Metadados do trabalho

Estudantes Zumbis E Formatação Docente - (Con)Formados Para Ouvir E Calar

Rafael Matias de Moura

O artigo em questão discute reflexões derivadas da nossa pesquisa de doutorado sobre a formação de professores e as limitações do ensino superior da atualidade. Também apresentamos novos desafios do ensino superior à luz da Formação de Si, enquanto projeto de formação humana. Defendemos que os modelos formativos atuais são excessivamente voltados à formação para o mercado de trabalho, e isso liquidifica valores humanos. Em contexto, denominamos de formatação profissional esse processo de ajuste ao mundo da tecnologia e do trabalho, de forma que desvaloriza questões humanísticas do contexto educacional. O processo de tecnologização e marketing educativa culminou com novas possibilidades de ensino fundadas na tecnologização, que se baseia na transmissão de conhecimentos e na morte dos sentidos dos estudantes, caracterizados como "estudantes zumbis". 

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Como citar este trabalho

MOURA, Rafael Matias de. Estudantes zumbis e formatação docente - (con)formados para ouvir e calar. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2022 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/401-estudantes-zumbis-e-formata%C3%A7%C3%A3o-docente-con-formados-para-ouvir-e-calar. Acesso em: 16 out. 2025.

Estudantes zumbis e formatação docente - (con)formados para ouvir e calar

1. Primeiras Palavras

Lemos o mundo mediado por suas linguagens. Em nossa busca cada vez maior por afiliação estudantil (COULON, 2008), nossas leituras estão cada vez mais permeadas dos reflexos ontológicos da segregação, das carências e do empobrecimento humano. As pessoas assim, escravizadas e marcadas pelo modelo de formação atual, percebem a negação de tudo aquilo de que é necessário para uma vida digna. Entre tantos direitos humanos negados e/ou corrompidos, está o direito do tempo livre para o estudo.

Este trabalho é decorrente de nossas reflexões sobre a formação de professores de Biologia. Nossas pesquisa em nível de tese de doutorado demonstrou que os ranços da racionalidade técnica ainda orientam a formatação docente. Por isso, indicamos o slogan Formatação Docente para a formação essencialmente conteudista e centralizada no conhecimento específico. Por outro lado, acreditamos que uma formação ética, estética, política e humana baseada no estudo é uma forma de resistir aos ditames do capital e seu entendimento de pessoas enquanto mercadorias descartáveis. Sobremaneira, o estudo regular, sistemático e metódico é imprescindível aliado às formas humanísticas de pensar a escolarização, da educação infantil ao pós-doutorado. Por meio do estudo, é possível uma libertação do estranhamento ontológico imanente ao capitalismo, contrapondo a formação por meio de um ensino transmissor de conhecimentos, de uma mercantilização de habilidades e competências e de uma prescrição curricular que orienta as formações apenas em comum acordo com o que se espera no mundo do trabalho.

A formação que Freire (1987) entendeu como bancária é aquela que mais atende às prescrições do capitalismo histórico, em que a transmissão de conhecimentos voltada à formação profissional sobrepuja quaisquer valores da formação humana. Na transmissão, os estudantes são (con)formados a ouvir e calar, produzindo atividades após as exposições dos professores, em uma espécie de moto contínuo de morbidez e falta de sentido. Denominamos de pedagogia da morte ou de mutilação dos sentidos a este percurso formativo que se exterioriza no silêncio dos estudantes, no ocultamento de seus rostos e da transmissão vazia de significados de conteúdos junto à assimilação de roteiros de estudo produzidos pelas secretarias de educação em parceria com especialistas.

Estamos desenhando o contexto do ensino durante estes anos pandêmicos, em que se tornou cada vez mais difícil a aprendizagem do métier estudantil dentro da universidade. Em tempo, os professores abusaram das estratégias de ensino por meio de slides e exposições curtas e objetivas. Porém, o silenciamento e o estranhamento já eram flagrantes no ensino presencial antes da pandemia de Covid-19. Entretanto, alguns problemas ficaram ainda mais evidentes: as dificuldades dos estudantes em conciliar a vida pessoal com uma rotina de estudos e da apropriação sociogeográfica de um espaço físico para a realização dos estudos, principalmente no período do “fique em casa”.

A formação e a pedagogia são inerentes ao desenvolvimento do ser social. Pois, nos formamos no que fazemos e, assim, vivemos e existimos. Em outras palavras, não há trabalho sem o saber trabalhar. Assim, a formação é pedagógica enquanto constitutiva da vida humana. Por isso, podemos aproximar o conceito de formação à compreensão de um trabalho humano ou de uma atividade humana sensível. Esse conjunto de trabalhos constitui as ocupações existentes nos espaçosvivos onde existimos concretamente. É nesse contexto que uma formação humana pode desenvolver nossos talentos éticos e estéticos, que podem se transformar nas experiências de reconhecimento social e em fatos geohistóricos como possibilidade de formação ética-estética-política-humana.

Nós fazemos muitas coisas. Nós fazemos e refazemos a partir das capacidades e condições desenvolvidas por meio de nossa formação. Dessa maneira, é superficial dizer que uma formação se restringe ao acúmulo de conhecimentos e técnicas ou à expressão de competências e habilidades. Em perspectiva, é mais viável pensarmos na perspectiva de uma trans-form-ação humana das pessoas e da natureza por meio de sua humanização, singularização e socialização (CHARLOT, 2013).

Dentro de um contexto mais amplo de possibilidades, queremos destacar um tipo de formação que se entende por imanente à formação de si nos caminhos da conquista de emancipação humana: o trabalho pedagógico ou estudo. Assim, “o trabalho pedagógico para cumprir as atividades que lhe compete transcende as horas-aula realizadas nas escolas e universidades. Ele envolve toda uma vida de dedicação. Então, como remunerá-lo? Qual o custo desta dedicação de toda uma vida?” (BEZERRA, 2019b, p. 85).

A priori, a presença do trabalho pedagógico está potencialmente antecipada na fabricação do lápis, caneta, computador, celular e quaisquer recursos materiais que utilizemos em nosso trabalho. Por outro lado, também exige a apropriação de um espaço geográfico que ocorre em nossas casas, salas de aula, bibliotecas e demais lugares que possuam o efeito do trabalho pedagógico. Por fim, exige uma familiarização com linguagens que proporciona formas de ler o mundo e interpretá-lo, como a ciência dos trabalhos acadêmicos ou dos livros didáticos.

A apropriação das linguagens específicas dos diversos tipos de conhecimento concebe códigos ou geografias textuais, compostas pelas artes da escrita, artes literárias ou da literatura. Nesse caso, corpos, letras e linguagens tornam o processo de educação mais do que uma socialização dos conteúdos produzidos pela cultura, mas também uma trajetória de humanização de nossas paixões, afetos, emoções e sentimentos.

A literaturalização de conhecimentos por parte do estudante universitário em meio à sua afiliação intelectual é uma atividade humana, envolvendo um habitus e um ethos que se desenvolvem quando a formação humana permite a transcendência da condição de mero ator social “aluno” para a condição de estudante, ou seja, um “sujeito estudioso”. Porém, este tipo de formação distancia-se do ensino bancário enquanto processo de objetivar a emancipação humana por meio da conquista da autonomia intelectual.

 

2. A programação de zumbis acadêmicos na modernidade líquida

Bauman (2007) chama o período em que vivemos de modernidade líquida.  Caracterizada pela rapidez e fluidez dos processos e das relações, na modernidade líquida assistimos à crescente literaturalização do mundo por meio das tecnológicas de informação e comunicação (TICs). Surgem novas possibilidades de literaturalizar o mundo por meio de novas racionalizações dos sistemas linguísticos, tanto no mundo da ciência como na perspectiva cotidiana de nossas vidas de mortais comuns.

Nesse contexto, a racionalização pode ser entendida como uma programação das atividades e formas de trabalho humanas, incluindo-se as ciências e o trabalho científico típicos da formação universitária, por exemplo. Nesse contexto, passamos a utilizar cada vez mais tecnologia para racionalizar ou programar o trabalho humano em todas as suas linguagens. Assim, além de sermos mercadorias do sistema capitalista, somos formatados à imagem e semelhança das máquinas que informatizaram nossas vidas e existências.

O que caracteriza essas máquinas tecnológicas é a linguagem referenciada no algoritmo, ou seja, a programação de extrema leveza, a portabilidade e a flexibilidade. Dito de outra forma, as máquinas informatizadas, ligadas em redes de computadores por meio de fibra ótica, roteadores e internetizadas por satélites, projetam e asseguram a acumulação de capital por meio do trabalho programado. Assim, as pessoas tornam-se mercadorias e máquinas formatadas, tal qual um computador em que instalamos o hardware e o software. Eis o formato básico da nova revolução capitalista em curso, ou seja, todas as atividades humanas são orientadas e submetidas à programação e à racionalização dos meios técnico-científicos-informacionais das TICs.

Assim, o capitalismo orienta a indústria de trabalho humano, portadora essencialmente de uma pedagogia imanente à formação de programadores e, para trabalhar e sobreviver na sociedade da tecnologia e da liquidez, é preciso aprender e utilizar essas máquinas informatizadas e suas linguagens. Portanto, a pedagogia assim se faz presente na formação do programador e do programado, no trabalho de produção e instalação das linguagens próprias dos computadores e no uso diário das tecnologias, porém, a pedagogia imanente a estas atividades é a pedagogia bancária (FREIRE, 1996), centrada na transmissão de conhecimentos apostilados e vomitados pelos professores em salas de aula presenciais e virtuais. E qual seria a principal crença da pedagogia bancária? A falsa crença de que os socializadores dessas linguagens podem transferir ou transmitir seus conhecimentos às populações por meio do ensino. Por isso, as pessoas se sentem obrigadas a se apropriarem minimamente dessas linguagens, para existirem na sociedade da tecnologia e da liquidez humana.

Por outro lado, a partir de uma apropriação mínima de conhecimentos necessários à sobrevivência no mundo do trabalho capitalista, surgem novos profissionais com o perfil diretamente atrelado à automação, ao uso de aplicativos de aprendizagem, dos sistemas informatizados de gerenciamento de processos (inclusive os educativos) e da virtualização do relacionamento interpessoal. Daí surgem as metodologias ativas, o ensino remoto, as plataformas virtuais de ensino, os sistemas acadêmicos, as novas didáticas baseadas na relação direta com o uso da tecnologia e a ênfase na aprendizagem por habilidades e competências. A instalação das linguagens e seus aplicativos já se encontram prontos e disponíveis no mercado, impondo a nós apenas sua utilização eficaz, sem sequer sabermos como é que são produzidas e suas finalidades no contexto social de aplicação, pois as nossas carreiras dependem do uso correto das tecnologias.

Assim, entendemos a formação de profissionais no contexto da tecnologia e liquidez humana como uma prerrogativa da formatação profissional, visto que a nossa adaptação à tecnologia é indispensável à nossa sobrevivência no mundo do trabalho. A formatação profissional transforma as pessoas em mercadorias e objetos do sistema capitalista, pois se instrui a partir de uma visão de pedagogia que permeia a produção, a socialização e a apropriação de conhecimentos essenciais à transformação da pessoa em um profissional. Ou seja, um profissional é uma mercadoria descartável e especializada no uso de tecnologias de forma acrítica e desprovida de reflexividade, com carreiras cada vez mais vinculadas à tecnologização e à virtualização. Nessa pedagogia, não se formam pessoas em um projeto de singularização, humanização e socialização, formam-se apenas programadores e usuários. Em suma, emergem novos profissionais na sociedade que são responsáveis pela territorialização da pedagogia bancária, imanente a estas linguagens maquínicas.

3. Sobre a formatação profissional

A formação é um processo que provoca a transfiguração ou metamorfose das pessoas em uma forma social, ou seja, na constituição de um outro ser. Nesse sentido, entendemos por formatação profissional  o processo de formação voltado aos interesses capitalistas de mercado de tecnologização dos processos e relações. Assim, a formatação profissional é a personificação das formas sociais pelas pessoas na civilização capitalista, ou seja, uma forma de agrilhoamento. É um processo que transforma a pessoa em uma coisa necessária e funcional ao mercado de trabalho. É como se a pessoa fosse institucionalizada ou formatada para ser um programador de certos recursos e um mero usuário de outros. E nada mais. Fundindo os aspectos da pessoalidade e da personalidade, o modo de ser profissional é formado nas ocupações de si ou nas atribuições que realizam. Dito de outra forma, os programadores são programados (formatados) para programar outros, numa espécie de moto contínuo perverso.

Entretanto, fazer-se programador e usuário é, do ponto de vista ontológico, algo que exige o consentimento dos convertidos (BEZERRA, 2019a). Exige-se a cumplicidade e a vontade das pessoas no processo de conversão, naquilo em que elas são convertidas nos espaçosvivos. As pessoas convertidas, ainda que inconscientes ou relativamente conscientes, são cúmplices desta metamorfose. Geralmente, são convertidas pelo pagamento de salários, gratificações e bolsas de estudo que são pagas como uma forma de prêmio meritocrático aos agentes da formatação. Nessa interdependência entre o econômico e o tecnológico, enxergamos uma condição próxima à “boa vontade cultural” (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2003) bourdiesiana: os convertidos são convencidos de que existe uma real possibilidade de ascensão social, econômica e cultural quando se apropriam e defendem os interesses das classes dominantes, tais como a meritocracia e a elitização do capital cultural.

Dessa maneira, a personificação é um percurso formativo que converte as pessoas em profissionais ou programadores e usuários das tecnologias e da virtualização, pois o programador e o usuário são mercadorias para os empresários, recursos humanos para o mercado capitalista, para que todos contribuam para a acumulação flexível do capital. Portanto, a formatação racionaliza as pessoas, inclusive em suas atividades intelectuais e pedagógicas por meio da interiorização de suas linguagens, seus sentidos e suas máquinas. A pessoa funde-se com a forma social de programador, aliena-se totalmente ao formar-se nela e se compreende em um processo simbiótico: ser pessoa é ser programador e usuário. É assim que nos perdemos ou nos alienamos nas formas sociais: autoalienando ontologicamente o ser. As pessoas aprendem a viver assim, ensinam a viver desse modo e sobrevivem, ainda que com grandes traumas, frustrações e sofrimentos.

A programação ou formatação dos atores pedagógicos acontece no âmbito do ensino bancário, oferecido pelas agências nacionais escolares e universitárias: nos cursos de tecnólogo, graduação, pós-graduação e qualificação profissional. Mas, sobretudo, nos cursos de ensino à distância (EaD) controlados pela iniciativa privada.

Vendidas pela sociedade como uma acepção meritocrática de ascensão socioeconômica por meio do estudo, sob o slogan “para crescer na vida, é preciso estudar”, a formatação profissional está diretamente ligada às possibilidades de o próprio capitalismo desfazer as fronteiras sociogeográficas para impor a acumulação de capital flexível. Em outras palavras, o capital expande, adapta e reproduz todos os mecanismos possíveis para a sua manutenção e objetivando sempre elevar a taxa média de lucro.

Sob uma segunda acepção meritocrática de que “é preciso formar-se como profissional para ganhar mais e trabalhar melhor”, também anulam a nossa possibilidade de resistir à tecnologização, em busca de mais privacidade e individualização, ou seja, ao exercício do direito de programarmos a nossa individualidade. Na civilização do capitalismo individualizado, trabalhar a maior quantidade de tempo possível está atrelada ao direito de viver uma vida virtualizada e programada nas e pelas redes sociais. A prova disso é a relação das pessoas e a utilização do WhatsApp pessoal para questões de trabalho, sem falar em todos os demais aplicativos disponíveis de internetização da vida privada e laborativa. Na sociedade da formatação profissional, todos os trabalhadores tornam-se escravos digitais.

A programação da vida das pessoas é racionalizada pelas diretrizes capitalistas, baseadas essencialmente na acumulação flexível de capital. Assim, a flexibilização não se reduz à redução e eliminação dos direitos sociais, mas também flexibiliza as linguagens das ciências, dos empresários, dos profissionais, referenciadas na tecnologia. Eis uma característica fundamental da sociedade em rede: líquida, flexível e racionalizada.

Dessa forma, as tecnologias passam a integrar e comandar o funcionamento dos meios de produção das cadeias produtivas, dos diversos setores econômicos, e o capital financeiro comanda a produção e seu uso. O próprio trabalhador é programado porque todo o processo de valorização do valor, valorização do capital e força do trabalho é programado.

4. Tecnologização e virtualização do ensino superior

Todas as potencialidades do trabalho social são despertadas pela química da formatação profissional. Entretanto, todas as atividades formativas são programadas e voltadas à formatação de programadores e usuários da tecnologia associada à manutenção do sistema capitalista. No caso da formação de professores, somos formatados principalmente pelos ministérios e secretarias de educação bancária, institucionalizada pelas escolas e universidades, executadas por professores e estudantes. Por outro lado, nosso fazer acadêmico está cada vez mais burocratizado pelos sistemas informatizados de gestão institucional. Tudo isso supervisionado pelos gestores escolares e universitários: os intelectuais orgânicos do capital que se constituem protagonistas da programação da pedagogia bancária (BEZERRA, 2019a). Assim se constitui o sistema nacional de ensino bancário, programado e atualizado por políticas educacionais, governamentais e, por fim, empresariais.

Nesse contexto, o tripé ensino-pesquisa-extensão esquece de um elemento essencial na formação profissional: o estudo como elemento essencial à afiliação estudantil. Para as instituições capitalistas, o importante é que o estudante seja formatado aos procedimentos e normas da tecnologização da vida acadêmica. Com isso, os estudantes são incluídos na vida universitária por meio da premiação com os mais diversos tipos de bolsas de estudo, de docência, de permanência e iniciação científica.

O mecanismo formatador assim se torna o mesmo que deveria afiliar os estudantes ao mundo acadêmico: a percepção de bolsas de estudo para subsidiar recursos para estudar e aprender. Esquece-se o tipo de estudo em que dedicamos nosso tempo livre de exercício laboral para o envolvimento em atividades de leitura e escrita, pois é preciso cumprir horas no laboratório, na escola ou na escrita acadêmica orientada para eventos específicos. Em outras palavras, as bolsas de estudo e permanência, que deveriam ser subsídios para dedicarmos nosso tempo livre ao trabalho duro da apropriação de conhecimentos, corrompe-se pela escravização à tecnologização e burocratização do métier universitário. Logo, a formação universitária da atualidade não busca a formação de si pautada no desenvolvimento de intelectuais transformadores, críticos, autônomos e contra-hegemônicos (GIROUX, 1997), mas sim a formatação docente (MOURA, 2021; 2022) de estudantes zumbis, robotizados pela burocracia da vida universitária e comprometidos exclusivamente com a tecnologização e a virtualização das relações essenciais para o mundo do trabalho.

Por exemplo, na formatação docente, existem três políticas universitárias que são essenciais para assegurar a tecnologização dos estudantes zumbis na civilização capitalista da acumulação flexível: a política curricular baseada no ensino e na racionalidade técnica (MOURA, 2022), a política de formação de professores centrada na prática e a política de estágio curricular supervisionado baseada no perfil da exclusiva formação profissional voltada aos interesses do mercado de trabalho (BEZERRA, 2019b).

Sob a égide de tais políticas, os aspectos humanos da formação humana são esquecidos e a formação profissional, na civilização capitalista, opera a coisificação humana, transfigurando o ser humano em mercadoria, ou seja, em estudante zumbi que se torna profissional formatado. Consolidando assim a alienação de si das pessoas como pressuposto necessário para que se materialize a formatação no universo do capitalismo histórico.

Assim, Paulo Freire (FREIRE, 1987; 1996) posicionou-se contra a pedagogia bancária, reelaborando a teoria da pedagogia com vistas à formação humana. A pedagogia bancária é aquela que nos aliena, ontologicamente, em nossas formações. Dessa maneira, propôs uma nova forma de se entender a pedagogia com vistas à humanização das pessoas: a pedagogia libertária ou a “educação como prática da liberdade” (FREIRE, 1967).

A partir de suas obras, o referido autor mostra-nos como nos alienamos e fazemo-nos estranhos às nossas próprias pessoas e ao mundo socialmente criado, desde a alfabetização, com as sugestões do mundo externo e da orientação educacional praticada nas escolas. É assim que nos afiliamos às linguagens das máquinas programadas ao invés da intelectualidade do estudo, pois se encontram ligadas intimamente ao ensino bancário e às formas de ensinar e aprender consequentes institucionalizadas por esse projeto de sociedade.

 

5. Entre a formação de si e a formatação docente

O carro-chefe do ensino bancário é a ideia de ensino por meio da transferência de conhecimento. Isso se constitui o principal mito da educação bancária, pois, “ninguém educa ninguém. Educamo-nos em comunhão mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1983, p. 79).

Em outras palavras, o educando não é um saco vazio ou quadro em branco em que o professor deve preencher com todo o seu conhecimento, de forma estática e inquestionável. Historicamente, a tensão da pedagogia bancária com as formas mais livres de educar remontam à Grécia Antiga, mais precisamente ao período socrático. Nesse tempo, havia um permanente embate entre a maiêutica de Sócrates em relação às formas de filosofar dos sofistas, estes podendo ser considerados os precursores da pedagogia bancária atual.

Essa visão de formação  praticada pelos sofistas foi reconstruída e reformada pela ratio studiorum dos jesuítas e pela consequente racionalização do mundo a partir do Iluminismo. Atualmente, é travestida pelas intenções democráticas como a “Educação para Todos” como forma de incluir todas as pessoas em um mesmo paradigma social: a inserção no mundo do trabalho por meio da formação educacional. Assim, a perspectiva de ensino bancário consolidou-se em uma tradição importante no âmago da histórica formação humana.

Ao mesmo tempo, a crítica à pedagogia bancária remonta aos socráticos, sendo ampliada e reconstruída pelos filósofos helênicos, como os estoicos e os céticos. No século XVI, foi defendida como uma forma de crítica à tirania por Etienne de La Boétie (1999), na obra O discurso da servidão voluntária, por exemplo. Com diversas formas de expressão na história, o desejo de se libertar dos grilhões de uma educação desumanizadora funda uma nova tradição: a pedagogia baseada na liberdade do estudante, que põe em evidência a potência da formação humana e que enxerga o educando como protagonista de sua apropriação de conhecimento e consequentes aprendizagens. O que existe em comum à crítica gira em torno da busca de uma formação que se compromete com a formação de si das pessoas, a autonomia intelectual e a igualdade de inteligências.

A tradição contrária ao ensino bancário não propõe a formação de si como um meio ou uma finalidade de adaptação ao mercado, mas sim como a experiência da liberdade última do ser humano vivida por meio do estudo. Também não diz respeito ao mercado de bolsas estudantis trocadas por serviços prestados à universidade ou à comunidade, favores políticos ou à nova burocratização tecnológica do fazer universitário. De uma forma geral, a formação de si não se compromete o ensino meritocrático, mas com o estudo como elementos central da formação e da afiliação estudantil. Nesse caso, o estudo passa a ser evidenciado pela máxima socrática “só sei que nada sei” e por uma segunda máxima incorporada pelas tendências libertadoras: o estudo é uma maneira de viver, uma forma de filosofia, ou seja, de amor à sabedoria.

Já nos disse Salomão, em seus Provérbios: “A sabedoria é a coisa principal; adquire, pois, a sabedoria; sim, com tudo o que possuis, adquire o entendimento” (Provérbios, 4:7). Dessa maneira, para se dedicar à sabedoria, é necessária uma dedicação intransigente ao estudo. Para a Filosofia Antiga, um filósofo é quem dedica sua vida ao estudo, que tem a coragem de fazer do estudo um modo de vida e sua filosofia de vida, e não quem sabe decorado as máximas do estoicismo ou de qualquer outra escola filosófica.

Dito de outra forma, o amor à sabedoria exige que seus amantes empenhem seus corpos e almas às obras estudadas e à atividade laboriosa de escrita. Aí surge um problema: apenas é possível estudar em tempo livre. Porém, apesar de ser exercitado no tempo livre, o estudo é uma forma de trabalho duro, que não pode ser comprado com bolsa ou salário em troca do desempenho de metas de performance acadêmica ou profissional. O que nos parece uma contradição, pode ser explicado da seguinte forma: estudo é um tempo dedicado à apropriação de conhecimentos e não ao esforço implicado em um trabalho social, de transformação da natureza em valor de uso. Assim, o estudo é uma maneira de viver em que as pessoas se metamorfosearem na figura social de estudante, estudioso ou educando, rompendo assim com os ditames da formação profissional e do ensino bancário em que os alunos aprendem essencialmente com a transmissão dos professores.

Logo, esse tipo de trabalho é a essência da formação de si enquanto possibilidade ética-estética-política-humana; ou melhor, é uma formação de exercício espiritual ou ascese (HADOT, 2016), uma forma de trabalho artesanal em que as pessoas são os próprios artesãos de si, cuidadores de si e escultores de si mesmos. O resultado dessa atividade amplia desmesuradamente o campo dos sentidos e das percepções humanas, na condição de estudiosos ou filósofos. Dessa forma, toda a interioridade humana é revolvida. Temos, nessa formação, na imanência da formação de si, a busca de uma educação como busca e prática da liberdade, que Freire nomeou enquanto pedagogia libertária ou libertadora.

6. Morte e vida da pedagogia no ensino remoto

A grande e mais grave consequência do ensino bancário pode ser vista no silêncio sepulcral dos estudantes universitários em sala de aula durante o recente período de ensino remoto, baseado na virtualização da aprendizagem e tecnologização do ensino. É o silêncio cultivado ao longo da escolarização e da vida dos estudantes e dos professores: da pré-escola aos programas de pós-graduação. Nesse sentido, a pedagogia bancária é baseada no silenciamento ofuscado pelas metas e competências de aprendizagem, cujas quais impõe que as aulas devem acontecer com ou sem a aprendizagem dos estudantes, pois, o que mais importa na formatação profissional, é a sua preparação para o mundo do trabalho.

Eis uma pedagogia da morte, pois nela se esvai a própria noção de diálogo entre vidas de forma essencial para que os processos de ensino e aprendizagem aconteça. O único método dessa nova versão bizarra do ensino remoto é o monólogo entre um falante, desesperado por vomitar seus conhecimentos prontos e acabados para sua plateia de mudos. Além do seguinte agravante: durante o período de isolamento social recente, com o advento das aulas remotas, não foi somente uma plateia de mudos assistindo às aulas virtuais, mas também uma plateia sem rostos, acentuando ainda mais o caráter monológico e autocrático do ensino bancário.

Nesse contexto, temos um ensino voltado apenas à transmissão dos conhecimentos mais básicos possíveis e dentro dos limites da audição e da visão, sem interatividade e sem reflexão. Portanto, os estudantes operaram a máxima moral antiquada de que “os estudantes não devem responder aos mais velhos”.

Exigidos e acostumados a viverem em silêncio profundo, os estudantes em salas de aula, virtuais e presenciais, fazem do silêncio um valor universal. E o silêncio da sala de aula é transformado em um ethos. É assim que as salas de aula transformaram-se em lugares estranhos, parecidos com velórios. Lugares de uma liturgia fúnebre, com palestras, missas e cultos ao invés de interação e diálogo. Lugares de silêncio, nos quais a vontade de viver livre por meio do estudo, da pesquisa e da apropriação dos códigos do mundo através dos sentidos e faculdades mentais foi abatida ou quase totalmente anulada. É o lugar inóspito onde vivem os estudantes zumbis

Mas por que se deve imperar o discurso da morte sobre a vida nas salas de aula remotas? É possível enxergar uma relação entre o discurso da morte e a educação para a cidadania? É possível formar-se por meio do silêncio? Formar professoras que deverão fazer, frequentemente, o uso da voz e da palavra, quando exercerem suas atividades de docência ou de gerenciamento da rede de ensino? Nós defendemos a ideia de que o silêncio, cultivado nas salas de aula, pelos atores pedagógicos, é uma atitude de exaltação à morte e à antipedagogia.

Muito antes da sociedade das TICs e das aulas remotas, considerava-se que as professoras que sabiam controlar as turmas eram mais bem qualificadas. Tal qualidade era materializada na capacidade de manter a turma em silêncio e na transmissão de conteúdos programáticos. Por outro lado, acreditamos que o silêncio sepulcral nas salas de aula é um indício de morte ou mutilação dos sentidos e percepções humanas. Ainda que existam pessoas que defendam este propósito com uma energia visceral e política, rumo a um mundo melhor...

Em nossa opinião, fala e escrita são berros e gritos da vida que se rebelam contra o silêncio da morte e da mutilação dos sentidos e das percepções humanas. Fala e escrita exteriorizam a vontade de ser e viver livre no mundo por meio do ato de estudar. Por outro lado, devemos ter cuidado para não banalizarmos as nossas vidas naquilo que nos ocupamos diariamente, vivendo exclusivamente para o trabalho social. Porque assim morremos e vivemos com e nas ocupações diárias.

Destarte, nas aulas remotas da universidade da tecnologização e virtualização das relações não se pratica mais apenas a morte da voz, mas também a invisibilidade dos rostos. Os estudantes praticam a morte quando, com um click, desligam as suas câmeras nos encontros virtuais que seriam para a apropriação de conhecimentos, exercendo o direito de permanecerem calados. Fazem-se de ocultos e mortos.

Nas aulas presenciais, tínhamos a prática ou concreção da morte dos sentidos no silenciamento, exceto da visão e da audição. Agora, nas aulas remotas e encontros virtuais, a morte e a mutilação consagram-se na ocultação de rosto dos estudantes, restando aos estudantes apenas alguns resquícios de audição e visão. À concreção da morte no silêncio acadêmico, somam-se as câmeras desligadas e as bolsas de aquisição de equipamentos tecnológicos e internet para os estudantes menos favorecidos economicamente. Estamos diante de um cemitério virtual das aulas remotas e da liberdade de estudar, decorrente das atuais formas de vivência universitária.

Em perspectiva, é através deste tipo de ensino que as pessoas são mercantilizadas pelo ensino bancário, porque a mercantilização é a empresa consequente da morte ou da mutilação dos sentidos e percepções humanas. A mercantilização das pessoas é materializada na profissionalização, ou seja, na conversão das pessoas em mercadorias de uma profissão. Conversão operada por disciplinas de um currículo técnico e suas práticas que processam a domesticação dos professores e estudantes às formas de produtividade acadêmica e profissional. Na formação de professores, tais linhas de trabalho são entendidas rotineiramente em campos de estudo chamados de “Profissão Docente” e na “Instrumentalização para o ensino”. São componentes de um currículo com a intenção de promover a servidão voluntária (LA BOÉTIE, 1999) e a subserviência dos atores pedagógicos aos ditames do capital.

Por isso, o ensino bancário constitui-se numa pedagogia do silêncio e, consequentemente, da morte ou da mutilação das percepções e sentidos humanos, em contraposição à pedagogia libertária ou da vida. Uma pedagogia que dá vontade de ser e viver livre entendendo o estudo como uma maneira de viver, e não apenas para se passar de ano, cumprir metas e conquistar diplomas. A pedagogia bancária e seu ensino característico formam estudantes zumbis que vão apenas às aulas para ganhar nota, passar de ano e, por fim, conquistar um lugar no mercado de trabalho. Este é um processo de ensino e aprendizagem que destrói a autonomia intelectual dos atores pedagógicos. Destroem assim, pelo menos três dos seus componentes vitais:

  1. Destroem a liberdade dos professores compartilharem, na condição de estudantes junto aos seus educandos, também estudantes, os conhecimentos que lhes são apropriados pelos caminhos do estudo. A morte desta liberdade concretiza-se quando se impõe o currículo prescritivo da pré-escola à pós-graduação. Resta-nos a simples pergunta: Por que não são os professores e estudantes que elaboram seus currículos, gerando a necessidade de seguir propostas exógenas das secretarias de educação e do próprio MEC?
  2. Destroem a vontade de os professores serem livres e viverem livres no estudo. O acúmulo de imensa carga horária não permite que haja tempo livre suficiente para uma dedicação tão dura, artesanal e laboriosa. Para facilitar a vida dos mesmos, embutem-se na formação dos professores e professoras a linguagem das didáticas e metodologias ativas de ensino, como forma de facilitação e profissionalização do ensinar-aprender. As didáticas de ensino também operacionalizam a integração empresa-universidade-escola, com a institucionalização do estágio como o fornecimento de mão-de-obra barata e qualificada para a educação básica, por meio dos estágios obrigatórios e dos programas institucionais de iniciação à docência. Apesar disso, as disciplinas didáticas não se desfazem do que é o carro-chefe do ensino bancário: a falsa ideia ou mito de que os professores transferem ou transmitem conhecimentos aos estudantes. Logo, o bom professor é aquele que “passa” bem os conteúdos e o bom estudante é aquele que recepta a maior quantidade de conhecimento, em silêncio.
  3. Destroem a vontade de viver livres no estudo pela apropriação de conhecimentos, conduzindo sua história de vida acadêmica e afiliação estudantil. Logo, institucionaliza-se a vontade de ser profissional. As ideias de piso salarial e promoção por metas resultados na carreira é uma forma que a meritocracia encontrou de alienar os professores e afastá-los do mundo dos estudos, para que tal forma de destruição assegure a continuidade de mão de obra qualificada para a civilização capitalista em que o cerne do processo formativo é a mercantilização das pessoas através do ensino bancário. Encontramos o auge da mercantilização do ensino superior nas licenciaturas que formam os professores, pois se constituem na chave da manutenção das diretrizes da educação bancária e liberal.

Assim, de forma sistemática, regular e persistente, o silêncio e o ocultamento dos rostos dos estudantes e a pedagogia das bolsas para os estudantes comportados delineiam um novo cenário educacional, perverso e desmotivador, para discentes e docentes, nos processos formativos e pedagógicos dentro da sociedade da tecnologização e virtualização das relações e processos educativos.

7. Para Concluir

Este artigo compreendeu alguns pontos de reflexão para advertir que a ausência de voz e do rosto dos estudantes, nas aulas remotas, marcam a liturgia do ensino bancário e o velório da pedagogia da libertação. Em uma nova realidade educacional, o tipo “ideal” de estudante que, cada vez mais solitário e silencioso, forma-se para atender aos ditames do mercado capitalista e corrompe a sua afiliação estudantil conduzindo uma vida universitária cada vez mais burocratizada pela tecnologização em detrimento do estudo. Caracterizamos assim um contexto que pressupõe formação, pedagogia e tecnologias peculiares. Consequentemente, elas delineiam, configuram e conformam um determinado projeto de sociedade: a civilização capitalista - líquida ou pós-moderna.

Diante destas determinações geohistóricas que programam a vida pessoal e laborativa, deparamo-nos com algumas perguntas que precisam ser feitas, como um desabafo: por que os professores se comprazem e se conformam ao genocídio coletivo provocado pelo ensino bancário? Por que não se escandalizam e se solidarizam com um projeto de pedagogia libertária? Por que os professores aceitam os currículos prescritos pelos especialistas de outros países e aderem à tirania do ensino bancário? E, por fim, por que se curvam à liturgia do cumprimento de metas, materializada em políticas governamentais de recompensa financeira, entregando-se acriticamente aos currículos normativos e avaliações de desempenho em larga escala? A partir desse silenciamento maior, os atores pedagógicos acomodam-se nesse cemitério pedagógico, amontoando-se como zumbis contaminados pelo vírus do ensino bancário por entre as salas de aula virtuais, as verdadeiras sepulturas da pedagogia libertária.

O que sabemos com relativa certeza é que o vírus do ensino bancário contagiou a formação humana ou Paideia, pelos últimos quatro séculos. Coincidentemente, é o mesmo período de ascensão e consolidação do regime de economia capitalista pelo planeta. Assim, é um caso de pandemia em que o vírus está aglutinando as perspectivas de formação e de pedagogia em dispositivos tecnológicos que se tornaram imanentes às atividades humanas, às ocupações humanas, metamorfoseando a humanidade do gênero humano. Por outro lado, o material genético deste vírus é o trabalho estranhado ou alienado, que forja a civilização capitalista e a acumulação flexível de capital, transmitido de geração em geração.

O vírus da pedagogia bancária inibe a liberdade de estudar aos professores e estudantes, pois está absolutamente comprometido com a ideologia da profissionalização, que mercantiliza o trabalho pedagógico e aniquila a vontade de ser e de viver no estudo. O estudo deve ser suprimido das rotinas dos trabalhadores porque é incompatível com a dedicação exclusiva ao lucro no mercado de trabalho.

Nesse ínterim, não há espaço para o exercício espiritual do estudo (BEZERRA, 2019b). O estudo, enquanto atividade humana sensível, que deve ser praticada de forma regular, sistemática e metódica. Uma vacina conhecida para combater o ensino bancário é o estudo regular, sistemático e progressivo praticado com métodos, entendendo “a formação de uma personalidade humano-histórica como objetivo último da ação educativa” (PARO, 2018, p. 79).

O tempo socialmente necessário à apropriação dos conhecimentos sempre esteve em disputa na civilização capitalista. E essas disputas aumentaram exponencialmente na sociedade da tecnologização e virtualização do conhecimento. Assim, surgiu uma luta infindável pela conquista do tempo livre, envolvendo a ocupação com as artes em geral, como a arte do estudo, o artesanato literário e a escultura de si por meio da leitura e da escrita. Em outras palavras, surgiu a luta em ocupar-se com a literaturalização do mundo contra as ocupações comprometidas com o mundo do trabalho, em que as pessoas são coisificadas em mercadorias e transformadas em acessórios das máquinas ou ocupadas em funções administrativas para a obtenção de metas e resultados.

No âmbito da divisão social, técnica e territorial do trabalho estranhado, nega-se persistentemente o tempo socialmente necessário à apropriação de conhecimentos pelo estudo. Isso já ocorre há séculos. É possível que este contexto mantenha-se enquanto durar a civilização capitalista. Esta negação parece-nos legitimada e consentida pelos próprios atores da formatação por, pelo menos, três convicções:

  1. Que se aprende ouvindo e prestando atenção no que os professores falam. Isso se dá por uma valorização excessiva da audição e da visão no trabalho intelectual, desde quando as aulas eram presenciais. Agora, com as aulas remotas, abrem-se margens para a supressão dos rostos dos envolvidos, encurtando a percepção dos sentidos. Isso vai nos descomprometendo com princípios da própria neurociência, que já demonstraram o quanto é importante escrever, fazer mnemônicos, registrar as anotações que relacionam categorias e conceitos. Justamente porque quando escrevemos nosso corpo todo é mobilizado. Entretanto, essa mobilização exige que exista um espaço apropriado para isso, por mais que muitas pessoas dizem conseguir estudar no transporte coletivo ou nos seus intervalos de trabalho. Para resolver isso, o que existe de mais significativo é a confecção de mapas mentais ou flashcards para a revisão de conteúdos. Mas nem tudo se restringe aos mnemônicos, pois o estudo exige espaços adequados à sua realização. Pelo menos, em bibliotecas escolares, universitárias e residenciais. Porém, falta-nos entender e investir nestes espaçosvivos como entrelugares identitários da afiliação estudantil bem como compreender os resultados de rotinas específicas de estudo;
  2. Que o bom desempenho é determinado por um ensino de qualidade, frequência, assiduidade e a realização constante de avaliações. Tais requisitos mascaram o fracasso da institucionalização do ensino bancário por intermédio da aprovação compulsória, típica das rotinas escolares e acadêmicas da atualidade. Hoje, nas escolas e universidades, todos os estudantes serão aprovados, concluirão seus estudos e receberão certificados válidos no mercado de trabalho.
  3. Que a razão de ser das escolas e universidades é a profissionalização dos estudantes para se inserirem no mercado de trabalho. Isso permite a transformação das pessoas em mercadorias e confere atribuições de princípios de gestão empresarial às instituições de ensino, levando à desvalorização da autonomia intelectual e seu empoderamento consequente, atrelando o sucesso da formação apenas ao bom desempenho nas empresas capitalistas.

Por fim, todas as crenças possuem em comum a desvalorização essencial da relevância do estudo e da formação humana ante à preparação para o mundo do trabalho, a formatação profissional. Esta consequência do ensino bancário reduz as expectativas de vida intelectual e de empoderamento dos sujeitos em formação. Com isso, fracassa o objetivo da educação enquanto projeto de humanização, socialização e singularização humana.  

Agradeço aos professores Ciro Bezerra e Marcelo Tadeu Motokane pelas sugestões, indicações e contribuições para este trabalho.

REFERÊNCIAS

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NOGUEIRA, M. A.; NOGUEIRA, C. M. M. Bourdieu e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

PARO, V. H. Professor: artesão ou operário? São Paulo: Cortez, 2018.

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