicitações do professor, e isso ajuda a manter o foco. Paulo chega a dizer: “Parece que só de estar na escola se aprende mais fácil!”. Com essas afirmações é possível perceber que, embora esses jovens tenham grande vivência virtual, o mundo físico ainda traz mais conforto quando se pensa em ambiente escolar. Como diz Mônica “a sensação é muito melhor de estar ali, até me sinto mais estudante por estar em uma sala de aula em um colégio”.
O retorno às aulas na escola fez com que uma nova readaptação fosse necessária tanto quanto ao restabelecimento do convívio social quanto aos métodos de estudo. Mas, é notório que período de aulas on-line trouxe como resultado uma continuidade do uso dos recursos digitais mesmo com as aulas presenciais. Sendo uma aluna que preferia estudar em livros físicos do que em digitais, Laura comentou que: “embora eu prefira livros, hoje em dia não estou mais habituada com isso, então se eu tivesse que voltar às lições no livro seria outro processo de transição, seria mais complicado, então eu escolho a tecnologia hoje em dia, porém estou louca para voltar com meus métodos de estudo habituais”.
Júlia que antes da pandemia não se considerava tão ligada à tecnologia, com sua experiência nesse período também mudou de comportamento. Durante essa fase conheceu muitos novos aplicativos e passou a usar recursos on-line pela manhã nas aulas, à tarde para estudar e à noite para conversar com os amigos. No retorno às aulas no formato híbrido manteve muitos hábitos e introduziu outros. Começou a levar o computador para a escola, o que não fazia antes. Para ela “já que a gente foi forçado a aprender como fazer as coisas durante a pandemia, para mim não faz sentido voltar para o papel. Acho mais simples usar os recursos da internet, google docs, slides, planilhas. Esse choque de você aprender do nada como fazer as coisas, me deu mais confiança, agora me sinto mais confortável usando tecnologia do que antes da pandemia”.
Educação envolve fundamentalmente processos de comunicação e é importante verificar como isso ocorre em ambientes digitais, de que forma isso implica em mudanças no processo de ensino aprendizagem. Os ecossistemas de educação em redes digitais, como a que se estabeleceu em especial no período pandêmico, envolvendo atores humanos (alunos e professores) e não humanos (dispositivos, redes de conexão via internet, aplicativos) acabam criando fluxos de informação e comunicação singulares. Os processos de ensino e aprendizagem foram submetidos a uma mediação tecnológica como nunca se havia experimentado, colocando em relevo formas de comunicação inéditas. Desde a transmissão das aulas on-line ao vivo, as videoaulas, as atividades gamificadas durante as aulas on-line, os trabalhos em grupo em reuniões on-line, as pesquisas, os power-point, vídeos e animações produzidos e apresentados on-line. Os exemplos não se esgotam aqui. A mudança foi muito significativa e estamos apenas começando a compreendê-la. E envolvem considerações sobre as materialidades envolvidas.
O estudo por meio de tecnologias digitais implica em uso de dispositivos. Embora o uso de celulares esteve sempre presente antes, durante e depois do período de ensino remoto, houve uma percepção de que seria necessário incorporar o uso de computadores para o estudo nessa fase. Vários alunos afirmaram que os celulares não se mostraram adequados para estudar pelo tamanho da tela, balançar, impossibilidade de abrir mais do que uma aba simultaneamente, dificuldade de escrita com a intensidade necessária e para realizar trabalhos de pesquisa e apresentações. Com isso, durante a pandemia compraram computadores, em especial notebooks para realizar suas atividades escolares, seja para estudo, preparação de trabalhos ou assistir aulas on-line.
O efeito do uso desses dispositivos exige atenção. Questionados os alunos sobre a preferência pela escrita à mão ou pelo computador, há uma tendência a que prefiram a escrita manual para resumos e anotações que garantiriam maior retenção dos conteúdos estudados, como já foi mencionado. Mas inquirida sobre o ritmo do seu pensamento em relação à escrita Laura nos traz uma percepção muito instigante sobre a transferência da experiência do uso de redes sociais. Em suas palavras:
“Acho que no computador (a escrita) é muito mais fluida, muito mais rápida, então, eu não sei a gente se conecta, porque os adolescentes, os jovens atuais estão mais conectados com a tecnologia, querendo ou não, faz parte da gente e como a gente está habituada em redes sociais a usar o celular para muitas coisas, agora na pandemia o estudo se baseia na tecnologia, a gente acabou se conectando e se adaptando a esse movimento de pensar junto com o aparelho, a rapidez é inevitável, você vai se conectando com o aparelho”.
Essa simbiose com os dispositivos, esse “pensar junto com o aparelho” nos encaminha para refletir sobre uma dada condição híbrida em nossa experiência vital na atualidade que altera nossa própria forma de existir, nossas linguagens e emoções.
Entretanto, o que parece mesmo é que estamos mergulhados em uma metamorfose ainda não concluída com hábitos consolidados há séculos que perduram, ao menos no que se refere a métodos de estudo e aprendizado. É a mensagem que nos passa essa jovem de 17 anos, Laura que se vê como “muito mais ligada ao papel”, que “gosta de ter contato com o livro” e tem “aquela coisa de cheirar o livro”. Ela diz se apegar nesses hábitos sensoriais, subtraídos da experiência de estudo virtualizada para se sentir uma aluna de fato: “é meio estranho, mas você tem que ir buscando as pequenas coisas que dão prazer para você estudar, eu, mesmo conectada com a internet, eu me sinto desconectada com aquela raiz de estudante porque a gente tem uma vida inteira assim”. Revela nessas palavras o quanto o processo de escolarização que forja o “estudante” é profundo e, ainda, essencialmente analógico. Ao que tudo indica, a anunciada transformação digital do universo escolar ainda está por acontecer face a força dos comportamentos consolidados por gerações.
Sonia de Deus Rodrigues Bercito
Simone Luci Pereira
Conclusão
A introdução das tecnologias digitais nas escolas vinha ocorrendo antes da pandemia da Covid 19 sobretudo por estímulos externos ao pedagógico e não exatamente em razão de demandas educacionais orgânicas por parte dos profissionais de educação. Na rede particular de ensino comprar equipamentos e sistemas criados para serem usados em escolas vinha sendo uma decisão tomada em primeiro lugar pelos seus mantenedores a partir de raciocínios econômicos relacionados ao cenário bastante competitivo do mercado educacional ainda que houvesse junto a isso verdadeiros propósitos pedagógicos. Entretanto, o interesse dos professores nesses recursos seguia bastante pontual, restrito àqueles mais “tecnológicos” em seus hábitos. Até então, havia pouca familiaridade dessa categoria profissional em seu conjunto com o uso de recursos digitais para o desenvolvimento de suas atividades profissionais. O advento da pandemia, situação extraordinária que significou um impulso externo, e inescapável, destinado a empurrar as tecnologias digitais para as aprendizagens escolares, ainda que em meio ao surgimento de um formato inédito de escola que passou a funcionar sem um espaço físico a lhe abrigar.
Todo esse conjunto de transformações em curso, ou anunciadas, colocam em destaque os processos de hibridização cultural, tal como propostos por Nestor Garcia Canclini (2008). Aprendemos com esse autor que novas formações culturais não se estabelecem sem contradições, disputas e resistências em que processos emergentes comparecem e se tensionam com práticas culturais anteriores. A cultura digital em meio escolar pode ser vista por esse prisma. É nítido que os recursos de tecnologias digitais ainda se sobrepõem/combinam com práticas pedagógicas tradicionais, o que fica evidente nas entrevistas realizadas. No que tange especificamente ao ambiente escolar a possibilidade de surgimento de uma cultura escolar digital deve incluir a discussão, apoiada em Raymond Williams (WILLIAMS, 1979) sobre a existência de elementos dominantes, residuais e emergentes nesse processo. Entretanto é preciso destacar que introduzir tecnologias digitais nas escolas não é um caminho a ser seguido de forma inexorável e sem críticas. Nem tudo precisa mudar. Há muito do ensino tradicional que tem uma efetividade palpável. Mas, ignorar as possibilidades trazidas pelas tecnologias pode ser uma desvantagem para os propósitos educacionais na contemporaneidade.
Cumpre lembrar que os professores foram por décadas taxados de entraves a esse processo de mudanças na educação por serem apegados a métodos tradicionais e pertencentes a gerações pouco afeitas ao uso de tecnologias. Nesta pesquisa já se pretendia questionar essa visão que em nosso entendimento ignorava que as ferramentas oferecidas pelas indústrias de tecnologia e pelas startups dedicadas ao mercado educacional não traziam, de fato, vantagens significativas aos chamados “métodos tradicionais”. Nossa hipótese de que ao ver vantagens reais em alguma ferramenta os professores iriam aderir sem grandes dificuldades foi amplamente comprovada com a pandemia. Mesmo aqueles professores que não utilizavam recursos digitais anteriormente passaram a fazê-lo nas aulas remotas ao vivo que se tornaram preponderantes nas escolas particulares. Isso foi importante para minimizar as grandes dificuldades de continuidade das aprendizagens dos estudantes no período de distanciamento social. Essa categoria profissional respondeu com coragem e reponsabilidade social a esse enorme desafio que significou fechar as escolas por meses seguidos. Ao considerarmos as competências digitais prévias do professor e as desenvolvidas na aceleração do uso dos recursos digitais com a pandemia, foram inegáveis os avanços.
Com o fechamento das escolas físicas e a transmissão de aulas ao vivo ou gravadas criou-se um inédito ambiente de aprendizagem, a sala de aula virtual, ampliando-se as noções de tempo e espaço para aprender. A previsão já anteriormente anunciada de que as tecnologias iriam demolir as paredes da sala de aula parece ser cada vez mais verdadeira. Passou-se a aprender em todo tempo e lugar, bastando estar conectado. Isso não é trivial e seus desdobramentos estão por ser dimensionados. Em uma primeira aproximação é notório que as salas de aula virtuais se definem, nesse cenário, como espaços de aprendizagem mediados por tecnologias digitais. Cumpre discutir em que medida a alteração das fronteiras escolares de espaço e tempo ocorrida impacta os processos de ensino e aprendizagem concretamente e de forma simbólica. O quanto haverá de substituição das práticas tradicionais de ensino por outras ensejadas por novidades tecnológicas ainda é uma questão em aberto
[1] Esta investigação foi conduzida durante estágio pós-doutoral realizado no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Paulista na linha de pesquisa Culturas urbanas, juventudes e práticas musicais-midiáticas alternativas em São Paulo: usos da cidade, socialidades e interculturalidade. liderada pela Prof a Dra. Simone Luci Pereira.
[1] Informamos que a pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP)
[1] Optamos por usar neste texto nomes fictícios para os entrevistados, tanto alunos quanto professores, para garantir sua privacidade.
Sonia de Deus Rodrigues Bercito
Simone Luci Pereira
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