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Humberto Maturana E Paulo Freire: Diálogos Sobre Amorosidade No Processo De Ensino E Aprendizagem Das Ciências

Leonardo Ferreira de Almeida

O presente artigo tem como objetivo promover reflexões sobre diálogos, entre o biólogo e epistemólogo chileno Humberto Maturana e o educador e pensador brasileiro Paulo Freire, acerca da amorosidade e sua importância para o processo de ensino e aprendizagem das ciências. Para tanto, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, partindo do entrelaçamento entre proposições presentes em importantes obras dos dois autores, além de contemplar discussões acerca da Biologia do Amor de Maturana e do conceito de amorosidade em Freire realizadas por relevantes produções acadêmicas nos campos da educação e do ensino. Pode-se considerar que, apesar de haver uma nítida distinção entre os autores no que tange o conceito de tolerância, a qual compreende um dos aspectos adjacentes para a concepção do amor como um artifício democrático e pedagógico, há uma congruência entre ambos na iniciativa de protagonizar a amorosidade no processo de ensino e aprendizagem, bem como uma afinidade de entender o ato educativo e o ato de ensinar ciências como, primordialmente, atitudes de reconhecimento de si e, ao mesmo tempo, de aceitação do outro, a serem desenvolvidos por educadores e educandos na prática da convivência, do diálogo e do respeito.

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ALMEIDA, Leonardo Ferreira de. Humberto Maturana e Paulo Freire: Diálogos sobre Amorosidade no Processo de Ensino e Aprendizagem das Ciências. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2022 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/362-humberto-maturana-e-paulo-freire-di%C3%A1logos-sobre-amorosidade-no-processo-de-ensino-e-aprendizagem-das-ci%C3%AAncias. Acesso em: 16 out. 2025.

Humberto Maturana e Paulo Freire: Diálogos sobre Amorosidade no Processo de Ensino e Aprendizagem das Ciências

Na obra “Teorias da Aprendizagem: o que a velha senhora disse”, o autor Guy Lefrançois (2008, p.5) destaca que o “termo aprendizagem é mais complexo do que implica uma definição restrita ao ato de adquirir informação”. Ressalta que, embora muitos psicólogos conceituem aprendizagem como a alteração que ocorre no comportamento das pessoas como resultado de suas experiências, nem toda mudança comportamental pode ser entendida como aprendizagem, pois há mudanças que são consequências de cansaço, maturação, ingestão de drogas, lesões ou doença. Desta forma, a aprendizagem não pode ser definida, em sentido estrito, como modificações reais do comportamento, mas pode ser compreendida como “toda mudança relativamente permanente no potencial de comportamento, que resulta da experiência, mas não é causada por cansaço, maturação, drogas, lesões ou doença” ou, em um sentido mais direto, aprendizagem é “uma mudança no potencial para o comportamento, em vez de simplesmente uma mudança no comportamento(LEFRANÇOIS, 2008, p. 6).

É fato que o movimento de compreender como ocorre a aprendizagem correspondeu a entrega de muitos estudiosos de diversas áreas, sobretudo da psicologia e da educação, e, em especial, da educação em ciências. Historicamente, evidencia-se que houve contribuição de várias correntes de estudos, a exemplo do Behaviorismo (representado por Ivan Pavlov, John Watson, Edwin Guthrie, Edward Thordink, Clarck Hull e Burrhus F. Skinner, sendo este reconhecido como o maior de seus proponentes); das teorias que marcaram a transição para o Cognitivismo Moderno (representadas por Donald Hebb, Edward Tolman e os Gestaltistas - Kurt Koffka, Wolfgang Köhler e Max Werteimer) e das Teorias Cognitivistas de Jerome Bruner (Teoria da Representação); Jean Piaget (Teoria Desenvolvimentista-Cognitiva/Teoria dos Estágios), Lev Vygotsky (Teoria Cultural-Cognitiva) e David Ausubel (Teoria da Aprendizagem Significativa) (LEFRANÇOIS, 2008; OSTERMANN; CAVALCANTI, 2011).

Os nomes acima elencados correspondem aos de importantes estudiosos, que partiram de diversas perspectivas de explicações do processo de aprendizagem, as quais, por sua vez, apresentam aproximações e distinções entre si. Vale frisar que todos estes pesquisadores nasceram e/ou trabalharam na América do Norte (Estados Unidos e/ou Canadá) ou na Europa. Todavia, importantes estudiosos, oriundos de e atuantes em outros cantos do planeta, dedicaram-se, com muito esforço, ao desenvolvimento de pesquisas e propostas epistemológicas sobre o fazer, o ensinar e o aprender ciências.

Levando em conta que, abaixo da ‘Linha do Equador’, o processo de ensino e aprendizagem é objeto de influentes estudos e teorias das mais variadas vertentes, o presente artigo objetiva apresentar a contribuição de dois sul-americanos, o biólogo e epsitemólogo chileno Humberto Maturana (1928-2021) e o educador e pensador brasileiro Paulo Freire (1921-1997). A despeito da diversidade de suas obras e de suas profundas proposições epistemológicas e pedagógicas, busca-se, neste artigo, focar em um específico ponto de diálogo entre estes dois autores: a compreensão do amor e da amorosidade. Logo, objetiva-se, ao longo das páginas que se seguem, promover reflexões sobre este diálogo acerca da amorosidade e sua importância para o processo de ensino e aprendizagem das ciências.

Justifica-se seguir este propósito pela necessidade de entender como as contribuições destes dois sul-americanos se aproximam e, como podem oferecer, de forma mútua e articulada, caminhos aos docentes (em atuação ou em formação) no que se refere à promoção da amorosidade como base do processo de ensino e aprendizagem do conhecimento científico e como base de práticas pedagógicas que visem a humanização, a criticidade e a emancipação dos sujeitos frente aos inúmeros desafios impostos pelas injustiças sociais.

É interessante relacionar que a pujante obra “Pedagogia do Oprimido” de Freire tenha sido escrita em 1968, justamente no Chile, na época de seu exílio, forçado pela ditadura militar no Brasil. E, neste mesmo espaço e momento histórico, Maturana, juntamente ao seu compatriota Francisco Varela, desenvolveu, em 1970 (poucos anos antes da ditadura chilena), as bases do conceito de Autopoiese, a qual é a base de sua epistemologia da Biologia do Conhecer ou Biologia da Cognição. Do mesmo modo, diante da opressão que ambos autores presenciaram em seus países, é sintomático que Freire tenha desenvolvido como temática fundamental a libertação dos oprimidos, tendo a amorosidade como elemento crucial para emancipação dos sujeitos, e que Maturana tenha desenvolvido como temática fundamental a Biologia do Amor, a qual parte da compreensão de que o convívio com o outro numa sociedade responsável e respeitosa é a mais autêntica forma de luta contra todas as formas de dominação e competição (MALAVASI; SANTOS; SANTOS, 2017).

Partindo de uma pesquisa bibliográfica (GIL, 2017), em que se debruçou sobre importantes obras destes dois autores, bem como sobre outras relevantes produções acadêmicas, são desenvolvidas discussões sobre: i) A Biologia do Amor de Humberto Maturana; ii) O conceito de Amorosidade em Paulo Freire e, por fim, iii) Diálogos entre Maturana e Freire sobre amorosidade no processo de ensino e aprendizagem das ciências.

Pretende-se com todo emaranhado bibliográfico desenvolvido, destacar particularidades de ambos, inclusive pontos de distanciamento de entendimento, mas frisar o quanto que a Biologia do Amor de Maturana e a Amorosidade em Freire são congruentes e como juntas oferecem aos docentes profícuas reflexões para o ser, o saber e o fazer pedagógico.

A Biologia do Amor de Humberto Maturana

O biólogo chileno Humberto Maturana concebe a cognição partindo da capacidade de autoconstituição, de autoconstrução do ser vivo, ou seja, de sua autopoiese. Os seus primeiros passos no mundo científico se deram no campo da neurobiologia, focando no estudo do sistema nervoso, em especial, no estudo da percepção. Em uma de suas principais obras, “A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana”, a qual elaborou juntamente ao seu orientando Francisco Varela, Maturana evidencia os fundamentos da Biologia do Conhecer, partindo das origens físicas e biológicas, fazendo a relação com o papel da linguagem na construção do conhecimento e buscando respaldar que o conhecer está atrelado à forma como nos constituímos enquanto sistema vivo em permanente interação com o meio (MALAVASI; SANTOS; SANTOS, 2017).

De acordo com Maturana (2014), para explicar o conhecer, é preciso elucidar o que ocorre quando o observador está observando o observar na busca da explicação do que faz. Para eles, os seres humanos são, antes de tudo, sistemas vivos que vivem na linguagem quando explicam o que fazem e que se encontram na experiência de observar quando observam o seu próprio observar. Logo, o ato de observar compreende discernir, por meio da linguagem, os distintos objetos ou fenômenos das próprias discussões, explicações e reflexões realizadas pelo sistema vivo.

Outro ponto evidenciado por Maturana e Varela (1995) é compreender que o organismo humano como sistema vivo está em contínuo acoplamento estrutural com o meio, ou seja, tudo que opera do meio para o organismo, opera do organismo para o meio, numa relação sistêmica e recíproca ou retroalimentada. Pautados neste sentido, estes autores revelam que o processo de aprendizagem deve ser entendido como uma expressão deste acoplamento estrutural que faz o organismo internalizar fenômenos do meio.  

Frisa-se que, conforme a proposta epistemológica de Maturana, o que diferencia o ser humano de outros seres não está na capacidade de manipulação, mas na linguagem entrelaçada com o emocionar. E a linguagem se estabelece de forma coordenada no processo de conversação, sendo este processo o catalizador da aprendizagem (BARCELOS, 2006).

De forma a se somar à linguagem, o amor é o fundamento do ser humano, compreendendo um fenômeno, primordialmente, biológico. A linguagem é sustentada pelo emocionar, pelo amor, pela capacidade de amar, a qual torna as relações recíprocas. Desta forma, Maturana oferta ao mundo da ciência e da educação a sua proposta da Biologia do Amor, sendo o amor sinônimo de aceitação de si mesmo e do outro (MALAVASI; SANTOS; SANTOS, 2017).

Em seu livro Cognição, ciência e vida cotidiana, Maturana (2014, p.156-157) sinaliza que o ser cientista e o fazer ciência está fundamentada nas emoções:

 

[...] ao aprendermos a ser cientistas, nós aprendemos a ser cuidadosos para não deixarmos nossas preferências e desejos distorcerem-se e, por isso, invalidarem nossa aplicação do critério de validação das explicações científicas; também aprendemos a reconhecer que quando permitimos que isto aconteça cometemos um erro grave.

Nossas emoções, entretanto, entram legítima e construtivamente no que nós cientistas fazemos na fundação das circunstâncias de nosso explicar científico, porque especificam a todo momento o domínio de ações no qual operamos ao gerarmos nossas perguntas. Como seres humanos, criamos com nossas ações em nosso domínio de experiências os mundos que vivemos, quando os vivenciamos em nosso domínio de experiências enquanto seres humanos, e nos movemos nos mundos que criamos mudando nossos interesses e nossas perguntas, no fluir do nosso emocionar. Em outras palavras, a poesia da ciência é baseada em nossos desejos e interesses, e o curso seguido pela ciência nos mundos que vivemos é guiado por nossas emoções, não por nossa razão, na medida em que nossos desejos e emoções constituem as perguntas que fazemos ao fazermos ciência.

 

Então, é possível reforçar que, para o biólogo, a emoção fundamental que constitui o social é o amor, um fundamento biológico presente na dinâmica das relações humanas, as quais se fundam na aceitação mútua. Ele reitera que se não há aceitação mútua, não há aceitação do outro, e assim, se não há espaço para a existência do outro por falta de amor, não há que se falar em fenômeno social (MATURANA, 2014). Na obra “A árvore do Conhecimento”, depreende-se que esta compreensão de que se não há amor, não há fenômeno social é contundentemente expressada por Maturana e Varela. Além do mais, estes autores associam o amor à capacidade de ampliação do domínio cognitivo reflexivo:

 

O amor ao próximo começa a aflorar então no entendimento dos processos que geram o fenômeno existencial da consciência de si, numa expansão dos impulsos naturais de altruísmo comunitário, precisamente como a condição necessária do social, e não como uma imposição de uma supranatureza diferente da nossa (MATURANA; VARELA, 1995, p.50). (...)

 

A esse ato de ampliar nosso domínio cognitivo reflexivo, que sempre implica uma experiência nova, só podemos chegar pelo raciocínio motivado pelo encontro com o outro, pela possibilidade de olhar o outro como um igual, num ato que habitualmente chamamos de amor - ou, se não quisermos usar uma palavra tão forte, a aceitação do outro ao nosso lado na convivência. Esse é o fundamento biológico do fenômeno social: sem amor, sem a aceitação do outro ao nosso lado, não há socialização, e sem socialização não há humanidade (MATURANA; VARELA, 1995, p.263).

 

Dessa forma, as premissas de Maturana voltadas para a educação nos levam a compreender que “educar é conviver em um espaço de aceitação recíproca, onde haja o respeito consigo mesmo e ao outro como legítimo outro e não meramente aprender conteúdos acadêmicos” (ROSSETTO, 2008, p. 244).

O verdadeiro ato de educar se concretiza no conviver com o outro, que transforma os sujeitos envolvidos de forma espontânea, continuada e mútua, proporcionando uma transformação estrutural dos seres diante do desenrolar do conviver. Quando se fala que o educar se dá na convivência continuada e recíproca, faz-se necessário ter consciência ampla do que é, realmente, conviver, pois, para tanto, faz-se necessário coerência com a prática. Por exemplo, não funciona ensinar democracia, se a convivência entre educadores e educandos não é pautada por ações democráticas, ou seja, se estes sujeitos não vivem democraticamente na diversidade e no respeito às diferenças (ROSSETTO, 2008). Portanto, antes do ensino de conteúdo, deve-se aprender a exercitar os valores a serem vividos coerentemente na vida cotidiana.

Demo e Silva (2020), ao se aprofundarem na Pedagogia do Amor na perspectiva de Humberto Maturana, ressaltam que este autor tem uma literatura instigante, porém nem sempre fácil de ler, devido à sua complexidade, rebuscamento e, principalmente, ao seu tom particularista comparado a outros epsitemólogos. Frisam, em mesma medida, que a ideia de pedagogia do amor do biólogo chileno é alvo de interpretações afoitas e superficiais. Logo, acentuam que a formação socioemocional na escola não pode ser reduzida apenas à aceitação do outro ou à harmonia ambiental, pois compreende, em mesma medida, a reflexão da ambiguidade e os conflitos da vida cotidiana. Desta forma, Maturana sugere que o ato educativo deve se inspirar no amor, ao mesmo tempo em que busque dar conta dos problemas socioemocionais, dos desencantos, dos desencontros e das dificuldades, mas, sempre, tendo em vista que os sujeitos, em sua camada biológica, guardam a marca da aceitação do outro, da convivência cooperativa e igualitária.

Levando em consideração que a vida tem, conforme Maturana, em sua camada biológica, a inscrição da aceitação do outro e da convivência cooperativa e igualitária (DEMO; SILVA, 2020), chama-se a atenção que educar, na concepção da biologia do amor é, antes de tudo, reconhecer que a emoção é o sustentáculo da razão, permitindo ao sujeito a consciência de si como humanidade e a ampliação de seu domínio cognitivo reflexivo (MATURANA; VARELA, 1995). Portanto, a biologia do amor é educar no sentipensar, o qual, por sua vez, compreende educar na justiça e na solidariedade (RODRIGUEZ; FORTUNATO, 2021).

Apesar de a biologia do amor ser gestada por um epsitemólogo bem conhecido por suas particularidades de conceber a ciência e o seu processo de ensino e aprendizagem, defende-se, neste trabalho, que esta proposição de Maturana apresenta profícua relação pedagógica com importantes concepções do educador brasileiro Paulo Freire, especialmente, com o conceito de amorosidade adotado por este pensador sul-americano. Neste sentido, será discutido, nas próximas páginas, o conceito de amorosidade na perspectiva freiriana.

 

O conceito de Amorosidade em Paulo Freire

Em Pedagogia da Autonomia, o seu último livro publicado em vida, o educador pernambucano Paulo Freire fez o seguinte questionamento: “Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte?” (FREIRE, 2014a, p.66). Para o patrono da educação brasileira, “ensinar exige querer bem aos educandos” (FREIRE, 2014a, p.138). Desta forma, ele sublinha aos educadores que cumpram amorosamente o seu trabalho pedagógico, de forma a zelar pelo espaço e processo de ensino em que atua com seus alunos.

Desde a sua famigerada obra Pedagogia do Oprimido, escrita durante seu exílio no Chile, coincidentemente terra natal de Maturana, Freire sempre pontuou que qualquer prática educativa tem o dever de partir do universo de conhecimentos, práticas, vivências e relações sociopolíticas dos aprendentes. Somente desta forma, é possível os oprimidos reconhecerem a opressão que sofrem para, assim, comprometerem-se com sua transformação (FREIRE, 1987; MALAVASI; SANTOS; SANTOS, 2017).

A dicotomia entre sujeito e objeto, tão marcante em Descartes, Newton, Kant e até mesmo em Piaget, é problematizada pela pedagogia de Freire, a qual alude que não há relação ideal com objetos e que as relações humanas são dialéticas assim como o entender a realidade é um movimento dialético. Na perspectiva freiriana, o conhecimento não é algo que pode ser transmitido como se fosse um objeto invisível, é algo que é construído no diálogo, sempre levando em consideração e problematizando os fatores sociais, políticos, econômicos e culturais dos aprendentes (MALAVASI; SANTOS; SANTOS, 2017).

E a concepção do diálogo traz em seu bojo a hierarquia horizontal, a qual não elimina a hierarquia professor-aluno. O professor mantém sua autoridade, mas não deseja ser autoritário (FREIRE, 2014a). A horizontalidade, tão defendida por Freire, torna igualitária a participação do educador e do educando no processo de aprendizagem (OSTERMANN; CAVALCANTI, 2011). Por sua vez, esta horizontalidade é o terreno para o professor exercer a amorosidade ao atuar com seus alunos, visto que é, para Freire, uma estratégia pedagógica fundamental, sobretudo, por viabilizar o envolvimento do professor na busca de um processo de ensino e aprendizagem que faça sentido tanto para o ensinante quanto para o aprendente. O sentido da amorosidade contempla o ser humano como ser inacabado, que se constrói continuadamente pela relação recíproca e dialógica com o seu próximo (ARRUDA et al, 2019).

Ao se aprofundarem no conceito freiriano de amorosidade, Amorin e Calloni (2017, p.410) apontam que “buscar a compreensão sobre os possíveis significados do conceito de amorosidade é mais do que o definir, é assumi-lo como necessidade histórica de homens e mulheres enraizados no mundo”. Estes autores assinalam que a amorosidade em Freire está longe de ser um sentimento piegas, pois almeja ser um dever emancipatório, um compromisso existencial com o outro ser, quer seja o ser humano ou outro tipo de ser.

O educador pernambucano se consagra pelo seu movimento pioneiro, corajoso e atrevido de desenvolver, de forma explícita, a incorporação do amor como elemento fundamental do fazer educacional. O amor freiriano vai de encontro à racionalidade do processo pedagógico, inserindo as emoções, os sentimentos e os processos intersubjetivos no centro do ensinar e do aprender, tanto nas instituições escolares quanto nos demais espaços onde a educação e o ensino se realizem. Logo, a amorosidade toma um escopo ético, emergindo como uma pauta para o agir solidário, humanizador e emancipatório (CRUZ; CARVALHO; ARAÚJO, 2018).

Levando em conta a dosagem de amor freiriano aqui apresentada e resgatando os pressupostos da biologia do amor de Maturana discutidos anteriormente, parte-se para os possíveis pontos de convergência e diálogo entre ambos os autores no que se refere à importância da amorosidade para o processo de ensino-aprendizagem das ciências.

 

Diálogos entre Maturana e Freire sobre amorosidade no processo de ensino e aprendizagem das ciências

Após as reflexões sobre a Biologia do Amor de Maturana e o conceito de amorosidade em Paulo Freire, surge a necessidade de desvendar qual as aproximações e distanciamento entre estas duas concepções e como ambas podem sinalizar caminhos para o processo de ensino e aprendizagem das ciências. É notório perceber em estudos que as ideias construtivistas são almejadas e tomadas como base para o processo de ensino-aprendizagem das ciências, tendo o educando um papel central neste processo. Para tanto, faz-se necessário que o professor conheça o seu aluno e compreenda em que fase de desenvolvimento ele se encontra. Outro ponto, é o entendimento do ‘aprender’, sobre o qual o educador tem que ter a compreensão de que seus alunos aprendem quando conhecem e não, necessariamente, quando se informam, ou seja, na perspectiva construtivista, aprender não é se informar e sim conhecer (VASCONCELOS; PRAIA; ALMEIDA, 2003).

Levando em conta o pensamento sistêmico proposto por Maturana, a relação professor-aluno deve ser encarada como um processo de aprendizagem coletiva. Não é só o educando quem aprende, mas também o educador. E isso se dá de forma perene e recíproca. O que o professor compartilha precisa ter significado para ele próprio, a fim de conduzir suas aulas no sentido de fazer do aluno um participante ativo. E, na busca de optar pelos caminhos mais sustentáveis do ensino, priorizar não o que se aprende, mas a partir de qual perspectiva o estudante aprende (ROSSETTO, 2008). Este entendimento do modo Maturana de explicar o ensino e a aprendizagem guarda relação com uma conhecida premissa de Freire (2014, p.25) que diz que “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.

A biologia do conhecer de Maturana assim como todo arcabouço pedagógico-epistemológico de Freire são veementemente contrários à concepção mecânica de ensino-aprendizagem, à concepção de que o professor é transmissor de conteúdos como meras representações de conhecimentos da realidade externa e que depositam estes conteúdos nos receptáculos chamados alunos (MALAVASI; SANTOS; SANTOS, 2017). Esta perspectiva mecânica é entendida e criticada por Freire em sua obra Pedagogia do Oprimido como uma educação bancária (FREIRE, 1987) e, para Maturana, esta mesma perspectiva mecânica do ensino-aprendizagem das ciências é inserida no domínio das explicações da “objetividade sem parênteses”, visto que os conhecimentos assim trabalhados são alheios às experiências cotidianas dos aprendentes (MATURANA, 2014).

Sabe-se que uma das questões fulcrais dos campos da educação e do ensino é compreender em que momento pode-se verificar que a aprendizagem está ocorrendo. Para esta questão tão fortemente discutida, o biólogo chileno assinala que a aprendizagem ocorre quando o organismo/observador (autopoiético, autoconstrutivo, autocriativo) sofre variações perceptíveis por ele mesmo no que tange ao entrelaçamento de suas faculdades racionais e emocionais. Para Maturana, as emoções envolvidas são as responsáveis por dar sustentação aos argumentos ditos racionais (BARCELOS, 2006).

À medida que Maturana sinaliza a importância das emoções como o sustentáculo do processo de aprendizagem e do processo de elaboração de argumentos racionais científicos, ele critica que o processo educativo escolar não prioriza ou até ignora a escuta dos desejos, das vontades, dos silêncios e do imaginário das crianças. Falta diálogo com as motivações dos educandos, como as suas disposições corporais e cognitivas (BARCELOS, 2006). Então, para o autor chileno, a aprendizagem tem que ser baseada no diálogo recíproco e amoroso, na conversação do fluir, em que a linguagem viabiliza as emoções dos sujeitos envolvidos.

Consoante Freire, o ensinar mecânico e alheio às questões reais que envolvem docentes e discentes é uma forma de legitimar a opressão do poder hegemônico. E, indo na mesma linha, Maturana ver este tipo de processo de ensino como extremamente coercitivo e produtor de sofrimento, não havendo possibilidades de desenvolver a aprendizagem desta forma. Para ambos pensadores, um ambiente educacional que não instigue o respeito mútuo entre os sujeitos que ensinam e aprendem não tem condições de proporcionar uma educação para a liberdade, na concepção de Freire, ou para a criatividade, na concepção de Maturana (MALAVASI; SANTOS; SANTOS, 2017).

Então, um dos pontos mais profícuo de interlocução entre Maturana e Freire, nos campos da educação e do ensino, é o amor. Vale frisar que o fio condutor de toda as obras do educador brasileiro é, justamente, o ato educativo como um ato de amor, o que preconiza um confiança na humanidade, na libertação dos sujeitos. Freire enxerga o ato de amor da libertação como um movimento que vai do oprimido para o opressor, pois, no sentido contrário, opressor-oprimido, somente há desamor, somente há desumanização (FREIRE, 1987; MALAVASI; SANTOS; SANTOS, 2017). Numa proposta bem próxima, Maturana acredita que não é a razão que justifica nossa preocupação com o outro, mas o domínio emocional do amor (MATURNA, 2014; MALAVASI; SANTOS; SANTOS, 2017) e que a amorosidade é a base de toda comunicação não manipuladora dos sujeitos, ou seja, a comunicação horizontal e recíproca, tão crucial para a dinâmica do ensino e aprendizagem (ARRUDA, 2018).

Maturana bate na tecla de que todo ato pedagógico deve ser realizado partindo do alto mais nível de linguagem e comunicação dos seres humanos, que é o amor. E este mesmo amor vai ao encontro da perspectiva autopoiética do ser, que leva à subversão da razão como o aspecto apenas da mente, abrindo-se para o entendimento da emoção como energia interna que não morre, que se autoconstrói continuadamente para fins de (auto)conhecimento (MATURANA, 2014; RODRIGUEZ; FORTUNATO, 2021). Logo, a expressão do amor, que parte da complexa biologia do ser, revela-se como expressão de ação utópica na prática perante a realidade, conectando-se, assim, ao legado freiriano, que acolhe o amor como o traço marcante de toda personalidade libertadora (RODRIGUEZ; FORTUNATO, 2021).

Fica notório que o amor como ato pedagógico e de reconhecimento do outro é um elo fecundo entre as epistemologias de Paulo Freire e Humberto Maturana. Mas, há algo que precisa ser distinguido em ambos, que é a carga conceitual de um sentimento que está ligada ao movimento de amar para o brasileiro, mas que, para o chileno, não tem o mesmo sentido, ou melhor, não é oportuna a sua utilização. Este sentimento é a tolerância.

Em Pedagogia da Autonomia, na seção “ensinar exige saber escutar”, o pensador pernambucano enxerga a tolerância, juntamente à amorosidade e a outros atributos (respeito aos outros, humildade, gosto pela alegria, recusa aos fatalismos, abertura ao novo, disponibilidade à mudança, persistência na luta etc.), como uma das virtudes que o educador deve cultivar, por ser um sentimento fundamental para uma prática progressista na educação.

Diferente do brasileiro, Maturana considera que a base do amor é o respeito mútuo e não a tolerância, pois tolerar implica em negar o outro e que respeitar alude a se fazer responsável pelas emoções frente ao próximo, sem negá-lo (MATURANA; VARELA, 1995; MATURANA; VERDEN-ZOLLER, 2014; MOREIRA, 2004). Em sua obra “Emoções e Linguagem na Educação e na Política”, destaca que “a tolerância é uma negação postergada. Tolerar é dizer que o outro está equivocado, e deixá-lo estar por um tempo” (MATURANA, 2002, p.50).

De forma contundente, o biólogo chileno chama a atenção de que a tolerância é um postergar temporário da luta entre os diferentes e que a democracia não combina com luta e sim com a aceitação recíproca entre os sujeitos. Logo, democracia não combina com tolerância, pois o ato de tolerar leva a uma naturalização das desigualdades, cuja existência a democracia não deve legitimar:

 

A tolerância é uma negação do outro suspensa temporariamente. As vitórias que não exterminam o inimigo preparam a guerra seguinte. Na democracia não há luta. Se queremos democracia e, de fato, estamos na paixão da construção de uma democracia, estamos nas conversações que constituem um projeto comum de convivência na aceitação e no respeito recíprocos, que permitem a colaboração na configuração de um mundo no qual a pobreza e o abuso não surgem como modos legítimos de viver (MATURANA, 2002, p. 93-94).

 

Com visão distinta e anterior ao chileno, Paulo Freire concebe a tolerância como um dos elementos fundantes da democracia. Em seu livro “Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos”, o terceiro capítulo, que tem como título “Terceira carta: do assassinato de Galdino Jesus dos Santos – índio pataxó”, na verdade, tinha como primeira proposta de título, conforme rascunhos de Freire, a frase: “Da Tolerância: uma das qualidades da vida democrática” (FREIRE, 2000, p.32). Este título depois foi adaptado e utilizado como “Da Tolerância: uma das qualidades fundantes da vida democrática” na obra denominada, nada mais nada menos, que “Pedagogia da Tolerância” (FREIRE, 2014b). Neste capítulo, o pensador brasileiro expressa que:

 

O bárbaro assassinato de Galdino Jesus dos Santos, o índio pataxó que, despertado pela dor indizível de seu corpo em chamas, se soube inapelavelmente morrendo, nos coloca, mais uma vez, a questão da tolerância. Da tolerância, da educação, da democracia. Mas, não da tolerância como pura condescendência ou indulgência que A tem ou experimenta com relação a B. Neste sentido, a tolerância implica um certo favor que o tolerante faz ao tolerado. O tolerante, em última análise, é uma pessoa disposta, bondosa ou benevolente, a perdoar a “inferioridade” do outro.

Nesta compreensão alienada e alienante da tolerância, como favor do tolerante ao tolerado, se acha escondida no tolerante a desconfiança, quando não a certeza, de sua superioridade de classe, de raça, de gênero, de saber em faze do tolerado. Este, por sua vez - espera o tolerante -, deve humildemente revelar sua gratidão à bondade do tolerante. (...)

Não é desta tolerância nem deste tolerante nem tampouco deste tolerado que falo. Falo da tolerância como virtude da convivência humana. Falo, por isso mesmo, da qualidade básica a ser forjada por nós e aprendida pela assunção de sua significação ética – a qualidade de conviver com o diferente. Com o diferente, não com o inferior (FREIRE, 2014b, p. 25).

 

Além do mais, Freire escancara a sua concepção sobre tolerância e a sua importância para a democracia e para o trabalho pedagógico na provocante obra “Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar”:

 

Outra virtude é a tolerância. Sem ela é impossível um trabalho pedagógico sério, sem ela é inviável uma experiência democrática autêntica, sem ela a prática educativa se desdiz. A tolerância não é, porém, a posição irresponsável de quem faz o jogo do faz-de-conta. Ser tolerante não é ser conivente com o intolerável, não é acobertar o desrespeito, não é amaciar o agressor, disfarça-lo. A tolerância é a virtude que nos ensina a conviver com o diferente. A aprender com o diferente, a respeitar o diferente. Tolerância é virtude. Por isso mesmo se a vivo, devo vive-la como algo que assumo. Como algo que me faz coerente, primeiro, como ser histórico, inconcluso que estou sendo, segundo, com minha opção político-democrática. Não vejo como possamos ser democráticos sem experimentar, como princípio fundamental, a tolerância, a convivência com o diferente (FREIRE, 1997, p. 39).

 

Indo do campo da democracia para o caminho explicativo dos fenômenos, Maturana (2014) assume a necessidade de se perguntar pelo observador e pelo observar, permitindo, assim, reconhecer que se abre um espaço de convivência no movimento de compreender a natureza biológica de si e do outro, e que neste movimento há respeito e não tolerância, pois respeito significa empatia pelas emoções do próximo, diferentemente da tolerância, que sugere a negação do outro.

É sabido que o biólogo chileno ressalta em seus estudos e reflexões as duas perspectivas de objetividade: a objetividade entre parênteses e a objetividade sem parênteses. Esta última perspectiva propaga a ideia de que a existência da realidade acontece independente de quem observa e a primeira sinaliza que a explicação da realidade depende do observador, que, por sua vez, está arraigado em sua estrutura biológica e está inserido em determinado contexto (GHEDIN, 2021). Ao tentar diferenciar estas duas perspectivas, Maturana deixa claro que, no ensino das ciências, crianças e jovens devem ser estimulados a compreenderem a importância da objetividade entre parênteses, para que não caia nos discursos vazios de tolerância do outro, ou seja, da negação do outro:

 

A diferença entre estar na objetividade entre parênteses ou sem parênteses, em última instância, refere-se ao dar-se conta. Quando estou na objetividade sem parênteses, assumo que tenho acesso a uma realidade independente e opero como se fosse assim, sem qualquer dúvida. Não me dou conta desta outra situação que é a objetividade entre parênteses. Quando faço esta reflexão, percebo que isto é um caminho explicativo que se funda no fato de que não pergunto pelo observador, e descubro o seguinte: descubro que cada vez que estou em um domínio de realidade, eu opero em um domínio de objetos como se esses objetos fossem independentes de mim. Cada domínio de realidade é um domínio de entes que manipulo como se fossem independentes de mim. Esses objetos podem ser físicos, biológicos, místicos, míticos. Se estou na objetividade entre parênteses, reconheço que cada um deles é um domínio de realidade particular com objetos particulares, mas nenhum é uma referência a uma realidade independente. De modo que no ensino, o que tenho que fazer — e as crianças e jovens são capazes de entender isto — é não entrar na cegueira de pretender ter acesso a uma realidade independente de mim. Essa pretensão abre espaço ao fanatismo através da negação do outro, ou à tolerância do outro, que é o mesmo. No ensino, o que tenho que fazer é aceitar que cada domínio de realidade fica definido por um conjunto de coerências operacionais que eu tenho que dominar — se é que quero dominar esse domínio de realidade (MATURANA, 2014, p.107 e 108).

 

Em complemento, reforça que os discursos de tolerância são sustentados pela objetividade sem parênteses, compreendendo discursos de aceitação vazios e não coadunados com discursos e atos calcados na biologia do amor:

 

 [...] pertencemos a uma história na qual existe uma emoção fundamental chamada amor. Se aceitamos isto e queremos de fato a convivência, então vamos gerar outro domínio de realidade no qual a aceitação mútua esteja presente. O que ocorre é que, normalmente, estamos na objetividade sem parênteses. Temos discursos de aceitação, ou melhor dizendo, temos discursos de tolerância na suposição de que isso de ser tolerante é uma coisa muito boa. Talvez seja bom ser tolerante quando um nega o outro para não matá-lo a tiros, não? Mas são coisas completamente diferentes: tolerância não é aceitação. Tolerância não é respeito. Tolerância é negação postergada, ou a negação agora com uma ação postergada. Como normalmente estamos na objetividade sem parênteses, nossos discursos sobre aceitação do outro são vazios, quer dizer, pertencem — desculpem-me os literatos — à literatura. Pertencem à novela. Eu posso fazer uma novela. A novela pertence a um domínio distinto do domínio das ações nas quais eu me movo nas relações com o outro. Então, pode-se ter um discurso de aceitação e uma ação de negação. A única possibilidade, portanto, é assumir a biologia, porque no fim das contas a biologia é o que nos salva. Sim, é a biologia da aceitação do outro que, no fim das contas, produz, todo o tempo, o movimento deste pêndulo. (MATURANA, 2014, p.116 e 117)

 

A asserção de Maturana acima é provocadora no sentido reforçar que a tolerância é uma negação postergada e, desta forma, não deve ser encarada como algo definitivamente bom e que se caracteriza como a uma atitude de aceitação nos moldes da objetividade sem parênteses. É fato que na obra de Freire, não se verifica uma reflexão nominal e direta aos termos “objetividade sem parênteses” e “objetividade entre parênteses”, porém, o educador brasileiro trata a tolerância com uma perspectiva mais acolhedora, divergindo neste aspecto, como já evidenciado, do biólogo chileno. É oportuno frisar que Freire (2014b), elaborou, inclusive, uma relevante obra intitulada Pedagogia da Tolerância, onde circunscreve a ideia de tolerância verdadeira, virtuosa, genuína ou autêntica, ou seja, aquela que não oferece guarida para discursos ideológicos ou discursos de concordância ou estima vazios. Mas, sim, uma tolerância, calcada num contexto de vivência e de experiências mútuas entre sujeitos que se toleram, que respeitam reciprocamente as suas diferenças, como podemos observar no trecho abaixo:

 

A tolerância verdadeira não é condescendência nem favor que o tolerante faz ao tolerado. Mas ainda, na tolerância verdadeira não há propriamente o ou a que tolera e o ou a que é tolerado (a). Ambos se toleram. Por isso mesmo, na tolerância virtuosa não há lugar para discursos ideológicos, explícitos ou ocultos, de sujeitos que, julgando-se superiores aos outros, lhes deixam claro ou insinuam o favor que lhes fazem por tolerá-los.

(...)

Ninguém é verdadeiramente tolerante se se admite o direito de dizer do outro ou da outra: o máximo que posso fazer é tolerá-lo, é aguentá-lo. A tolerância genuína, por outro lado, não exige de mim que concorde com aquele ou com aquela a quem tolero e também não me pede que a estime ou o estime. O que a tolerância autêntica demanda de mim é que respeite o diferente, seus sonhos, suas ideias, suas opções, seus gostos, que não o negue só porque é diferente. O que a tolerância legítima termina por me ensinar é que, na sua experiência, aprendo com o diferente (FREIRE, 2014b, p.26).

 

A despeito desta nítida distinção entre Maturana e Freire no que se refere à concepção de tolerância e como esta se relaciona ou não com a democracia e, consequentemente, com o processo democrático que deve ser impresso no fazer pedagógico, vale destacar que ambos acolhem o amor e o movimento de amorosidade como elementos primordiais e irrecusáveis de todo caminhar educativo, incluindo o ensinar e o aprender ciências.

A biologia do amor de Maturana se caracteriza como um convite para professores e pesquisadores levantarem questionamentos e inquietações acerca do ensino das ciências como um processo de formação do humano. Sua epistemologia sugere que o professor, em seu contínuo processo formativo, coloque-se na condição de observador que observa o próprio observador, ou seja, que se coloque na condição de auto-observação que impulsiona o “fazer a própria experiência, onde nasce o mais genuíno do conhecer que produz o ser” (GHEDIN, 2021, p. 255).

A biologia do conhecer, centrada na autopoiese, na auto-organização, na autoconstrução do ser humano, a partir de sua vertente “biologia do amor”, pautada nas emoções e na aceitação e reconhecimento do outro como um universo autopoiético que, também, se auto organiza e se autoreconstrói, é imprescindível para o ensino das ciências, cujo processo de ensino e aprendizagem necessita se voltar, continuadamente, ao destino da humanidade, à consciência planetária e à formação integral e humanizadora de educadores e educandos (GHEDIN, 2021).

A amorosidade em Freire faz a sua pedagogia se aproximar do ensino das ciências por meio do olhar horizontal, dialógico, contextualizador e problematizador. A amorosidade, com toda a sua carga subjetiva, questiona o fazer e o ensinar ciências como um pensamento pretensamente hegemônico e neutro (ZAUITH; HAYASHI, 2013). O fazer e o ensinar ciências, quando pautado no desamor, tornam-se reflexos de uma sociedade competitiva que, por sua vez, impregna os espaços de formação e atuação profissional, incapacitando os docentes de promover ambientes alegres e amorosos de ensino e aprendizagem (ARRUDA et al., 2019).

Partindo das lentes de Maturana e Freire, a aprendizagem das ciências tem seu princípio e fim no olhar do outro, no diálogo, na escuta, no viver e no conviver e, para tanto, o compromisso ético-político do professor manifesta-se, essencialmente, na qualidade da prática pedagógica e na sua capacidade de instituir ações colaborativas, fazendo do espaço escolar um espaço de acolhimento, de reciprocidade, de cooperação, de amor e de alegria. Além do mais, vale ressaltar que o processo de ensino e aprendizagem não acontece sem a interação entre educador e educando. E, não há interação entre os sujeitos sem articulação, sem relação, sem diálogo, sem reciprocidade, sem amorosidade. Torna-se impensável desenvolver uma prática pedagógica sem interação, logo, não há como desenvolver uma prática pedagógica sem amorosidade (ARRUDA et al., 2019).

Com o presente trabalho, é possível depreender que, com a sua proposta epistemológica da Biologia do Amor, o biólogo chileno Humberto Maturana reforça, para os mundos científico e educacional, que o amor é o fundamento biológico do fenômeno social, visto que significa a aceitação do outro. Logo, alerta que sem amor, ou seja, sem a aceitação do outro não há socialização, não há humanidade. Porém, este amor, esta aceitação do outro não pode ser reduzida a um sentimento piegas, mas, tem que envolver a reflexão e o acolhimento às ambiguidades e aos problemas inerentes da socialização, com fins de superá-las. Neste sentido, a Biologia do Amor de Maturana sugere que, todo ato educativo, inclusive o desenvolvido no ensino das ciências, deve ser pautado no amor, na aceitação do próximo, considerando os problemas emocionais e as dificuldades dos sujeitos, que devem ser tomadas como base para desenvolvimento de atitudes em prol da solução de problemas e de enfrentamentos às desigualdades, tão presentes nas relações e convivências humanas.

Num sentido bem próximo, a amorosidade para Freire compreende protagonizar as emoções e os atributos subjetivos no processo de ensino e aprendizagem. É por meio dela que o professor encontra fôlego para seu comprometimento com o ato de ensinar e com a sua própria formação, pois é um atributo ético pautado no agir solidário, humanizador, engajador, contestador e emancipatório. Freire, também, afirmava que o amor não é um elemento piegas, mas sim o ingrediente primordial para uma educação em ciências de cunho libertador, que questiona e enfrenta as desigualdades cotidianas.

Pode-se perceber que o conceito de tolerância, a qual compreende um dos aspectos adjacentes para a concepção do amor como um artifício democrático e pedagógico, é distintamente encarado por Freire e Maturana. Enquanto este compreende a tolerância como algo não aceitável e não benéfico para a democracia e para o campo da educação, para o primeiro, tolerância é a virtude que ensina os sujeitos a conviver com o diferente, sendo essencial para toda relação democrática, inclusive para a democracia inerente ao fazer pedagógico e aos processos de ensinar e de aprender.

Pode-se considerar, então, que, apesar de haver uma nítida distinção entre os autores no que tange o conceito de tolerância, há uma congruência entre ambos na iniciativa de protagonizar a amorosidade no processo de ensino e aprendizagem, bem como uma afinidade de entender o ato educativo e o ato de ensinar ciências como, primordialmente, atitudes de reconhecimento de si e, ao mesmo tempo, de aceitação do outro, a serem desenvolvidos por educadores e educandos na prática da convivência, do diálogo e da reciprocidade respeitosa. Portanto, fica notório que o amor como ato pedagógico e de reconhecimento do outro é um elo fecundo entre as epistemologias dos sul-americanos Paulo Freire e Humberto Maturana.

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