“Que lugar é dado à vida, à morte e ao corpo humano (em especial o corpo ferido ou massacrado)? Como eles estão inscritos na ordem do poder?”
Achille Mbembe - Necropolítica
Estamos imersas(os) numa conjuntura política, ética, sanitária, ambiental, econômica, educacional que se configura de forma mais intensa na atual Pandemia do Novo Coronavírus. Porém, o que vivemos não é tão novo assim:
Desde a década de 1980 – à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão dominante do capitalismo e este se foi sujeitando mais e mais à lógica do sector financeiro –, o mundo tem vivido em permanente estado de crise (SANTOS, 2020, p.5).
Crise essa que se instaura num projeto neoliberal para mantê-la permanente, o que, segundo Santos (2020), explica os cortes nas políticas sociais (educação, saúde, previdência social) e na degradação dos salários. Objetivando assim, não resolver para legitimar a concentração de riqueza e boicotar medidas para mitigar tamanha catástrofe ecológica iminente.
Nessa perspectiva, ressalta-se a questão da desigualdade social amparada no genocídio das “minorias” que já vínhamos enfrentando, porém, intensifica-se no atual governo e nesta pandemia. A noção foucaultiana de biopoder já não é mais suficiente para explicar as formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte. É o que sugere, com devida lucidez, Mbembe (2018), ao propor a noção de necropolítica, capaz de provocar a destruição massiva de pessoas, configurando “mundos de morte” em que a população é submetida a condições de vida, conferindo-lhes estatuto de “mortos-vivos”. É o que também dialoga com as ideias de Rolnik (2019) ao trazer as assimetrias das formas de sociedade estabelecidas pelo regime colonial-capitalístico, cujas relações de poder manifestam-se nas relações de raça, gênero, sexualidade, religião, etnicidade, colonialidade, mais ainda, no regime educacional sustentado por epistemologias colonizadoras do ser e do saber. No campo micropolítico, a hegemonia deste regime colonial-capitalístico, “constitui uma patologia altamente agressiva com graves sequelas não só para o destino da humanidade, mas para o do planeta como um todo, já que afeta os quatro planos do seu ecossistema” (ROLNIK, 2019, p.124).
Sendo assim, ao reconhecer que a política de subjetivação guiada pelo inconsciente colonial-capitalístico é um grande desafio para as atuações pelas “margens esquerdas”, cabe compreender a sociedade como produtora de tamanha exclusão social e educacional, como pauta Saviani (1984) na Pedagogia Histórico Crítica. Diante disso, Catherine Walsh (2007) acredita que a educação pode contribuir para construção de seres críticos e sociedades mais justas, principalmente a partir das rupturas epistemológicas coloniais. Nessa perspectiva, nada mais coerente do que adotar os questionamentos convidativos de Walsh (2014), assumindo o movimento e a postura decolonial tanto para apontar problemas, para avançar em suas análises e compreensões, como também, para impulsionar processos necessários de aprendizagem e intervenção: ¿Cómo pensar y ejercer esta práctica hoy y ante los momentos políticos actuales? ¿Cómo caracterizar estos momentos? ¿Y cuáles son los movimientos teóricos que surgen, llaman y provocan? (WALSH, 2014, p. 6).
Uma das respostas para esses questionamentos surge com a necessidade de integrar outras formas de saberes no processo educacional, considerando o legado intelectual e ancestral dos povos originários, construindo e fortalecendo conhecimentos próprios coerentes com a nossa realidade brasileira, latina. Isso se configura com a Interculturalidade como projeto político epistêmico, buscando enfrentar os legados coloniais e buscando incluir as geopolíticas do conhecimento.
Na filosofia do Abya Yala, há um convite ao projeto investigativo para aprofundar o pensamento filosófico das culturas anteriores ao “pensamento eurocêntrico” (Herrera-Salazar, 2020). Na perspectiva Filosofia da Libertação, Enrique Dussel (2001), argumenta que a filosofia pensa a realidade:
Pero porque es reflexión sobre la propia realidad parte de lo que ya es, de su propio mundo, de su sistema, de su espacialidad. Pareciera que la filosofía ha surgido en la periferia como necesidad de pensarse a sí misma ante el centro y ante la exterioridad, o simplemente ante el futuro de liberación (Dussel, 2001:15)
Pensando a Educação como potência para transformação dos processos opressivos, ressalta-se a necessidade da inclusão das cosmologias dos povos originários nos Projetos Políticos Pedagógicos das instituições educacionais, desde os níveis mais básicos, até os níveis de ensino superior.
O núcleo ético mítico da Filosofia do Abya Yala, movimento latino-americano dos povos originários, tem como norte a Terra em plena maturidade. Herrera-Salazar (2020), a partir dessa perspectiva, aborda que a diversidade cultural dos povos originários do mundo filosofam, interpretam e representam a realidade com diversas particularidades contextuais. Assim, surge a hipótese de que a interpretação cultural do mundo surge de uma orientação crítica da realidade. Nesse sentido, todo grupo humano no princípio constrói seu “universo cultural” por meio da racionalização mítica como totalidade ontológica.
O Brasil, de acordo com dados do Censo Demográfico realizado em 2010 pelo IBGE, é um país constituído, por mais de trezentas etnias indígenas, guardiões de 274 línguas diferentes e distribuídos em áreas rurais e urbanas. Cada etnia dessa apresenta sua cosmologia, cultura, costumes, forma de compreensão e relação com o universo. No entanto, a forma como se ensina sobre os “índios” nas escolas orienta o olhar do povo brasileiro para uma iconografia universal, reducionista e pautada em projetos políticos que desconsideram tal diversidade, poder, engajamento dos povos originários.
Mignolo (2010) ao expor uma “Aiesthesis Decolonial”, critica as epistemologias coloniais por apresentarem uma retórica orientadora das expectativas do que se deve ser. Essas expectativas são naturalizadas operando acerca da colonialidade do ser, do sentir (aesthesis) e do saber (espistemologia). Nessa perspectiva, sabe-se que a lógica da colonialidade é pautada pela opressão e da negação, quando o primeiro opera na ação de um indivíduo sobre o outro, em relações desiguais de poder. Já o segundo se exerce sobre os indivíduos de maneira que negam o que já sabiam. Por isso, é válido concordar com Mignolo (2010), acerca da importância do constante processo de decolonização da aesthesis (sentir), das formas de sentir e de saber (teorizar) o que sentimos.
Para tanto, nada mais pertinente do que criar, construir e apontar caminhos decoloniais que não negam a modernidade, mas que permitam vivenciá-las de outra maneira, sem ser absorvida e controlada por ela. Walsh (2007) sugere uma educação distinta a partir das geopolíticas do conhecimento e da necessidade de construção de processos educativos decolonizadores, na medida em que se deve considerar com seriedade tanto as contribuições como as implicações de histórias locais e de epistemologias negadas, marginalizadas e subalternizadas. Nessa perspectiva, “para confrontar a hegemonia e a colonialidade do pensamento ocidental, é necessário enfrentar e fazer visível nossas próprias subjetividades e práticas, incluindo práticas pedagógicas” (WALSH, 2007, p.30).
Partindo da importância de um projeto político e epistêmico, a questão da interculturalidade precisa ser considerada nos Projetos Políticos Pedagógicos uma vez que as relações horizontais se constroem através da criação de novas ordens sociais, como aponta Walsh (2007). Assim, a interculturalidade como projeto político é muito mais que multiculturalismo. Ela constrói um imaginário distinto de sociedade, permitindo pensar e criar as condições para um poder social diferente, como também, uma condição diferente tanto do conhecimento como da existência. Ou seja, construir saberes e sentidos outros da existência.
Defendendo a presença dos saberes indígenas nessa construção de saberes e sentidos outros da existência como ponto de partida, vale retornar ao pensamento filosófico de toda Abya Yala que se foi intercambiado, acumulado e compartilhado através do diálogo capaz de manter uma unidade comunicativa.
Asi, la sabiduría, la astronomía, la política, la economía y otros saberes están entrelazados por conducto de un núcleo duro ético-mítico que es compartido por diversos pueblos. La filosofía como reflexión crítica de la realidad, interpretación y creación de la narrativa de los mitos fundacionales, compartía elementos sustanciales comunes en los diversos pueblos del continente. De este modo, los mitos de la creación comparten un núcleo duro, pero cada pueblo desarrolló prácticas culturales de manera heterogénea condicionadas por los diferentes contextos donde habitan y se desenvuelven. La heterogeneidad del medioambiente no impidió la conservación y pervivencia continua de un núcleo común u origen familiar, pero sí permitió la diversidad del pensamiento y prácticas plurales en la vida cotidiana (HERRERA-SALAZAR, 2020, p. 84).
Assim, a compreensão do mundo racional se materializa de maneira formal com a criação de símbolos e mitos fundadores de cada cultura, sendo potencialmente utilizados como ferramentas pedagógicas como resistência crítica e transformativa dos processos opressivos. Além disso, na América do Sul, “o pensamento descolonial vive nas mentes e corpos de indígenas bem como nas de afrodescendentes” (MIGNOLO, 2008, p. 291).
Corroborando com essas perspectivas, de certa forma, essa orientação pedagógica libertária já fora defendida por Paulo Freire (2014), quando considera, relevante, necessária e potente, as experiências informais nos processos de ensino e aprendizagem.
Se estivesse claro para nós que foi aprendendo que aprendemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas, nos pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam cheios de significação (FREIRE, 2014).
Na mesma perspectiva, “precisamos indicar de que lugar, de que território, estamos falando. Toda educação é necessariamente situada historicamente” (GADOTTI, 2012, p.1). É justamente através da diversidade e da interculturalidade que se pode assumir, de fato, um compromisso ético político com a transformação da sociedade, desde uma posição crítica, popular, política, social e comunitária. Ou seja, integrar e incluir para emancipar. Dessa forma, a Educação Popular pode ser manifestada através dos saberes dos povos originários.
Um dos princípios originários da educação popular tem sido a criação de uma nova epistemologia, baseada no profundo respeito pelo senso comum que trazem os setores populares em sua prática cotidiana, problematizando-o, tratando de descobrir a teoria presente na prática popular, teoria ainda não conhecida pelo povo, problematizando-a também, incorporando-lhe um raciocínio mais rigoroso, científico e unitário (GADOTTI, 2012, p. 7).
É trazendo esses saberes originários, populares para os processos curriculares que se pode acreditar em outros mundos possíveis, como também acredita Gadotti (2008), educando para mudar radicalmente nossa maneira de produzir e reproduzir nossa existência no planeta, portanto, é uma educação para a vida sustentável. Essa compreensão é capaz de orientar diversos processos éticos acerca das produções acadêmicas, reorientando, inclusive, as formas de pesquisar e de articular políticas públicas com maior participação popular. Outra noção importante é a de deslocar os povos originários do lugar de objeto a ser estudado, analisado, para o campo de pessoas ativas nas pesquisas, bem como nos processos de ensino e aprendizagem.
É no cenário atual de declarada necropolítica, opressão e políticas pautadas na morte e não na vida que se intensifica a necessidade de romper com o regime colonial-capitalístico que orienta o regime educacional sustentado pelas epistemologias colonizadoras do ser e do saber. Não dá mais para manter a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição de corpos humanos e populações como atos normalizados e amplamente imbricados no inconsciente coletivo.
Nesse contexto, uma das formas de romper com tais estruturas é resgatar os saberes tradicionais dos nossos povos originários, que sempre nos convidaram a aprender uma ética do bem viver, engajada na produção de vida e não de mortes. Povos com cosmologias diversas e sistemas de aprendizagem orgânicos capazes de resistir a anos de ataques institucionalizados.
É com a sabedoria popular que assumimos nossa história e não a história contada por outros países que continuam ditando como devemos aprender, ser e existir. É com Projetos Políticos Pedagógicos mais sensíveis, críticos, reflexivos e sustentáveis que os saberes dos povos da nossa história com suas realidades diversas são considerados, na medida em que deslocamos essas pessoas do lugar opressivo de objetos de colonização, extrativismo, genocídio e as permitimos estar como seres ativos nos espaços acadêmicos, nas diversas instituições, nas políticas públicas, proporcionando mundo melhores com a transformação da sociedade.
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