Este texto é excesso, dique destinado ao escoamento do que, em nossas experiências, temos encontrado. Disputamos constantemente a condição de ser andarilhas, indigentes, navegantes, des(viadas); condição que força o seu lugar no gesto apaixonado de fazer-pesquisa. Na experiência compartilhada, reside a inquietação que nos leva a encontrar sentido para permanecer aqui, nas sombras dos muros que a arquitetura racionalizante da Academia orgulhosamente levantou. Encontrar sentido é o propósito primeiro de nossas palavras.
Preferimos nos apresentar como cartógrafas, cada uma à sua maneira. Em nossas escritas, traçamos mapas que se encontram e que se distanciam, que põem em contato as linhas e formam zonas de possibilidades que somente se dão nos entrelugares. Na centralidade dos caminhos que se esbarram, há o apreço compartilhado pelas narrativas outras, chamadas afetuosamente de dissidentes. Nos arriscamos em inventar recursos, em agir ardilosamente, em acessar becos e vielas que a Academia não desconfia serem possíveis. Tudo isso na tentativa de amenizar as perdas ocasionadas pela infiltração das experiências sensíveis no dispositivo racionalizante da produção científica.
Nos parágrafos seguintes, procuraremos elaborar as linhas do que acreditamos ser um desses recursos. O desejo que nos motiva é o de ultrapassar as barreiras que a disciplinaridade impõe para explorar as encruzilhadas do encontro entre a cartografia disseminada por Gilles Deleuze e Félix Guattari e a teoria antropológica do imaginário, desenvolvida por Gilbert Durand, a serem postas ao serviço da aproximação com as narrativas dissidentes. São várias as inquietações a partir das quais resultam este plano de imanência, todas relacionadas à questão-orientadora de nossas reflexões: como a articulação entre elementos teórico-metodológicos da cartografia e da antropologia do imaginário pode contribuir para a inserção de narrativas dissidentes no campo epistemológico da Educação?
A noção de desigualdade epistêmica é central. Recupera os excessos do que se consolidou como expressões do Sujeito cognoscente, entidade que desloca o Ser para o campo da capacidade ascética, alcançável pelas vias da razão. A teleologia do conhecimento instaurou-se nas culturas ocidentais modernas de tal maneira que o arcabouço epistemológico e científico resultante tornou-se hegemônico, no interior do qual os próprios conceitos de epistemologia e de ciência adquiriram contornos. Dentre as múltiplas correntes de pensamento obstinadas em diagnosticar e desconstruir o paradigma racionalista, optamos pelas duas já mencionadas por acreditarmos na capacidade de tangenciarem, em campos específicos do saber, linhas de fuga compartilhadas.
O caminho a ser percorrido perpassa os seguintes objetivos específicos: refletir sobre o pensamento rizomático de Deleuze e Guattari a partir de seu mapeamento epistemológico; identificar aspectos desestabilizadores do Sujeito presentes na antropologia do imaginário de Gilbert Durand; e analisar as potencialidades das pesquisas que tocam ambos os campos teórico-analíticos para o deslocamento epistemológico da Educação.
Dentre o material bibliográfico previamente selecionado, destacamos as obras Conversações (1992) de Gilles Deleuze; Mil Platôs - vols. 1, 2, 3 e 4 (1995a; 1995b; 1996; 1997) e O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (2010), de Gilles Deleuze e Félix Guattari; Diálogos (1998), de Gilles Deleuze, em parceria com Claire Parnet; Cartografia Sentimental (2016), de Suely Rolnik; e As Estruturas Antropológicas do Imaginário (2012) e O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem (2014), ambos de autoria de Gilbert Durand. A leitura foi feita por meio da abordagem qualitativa, pela inerência aos aspectos de incompletude, de perspectivação e de dinamismo (MINAYO, 2012) que acreditamos envolver a produção de saberes.
Na tentativa de tocar as encruzilhadas, utilizamos de recursos próprios da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011), ainda que as perspectivas teórico-metodológicas analisadas fujam, na experiência do pesquisar, à objetividade das categorizações. As nuances que caracterizam e tornam possível o entrecruzamento foram investigadas a partir das seguintes dimensões-categorias: recorrências estéticas, que envolvem o apelo às sensibilidades e a valorização da imagem; e releituras epistemológicas, cujas reflexões apontam para a renúncia ontológica e para elucidação do dinamismo. Para chegar a elas, precisamos nos perder por entre os caminhos que as apontam.
2.1 Mapas da Filosofia Deleuze-guattariana: sujeito cognoscente, cartografias e pensamento rizomático
A filosofia de Deleuze se faz em contato com o que ele chama de Não-Filosofia, onde o pensamento não é só do campo da filosofia, mas também é da arte e da ciência, pois ambos produzem conhecimentos, epistemes que são modos diferentes de pensar. Isso indica que, para o autor, arte e ciência funcionam como intercessores, engrenagens em sua filosofia. “O essencial são os intercessores, a criação são os intercessores, sem eles não há obra” (DELEUZE, 1996, p. 160).
Temos, então, uma filosofia da confusão, tendo em vista que pensamentos se misturam de forma a provocar zonas de indiscernibilidade, ou seja, quando não se consegue diferenciar uma coisa da outra, estão juntas e misturadas. Suas considerações permeiam de forma aleatória e conjunta uma filosofia que é ética, política e estética, distanciando-se da Filosofia da Representação ou da tradição filosófica, propondo uma quebra de hierarquias que esta tradição impõe ao desenvolver reflexões sobre a arte e a ciência.
Como exemplo, vemos Hegel (1992) criando uma hierarquia, colocando a filosofia acima de tudo, e ciência e arte abaixo em suas estruturas, condição de arcabouço em que o pensamento se aprisiona de modo que o afeto, o corpo, a sensação, o desejo devam ser reprimidos pois desvirtuam o reto caminho da verdade. Esta se conforma ao Absoluto, determinando que o homem precisa questionar suas certezas, gerando um caminho de dúvidas que o deixará pronto para pensar filosoficamente e, então, conhecer o Absoluto. O Absoluto se configura por meio do homem e se manifesta no desejo que este tem de conhecer a verdade. Dessa forma, quanto mais o sujeito se conhece, mais está perto do Absoluto.
Partindo da análise hegeliana e traçando uma base para sua filosofia, Deleuze (2002) busca em Espinosa o entendimento da relação entre mente e corpo, pois a solução desse problema é fundamental para compreendermos quem somos nós. Nesse estudo, visualiza-se o confronto entre o Monismo (somos uma única substância) e o Dualismo (somos duas substâncias). As soluções epistêmicas psicofísicas afirmam que o homem é dividido em mente e corpo, havendo uma diferença ontológica. Em contraposição, a perspectiva de Deleuze e Espinosa é a pluralista, indicadora de que tudo que existe é uma só coisa e essa coisa é ao mesmo tempo material e imaterial. Trabalha-se com a ideia de “e”, as coisas não se anulam, elas coexistem.
Há, efetivamente, em Espinosa, uma filosofia da “vida”: ela consiste precisamente em denunciar tudo o que nos separa da vida, todos esses valores transcendentes que se orientam contra a vida, vinculados às condições e às ilusões da nossa consciência. [...]. Espinosa denuncia todas as falsificações da vida, todos os valores em nome dos quais nós depreciamos a vida: nós não vivemos, mantemos uma aparência de vida. (DELEUZE; 2002, p. 32).
A intenção de Deleuze é também estabelecer a noção do que é Ética e do que é Moral. Historicamente os filósofos não fizeram essa diferença, utilizaram esses termos quase como sinônimos. No entanto, Deleuze (2002) faz uma diferenciação quando diz que o Dualismo (o ser de duas substâncias) é uma moral e o Monismo (ser de uma substância) é uma ética. O dualismo não só divide, não só produz duas substâncias, mas também produz uma relação de causalidade, a ideia de que a mente é causa do corpo. Essa relação de dominação da mente sobre o corpo Deleuze chama de Moral. Já o Monismo como Ética, traz que o sujeito é ao mesmo tempo mente e corpo, não há uma hierarquia, há uma mistura, uma indiscernibilidade.
Importante explicitar nessa construção a noção de ética e moral para Immanuel Kant (2003), em que o autor considera que o sujeito já nasceria com a capacidade de diferenciar o certo do errado caracterizando a moral como inata. A ética na construção kantiana se daria única e exclusivamente por meio da razão e se basearia no dever, onde os sujeitos agem racionalmente motivados pelo dever. Deleuze faz uma crítica desse pensamento kantiano, pois na sua visão, trata-se de quebrar as hierarquias, não trocá-las, pois o que é ação na mente é ação no corpo. A ética é esse rompimento com a moral que cria essas hierarquias. “Ninguém jamais teve um sentimento tão original da conjunção ‘e’. Cada indivíduo, [...], possui uma infinidade de partes que lhe pertencem sob uma certa relação mais ou menos composta” (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 73).
No segundo período de suas elaborações epistêmicas, já em parceria com Felix Guattari, Deleuze volta-se para a compreensão de que a realidade é um conjunto de fluxos. Os autores descrevem uma Cosmologia dos Fluxos para combater a Metafísica do Sujeito que diz que existe um Eu, uma Pessoa, um Sujeito unitário, identitário, idêntico a si próprio, que não está em transformação e está fechado em si mesmo, tornando-se a base para tudo o que vem depois.
Sobre o processo de subjetivação, apontamos as ideias de Deleuze e Guattari (2011) quando afirmam que Eu, Pessoa, Sujeito existem, só que são produzidos, são efeitos de superfície. Os autores se propõem a investigar como esse Eu, essa Pessoa, esse Sujeito são produzidos em ato e a quem interessa essa produção nesse modelo interposto. Eu, Pessoa, Sujeito seriam uma intersecção de fluxos, pois somos o encontro de infinitos fluxos que nos atravessam, que interpassam em nós. O fluxo é sempre impessoal, ele não tem pessoa, ele é assubjetivo por não ter sujeito, não estando dentro da subjetividade moderna, como citado anteriormente.
A fim de dar vazão a esses fluxos, desenhamos como traçado metodológico a cartografia de narrativas dissidentes. Deleuze e Guattari (1997) apontam que a cartografia é um processo aberto, conectado a diversas linhas e dimensões, podendo a determinado momento, sem cronologia de tempo, ser desmontada, refeita e até se colocando como reversível aos indicadores que se mostram. O que procuramos retratar, em nossas pesquisas, corrobora um processo de investigação que “[...] pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagem de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social” (DELEUZE, GUATTARI, 1997, p. 22).
Uma questão fundamental da metodologia cartográfica é a estruturação que ela desenvolve ao fazer parte de realidades diferenciadas e causar rupturas na relação sujeito/objeto da pesquisa científica tradicional. Em oposição à dicotomia imposta pelo saber científico, a cartografia evoca situações de imanência, às quais forças externas se conectam com as afetações das subjetividades envolvidas na pesquisa.
Deleuze e Guattari (1996, p. 89) afirmam que essas conexões são compostas por linhas de visibilidade que articulam “regimes de luz que contemplam o visível e o invisível”, linhas de enunciação que vêm a ser “linhas compostas pelos regimes de enunciados”. São linhas de segmentaridade conceituadas como “linhas de estratificação, segundo as quais o rizoma é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.”, linhas de desterritorialização ou de fuga, “pelas quais o rizoma foge sem parar e que fazem parte dele também”. Corre-se sempre o risco de reencontrar nela organizações que reestratificam o todo e o singular, isto é, são linhas que se cruzam, causando mudanças ou alterações dos processos de agenciamento, que “é precisamente o crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões”.
Tais conceitos referem-se a um conjunto de práticas em que oscilamos entre nossa condição de estratificadas, domadas, organizadas e do outro lado estabelece um plano de consistência ao qual se tem a possibilidade de se desenvolver, de abrir-se à experiência, de estar envolta por multiplicidades, constituindo o rizoma, onde não existem dualismos, mas existem deformações dos enraizamentos. Rizoma, então, “não se constitui de unidades, e sim de dimensões. O rizoma é feito de linhas: tanto linhas de continuidade quanto linhas de fuga como dimensão máxima, segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade metamorfoseia-se, mudando de natureza” (DELEUZE, GUATTARI, 2011, p. 32-33).
2.2 As derivas imaginantes de Gilbert Durand
Em nossa proposta de experimentar caminhos para o deslocamento do saber mantido, manipulado e hegemonicamente instaurado a partir da figura metafísica do Sujeito cognoscente, as imagens são vistas enquanto território - portanto, em disputas e a ser disputado - potencialmente aberto para a compreensão dos processos de concessão de sentido. A apropriação das imagens pelo racionalismo, movimento ativo operante a partir do iconoclasmo endêmico1 (DURAND, 2014), ofuscou sobremaneira o fato de que o pensamento, o objeto primeiro do exercício racional, é uma construção narrativa que mobiliza imagens.
Em contraposição à lógica dos signos, firmada na dicotomia significante-significado, a teoria antropológica elaborada por Gilbert Durand (2012) propõe a releitura dos processos comunicativos e de significação ao indicar o imaginário sociocultural como o capital pensado de imagens já produzidas ou a produzir, tornado dinâmico pelo efeito da multiplicidade simbólica. Enquanto os signos são concebidos como objetos de representação, sendo dever das intelectualidades superar qualquer indício representativo para acessar o conteúdo verdadeiro do saber, as leituras simbólicas recorrem à imagem pela imagem, cujo sentido está contido em seus elementos. Trata-se, antes, de um movimento de aprofundamento.
É nesse gesto que se firma a fantástica transcendental proposta por Durand (2012). O transcendente, na teoria antropológica, é colocado nos termos de uma fenomenologia que vê nas imagens a possibilidade de associação por convergência, formando cadeias de aproximação infinita que obtêm sentido pela profundidade. Em oposição aos aspectos transcendentes da metafísica, cuja abstração deve ser o fim nunca alcançado - mas sempre aspirado - pela ascese filosófica (KANT, 2012), a fantástica transcendental compreende que a imaginação criadora está contida no esforço intelectual e que este, por sua vez, constantemente retorna a uma topologia fantástica (DURAND, 2012) que transcende qualquer impulso perceptivo.
Os elementos transcendentais estão localizados ao nível da forma, indicam a potencialidade das aparências e do espaço para o desenrolar dos trajetos imaginários. Nesse sentido,
[...] as categorias da fantástica são então precisamente as estruturas da imaginação que estudamos e que se integram nesse espaço, dando-lhes as suas dimensões afetivas: elevação e dicotomia transcendente, inversão e profundidade íntima e enfim poder infinito de repetição. Finalmente, qualquer processo imaginário, mesmo que se tinja, contra o mito, das veleidades do discurso, se reabsorve em última análise numa topologia fantástica de que os grandes esquemas e arquétipos constitutivos das estruturas formam os pontos cardeais. Qualquer mitologia, como qualquer estudo da imaginação, vem desembocar cedo ou tarde numa “geografia” lendária, escatológica ou infernal (DURAND, 2012, p. 413-414, grifos nossos).
Cada uma das dimensões destacadas no trecho acima aponta para características centrais das estruturas que o autor identifica, a partir da convergência simbólica em torno de matrizes arquetipais comuns2. O gesto primordial da subida, tornado schéme da verticalidade, pode ser identificado nos símbolos3 teriomórficos, nictomórficos e diairéticos que predominam na estrutura heróica do imaginário. O gesto da deglutição enseja o schéme4 da descida, manifestado nos símbolos da inversão e da intimidade, predominantes na estrutura mística. Por sua vez, a repetição é movimento associado ao gesto primordial da copulação, ao schéme rítmico, manifestado nos símbolos cíclicos contidos na estrutura sintética do imaginário, caracterizada pela harmonia dos contrários (DURAND, 2012).
A redundância imanente ao imaginário faz com que as imagens possam manifestar-se, a depender do regime simbólico predominante, enquanto expressão do regime diurno ou do regime noturno (DURAND, 2012), grandes territórios nos quais as imagens passeiam, relacionando-se com outras de mesmo ou de outro regime. Nos termos da teoria antropológica, aspectos como a busca pela iluminação através do exercício intelectual, o desencantamento do mundo, a tendência às dicotomias como elementos de categorização torna as culturas ocidentais modernas e sua(s) ciências(s) especialmente diurnas, pela tendência à proliferação e reprodução de narrativas heróicas.
No entanto, é pela redundância que o dinamismo acontece. As estruturas não se encerram e não encerram. Concomitantes à hegemonia do regime diurno, as estruturas do regime noturno do imaginário permanecem produzindo e colocando em disputa narrativas que questionam os paradigmas tornados centrais no percurso histórico. O fluxo imaginário da bacia semântica (DURAND, 2014), através do qual os símbolos escoam da margem ao centro e vice-e-versa, em eterno retorno, assume papel privilegiado na compreensão do que temos chamado de desigualdades epistêmicas. Por mais que a pós-modernidade indique novas formas de se relacionar com os acontecimentos - muito mais noturnas, digamos -, leitura que aponta para a consolidação de uma ética da estética (MAFFESOLI, 1944), o campo epistemológico resiste.
2.3 Análises reterritorializantes e imagéticas das possibilidades de movimentos epistemológicos na Educação
Ao pensarmos na inserção de narrativas dissidentes no campo epistemológico da Educação a partir da articulação de elementos teóricos-metodológicos preconizados pela cartografia deleuze-guattariana e pela antropologia do imaginário de Gilbert Durand, nos atemos a uma análise que contempla induções do conteúdo que expressamos conectados ao contexto social. O que expressamos se refere a nós, cartógrafas que intentamos demonstrar as representações que as nossas pesquisas traçam, mapeiam, imaginam, delineiam…
Recorremos às categorias de análise previamente estabelecidas no intuito de contemplar as faces do que acreditamos ser um dos caminhos possíveis para deslocar o campo epistêmico que, entranhado na concepção ocidental de ciência, estruturou a tradição pedagógica. Não objetivamos elaborar manuais práticos, muito menos tornar cabalísticas as percepções diretamente vinculadas ao que ganha sentido em nossas próprias experiências de pesquisar junto aos autores trabalhados. Esta seção se propõe a ser apenas fragmento dos movimentos de aproximação e de distanciamento que temos experienciado, mas que indica horizontes possíveis.
2.3.1 Recorrências Estéticas
Deleuze e Guattari (1995a) concebem o pensamento como um ato de criação que resiste na medida em que origina uma nova imagem, libertária do pensamento aprisionado pela modernidade. Estamos diante de uma virada epistemológica através da qual o pensamento deixa de ser entendido como um exercício natural do ser humano, ao mesmo tempo em que o apelo às sensações as desvincula da ideia de erro, embora possam nos levar à servidão. Os autores buscam essa dimensão nos escritos de Espinosa (2019), nas lições de que somente podemos chegar à liberdade com os afetos. Assim, pensar se qualifica como o ato de se encontrar com o que me força a pensar, promovendo a diferença.
O pensamento nasce do encontro com a diferença, tornada imagem rizomática, emaranhado, abalo dentro de um território “ordenado” que gera um acontecimento. O pensamento é um acontecimento. A cartografia se caracteriza na direção que Deleuze e Guattari (1995a; 1995b) indicam que não é uma competência, mas uma performance. O fazer cartográfico se enche de intensidades, encontros que possibilitam observar e produzir territórios de sentidos e de novos conhecimentos na e a partir das experiências.
Tudo isso se dá na superfície, no campo privilegiado das aparências. Dotada da arrogância heroica de quem espera poder salvar o que está perdido, a tradição filosófica ocidental iniciada em Platão – e aprofundada pelo iluminismo - deseja desesperadamente afastar o reino das aparências da dimensão corpórea que o macula. Para o ascetismo filosófico, é preciso submeter o aparente à dialética racional para alcançar a imutabilidade das ideias perfeitas, do imperecível. Somente dessa forma chega-se ao que se É. (ZAMBRANO, 2021). O Sujeito cognoscente, ao alcançar a máxima filosófica, se liberta da falsa realidade. Trata-se de uma busca motivada pelo desejado encontro com a verdadeira natureza humana.
A noção de diferença mobilizada por Deleuze e Guattari (2011) enquanto acontecimento remete a um espaço-tempo distante e questionador frente ao tempo relacionado ao ideal persecutório de natureza5, tornado critério regulador e normativo na modernidade. O acontecimento está próximo da experiência, se a compreendermos como espaço-tempo por onde a vida se manifesta em sua mais bela efemeridade e através da qual se consolida em devir. Nesse sentido, concebe-se o pensar como uma experiência territorializada no epicentro da destruição: das grandes certezas, das grandes narrativas, do tempo linear e progressivo que espera da morte a purificação libertária da vida.
No caminho que temos trilhado, a morte assume a condição de potência em – da – vida, expressa nas pequenas-grandes destruições. A valorização positiva das derivas imaginantes, tornadas acontecimento, nos permite compreender que o dinamismo dos imaginários socioculturais se alimenta do inelutável desejo de vencer a morte (DURAND, 2012)6. O que de início poderia sugerir uma convergência inescapável com a tradição filosófica ocidental se dissipa ao compreendermos que a relação com a morte, nesta outra perspectiva epistemológica, dá-se ao nível das formas, não mais das ideias. É pela estética que ela irá aflorar e assumir a condição de perspectiva mediante a qual a vida pluraliza-se em diferentes contextos. Nos colocamos diante de uma outra nomeação das efemeridades.
O feio, o erro, o delírio são categorias estéticas normatizadas pela racionalidade enquanto lugares do Não-Ser. Não se trata de categorias vazias, a elas são concedidas tudo o que excede ao caminho bem definido da ascese e que, consequentemente, somente pode ser mantido na esfera do carnal. As pesquisas em Educação que cartografamos tentam questionar/pontuar problemas marcados no contexto social de maneira diferente, criando e dando novos sentidos a essas velhas categorias. Temos percorrido as frestas que dão acesso ao Não-Ser, a fim de percebermos como a vitalidade do suposto território inóspito indica, ao contrário, a complexidade das existências que, ao Não-Serem, agenciam possibilidades de existirem.
Agenciamentos que diferem na medida em que assumem a essencialidade dos afetos, relegados em maior parte e escravizados nos pequenos pontos de convergência pela filosofia da iluminação. A libertação do sensível dá-se pela integração da estética, no que ela tem de mais dissidente. Para tanto, a convergência entre as perspectivas teóricas apontadas se mostra promissora: de um lado, há a necessidade de dar língua aos afetos em movimento, que trazem nas suas expressões e experimentações intensidades voltadas para a composição do processo cartográfico concatenadas com o desejo, como produção das ditas intensidades e produção de sentidos (ROLNIK, 2016). De outro, há o deslocamento do paradigma estético através da elucidação de que a imaginação é criadora e de que a condição de devaneio7 plenamente experienciada nas criações artísticas pode ser expandida para outras experiências pelo fazer sensível.
O devaneio é a linguagem primordial do regime noturno das imagens, porque remonta ao onirismo para constituir a realidade privilegiada do estado de embriaguez. Diferente da luz – iluminação pelo intelecto -, a noite é substância espessa (DURAND, 2012) e tátil, morada das entidades desgarradas, de Baco e de Dioniso. Na experiência da vertigem, as cores mesclam-se, as linhas dissipam e tremulam à medida em que o corpo pende, o mundo adquire novos movimentos com o cerrar dos olhos. Sem a visão, toda a superfície corpórea torna-se meio de contato com o externo, livre do abismo interrelacional que o olhar requer. Por essa razão, pela potência desterritorializante das derivas imaginantes, tratamos da recorrência aos sentidos e às sensibilidades envolvidos no devaneio enquanto recurso pedagógico capaz de criar Corpos Sem Órgãos (DELEUZE, GUATTARI, 1996) no interior do campo educacional.
Como temos feito isso? Do pensamento de Deleuze e Guattari (1995a, 1995b, 1996), retiramos o subsídio para experienciarmos uma determinada metodologia da colagem8, recurso para o cruzamento de territórios aparentemente distantes. Exercitamos um movimento que parte das expressões artísticas para expandi-las, torná-las propostas pedagógicas nascidas da articulação com teorias desterritorializantes; movimento justificado pela compreensão de que as artes não encerram os processos criativos, mas são experiências privilegiadas para seu o espalhamento e, portanto, precisam ser resgatadas no interior dos espaços intelectualizados.
Enquanto cartógrafas, temos indícios de que precisamos estar em um território, estar em movimento, afetando e sendo afetadas por aquilo que buscamos cartografar, estando abertas ao desenvolvimento de nossas sensibilidades e aos rumos que a processualidade desses encontros pode nos levar. O que buscamos em nosso cartografar é dar espaço para que a linguagem dos afetos tenha passagem, se mostre, demonstre suas intensidades a partir das linguagens que encontramos, compondo - quem sabe? - cartografias e imagens necessárias das categorias advindas em suas mais variadas dimensões.
A condição de nos tornarmos retratistas é posta em evidência, cujo parâmetro ético-estético é o de não pretender ser pintoras de imagens à semelhança dos copistas, mas pesquisadoras criadoras, ao mesmo tempo permeadas por imagens distorcidas. A metáfora do espelho de circo, que reluze imagens que são e que não são, imagens pervertidas onde são criadas duplas e diferenciações, é cabível. Através dela, podemos questionar a estratificação em paradigmas do dinamismo característico do regime noturno da imaginação. Foucault (1995, p. 39-40) diz que Deleuze faz um teatro filosófico:
Todos los rostros que no conocemos, máscaras que nunca habíamos visto; diferencia que no dejaba prever nada y que sin embargo hace volver como máscaras de sus máscaras a Platón, Duns Scoto, Spinoza, Leibniz, Kant, todos los filósofos. La filosofía no como pensamiento, sino como teatro [...] (FOUCAULT, 1995, p. 39-40).
O que desejamos cartograficamente é abrir a possibilidade de apreender o movimento que pode surgir dos fluxos e representações intensificadas nas relações construídas em seus respectivos territórios. Nisso, enxergamos a construção de conhecimentos em conexão com processos educacionais que estão em absorções contínuas, desencadeadas pela ação de forças externas, internas, coalizadas, estabilizadas, caotizadas, mescladas e desfiguradas. Para acessar e construir narrativas que fogem à lógica imposta, é preciso mover-se pelas circularidades rizomáticas.
2.3.2 Releituras Epistemológicas
Ao renunciarem à categoria da natureza humana, constituinte da noção de Sujeito, as perspectivas teóricas aqui centralizadas promovem alterações profundas no campo ontológico. Mobilizadas pela crítica ao pensamento metafísico, em especial aos conceitos fundantes de transcendência, de essência e de representação, as elaborações rizomáticas de Deleuze e de Guattari e os elementos da transcendência imanente elaborada por Gilbert Durand contribuem para o deslocamento epistemológico pelas vias da destruição ontológica.
A metafísica entranhou-se de tal forma na tradição filosófica ocidental que as suas narrativas míticas fundantes, registradas por Sócrates a partir dos poéticos diálogos de Platão, continuaram a ser inquestionavelmente assumidas. Se por um lado podemos recorrer ao conhecido Mito da Caverna (PLATÃO, 2012) para compreendermos as modulações estéticas da libertação através da consciência, é no Mito do Cavalo Alado9 (PLATÃO, 1996) que encontramos mais diretamente as pistas ontológicas que procuramos – ainda que haja uma recorrência estética bastante aparente -.
Sacralizada, a essência humana mobilizou buscas incessantes. De acordo com a tendência metafísica de elevação e com o padrão estético cima-baixo que lhe é próprio, firmaram-se os juízos de valor dicotômicos que, em termos epistemológicos, deliberaram sobre as dualidades verdadeiro-falso, essência-forma, razão-sensibilidades. Ora, se o caminho para o alcance da verdadeira natureza humana é tão somente o iluminado, se a ascese requer a ação moral baseada na razão pura e universal (KANT, 2015), paradoxal seria qualquer concepção de pensamento que previsse uma zona intermediária10.
De maneira contraposta, o pensamento de Deleuze (1996) procede por subtração. Ao chegar a um determinado plano de pensamento, a determinada cena, desta é subtraída tudo o que é transcendente e tudo o que tem a ver com poder. Ao utilizarmos dessa perspectiva como recurso epistemológico no campo da Educação, nos deparamos com pesquisas voltadas para tramas de diferenças produzidas por narrativas dissidentes, possíveis de se teatralizarem a fim de limpar as hierarquias, permitindo o emergir do que é imanente. Ao subtrairmos, ao diferenciarmos, nascem possibilidades múltiplas. O pensamento deleuzeano indica que devemos subtrair para reflorestar a filosofia; ao passo que nós - cartógrafas, arborizadas, rizomatizadas - pensamos em reflorestar as pesquisas que retratam a vida.
Para tanto, demarcarmos os nossos lugares não por meio de fronteiras, mas de limiares que tocam concomitantemente partes dos territórios que pisamos. O mito da neutralidade científica é herança cuja permanência impede a destruição dos marcadores questionados, pois alude para o bom exercício racional capaz de higienizar o saber apreendido nas experiências de pesquisa, elevando-o. Mesmo nos estudos que tensionam esses marcadores por meio das lógicas identitárias, os resquícios da imutabilidade do Ser permanecem produzindo efeitos – sob a forma não mais da árvore-raiz, mas do sistema-radícula que retoma sempre a uma unidade pluralizada (DELEUZE, GUATTARI, 1995a).
Acreditamos na contribuição das subjetividades, localizadas nas relações sociais e assumidas ou recusadas de modos particulares nas identificações (GUATTARI, ROLNIK, 1996). No campo epistemológico da Educação, produzem lugares intercambiáveis, não-lugares se estipulamos como definidor conceitual do termo a necessária fronteiricidade. Nesses não-lugares, há múltiplas narrativas que, por falta de adequação ao modelo dicotômico, foram tidas por des(viadas), pobres de encadeamento conceitual e impossíveis de figurarem como objetos do conhecimento. Para serem objetos, precisavam do horizonte translúcido, da passagem do mergulho à contemplação.
O mapa das cadeias associativas elaboradas por Durand (2012) não poderia estar distante da leitura rizomática que Deleuze e Guattari (1995a) fazem do plano de imanência, mesmo que a terminologia metaforicamente proposta por Durand sugira um afastamento teórico momentâneo. Ao utilizá-la como geografia, a teoria antropológica do imaginário demonstra a existência de uma recorrência formal que desloca o imaginário para o campo dos impulsos, dos desejos e dos acontecimentos.
Ainda que o mapa do imaginário abra-se para elementos dotados de abstração, cujas estruturas tocam as zonas de estratificação, a teoria durandiana permite o retorno ao corpo como operante das modificações simbólicas ocorridas ao nível do vivido. Não se trata de empiria, lugar onde a imagem é posta enquanto experimentação, assim como não recai nas presas da razão prática, subserviente à pureza das formas racionais puras. Dentre os múltiplos indícios que apontam para tal entendimento, destacamos dois que se mostram suficientemente sugestivos.
O primeiro está diretamente relacionado ao retorno que Durand faz aos gestos primordiais, dominantes que produzem interações instintivas com o meio exterior no qual o corpo encontra-se inserido. Ao servirem de matéria-prima para os schémes, ao invés de abandonarem a íntima relação corporal, ajudam a consolidar a “estreita concomitância entre os gestos do corpo, os centros nervosos e as representações simbólicas” (DURAND, 2012, p. 51). As imagens decorrentes dos acontecimentos transcendem na medida em que recorrem à imanência dos desejos de relacionar-se afetivamente com o espaço pelo distanciamento, pela absorção ou pela perpetuidade.
O segundo está contido no conceito de trajeto antropológico, apontado por Durand (2012) como sendo a eterna troca experienciada ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e as emanações do meio cósmico e social. Há, nesse entendimento, a predominância de um paradigma estético que ressalta o movimento pluridirecional de afetação, o circuito-devir onde o mundo excede e comporta o corpo, produtor de sentidos na interação. Ao inserir as microrrelações no contexto sociocultural do imaginário, o autor fala em bacia semântica (DURAND, 2014), poética maneira de nomear as transformações históricas - e geográficas, se tomarmos os mapas como forma - resultantes dos fluxos imaginários que transportam os símbolos predominantes em determinados contextos e épocas às margens, e vice-e-versa.
O conceito de trajeto antropológico nasce para exceder aos próprios limites conceituais que o tornam chave de leitura. Representa, para nós, expressão poética que guarda um encaminhamento ético através do qual assumimos a responsabilidade e o arrebatamento, a ação e a abertura transformadora das ordens simbólicas predominantes. Nesse processo, contudo, concordamos com Deleuze e Guattari a respeito do cuidado necessário a fim de não moralizarmos os conceitos no interior de uma filosofia moral, como o fez Kant (2003).
O que podemos praticar diante de tal perspectiva é uma avaliação ética vitalista, isto é, avaliar quando a linha dura11 potencializa ou despotencializa a vida, dado que se nos alimenta de vida (potencializa) ou se nos envenena de morte (despotencializa), o que está sempre em jogo é a vida, a vida é sempre o único critério. Os conceitos traçados por Deleuze e Guattari (1995a; 1995b; 1996) não se opõem, mas coexistem. É um emaranhado de pensamentos coexistentes com suas cointensividades onde as linhas (duras e flexíveis12) atendem, compõem a mesma linha que tende a pólos diferentes, a lógicas diferentes, usos diferentes, funcionamentos diferentes, mas que constituem a mesma coisa, as mesmas narrativas dissidentes. A teoria antropológica do imaginário contribui na medida em que insere a ordem simbólica no interior desses movimentos.
Pela condição de constante escapamento que lhes é imanente, não há como encerrar as narrativas dissidentes em poucas palavras definidoras. Não há caminho conceitual possível que, recorrendo a estratégias descritivas, faça jus às reverberações do que tentamos timidamente nomear, cientes do enquadramento parcial-perspectivo. Nos desvios reflexivos que intentamos perseguir durante a escrita desse texto, as narrativas dissidentes aparecem no chamamento: a uma ordem estética e epistemológica outra, produzida pelos territórios limiares que mesclam abordagens teóricas particulares. Elas estão em tudo o que excede.
Como cartógrafas do/pelo imaginário, percebemos a ligação que a prática cartográfica tem com a produção de saberes presentes nas intensidades minoritárias e excluídas, expressas em imagens que fogem à lógica exclusivamente racional. O pensamento deleuze-guattariano e as elaborações teóricas de Gilbert Durand, quando associados, nos tiram de processos acomodativos e assimilativos que ainda reverberam no campo da Educação. Cartografar processos de realidades em suas trajetórias nos insere em campos extensivos de forma intensiva, onde forças são insurgidas dessas intensidades, proporcionando encontros a partir dos quais questionamos posturas viciadas e conservadoras, fazendo dobras que se lançam em devir e que nos impelem ao caminho da diferença.
Em processos de constituição subjetiva, todas nós somos envolvidas, interpenetradas por modos variados e diversificados de identificações que se estabelecem na instauração da subjetivação individual. De maneira particular, a condição de sermos afetadas – e de assumirmos uma tal afetação – pela gama de multiplicidades envolvidas no fazer-pesquisa em Educação abre espaço para experiências cartográficas dos processos de subjetivação e, consequentemente, a experimentação de diferentes maneiras de registrar os agenciamentos que nos envolvem ética, estética e politicamente.
1 À primeira vista, tal afirmação soa sem sentido pelo paradoxo que contém. No entanto, é justamente dele que nos valemos para tentar demonstrar o quanto o afastamento deliberado das imagens do campo do conhecimento científico produziu estratificações que se mostram verdadeiras e coerentes se mantivermos a centralidade no decalque. Como todo decalque pode ser sobreposto a um mapa para identificar os rizomas excedentes (DELEUZE, GUATTARI, 1995a), acreditamos que a aproximação às imagens a partir do diagnóstico da lógica negativa operante permita o enveredamento pelas linhas de fuga.
2 Os arquétipos são as grandes imagens primordiais, universalmente recorrentes e inatas. São a zona de intersecção entre o imaginário e os processos racionais (PITTA, 2005).
3 Os símbolos localizam as imagens arquetipais em contextos socioculturais específicos.
4 Anteriores às imagens, relacionados às emoções e às tendências gestuais inatas (PITTA, 2005). Para o desenvolvimento das características dos schémes, Durand (2012) recorreu aos estudos da reflexologia acerca dos movimentos involuntários exercidos na primeira infância, desde o nascimento. Nos schémes, as dominantes transformam-se em esquemas perceptivos.
5 Segundo Zambrano (2021), a Filosofia ocidental funda-se na contradição platônica entre a constante retomada da natureza humana e a sua inalcançabilidade, visto que somente a morte levaria ao alcance do eterno, ou seja, das ideias de Verdade, Beleza e Bem. O filósofo é aquele que aprende a lidar com a morte, pois sabe que a ascese depende dela para efetivar-se.
6 As reflexões partem, de maneira mais direta, das pesquisas desenvolvidas por nós. Lidamos diretamente com narrativas da destruição que resgatavam a morte enquanto chave principal de sentidos.
7 A discussão sobre devaneio pode ser melhor aprofundada nas leituras de Gaston Bachelard, mestre de quem Gilbert Durand foi discípulo. Dentre as obras do autor, sugerimos pontualmente A poética do devaneio (1988) como referência.
8 Roberto Machado (2009, p. 37), filósofo brasileiro, cita que “a filosofia de Deleuze recria e relaciona, pelo procedimento de colagem, ‘novos’ pensamentos já existentes, dentro e fora da filosofia, sempre com o objetivo de construir um pensamento que afirma o primado da diferença”.
9 De maneira breve, lembremos da narrativa mítica: antes da criação do mundo, as almas compartilhavam do mesmo espaço com os deuses, até que decidiram promover uma espécie de corrida. As almas humanas eram as carruagens, puxadas por dois cavalos alados, um de natureza divina e outro de natureza animal. Durante a disputa, os cavalos de índole passional recusavam-se a ser domados, enquanto os cavalos de natureza divina tentavam a todo custo continuar perseguindo os rastros dos deuses. Disso resultou o completo desgoverno das carruagens e o tombamento das almas humanas na Terra, não sem antes ofuscarem-se brevemente pelo maravilhoso Céu de Urano. À lembrança desse lampejo, Platão chama de Reminiscência, o que faz com que as almas humanas vivam em constante desejo de retorno ao mundo suprassensível.
10 A respeito das interfaces entre uma ontologia do sujeito e a metafísica kantiana, Flores (2019, p. 69) diz: “Tudo se passa como se a constituição do sujeito como fundamento do pensamento respondesse, no nível do conhecimento teórico, às necessidades de legislar as ciências da natureza e cercar os avanços da razão especulativa em metafísica. Ela será, na verdade, o meio de salvar o indeterminado da ameaça da determinação sensível”.
11 As linhas duras são as linhas que nos controlam, normatizam e enquadram por meio de atravessamentos que buscam efetivar e manter a ordem, assim como evitar tudo aquilo que não se adequa ao contexto social imprimido, instituído, territorializado.
12 As linhas flexíveis ou linhas de segmentaridade maleável são aquelas que insinuam maior fluidez, são mais flexíveis e de natureza micropolítica, apresentando condição rizomática.
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