Metadados do trabalho

Carolina Maria De Jesus E A Formação Do Leitor Literário Para Além Dos Cânones: Abordagem Com Alunos Do Primeiro Ano Do Ensino Médio Ebtt Do Ifal

Camila Silva Santos

Esse texto relata a experiência de uma atividade de formação de leitores, proposta pela disciplina Língua Portuguesa I, no Instituto Federal de Alagoas, com turmas do ensino remoto, no período da pandemia de COVID-19. Entendendo a literatura como forma de libertar, humanizar e instruir buscou-se apresentar a escritora Carolina Maria de Jesus e a sua obra Quarto de Despejo: diário de uma favelada, para desenvolver nos educandos os letramentos literários, numa tentativa de não reforçar a escolha das instituições pelos cânones, como também de discutir temas como racismo, miséria e apagamentos sociais. Nesse sentido, com amparo nas concepções de Rojo (2015), Cosson (2018), Candido (1995), Dionísio (2014), Zilberman (2009), Freire (1991), Soares (2003) e Ferrez (2005), entre outros sobre (multi) letramentos, multimodalidade e literatura marginal, intentou-se orientar os educandos para uma leitura significativa, prazerosa e engajada, privilegiando os sujeitos envolvidos, com o escopo de afastar preconceitos. Como resultado, obteve-se a clareza de que a formação do leitor literário é possível, com muitos desafios, não só pelo distanciamento do ensino remoto, mas pela grandiosidade da tarefa de levar a leitura para a vida dos discentes.

Palavras‑chave:  |  DOI: 10.5212/uniletras.v.35i1.0007

Como citar este trabalho

SANTOS, Camila Silva. Carolina Maria de Jesus e a Formação do Leitor Literário para além dos Cânones: Abordagem com Alunos do Primeiro Ano do Ensino Médio EBTT do IFAL. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2022 . ISSN: 1982-3657. DOI: https://doi.org/10.5212/uniletras.v.35i1.0007. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/396-carolina-maria-de-jesus-e-a-forma%C3%A7%C3%A3o-do-leitor-liter%C3%A1rio-para-al%C3%A9m-dos-c%C3%A2nones-abordagem-com-alunos-do-primeiro-ano-do-ensino-m%C3%A9dio-ebtt-do-ifal. Acesso em: 16 out. 2025.

Carolina Maria de Jesus e a Formação do Leitor Literário para além dos Cânones: Abordagem com Alunos do Primeiro Ano do Ensino Médio EBTT do IFAL

Introdução

            As reflexões dessa proposta pedagógica foram motivadas a partir da necessidade de desenvolver uma atividade com quatro turmas de primeiro ano do EBTT – Ensino Básico, Técnico e Tecnológico, do Ensino Médio Técnico Integrado (nos cursos de Técnico em Agropecuária e Técnico em Administração) do Instituto Federal de Alagoas – IFAL, Campus Santana do Ipanema, no ensino remoto, devido à pandemia do COVID-19. Tal processo ocorreu no primeiro semestre do ano de 2021 e foi concebido para ser uma maneira de minimizar a distância e o contingente formato de ensino/aprendizagem, pois o contato inicial com a turma se deu de forma on-line, bem como para ser avaliativo e formativo, posto que à medida que os alunos se comprometessem e participassem, por meio de suas colocações e do seu empenho, permitiria que a professora os conhecesse, com acesso ao repertório linguístico e as percepções do texto a ser lido, o que propiciaria meios para um maior envolvimento coletivo e uma maneira de avaliar mais justa.

            Na contemporaneidade, o trabalho com o texto literário em turmas regulares já se mostra bastante desafiador, visto que exige do docente uma escolha atenta, uma mediação, um resgate de conceitos e contextualizações, enfim, um cuidado de não perpetuar práticas consideradas enfadonhas e repetitivas, como fichas de leitura ou resumos das obras. Outros fatores importantes são os vários estigmas que as aulas de literatura e leitura carregam, a exemplo da relutância por parte de muitos alunos, que dizem não gostar de ler, dos relatos de experiências questionáveis com outros docentes que não estimulam tal ato, cujo escopo dessa investigação não comporta um maior aprofundamento.      

            Nessa perspectiva, a formação de leitores em turmas de ensino remoto, com o horário das aulas bastante reduzido, concretizou-se numa experiência intensa, mas muito enriquecedora como prática docente. Numa tentativa de desenvolver a fruição, sem fazer uso de uma tarefa avaliativa fixada num primeiro momento, desejou-se que o processo fosse leve e envolvente, sem perder de vista objetivos que levassem a consolidação da proposta. Para isso, vários pensadores da atualidade foram citados com o intuito de embasar a fundamentação teórica, a exemplo dos que pesquisam sobre as práticas assertivas de leitura de um texto literário, entre eles, Zilberman (2009) que ao dissertar sobre a experiência do leitor, dispõe que o ato de ler se perfaz como uma atividade sintetizadora, pois possibilita ao sujeito adentrar na esfera da alteridade sem prejudicar a sua subjetividade e a sua história. Ou seja, nas palavras da escritora, o leitor não esquece suas próprias dimensões, mas amplia as fronteiras do que ele já tem domínio, que ao usar a imaginação a compreende por meio do raciocínio.

            Assim, pensando em contribuir para a formação de leitores das referidas turmas, planejou-se uma sequência didática, ancorada nos preceitos de Cosson (2018), que discorre sobre o letramento literário e os meios para tentar efetivá-lo. Em sua obra Letramento literário: teoria e prática, o citado autor esquematiza formas de se trabalhar com literatura em sala de aula de maneira atrativa, estabelecendo etapas, a saber: motivação, introdução, leitura e interpretação. Essas sequências não são fechadas, apresentam um norte a ser seguido pelos docentes, e cabe a esses adaptá-las às particularidades de seus usos. Em relação ao primeiro passo da sequência básica, o autor afirma que a leitura exige uma preparação, uma antecipação, cujos mecanismos passam despercebidos, uma vez que são compreendidos de maneira muito natural. Isto é, a mencionada preparação demanda do professor uma mediação que emule o ato da leitura (COSSON, 2018). Passa então a denominar de motivação o primeiro passo da sequência básica do letramento literário, indicando que o seu núcleo intenta preparar o aluno para entrar no texto, frisando que o sucesso inicial do encontro do leitor com a obra depende de uma boa motivação.

            Ainda no entendimento de Cosson (2018), o letramento literário está, invariavelmente, conectado com o atual, independente de ser classificado como contemporâneo. É essa atualidade que gera interesse nos alunos, baseado nesse aspecto, a docente escolheu a escritora Carolina Maria de Jesus e a sua obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, pois levou-se em consideração a ementa da disciplina Língua Portuguesa I e o tópico Vozes poéticas femininas afrodescendentes e africanas e, principalmente, o anseio de não perpetuar apenas a tão arraigada leitura dos cânones na escola. O texto de Carolina é escrito em primeira pessoa, com uma linguagem coloquial, um diário da sua vida difícil, de mulher negra, favelada, mãe solo de três filhos, precursora da literatura marginal. Assim, achou-se por bem fazer uso da mencionada literatura para aumentar o leque de possibilidades dos discentes, atendo-se ao seguinte questionamento: não fosse nessa atividade, eles teriam acesso a esse texto? Outra premissa foi a oportunidade de dialogar com temas fundamentais para a formação de leitores críticos e engajados, a exemplo do racismo, da miséria e dos apagamentos sociais.

            De acordo com a Enciclopédia de Literatura Marginal (2022), o termo marginal  faz referência  a obras e autores que não são socialmente reconhecidos pela crítica comercial das grandes editoras, que se afastam dos cânones por ser uma  produção literária com textos que intentam ir de encontro às principais tendências literárias, privilegiando trabalhos relacionados a grupos desprestigiados pela cultura dominante.

            Com isso, esse estudo, metodologicamente, baseia-se também na pesquisa bibliográfica de outros renomados teóricos, a exemplo da educação literária e libertadora de Freire (2019), Candido (1995) e seu entendimento de literatura como poderoso instrumento de instrução e educação, Rojo (2015) e Dionísio (2014), abordando a multimodalidade e os multiletramentos, já que a atividade se deu com momentos síncronos e assíncronos, utilizando vários recursos como texto, imagens e aparelhos tecnológicos. Por fim, Ferréz (2005) com seu apontamento sobre literatura marginal elucidou a grande potencialidade da escrita engajada.

Reflexões sobre os conceitos de (multi) letramentos, multimodalidade e literatura marginal

            A escola é (ou pelo menos deveria ser) o espaço de formação e desenvolvimento de sujeitos em todos os seus aspectos, físicos, emocionais e acadêmicos, essa premissa foi primordial para o constructo dessa atividade. Sabe-se que o momento atual exige dos alunos altas habilidades de leitura e escrita, uma vez que os textos e suas tecnologias, com imagens, sons, vídeos, cores, emoji[i] e emoticon[ii] têm essa característica.            

            Tal contexto obriga o leitor a desenvolver várias estratégias para fazer as inferências necessárias à interpretação dessa nova linguagem, assim chamada a multimodalidade. Mas para que essas experiências sejam exitosas elas precisam de orientação/mediação e é aí que a escola e o docente têm que preparar o educando e o seu repertório (linguístico e literário), pois são muitos os espaços que concorrem com o meio acadêmico, a exemplo das redes sociais, tão difundidas no presente momento, que nem sempre ajudam, uma vez que muito se distanciam da teoria. Do contato com a diversidade de textos, nas várias plataformas em que estão consolidados e a possibilidade do leitor entendê-los é que surge o conceito de multiletramentos.

            Salienta-se aqui a necessidade de explicitar o conceito de letramento, posto que os multiletramentos são desdobramentos dele. De acordo com os estudos de Soares (2003, p.72), exímia pesquisadora sobre esse tema.

Letramento é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e de escrita, em um contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais. Em outras palavras, letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais; é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social.

 

            Ainda nesse sentido, Kleiman (1995, p.19) compactua com Soares (2003) a respeito do conceito de letramento, afirmando que ele é definido como “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Pode-se perceber, por meio dessas definições, que o letramento se dá em vários locais, no cotidiano dos sujeitos, não precisando de um rigor metodológico ou de um modelo preestabelecido para se materializar, vai de um culto religioso a uma atividade esportiva, desde que envolva a interação dos sujeitos com a escrita.

            De acordo com a pesquisadora Roxane Rojo (2012), a perspectiva dos multiletramentos é permeada por vários letramentos (digital, sonoro, visual, hipertextual, leitura e escrita, literário) e também das semioses, que são os vários registros das linguagens envolvidas na fala e escrita. Dessa feita, toda essa multiplicidade requer do aluno uma nova maneira de ler o mundo, já que os textos estão materializados em um leque de opções e diagramações em plena ascensão pela mídia audiovisual, a saber - a multimodalidade.

É o que tem sido chamado de multimodalidade ou multissemiose dos textos contemporâneos, que exigem multiletramentos. Ou seja, textos compostos de muitas linguagens (ou modos, ou semioses) e que exigem capacidades e práticas de compreensão e produção de cada uma delas (multiletramentos) para fazer significar (ROJO, 2012, p. 19).

 

            Dionísio (2014) também assevera sobre os multiletramentos:

Multiletrar é, portanto, buscar desenvolver cognitivamente nossos alunos, uma vez que a nossa competência genérica se constrói e se atualiza através das linguagens que permeiam nossas formas de produzir textos. Assim, as práticas de multiletramentos devem ser entendidas como processos sociais que se interpõem em nossas rotinas diárias (DIONÍSIO, 2014, p. 41).

 

            Em síntese, a leitura atual dos textos, sejam eles literários ou não, demanda do educando tanto os multiletramentos, quanto a multimodalidade, visto que eles envolvem várias linguagens. E esta é a grande questão para o ensino de literatura, o educador planejar e repensar suas práticas com o fito de formar leitores, corroborar com a interpretação, priorizar o conhecimento de mundo dos alunos, e para que isso aconteça, faz-se necessário um fazer docente engajado, atualizado e conectado com as novas tecnologias.

            Consoante aos escritos de Freire (1991), a prática docente e a leitura têm que ser pautadas na criticidade, só assim abrirão caminhos para uma educação libertadora, esse é um dos cernes de seu estudo.

A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensaiar escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado - e até gostosamente - a “reler” momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo (FREIRE, 1991, p. 5).

 

            É importante ressaltar que a escola, na maioria das vezes, é o único ambiente em que os alunos têm contato com a leitura de um texto literário, isso é resultado de uma sociedade desigual, pois nem todos que dela participam têm acesso aos bens culturais por ela produzidos.  Com isso, tornou-se imprescindível aliar a tecnologia às experiências de leitura de textos literários, para que assim as instituições de ensino exerçam seu papel com efetividade, que é o de formar leitores profícuos e não sejam mais um exemplo de atraso e afastamento dos estudantes por falta de identificação.

            Ademais, o novo cenário pandêmico revelou a necessidade de repensar o fazer pedagógico, posto que as práticas usuais não são suficientes, consequentemente, os usos dos artifícios tecnológicos podem se materializar como úteis instrumentos de todos os profissionais que trabalham com a educação. O letramento digital é extremamente necessário para que esse modelo de ensino (remoto) aconteça de forma menos danosa para os educandos, urgindo-se falar sobre os letramentos literários, assim no plural, por implicar as várias linguagens envolvidas nesse processo: as leituras, as escutas, as ilustrações, as performances, entre tantas outras práticas sociais que os compreende.

            Rildo Cosson (2018) elabora muitas reflexões a respeito do ensino da literatura na escola, conforme já citado nesse estudo, o autor afirma que o docente e a escola devem assumir um papel de fortalecer e ampliar a educação literária, pois entende que só assim ocorrerá a formação de uma comunidade de leitores que saiba reconhecer seus laços. Assevera, ainda, que através do exercício da leitura e da escrita dos textos literários pode se desnudar as regras impostas pela sociedade letrada.

[...] devemos compreender que o letramento literário é uma prática social e, como tal, responsabilidade da escola. A questão a ser enfrentada não é se a escola deve ou não escolarizar a literatura, (...) mas sim como fazer essa escolarização sem descaracterizá-la, sem transformá-la em um simulacro de si mesma que mais nega do que confirma seu poder de humanização (COSSON, 2018, p.23).

 

            Corrobora-se nesse trabalho com as ideias de criticidade em relação à leitura, tão brilhantemente explanadas pelos autores aqui referenciados, acreditando que ela é um excelente instrumento de mudança social, justamente por poder tocar em assuntos tão relevantes por meio dos textos. A leitura literária pode ser realizada só por deleite e contemplação, mas quando se pode aliar a discussão de temas que acrescentem o repertório dos educandos, de uma maneira assertiva, o trabalho flui, foi o que se pretendeu com a atividade de sequência didática, percebendo-se uma alternativa para levar os letramentos literários por meio de práticas engajadas, ao ler Carolina Maria de Jesus e sua literatura marginal.

            O termo “marginal”, já explicado nesse texto pela Enciclopédia de Literatura Marginal, refere-se ao afastamento do cânone literário e não à conotação dada pela sociedade a pessoas, como delinquente, bandido. Isto é, o uso dessa nomenclatura é para se referir a uma escrita periférica, desenvolvida por escritoras e escritores dos estratos mais precarizados da classe trabalhadora e sem renome, configurando-se como uma literatura de resistência, que aborda temas vivenciados pelas camadas desprestigiadas, revelando suas lutas. Os escritores dessa modalidade acreditam que esse tipo de conhecimento também deve ser considerado uma leitura significativa, digna de prestígio e visibilidade.

             Ferréz (2005) profere que a literatura marginal é feita por minorias, sejam elas raciais ou socioeconômicas, produzida à margem dos núcleos centrais do saber e da grande cultura nacional. Pondera ainda que alguns críticos dizem que sua principal característica é a linguagem, ou seja, a maneira que os escritores falam e contam as histórias, frisando que não concorda com tal afirmativa: “bom isso fica para os estudiosos, o que a gente faz é tentar explicar, mas a gente fica na tentativa, pois aqui não reina nem o começo da verdade absoluta”.

            Ao explanar sobre a formação do leitor, Antonio Candido (1995) disserta sobre a importância do conhecimento das literaturas, desde a sancionada, isto é, a que tem prestígio de poder, à literatura proscrita, a proibida, a censurada, o que na atualidade chama-se literatura marginal.

Por isso é que em nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante (CANDIDO,1995, p. 46).

 

            Com efeito, é sabida a importância da leitura da literatura marginal na escola, ressalta-se que esse trabalho não rechaça a leitura dos cânones, inclusive a julga fundamental para a plena formação do leitor, mas acredita que ela não pode ser exclusiva, como acontece na maioria das instituições. O leitor profícuo precisa ter contato com vários tipos de leitura, para assim conhecer todas as nuances de um escritor, de uma obra, uma vez que muitas das vezes a rejeição ao ato de ler vem da falta de identificação.

            No que tange aos temas essenciais para a formação cidadã que o contato com a literatura marginal pode propiciar, privilegiou-se o racismo, a miséria e os apagamentos sociais, já que são trabalhados de forma muito natural por Carolina Maria de Jesus, por, infelizmente, serem tão presentes no seu cotidiano. Em suma, apresentou-se um texto literário periférico, através de uma sequência didática- por assim dizer adaptada, pois com horários reduzidos e ensino remoto, as condições de acompanhamento da atividade foram bastante atípicas, com isso, intentou-se formar leitores críticos e reflexivos num cenário adverso.

 

Sequência didática: formação do leitor literário a partir da leitura de Quarto de despejo: diário de uma favelada

            A sequência didática foi realizada em quatro turmas do primeiro ano do Ensino Médio, conforme já citado, duas do curso Técnico em Administração e duas do curso Técnico em Agropecuária, nos turnos matutino e vespertino, totalizando cento e quarenta e quatro alunos. Por conta do ensino remoto, os horários das turmas foram reduzidos, os encontros semanais que eram três, cada um com duração de 50 (cinquenta) minutos, foram reduzidos para 60 (sessenta) minutos na semana, turmas com dois encontros - um com 20 (vinte) minutos e um com 40 (quarenta) minutos - e outra com três horários seguidos, totalizando 60 (sessenta) minutos, tudo isso com a aprovação do colegiado dos referidos cursos. No período de 1º de dezembro 2020 a 30 de junho de 2021. A descrição da duração das aulas faz-se necessária para evidenciar o desafio de trabalhar uma ementa nesse modelo, mas trata-se de um relato de uma situação atípica e pandêmica.

            As aulas aconteceram pela plataforma Google Meet, cada turma era cadastrada no Google Sala de aula, os educandos tinham o link para acessar os momentos síncronos, as apostilas e outros materiais, a exemplo de atividades e avaliações, a serem usados pela docente. Por se tratar de educação básica, exigia-se dos educadores (por portaria) a gravação das aulas, visto que vários alunos tinham problemas de conexão com a internet, principalmente, os residentes nas áreas rurais, ressalta-se que o Campus de Santana do Ipanema também recebe alunos dos municípios circunvizinhos, sendo eles: São José da Tapera, Olho D’água das Flores, Maravilha, Ouro Branco, Pão de Açúcar, Poço das Trincheiras e Carneiros. Além da gravação, no início de todas as aulas os professores tinham que pedir autorização para gravar o áudio e a imagem dos alunos, posto que eram menores de idade e nem todos assinaram o termo de autorização, por estarem de maneira remota.

            A sequência didática da obra Quarto de Despejo: diário de uma favelada foi iniciada com uma explanação sobre os gêneros relato, diário e autobiografia, seguida de um convite para uma conversação, uma vez que as características dos referidos textos muito se assemelham à escrita da autora, por serem feitos em primeira pessoa, geralmente com uma linguagem simples, contendo traços de coloquialidade, descrições do cotidiano e pensamentos. Denominado de motivação por Cosson (2018), esse primeiro passo da mencionada sequência trilha um caminho para os letramentos literários, configurando-se como o preparo para o aluno entrar no texto. Portanto, é de fundamental importância os educadores de Língua Portuguesa realizarem a tarefa com certo cuidado, pois será um divisor de águas na abordagem da obra, afastando-se das longas introduções, de contexto sociais, históricos e biográficos, estratégias comumente usadas na apresentação de um livro a turmas.

            Ressalta-se, então, a compreensão de Silva e Silveira (2013, p.94) a respeito do letramento: “Na perspectiva do letramento literário, o foco não é somente a aquisição de habilidades de ler gêneros literários, mas o aprendizado da compreensão e da ressignificação desses textos, através da motivação de quem ensina e de quem aprende”. Isto é, a tarefa do docente é muito maior do que a apresentação de uma obra ou de um autor, pois formar leitores proficientes requer um esforço, com estratégias e metodologias.

            A primeira quebra de expectativa do planejamento aconteceu nessa fase, em virtude da pouca interação, da maioria dos discentes estar com as câmeras desligadas, apenas uma sala interagia, diariamente, com alguns alunos usando tal recurso. Esse fato reverberou numa troca muito prejudicada, por conseguinte, achou-se sensato não exigir a abertura das câmeras, para não ser mais um empecilho na dinâmica do ensino remoto, que já acarretava em tantas mudanças para os alunos e também por ser um meio de experimentação e observação do comportamento das turmas. Em relação a esse passo, acredita-se não haver necessidade de uma pormenorização das turmas, em razão do comportamento ter sido muito parecido, com falas pontuais.

            A participação exígua dos discentes nesse primeiro momento, somada ao primeiro contato com essa forma remota e às queixas das atividades acumuladas, provocaram na docente algumas angústias, cogitou-se a possibilidade de mudança no planejamento, mas após uma análise das condições experienciadas, foi decidido que deveria haver uma espera, pelo menos até a terceira etapa da sequência – a leitura, afinal, todos estavam vivenciando esse ensino pela primeira vez.

            No segundo momento, chamado de introdução, Cosson (2018) sugere apresentar o autor e a obra de forma breve, com o escopo de aguçar a curiosidade dos educandos, pensou-se, então, numa aula expositiva com o uso de slides, para apresentar Carolina Maria de Jesus como sua potencialidade merece. Essa atividade foi mais proveitosa e com maior colaboração discente, posto que a situação difícil da autora despertou interesses, desde a idade que ela tinha quando escreveu a citada obra, até onde se encontrava quando faleceu. Cabe salientar que após a introdução, a versão em pdf da obra foi disponibilizada no Google Sala de Aula, devido ao distanciamento físico do Campus, como também pela ausência do título na biblioteca, julgou-se por bem não deixar a cargo dos estudantes a procura pelo livro.

            É pertinente citar, que apesar da melhora na interação com os microfones ligados, surgiram algumas perguntas no chat do Google Meet, as quais permitiram que a docente constatasse o tipo de experiência que os alunos estavam acostumados, a saber: “vai ter que fazer resumo desse livro?”, “é para responder questionário?”, “é para fazer apresentação da leitura para a turma?” e a mais usual: “vai valer nota?”. Esses questionamentos aconteceram em todas as turmas, com diferenças mínimas, mas todas com o mesmo conteúdo. A partir desse momento, confirmou-se a necessidade do desenvolvimento dos letramentos literários, já que o comportamento dos discentes revelou um grave desconhecimento de como perceber uma obra literária e toda a sua potencialidade, de criticidade, formação e desenvolvimento pessoal.

            A respeito da introdução, Cosson (2018) expõe que o docente não pode se estender muito nessa etapa, afirmando que o objetivo é o aluno receber a obra de maneira positiva, um exagero na quantidade de informações, além de ser cansativo acaba por tolher a autonomia do leitor. Ou seja, deve-se fazer uma seleção criteriosa dos elementos que serão abordados do texto, sem adentrar no livro propriamente, para oportunizar que os alunos façam suas próprias pesquisas, assim que as demandas surgirem no curso da leitura, cabendo ao docente incentivar que anotem termos desconhecidos, dúvidas que surjam, a fim de que o entendimento da obra se faça por completo. Essas etapas são fundamentais no desenvolvimento dos letramentos literários, já que são os caminhos que os leitores deverão percorrer nas suas futuras leituras, isto é, algo para levar para a vida.

            Um ponto merece especial atenção, a condição de acesso dos discentes, tanto às aulas, como à obra, pois em pesquisa feita pelo Campus e divulgada nas reuniões da coordenação pedagógica para os docentes e equipe, constatou-se que mais de 90% dos alunos acompanhavam as aulas por celulares e tablets (muitos doados pelo IFAL, após levantamento socioeconômico). Sabe-se, portanto, que não se tratava de condições ideais para aprendizagem, principalmente, para a leitura de uma obra, visto que várias são as distrações que envolvem essa forma de estudo, contudo, diante de uma pandemia, a experiência era válida para minimizar as adversidades enfrentadas no campo acadêmico, desde que pensando sempre em propostas significativas e embasadas por teóricos renomados.

            A percepção do aceite da segunda etapa foi bem mais evidente, com destaque para duas turmas, uma do turno matutino do curso Técnico em Agropecuária e uma do vespertino do curso Técnico em Administração, as interações ocorreram através das próprias vivências dos alunos com a leitura, explicitaram preferências, outros relataram aversão ao ato e por fim, um grande número de leitores da bíblia chamou a atenção da docente. Essa foi inquirida sobre as suas experiências profissionais e pessoais, num momento de grande descontração, situação que no ensino presencial acontecia naturalmente, tornou-se um estímulo que a professora precisava para seguir com a atividade.

            A terceira etapa - leitura - foi adaptada, na sequência de Cosson (2018) há uma preferência para que ela seja feita extraclasse, todavia intentou-se introduzir o início da obra para que assim existisse um maior interesse pelos discentes, deixando a leitura integral para ser executada, posteriormente, com acompanhamento semanal e com um prazo para sua finalização. Dessa forma, a versão em pdf do livro foi apresentada com o recurso de slides e a docente realizou a leitura em voz alta dos primeiros parágrafos, após foi feito o convite se alguém se habilitava a continuar. As turmas tinham de trinta e cinco a trinta e oito alunos matriculados, por conta da conexão, nunca nenhuma estava completa, a maior participação de leitura em voz alta foi de cinco alunos. Mais um desafio para a docente, que acreditava que com a câmera desligada os alunos se sentiriam mais confiantes para ler.

            Uma situação merece ser colocada, vários alunos mandaram e-mail e mensagens pelo aplicativo de conversação, justificando a falta de interação, disseram não possuir um local adequado em casa para estudar e caso abrissem o microfone para ler, a turma escutaria o barulho da casa deles. Esse momento foi bastante delicado, pois expôs a vulnerabilidade socioeconômica, que já era de conhecimento dos profissionais, mas vivenciá-la causou choque e uma enorme sensação de impotência. A partir desses relatos ocorreu uma adequação no planejamento, constatou-se que a interação em turma deveria ser cuidadosamente analisada, para que a avaliação fosse justa.

O acompanhamento da leitura foi realizado, semanalmente, durante as aulas a docente questionava como estava o andamento e se colocava à disposição para tirar possíveis dúvidas ou outras questões que surgissem. Muitos alunos relatavam a dificuldade do número de atividades que o ensino remoto demandava, como também a quantidade de disciplinas, visto que era a primeira experiência deles no Ensino Médio e Técnico. Na análise da professora, havia uma falta de planejamento dos educandos, já que nas reuniões de coordenação existia a preocupação que os professores não passassem tantas atividades, mas reconhece-se aqui a dificuldade dessa forma sui generis de ensino.

            A interpretação, última fase dessa sequência didática, diz respeito ao entendimento do aluno em relação ao texto, suas inferências, suas construções de sentido, enfatizando a questão literária, seria o prazer estético despertado, seguidos da socialização com a turma. Cosson (2018) afirma que esse é um momento de resposta à obra lida, que não pode ser diminuído a um julgamento de gostar e desgostar, por isso faz-se imprescindível a mediação do professor, conduzindo as possíveis posições dos educandos em relação ao texto. O autor aponta que na interpretação existe a contextualização “que permite o aprofundamento da leitura por meio dos contextos que a obra traz consigo” e que apesar dela ser ilimitada, ele apresenta sete tipos para indicar um caminho para guiar o docente no alcance dos letramentos literários pelos discentes, são elas: teórica, histórica, estilística, poética, crítica, presentificadora e temática.

            Essa sequência privilegiou a contextualização temática, visto que desde o início foi pensada a utilização da escrita de Carolina Maria de Jesus para falar sobre a literatura marginal e tudo que é abarcado por ela, inclusive os temas já citados aqui como racismo, miséria e apagamentos sociais. Frisa-se, portanto, o esforço da docente em privilegiar a obra, como sugere Cosson (2018), não deixando que a discussão dos temas polemizasse ou tivesse mais repercussão que o próprio texto.

            Planejou-se dedicar uma semana para que as socializações acontecessem, pois com o horário reduzido, o tempo por turma seria de apenas sessenta minutos, como já relatado nesse trabalho. Mais um desafio pedagógico, mediar falas com poucos minutos para cada estudante, mas no decorrer da atividade percebeu-se que foi efetivo, uma vez que com a pouca participação por turma de quem finalizou a leitura no tempo previsto, o tempo tornou-se adequado.

            As colocações dos alunos foram muito interessantes, a riqueza dos entendimentos individuais sobre uma obra é muito importante e o momento da socialização serve para isso, dividir com o grupo, escutar a opinião do outro, concordando ou divergindo. Os relatos sobre os estereótipos em relação a como a sociedade acredita que só pode escrever quem tem todas as condições ditas adequadas caem por terra no texto de Carolina Maria de Jesus e essa questão foi muito abordada em todas as turmas, o espanto de alguns educandos em ver uma linguagem simples ter notoriedade. A respeito dessa escrita informal, todo o texto propicia uma identificação muito grande com quem mora em locais periféricos, a maneira de falar, os acontecimentos, que apesar de não ser a realidade de todos os alunos, a grande maioria se viu representada em algumas narrativas. As questões da miséria e do apagamento foram muito citadas na fala dos educandos, em razão da escrita de Carolina ser envolvente e afirmar a todo tempo quão dura é a vida de quem vive com tão pouco, detalhando uma rotina de insegurança alimentar, uma verdadeira luta por sobrevivência.

            Em relação aos apagamentos sociais, a escrita elucida o descaso do Estado, a dureza da invisibilidade, os maus tratos sofridos por seus filhos quando estava ausente por não ter uma rede de apoio, o julgamento da sociedade por ela ser mulher, catadora de materiais recicláveis e mãe solo, o preconceito com a favela e os favelados. O diário da favelada permite que o leitor vivencie com ela seu sofrimento, suas angústias, o que também foi pontuado pelos discentes, alguns disseram que a leitura era forte, pois ler que a pessoa tinha sofrido preconceito ou tinha ido dormir com fome junto a seus filhos era muito impactante.

            Abordou-se ainda a literatura marginal, a docente justificou nesse momento a escolha da obra, o motivo de querer apresentar essa escrita que não é privilegiada em muitos locais, falou-se sobre outros escritores e escritoras, a saber: Maria Firmina, Conceição Evaristo, que agora está sendo reconhecida, mas já relatou várias dificuldades em lançar suas obras em editoras no início de sua jornada, o já citado Ferréz. Houve o cuidado de fazer a diferenciação do que seria o termo marginal, de expor a relevância dessa literatura para a formação dos estudantes, para a criticidade deles e se enfatizou a importância do cânone literário, para que eles reconheçam, leiam, apropriem-se da grandiosidade dele, mas que tenham curiosidade de ler algo novo, sem tanto prestígio, mas de igual relevância.

            A referida socialização também foi adaptada, posto que à medida que os educandos avisavam a docente da dificuldade de conclusão da tarefa, percebeu-se a quantidade escassa dos que estavam conseguindo realizá-la. Sendo assim, de um total de 144 alunos, 48 concluíram a sequência didática, o que correspondem a 33%.  Devido a isso, ocorreu uma modificação na forma de avaliar, os educandos que não conseguiram terminar a sequência, foram submetidos a uma avaliação com os assuntos abordados na disciplina, pois qualquer atividade escrita que fosse pedida em relação à obra inacabada, cairia nos antigos hábitos que a escola costumava fazer: questionários, resumos e isso estava bem distante do que a proposta pedagógica admitia.

            Por fim, diante do contexto, acredita-se que a atividade foi positiva, apesar de poucos alunos terem finalizado a leitura, alguns foram tocados pela obra e proporcionaram uma grata surpresa para a docente. No referido Campus existe um projeto de Língua Portuguesa, denominado Letras no Sertão, que em 2021 aconteceu de forma virtual, por conta do ensino remoto, e uma turma do curso de Agropecuária apresentou Maria Carolina de Jesus e sua obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, socializando a autora para todas as turmas e demais pessoas que estavam assistindo, uma vez que a atividade foi transmitida pelo canal do Youtube do evento.

            Compagnon (2009, p.60) elucida sobre a importância da literatura, afirmando que ela “deve ser lida e estudada porque oferece um meio - alguns dirão até mesmo o único - de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida”. Percebe-se aqui, que os discentes que apresentaram Maria Carolina de Jesus no referido evento, experienciaram a situação descrita pelo autor, apesar de não viverem nas condições da escritora, foram arrebatados pelo prazer estético proporcionado pela leitura, o que causou uma sensação de grande satisfação na docente.

            O trabalho com a sequência didática oportunizou uma experiência intensa em relação à formação do leitor, proporcionando a docente a fazer descobertas, testar o seu poder de se reinventar diante de novas formas de ensino, e, principalmente, lidar com frustrações, porque a interação e os números não foram os esperados na fase de planejamento da atividade. No que tange aos alunos, acredita-se que a tentativa de desenvolver os letramentos literários foi eficiente, porque proporcionou reflexões sobre estratégias de leitura, recursos que beneficiarão suas futuras práticas, em especial aos que conseguiram concluir a atividade.

 
 

 

 

Considerações Finais

            A escola é um ambiente de formação socialmente referenciado e como tal tem responsabilidades para com os educandos, uma das mais importantes seria o letramento, pois envolve todo um conjunto de saberes, linguagens, enfim, práticas sociais. Esse letramento precisa ser desenvolvido com o esforço de toda a equipe pedagógica, juntamente com o professor de língua portuguesa, efetivado por práticas pedagógicas assertivas para que ele aconteça a contento.

            A formação do leitor literário é necessária e urgente, a contemporaneidade exige do educando uma gama de saberes para ler o mundo, isto é, o sujeito partícipe da sociedade utiliza várias estratégias para interpretar as linguagens da vida moderna. A aquisição de tais habilidades proporciona uma formação efetiva e maiores oportunidades acadêmicas, além de ser uma forma de combater a cultura da superficialidade, tão difundida atualmente, com relações efêmeras, redes sociais com textos e vídeos curtos, músicas sendo adaptadas num formato menor, tudo coopera para o que é de fácil absorção.

            A aquisição dos letramentos literários assegura uma maior criticidade, com a ressignificação de temas, novas maneiras de ver a vida e de se relacionar com as pessoas, enfim, são várias as benesses de ter contato com esse tipo de leitura. Uma das funções da literatura é humanizar, como explicitou Candido (1995), ele afirma que não há povo e não há homem que possa viver sem a literatura, ela está presente no cotidiano das pessoas e é capaz de desenvolver em nós a humanidade, na medida em que nos torna compreensivos para a sociedade, para a natureza e para o nosso semelhante.

          Essa experiência de formar leitores com a obra de Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo - diário de uma favelada, com alunos do primeiro ano do Ensino Médio foi reveladora, pois proporcionou a reflexão tanto da docente como dos citados leitores, apesar de alguns estudantes demonstrarem certo estranhamento com a linguagem, com alguns termos considerados inapropriados, a exemplo da linguagem extremamente coloquial (atenta-se que a docente explicitou que a licença poética permite que os autores redijam da maneira que preferirem, no caso dela, especificamente, sua escrita reflete sua formação acadêmica que foi até o segundo ano do Ensino Fundamental) e do relato detalhado do cotidiano de uma favelada, catadora de materiais recicláveis, pôde-se perceber que muitos foram tocados com o conteúdo da narrativa. Alguns revelaram ter sido a primeira experiência de ler uma obra por inteiro, que antes pegavam resumos da internet e faziam as atividades solicitadas pela disciplina, o que já era de conhecimento da professora, mas escutar esses relatos fez com que esta percebesse que a sequência didática de Cosson (2018) despertou um novo olhar em alguns leitores, como também o desejado letramento literário e isso já pode ser considerado um feito, principalmente, se forem ponderadas as situações adversas do período remoto e pandêmico.

            Entende-se, portanto, que numa atividade como essa as estatísticas não podem ser analisadas individualmente, isto é, se olharmos a quantidade de estudantes das quatro turmas que participaram da atividade e fizermos um comparativo com os que realmente conseguiram efetivá-la, pode-se tomar como um fracasso, mas diante do contexto explicitado, acredita-se que pelo esforço da docente, dos discentes que conseguiram e até mesmo dos que tentaram, a sequência didática foi muito válida.

            Espera-se que essa experiência de atividade de formação de leitores contribua para um ensino de literatura que não se prenda aos cânones, configurando-se como uma alternativa de afastamento de antigas práticas de perpetuar a “língua padrão” através da leitura dos clássicos, ao abrir oportunidades para escritores contemporâneos, evidenciando, então, a sonhada democratização do saber.

 

 

[i] É um pictograma ou ideograma, ou seja, uma imagem que transmite a ideia de uma palavra ou frase completa. O termo é de origem japonesa, composto pela junção dos elementos e (imagem) e moji (letra).

 

[ii] É a junção das palavras inglesas emotion (emoção) e icon (ícone). Consiste em símbolos tipográficos usados em conjunto para formar figuras que ajudem a simular emoções humanas, como a tristeza ou a alegria, por exemplo.

Referências

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COMPAGNON, Antoine. Literatura pra quê? Belo Horizonte: UFMG, 2009.

COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2018.

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ROJO, R. Pedagogia dos Multiletramentos: diversidade cultural e de imagens na escola. In: ROJO, R.; MOURA, E. (Orgs.). Multiletramentos na Escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. p. 11-32.

SILVA, Antonieta M. de O.  C; SILVEIRA, Maria I.  M. Letramento literário na escola: desafios e possibilidades na formação de leitores. Revista eletrônica de Educação de Alagoas. v. 01, n. 01, 1º semestre de 2013, p. 92-101.

SOARES, Magda. Letramento Literário: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

ZILBERMAN, Regina. O papel da literatura na escola. Via Atlântica, n. 14, dez. 2009. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/50376. Acesso em: 01 jun. 2022.

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