“Educar é educar ao humano. A barbárie, sejam quais forem suas formas, incluindo muito modernas, pensa fora do humano” (Bernard Charlot, 2020)
Introdução
O objetivo deste artigo é construir uma reflexão sobre a relação com o saber a partir da linguagem de programação de computadores e os sentidos construídos pelos(as) professores(as) ao ensinar essa linguagem, a fim de que o professor(a) possa desenvolver, junto aos estudantes, um trabalho mobilizador com o prazer no aprender e em um olhar para além das linhas de códigos. Conforme mobiliza-nos Charlot (2000), o aprender na relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo, olha para a vida humana, na perspectiva de uma educação humanizadora de sentido.
As definições de relação com o saber foram construídas ao longo de uma década e ainda são apresentadas por Bernard Charlot e sua equipe de pesquisa (2021) como em processo de construção, em que apresenta a relação com o saber, ultrapassando os saberes escolares, contemplados de diferentes dimensões da formação humana. Charlot salienta que a questão da Relação com o Saber no percurso
(...) atravessa a história da filosofia clássica, pelo menos até Hegel. Foi apresentada por Sócrates quando este disse ‘Conhece-te a ti mesmo’; é a questão do debate entre Platão e os sofistas; está no âmago da dúvida metódica de Descartes e do cogito que vem em seguida; está muito presente na Fenomenologia do Espírito, de Hegel (...). (Charlot, 2005, p. 35).
Charlot (2005, p. 36) acrescenta que a expressão “Relação com o Saber” é utilizada desde as décadas de 1960 e 1970, sendo encontrada em textos de alguns sociólogos, do didático Giordan, bem como de psicanalistas – a exemplo de Lacan, que é um dos pais dessa noção. No entanto, foi Charlot quem desenvolveu essa informação como organizadora de uma problemática, introduzindo-a à área da Educação a partir dos anos de 1980. Tal conceito foi apresentado em confronto com dados na década de 1990, quando ele desenvolveu pesquisas nos bairros populares de Paris, juntamente com a equipe de pesquisa Educação, Socialização e Coletividades Locais (ESCOL), por ele idealizada e fundada junto ao Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Paris VIII – Saint-Denis.
Chevallard (1996; 2002; 2015), por outro lado, apresenta a relação ao saber como uma ‘noção’ construída na sua Teoria Antropológica do Didático - TAD. Seu entrelaçamento, nesse sentido, é diferente da abordagem supracitada. Uma das situações central dessa diferença é fazer com que a ‘noção’ e seu valor heurístico sejam mais restritos aos contextos da teoria na qual ela é evocada (prolongamento da teoria das situações didáticas) ou na qual é um fundamento (Teoria Antropológica do Didático). A abordagem axiomática do ‘conceito’ de relação ao saber, de forma específica, se refere à axiomatização, às formulações desenvolvidas para um objeto genérico, no contexto da antropologia do conhecimento (antropologia cognitiva), para o objeto saber denotado por s, que estaria inserido na antropologia dos saberes enquanto domínio específico da antropologia do conhecimento. (Nuperes, 2018). Segundo Chevallard (1999) e seus colaboradores, a TAD é um modelo epistemológico para o estudo dos processos específicos de produção e circulação de saberes.
Para Cavalcanti (2015), nos últimos 30 anos encontramos registros de pesquisas especializadas em diversos países francófonos (e.g. Bélgica; Suíça; Canadá), hispanófonos Argentina, Chile, Uruguai); Lusófonos (Portugal; Brasil); entre outros, considerando a relação com o saber. O autor apresenta uma história sistemática da noção propondo cinco desenvolvimentos: surgimento (1) e propagação (2) da expressão ‘rapport au savoir’ na literatura científica francesa; institucionalização da relação ao saber como noção teórica (3); difusão (4) no cenário francófono; e universalização (5), que seria uma difusão cenário francófono (Cavalcanti, 2015).
Em tal processo, a pesquisa a partir das teorias de Charlot é uma abordagem fundada a partir de uma reflexão crítica e investigações sobre a questão do fracasso escolar e no contexto de elaboração de uma sociologia do sujeito, da qual emerge uma reflexão mais ampla, privilegiando um ponto de vista antropológico que busca criar uma constelação de conceitos pela inserção da relação com o saber definido da seguinte forma: A relação com o saber é a relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo, por um sujeito confrontado com a necessidade de aprender. A relação com o saber é um conjunto (organizado) das relações que um sujeito mantém com tudo quanto estiver relacionado com “o aprender” e o “saber”; a relação com o saber é o conjunto das relações que um sujeito mantém com um “conteúdo de pensamento”, uma atividade, uma relação interpessoal, um lugar, uma pessoa, uma situação (Charlot, 2000, pp. 80-81). “A relação com o saber é relação com o tempo. A apropriação do mundo, a construção de si mesmo, a inscrição em uma rede de relações com os outros ‘o aprender” (Charlot, 2000, p. 78). Assim, considera o estudioso que o mundo é o que “nossa espécie produziu, é uma forma sedimentada e objetivada do humano (...)”. (Charlot, 2020, p. 296).
Em relação à Ciência da Computação, por tratar-se de uma área essencialmente técnica, mas que dialoga com diferentes áreas do conhecimento, considera-se oportuno refletir sobre o ensino da linguagem de programação e os saberes que se estabelecem na formação dos sujeitos. Esse interesse é proveniente pelo fato de as disciplinas relacionadas à linguagem de programação serem consideradas as mais complexas da estrutura curricular.
A Ciência da Computação e as diversas nomenclaturas adotadas para expressar o saber e o trabalho com a linguagem de programação nas disciplinas que constituem essa área do conhecimento em constante evolução, apresenta uma de suas subáreas, que consiste na programação de computadores, a qual teve início na década de 1930, e que perpassa cursos de natureza da computação em diferentes disciplinas. Também há disciplinas de linguagem de programação de computadores nas diferentes áreas do conhecimento, em especial na área das Ciências Exatas.
Mesmo na educação básica, essa questão vem sendo tratada, instigada mais intensamente pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ao tratar das competências do pensamento computacional (Brasil, 2017). A programação de computadores é responsável por direcionar o funcionamento de qualquer computador ou dispositivo eletrônico. Aprender a programar computadores é tão antigo quanto o próprio computador, uma vez que nenhum funciona sem um software.
A Linguagem é o sistema através do qual o homem comunica suas ideias e sentimentos, seja por meio da fala, da escrita ou de outros signos convencionais. De acordo com a teoria histórico-cultural, é na relação mediada por signos e instrumentos que se dá o desenvolvimento. Pois, como descrevem Cole e Scribner (2003, p. 9), “os sistemas de signos (...), assim como o sistema de instrumentos, são criados pelas sociedades ao longo do curso da história humana e mudam a forma social e o nível de desenvolvimento cultural”. A internalização desses sistemas promove transformações comportamentais e a ligação entre as formas iniciais e as posteriores de desenvolvimento individual.
De acordo com Vygotsky (2001, 2003a, 2003b), a aquisição/elaboração do conhecimento ocorre pela linguagem e pela interação comunicativa, por intermédio do uso de mediadores sociais. O autor destaca a importância da linguagem para o desenvolvimento cognitivo e social do homem, ressaltando que pelo caráter social do ser humano é que este cria a linguagem e ela opera transformações no seu aprendizado, uma vez que provoca o desenvolvimento, pois segundo Vygotsky (2001, 2003a) a linguagem é um dos mediadores da relação sujeito e objeto.
Podemos pensar a linguagem também a partir da perspectiva linguística. Para Ferdinand Saussure (1995), considerado o pai da linguística moderna, o significante do signo linguístico é uma “imagem acústica” (cadeia de sons), o que consiste no plano da forma. O significado é o conceito e reside no plano do conteúdo. Conjuntamente, o significante e o significado formam o signo. O signo linguístico é um elemento representativo que apresenta dois aspectos: o significado e o significante; assim, o signo é o átomo da linguagem, ele é a unidade fundamental de entendimento de um código e pode ser decomposto em dois níveis de compreensão: significante é o elemento tangível, perceptível, material do signo; significado, o conceito, o ente abstrato do signo.
Ao escutar a palavra programação, reconhecemos a sequência de sons que formam essa palavra. Essa lembrança constitui uma real imagem sonora, armazenada em nosso cérebro, que é o significante do signo programação. Esse mesmo signo linguístico é, também, o signo propriamente dito, em oposição aos signos com expressão derivativa, como os sinais, os signos substitutivos e os símbolos, mencionados anteriormente. Saussure (1995) definiu o signo linguístico como o formativo da relação (sua formante) entre um conceito e uma imagem sonora. O signo linguístico é a relação que se estabelece entre um significante e um significado, assim, segundo Saussure (1995), o significante é entendido como a imagem acústica de uma palavra, isto é, a representação sonora de uma palavra.
A linguagem, por conceito, é a representação do pensamento por meio de sinais que permitem a comunicação e a interação entre as pessoas. Tais sinais que permitem o ato de comunicação são os chamados signos linguísticos. O código linguístico é o conjunto de unidades de sinais de cada idioma combinado de acordo com certas regras, instruções, permite a elaboração de mensagens (Saussure, 1995), possibilitando a comunicação.
Diferentemente da linguagem utilizada pelos seres humanos, uma linguagem de programação é um conjunto de instruções programadas interpretadas pelas máquinas e que, por intermédio de Interação Humano-Computador (IHC), possibilita a interação dos humanos com os computadores. A linguagem de programação é um método padronizado, formado por um conjunto de regras sintáticas e semânticas, de implementação de um código fonte que pode ser compilado e transformado em um programa de computador, ou usado como script interpretado, que informará instruções de processamento ao computador (Dershem & Jipping, 1995). Essa linguagem possibilita que um programador descreva precisamente quais os dados que o computador atuará, como estes dados serão armazenados ou transmitidos e quais ações devem ser tomadas conforme as condições na relação com o saber da linguagem da programação.
A Relação com o saber na linguagem de programação de computadores
Linguagens de programação podem ser usadas para expressar algoritmos com precisão. Um algoritmo nada mais é do que uma receita ou uma bula que mostra passo a passo os procedimentos necessários para a resolução de uma tarefa. É uma sequência lógica, finita e definida de instruções que devem ser seguidas para resolver um desafio ou executar uma tarefa. O conjunto de palavras (lexemas classificados em tokens), compostos de acordo com essas regras, constitui o código fonte de um software. Esse código fonte é depois traduzido para código de máquina, que é executado pelo microprocessador (Aho et al., 2008).
Os computadores, máquinas com circuitos digitais, trabalham, entre outros sistemas, com o sistema binário. O sistema binário é usado para interpretar informações e executar ações. É por meio dessa linguagem que o computador exibe e processa textos, números e imagens, por exemplo. O sistema binário ou de base 2 é um sistema de numeração posicional em que todas as quantidades são representadas com base em dois números, ou seja, zero e um (0 e 1). Uma das formas mais simples de alfabeto possível para se codificar informação é o alfabeto binário, um alfabeto que contém cardinalidade igual a 2 (apenas dois símbolos no conjunto).
Esse sistema de código binário permite a execução de cálculos aritméticos e de operações lógicas. Dessa forma, ele consegue executar o que solicitamos, desde que os comandos sejam traduzidos para o código de máquina (binário). Todavia, como ocorre a conversão de caracteres alfanuméricos pelo computador? Usando uma tabela de conversão, tal como a ASCII, por exemplo, o número 4 é “0100” em binário e o número 1 é “0001” em binário; a letra “A” em binário é “01000001”. Para isso, são utilizados apenas dois valores binários, ou seja, 0 e 1, interpretados pelo processador. A base é o número dez, logo, é decimal. No caso da base binária, é semelhante: 11000 = 1x24 + 1x23 + 0x22 + 0x21 + 0x20 = 1x16 + 1x8 + 0x4 + 0x2 + 0x1 = 24 (em decimal). A base é o número dois, e todos os números são escritos a partir de potências do número dois. Por exemplo, a letra “A” geralmente corresponde ao número 65. O algarismo “1” dentro de um texto corresponde ao número 49. Por exemplo, os passos para converter: 101010. Multiplicar cada dígito binário por 2 elevado à sua posição. Os números binários são lidos da direita para a esquerda. E, na sequência, os resultados são somados.
Por meio dessa linguagem formal, através de uma série de instruções, um programador escreve um conjunto de instruções, ações consecutivas, dados e algoritmos para criar programas que controlam o comportamento físico e lógico de uma máquina. Existem várias linguagens e elas servem para diferentes propósitos como, por exemplo, controlar um satélite, um carro, avião, semáforo ou uma torradeira digital.
Uma linguagem de programação precisa ter três componentes básicos: a) Vocabulário: conjunto de palavras (elementos primitivos) da linguagem; b) Sintaxe: conjunto de regras para se escrever comandos na linguagem usando as palavras do vocabulário; c) Semântica: significado de cada comando na linguagem. No planejamento das disciplinas envolvendo ensino de linguagem de programação é possível adicionar elementos da teoria da transposição didática - TAD desenvolvida por Yves Chevallard, por ser desenvolvida, particularmente, no campo da Didática, em que se conceitua a “noção” como a forma do saber sabido pela comunidade científica para o saber ensinado praticado nas instituições de ensino; no sentido restrito, designa a passagem do saber sábio para o saber ensinado. Ou seja, é o posicionamento da relação ao saber como um ‘conceito’ ao qual é subjacente à tríade ‘relação pessoal’, ‘relação institucional’ e ‘relação oficial’. Para Chevallard (2015), o sistema conceitual é constituído por duas noções fundamentais – ‘objeto’ e ‘relação ao objeto’ – por meio da expressão ‘rapport au savoir’. Dessa maneira, a ‘relação ao saber’, na perspectiva antropológica de Chevallard, é passar do domínio geral, da forma ampla (ao que se refere sua formulação a partir das noções de objeto, instituição, relação etc.) para o específico.
Para Pierre Lévy (2011), filósofo da informação, a linguagem binária é um sistema de codificação que pode ser processado pelas máquinas. Para fazê-lo, Lévy compara a linguagem binária à linguagem humana: alfabetos compostos por dois números, 0 e 1 que, combinados, formam uma infinidade de significações. Em Esfera Semântica, Lévy (2011) defende a ideia de que a espécie humana pode ser definida pela sua capacidade especial de manipular símbolos. Para ele, essa capacidade demonstra aumento devido à manipulação dos símbolos ter apresentado alterações sociais relativas às esferas econômica, política, religiosa, epistemológica e educacional, dentre outras.
O autor compartilha sua reflexão a partir da análise de quatro dessas marcantes mudanças: (1) a invenção da escrita, quando os símbolos se tornaram permanentes marcas de tribos e grupos sociais; (2) a invenção do alfabeto, numerais indianos e outros pequenos grupos de símbolos capazes de representar “quase tudo” por combinação; (3) a invenção da imprensa e (4) a invenção posterior dos meios de comunicação eletrônicos, em que os símbolos são reproduzidos e transmitidos em tempo real. Estamos, segundo o autor, presenciando o início de outra grande mudança que está sendo realizada: a antropológica que, para ele, acontece através de símbolos que podem ser transformados em autômatos massivamente distribuídos na forma digital.
A educação, como condição antropológica, pode ser entendida como um processo triplo de humanização, socialização-aculturação, singularização-subjetivação. Um processo de humanização que por meio do desejo e da norma permite a entrada em um mundo humano de um animal geneticamente hominizado pela evolução. Mas, enquanto habitat, o mundo humano só existe sob formas locais, contextuais (Charlot, 2020, p. 302). Assim, a educação é, portanto, também e indissociavelmente, um processo de socialização e aculturação.
Sendo assim, o homem, ao nascer, encontra-se diante do impasse de aprender sobre um mundo já estruturado. Conforme Charlot salienta (2020, p. 53), o homem precisa aprender para “construir-se, em um triplo processo de ‘hominização’ (tornar-se homem), de singularização (tornar-se um exemplar único do homem), de socialização (tornar-se membro de uma comunidade, partilhando seus valores e ocupando um lugar nela).”. Segundo o autor, essa “construção” apresenta a seguinte lógica:
Todo ser humano é indissociavelmente social e singular e não há nenhum sentido em se perguntar qual a parte do social e a parte do singular. Eu sou 100% social (senão, não seria mais um ser humano) e 100% singular (porque não há dois seres humanos semelhantes) e o total ainda é 100% e não 200%. Em termos mais científicos, as relações entre social e singular são multiplicativas, e não aditivas. O que é preciso compreender é a forma social de ser singular e a forma singular de ser social. (Charlot, 2005, p. 51).
É preciso tempo para entrar em um mundo humano, porque as mediações historicamente construídas são numerosas, diversas e complexas (Charlot, 2020, p. 303). Para o autor, a linguagem humana adota signos que não são cópias da coisa significada e que podem evocar uma coisa ausente, imaginária, absurda, impossível. Essa linguagem funciona por dupla articulação de fonemas (sons), gerando monemas (unidades de sentido, palavras), que tornam possíveis os textos. A linguagem humana cumpre, portanto, funções específicas, sob formas próprias à espécie (Charlot, 2020).
Para realizar aproximações dos conceitos apresentados com o cotidiano vivido por professores(as) de linguagem de programação, no contexto do Ensino Superior, trazemos alguns exemplos de falas recorrentes nas trocas entre os docentes. O cotidiano investigado foi de professores(as) do sul do Brasil, Santa Catarina, que ensinam a programação de computadores em cursos de nível superior de Ciência da Computação e Sistemas de Informação. O percurso metodológico foi inspirado no instrumento de Charlot (2009), denominado “balanços de saber”, para a geração e compreensão das vozes das(os) professores(as) que vivem o cotidiano da Linguagem de Programação de Computadores. Referimos a linguagem de programação de computadores como objeto de ensino, que pode ser também um saber, uma vez que ele não é um produto pronto e estável, mas construído pelos sujeitos, neste caso, os professores(as) de linguagem de programação de computadores na sua prática de ensinar e na interação com os seus estudantes. A saber de Charlot (2000, p. 61), apresenta-se uma distinção entre os termos o saber e a informação, ao esclarecer que uma definição do saber carrega a ideia de um sujeito “engajado” em uma relação com o saber.
A informação é um dado exterior ao sujeito, pode ser armazenada, estocada, inclusive em um banco de dados; está “sob a primazia da objetividade”. O conhecimento é o resultado de uma experiência pessoal ligada à atividade de um sujeito provido de qualidades afetivo-cognitivas; como tal é intransmissível, está “sob a primazia da subjetividade”. Assim como a informação, o saber está “sob a primazia da objetividade”; mas, é uma informação de que o sujeito se apropria. Desse ponto de vista, é também conhecimento, porém desvinculado do “invólucro dogmático no qual a subjetividade tende a instalá-lo”. O saber é produzido pelo sujeito confrontado a outros sujeitos, é construído em “quadros metodológicos”. Pode, portanto, “entrar na ordem do objeto”; e torna-se, então, “um produto comunicável”, uma “informação disponível para outrem”. (Charlot, 2000, p. 61).
Nesse sentido, em um processo inacabado, a partir da relação que os professores(as) estabelecem com esse saber, constroem-se sentidos, uma vez que o saber é uma relação, pois não há saber sem uma relação de um sujeito com o saber. Nos diálogos com os autores dessa pesquisa emergiu algumas análises das participações dos(as) professores(as) nos “balanços do ensino de linguagem de programação”, nominamos, assim, o nosso instrumento inspiradas por Charlot (2009), cujo instrumento criado por ele é nominado no seu original balanços de saber ou inventário de saber. Emergiu e ampliou os saberes por meio das entrevistas com professoras(es), conforme é apresentado nas vozes dos(as) entrevistados(as) e posteriormente possibilitou perceber os sentidos construídos por estes professores(as) ao ensino de linguagem de programação:
Um grande desafio no ofício do professor de Linguagem de Programação de Computadores é a falta de motivação dos estudantes, a falta de persistência na busca da solução de problema ou até mesmo o medo de errar quando estão fazendo uso de algum software específico para a criação de um programa de computador”. (Participante A).
Ao refletir sobre o relato do(a) participante A, é possível articular a partir de Chevallard, posto que fazer a transposição dos saberes implica em adquirir competências que precisamos desenvolver, tais como: julgar o que é conveniente, relevante e pertinente; dominar o conhecimento em questão; relacionar o conteúdo com outros saberes; saber contextualizar e dominar estratégias de ensino (Chevallard, 2015).
Todavia, a aprendizagem em qualquer disciplina escolar não depende exclusivamente do professor(a), pois ninguém aprende sem uma “atividade intelectual” e “só se pode ensinar a alguém que aceita aprender” (Charlot, 2005, p. 76). Vejamos:
Com o avanço das tecnologias digitais, a programação de computadores tem estado presente no cotidiano das pessoas com um significado que já é antigo, mas que vem sendo discutido cada vez mais, embora por vezes os usuários percebam esse significado ao usar o resultado gerado por essa linguagem pelos diferentes softwares: faz referência direta aos dispositivos eletrônicos a saber: smartphone, tablet, notebook, entre outros, que você esteja utilizando neste exato momento para ler este texto. Isso porque, sem a linguagem de programação com o seu sentido atual, você não conseguiria se comunicar facilmente com nenhuma dessas tecnologias (...). (Participante B).
Portanto, o saber ensinado é aquele produzido por meio da decodificação e comunicação do saber a ensinar em uma sala de aula ou outro ambiente educacional pelo professor. Tal saber agrega novos elementos didáticos, que têm como objetivo final tornar os saberes mais acessíveis aos estudantes (Chevallard, 2015). Busca elucidar as transformações que o conhecimento e a experiência do cientista sofrem para se tornar saber sábio, saber a ensinar e saber ensinado. O saber sábio é aquele que é gerado a partir da pesquisa acadêmica, compondo uma publicação científica (artigo ou relatório de pesquisa) que se destina à comunicação de processos e resultados de pesquisa. Segundo Chevallard (1991), é um saber mais restrito, codificado e cheio de normas próprias do círculo de pesquisadores mais especializados.
O saber a ensinar é produto de uma transposição do saber sábio. Essa dimensão de saber tem uma linguagem mais acessível, é dotado de artifícios pedagógicos, reorganizações e um processo de linearização da aquisição do conhecimento, tudo com o intuito de facilitar a compreensão de indivíduos leigos. Assim, o saber a ensinar é mais acessível ao indivíduo e compõe materiais de ensino (como o livro didático, por exemplo) (Chevallard, 2015).
O saber ensinado é aquele produzido através da decodificação e comunicação do saber a ensinar em uma sala de aula ou outro ambiente educacional pelo professor. Este saber agrega novos elementos didáticos, que têm como objetivo final tornar os saberes mais acessíveis aos educandos (Chevallard, 2015).
A linguagem de programação tem um sentido bastante complexo quando ligada ao mundo das tecnologias digitais: auxilia em diferentes tipos de utilização ela tem se tornado cada vez mais fundamental para transformação humana, o avanço das diversas inovações digitais tem oportunizado a facilidade de acesso, interação, simulação, criação tendo em vista que através de uma linguagem de programação se cria ambientes, ou seja, uma tecnologia digital para as diversas áreas do conhecimento e necessidade humana”. (Participante C).
Charlot (2020, p. 317) instiga-nos a refletir sobre o sentido do aprender, sendo que:
Aprender é necessário, mas não suficiente. Pode-se ter aprendido muitas coisas e alimentar as fogueiras da Santa Inquisição, fabricar a bomba de Hiroshima, deixar imigrantes afogarem-se no Mar Mediterrâneo ou aderir a essas outras formas de barbárie que nos propõem o pós-humanismo. Educação ou Barbárie, hoje é preciso escolher.
Portanto, ao entrelaçar as vozes das participações B, C, D e E com o diálogo de Charlot, emerge a refletir sobre que qualquer gesto bárbaro é a palavra na condição daquilo que é injusto, desumano e insensível. A barbárie pode ser interpretada como uma ação de violência e agressividade, com o único objetivo de afetar diretamente a paz do sujeito e ou a certeza humana. Sendo assim, cabe ao professor(a) como mobilizador na criação de softwares para diferentes utilidades humanas, mas numa lente que não transcenda a essência humana de um sujeito humano, na defesa da vida humana.
“Professora, não sorria para seus estudantes nos intervalos de aulas, senão não terá controle das suas aulas”. (Participante D).
O mundo de ser professor(a) na área de Computação é uma área fria, com pouca empatia entre os professores(as) com diversas barbáries”. (Participante E).
Considerando as narrativas supracitadas, podemos olhar para além da transmissão dos conceitos e regras para o desenvolvimento da programação, mas ampliando o olhar a partir da perspectiva da relação com o saber que se estabelece entre os sujeitos. Nesta questão está também implicada a imagem que o professor quer dar de si aos outros (Charlot, 2000). E, nesta reflexão, cabe pensar para além das linhas de códigos da linguagem de programação e mobilizar a reflexão em como nos relacionamos com o mundo humano, nossas emoções, sentimentos, nosso prazer de viver.
Por intermédio da fala do(a) Participante ‘A’ observamos que os estudantes podem ter dificuldade para se mobilizarem. Charlot (2013) distingue a “mobilização” da “motivação”. Para ele, mobilizar implica envolver-se (“de dentro para fora”), ao passo que a motivação depende do movimento provocado (“de fora para dentro”).
Nas relações que se estabelecem nos processos de ensino e aprendizagem da linguagem da programação, consideramos oportuna a diversificação de estratégias metodológicas na tentativa de movimentar os estudantes, uma vez que a mobilização está mais direcionada à dinâmica do movimento próprio do sujeito. No entanto, também cabe ao professor provocar o estudante para um movimento de mobilização, por meio de atividades que desestabilizem algumas certezas, provoquem interação e reflexão sobre o seu sentido de aprender e o seu cotidiano, na oportunidade de experienciar o aprender com prazer no sentido de saber.
A fala dos participantes D e E evidenciam uma relação pedagógica de transmissão e controle, ou seja, não mostram a sua humanidade para não perderem o controle da sala de aula ou, ainda, uma área fria, com pouca empatia. O que precisa ser controlado? Por que o professor não pode manifestar uma das características humanas mais belas, o sorrir? Em alguma área de trabalho se pode atuar sem contar com o outro, sem cooperar e interagir? O diálogo com Charlot (2020, p. 13) desloca-nos a pensar que aquele que nega a humanidade do outro rompe o vínculo de pertencimento a um mundo comum e, ao mesmo tempo, coloca a si próprio fora da humanidade: a barbárie é contagiosa (Charlot, 2020, p. 16).
De um lado, o distanciamento nas relações humanas e a aparição de surtos de barbárie; do outro, as tentativas de estender para além do Homo Sapiens a própria ideia de direitos. Os dois processos são opostos, um expressando fechamento e coração árido, o outro exprimindo abertura e generosidade, mas eles têm um ponto em comum: a crescente indeterminação quanto à definição de ser humano (Charlot, 2020, p. 17).
Para Charlot (2020), (...) o aprender vale a pena quando o que se aprende apresenta sentido, ajuda a compreender o mundo, a vida, as pessoas ou, simplesmente, porque enfrentar um desafio intelectual permite sentir-se inteligente e digno de ser amado. Nesses dois últimos casos, aprender, mobilizar-se intelectualmente, é fonte de prazer – não o prazer da facilidade, mas o da humanidade. Aprender = Atividade intelectual + Sentido + Prazer: essa é a equação pedagógica fundamental no ser humano.
Mas quais sentidos construímos com a linguagem de programação enquanto professsor(a) nesta área do conhecimento?
A relação de um sujeito com o saber apresenta três dimensões: a epistêmica, a identitária e a social (Charlot, 2000). Nesta perspectiva que se fundamentou nossa investigação na relação com o saber do(a) professor(a) com o mundo. A dimensão epistêmica da relação com o saber envolve a relação do sujeito com o mundo. Pode ser mais bem compreendida por intermédio do que Charlot (2000) denomina como “figuras do aprender”, em que aprender pode significar a apropriação de um saber-objeto (virtual), que é através da linguagem em objetos empíricos como o livro, e em locais como a universidade. É passar da não-posse à posse desse saber, que assume a feição de conteúdos intelectuais, por exemplo. Assim, a dimensão identitária está entrelaçada à questão de que a Relação com o Saber é, uma relação consigo mesmo. Essa dimensão relaciona-se à “história do sujeito, às suas expectativas, às suas referências, à sua concepção de vida, às suas relações com os outros, à imagem que tem de si e a que quer dar de si aos outros” (Charlot, 2000, p. 72). O autor menciona que “sempre está em jogo a construção de si mesmo e seu processo reflexivo, a imagem de si”. Neste sentido, investigar a relação dos(as) professores(as) com o ensino de linguagem de programação é, entre outras coisas, desvelar suas histórias e expectativas profissionais, sua relação com o que, e como ensinam, a imagem que eles(as) têm de si enquanto professores(as), bem como os sentidos que constroem no ensino dessa disciplina. Em suma, neste trabalho, essa dimensão envolve a construção de si mesmo enquanto professor(a) de linguagem de programação de computadores.
A dimensão social da Relação com o Saber diz respeito à relação do sujeito com o outro, a qual ocorre com “um outro” que pode estar presente física ou virtualmente. Essa presente pesquisa, entrelaça a relação do(a) professor(a) com seus estudantes, constituindo, assim, o outro presente fisicamente, bem como sua relação com outros sujeitos, como, por exemplo, a equipe gestora da organização de ensino, outros professores(as), os pais dos estudantes, visto que o professor(a), como todo ser humano, vive em um mundo estruturado por relações sociais. O outro virtual é aquele “que cada um leva dentro de si como interlocutor”, uma vez que “toda relação com o saber comporta, pois, uma dimensão relacional que é parte integrante da dimensão identitária” (Charlot, 2000, p. 72).
A dimensão social está imersa nas dimensões identitária e epistêmica, uma vez que o sujeito é ao mesmo tempo singular e social. Essa dimensão não corresponde à mera posição social do sujeito, pois, embora essa seja importante, o sujeito age no mundo construindo sua própria história; ele “interpreta o mundo, dá sentido ao mundo, aos outros e a si mesmo” (Charlot, 2005, p. 45).
Na era da informação, diversas formas da relação com o saber, mas, temos muito conhecimento e pouca experiência. Para Larrosa (2018), experiência tem a ver com paixão, com o que nos passa, pois difere de conhecimento. O autor aborda que o excesso de informação e agilidade que tudo acontece hoje nos impede de vivermos experiências reais, que seria a autorreflexão, a introspecção, aquilo que constrói a nossa subjetividade.
Com o excesso de objetividade do mundo moderno, em que o conhecimento técnico é algo utilitarista e para troca monetária, seria paradoxal a construção de uma subjetividade. É algo imediato, momentâneo e logo passamos para próxima informação, para a próxima opinião, sem que isso nos tenha causado nada de experiência. São sentimentos volúveis. Larrosa (2018, p. 42) enfatiza o sentido das palavras nesse processo transformador:
Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e também que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nossos pensamentos porque não pensamos com pensamentos, não pensamos de acordo com uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. Pensar é dar sentido ao que somos e ao que nos acontece.
Para o autor, a experiência requer que algo nos aconteça, no sentido de dentro para fora, que aproxima do pensamento de Charlot (2000, 2005), quando este autor expressa o que nos mobiliza, isto é, um sujeito desejante, e isso requer o processo intelectual, ou seja, parar: parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar; pensar mais devagar, olhar mais devagar, escutar mais devagar; parar para sentir; ater-se mais aos detalhes; suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação; olhar de forma atenta e sensível; abrir os olhos e os ouvidos; falar sobre o que nos acontece; aprender a escutar o outro; cultivar a arte do encontro; ter paciência e dar-se tempo e espaço; esperançar e ser solidário.
O sujeito da experiência tem paixão, ele sente, sofre e se transforma. Ele é passivo, receptivo, mas não quer dizer que não haja, um agir calmo e coerente, com sabedoria. A experiência é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver”, nem “pré-dizer”, com sentido (Larrosa, 2018). Assim, a mobilização para a significação.
No tempo contemporâneo vivido, a linguagem das páginas sociais tem se apresentado, por vezes, com palavras como em um tribunal popular, onde todos julgam, acusam ou defendem, baseados(as) na informação sem qualquer comprometimento com a procedência da notícia e verificação da sua autenticidade. Ademais, sem o sentido do processo intelectual com amorosidade, sabedoria, reflexão, introspecção, questionar “verdades” prontas. Que sentidos construímos com nossas experiências por meio da linguagem?
Larrosa (2018) explana que a experiência é uma forma de conhecimento direto, que se confirma por si mesmo. A experiência é o verdadeiro conhecimento, o que não exige e nem envolve crença, pois o conhecimento exclui qualquer necessidade de acreditar.
Portanto, a linguagem das redes e dos aplicativos ubíquos e persuasivos contém letras, palavras, mas estas deixaram de ter a exclusividade quase absoluta de que gozavam nos livros.
Estamos assistindo a mudanças não apenas nos suportes das linguagens, mas nos modos de formar das linguagens humanas. A linguagem contemporânea, que é hipermidiática, não se reduz a uma transformação apenas no seu registro. Antes de tudo, é preciso considerar o grande impacto revolucionário que se deu quando a escrita modificou do papel para a tela eletrônica. Por sua natureza, o computador permite que a escrita se liberte da linearidade sequencial, obrigatória no papel, podendo estruturá-la em nós que nos conectam através de links, o que é chamado hipertexto. Além disso, o computador é uma metamídia, mídia que absorve e deglute todos os tipos de linguagens humanas, de imagens − fixas ou animadas, gráficos, mapas entre outras. – e, também, de linguagens sonoras − fala, música, ruído etc. Longe de simplesmente somar essas linguagens, o computador as congrega na sua própria morfogênese. Textos, sons e imagens misturam-se de maneira inconsútil. Isso é chamado de hipermídia. Os links nos levam não apenas a outros textos, mas a misturas de texto escrito, imagem e som. Um novo modo de formar as linguagens emerge transformações cognitivas relevantes.
É possível ensinar programação ou ensinar com programação? Há professores(as) que utilizam a programação como ferramenta para trabalhar conteúdos e explorar determinados conceitos? Quando ensinada de forma contextualizada, a programação pode ser uma grande aliada ao ensino das diversas disciplinas, considerando que, quando se aprende o que poderá lhe ser útil, essa relação é instrumental. Quando, na própria atividade de aprendizagem, ele se sente humano, membro de um grupo social e cultural, e em construção de si mesmo, é uma relação de sentido; ele não pergunta mais “para que serve aprender isso?”, ele sente que “é importante”.
A relação com o mundo como relação de sentido é específica do homem (Charlot, 2020, p. 304). Portanto, quem é o ser humano? Em Platão, a Razão é a ordem do Cosmos; nos jesuítas, é a expressão de Deus; na Filosofia Iluminista, que se inspira em Kant, Durkheim e na escola republicana, ela é a vocação e conquista do Homem. Contudo, se trata sempre de libertar o homem de uma “natureza inicial” que o atrai para a animalidade, ou seja, relação com o mundo humano é a segmentação; por meio da educação nos humanizamos através da humanização, socialização e singularização, o sujeito é espécie nas relações com o mundo que rompe com a lógica da concorrência e da competição, mas na percepção da essência da natureza humana (Charlot, 2020, p. 18).
Qual futuro queremos construir neste mundo humano?
Assinalamos como mobilização que queremos construir, inspiradas em Charlot (2021), nas relações de sentidos; e nos saberes, conforme nos aponta Chevallard – a linguagem de programação na perspectiva de educação humanizadora, em que o ser humano não deve ser comparado a uma sequência de programação, podendo ser reprogramado, mas em uma lógica com ética e coerência, tendo em vista alguns discursos de ampliar o ser humano com a inteligência artificial; porém, para esse discurso cabe a questão: Para que serve a educação em Linguagem de Programação de Computadores? Que o desejo e a norma sejam olhados com vistas aos direitos humanos. Portanto, é o pensar em um ser humano singular, um ser humano único e inacabado. Somente pode entrar em um mundo humano quem se apropria das múltiplas mediações construídas pelas gerações humanas anteriores (ferramentas, formas de relacionamento, símbolos, linguagens etc.) ou, pelo menos, das mediações básicas que permitem pertencer a esse mundo em determinado lugar e tempo (Charlot, 2020, p. 304).
A educação formal, aquela que se desenvolve nas instituições de ensino, tem de aprender a conviver e criar estratégias de complementaridade com aquilo que é chamado de aprendizagem ubíqua (Santaella, 2013). É um tipo de aprendizagem que, para construirmos, basta ter um celular nas mãos. Qualquer curiosidade acerca de qualquer tema pode ser investigada instantaneamente. Além disso, visto que os equipamentos móveis estão também conectados a redes de relacionamento, pode-se contar com a colaboração de pessoas sobre o assunto quando surgem dúvidas. Não esquecendo é claro, da exclusão digital, que por sua vez é exclusão social. Mas, já existem projetos para incorporar esse tipo de aprendizagem aos planejamentos da educação formal. Isso não significa que a instituição de ensino deva abdicar de suas estruturas mais sistemáticas de aprendizagem, confiando à aprendizagem ubíqua tarefas que não podem deixar de ser suas. Para Larrosa (2018), “(...) devemos pensar a educação a partir do par: experiência e sentido”.
O saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana. Se a experiência é o que nos acontece, nos mobiliza e se o saber da experiência tem a ver com a construção do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular, ou, de um modo ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela ao homem concreto e singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido ou o sem-sentido de sua própria existência, de sua própria finitude.
Por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da experiência é um saber que não pode se separar do indivíduo concreto em quem constitui. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de ser e estar no mundo, que é, por sua vez, uma ética, um gesto (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Dessa forma, também o saber da experiência não pode se beneficiar de qualquer alforria; quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de outro, a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria. Esse pensamento de Larossa tem aproximação com o pensamento de Charlot:
(...) tem sentido uma palavra, um enunciado, um acontecimento que possam ser postos em relação com outros em um sistema, ou em um conjunto; faz sentido para um indivíduo algo que lhe acontece e que tem relações com outras coisas de sua vida, coisas que ele já pensou, questões que ele já se propôs. É significante (ou, aceitando-se essa ampliação, tem sentido) o que produz inteligibilidade sobre algo, o que aclara algo no mundo. É significante (ou por ampliação novamente, tem sentido) o que é comunicável e pode ser entendido em uma troca com outros. Em suma, o sentido é produzido por estabelecimento de relações, dentro de um sistema, ou nas relações com o mundo ou com os outros. (Charlot, 2000, p. 56).
As novas tecnologias têm possibilitado o enriquecimento dos processos de ensino e aprendizagem, assim como auxiliam nas diversas experiências de um sujeito sendo o centro deste universo complexo numa lógica de solidariedade. Para Charlot (2020, p. 297), o homem é uma espécie solidária e, nessa lógica, remete a um pertencimento comum de todos os membros do grupo a um mesmo totem, a uma mesma origem, a uma mesma natureza, a uma mesma essência; em resumo, a um fundamento antropológico.
Ademais, é preciso considerar que a aprendizagem ubíqua é dispersiva, descontínua e não substitui o ofício do ser professor(a) criativo(a) na aventura da experiência do saber. O “eu” professor(a) é genético, é social, mas, porque é construído ao longo do tempo e efeito de inumeráveis microeventos, sensações, lembranças que nenhum outro experimentou de uma forma exatamente igual, esse “eu” é singular (Charlot, 2020).
Ser professor(a) requer saberes e conhecimentos científicos, pedagógicos, educacionais, sensibilidade da experiência, indagação teórica e criatividade para fazer frente às situações únicas, ambíguas, incertas, conflitivas e, por vezes, violentas, das situações de ensino, nos contextos escolares e não escolares (Charlot, 2013, p. 15).
Na compreensão do sujeito na teoria de Charlot é que, ao mesmo tempo, o sujeito é um ser humano singular e social. Assim, é um ser que ocupa uma posição social adquirida por pertencer a um grupo social e, ao longo da vida, produz sentidos e significados sobre si e sobre o mundo, construindo sua singularidade. Outro aspecto na compreensão do sujeito é a questão do aprender, que é condição obrigatória no seu processo de construção. É através do aprender que o sujeito se constrói se relacionando consigo próprio, com os outros à sua volta e com o mundo em que está inserido. Assim, estudar a relação com o saber é, então, estudar o sujeito social e singular confrontado com essa obrigação de aprender, estudar sua presença no mundo construído de saberes.
E, por fim, para Tardif (2010), o ser professor(a) não demarca a divisão entre a vida pessoal e a vida profissional do sujeito, sendo que o sucesso da docência está no vínculo que o professor(a) estabelece com os discentes. Assim, a grande necessidade do(a) professor(a) enquanto mobilizador(a) para o sentido da vida humana consiste em entender que os valores humanos são os princípios morais e éticos que conduzem a vida do sujeito singular, social e histórico. Esses valores fazem parte da formação da consciência e da maneira de ser e se relacionar no mundo humano na área da linguagem de programação, nesse universo que constitui as relações da computação.
Analisar a relação de um sujeito com o saber é entender as relações epistêmicas, sociais e identitárias do sujeito imerso no processo de aprendizagem, sendo que essas dimensões não estão fragmentadas nesse processo. Essas relações ocorrem simultaneamente, em movimento e é assim que Charlot e sua equipe mobilizam em suas pesquisas a fim de compreender que sentidos o sujeito constrói na sua experiência de vida.
CONSIDERAÇÕES
Os saberes relacionados à programação de computador são um dos grandes desafios na área de ensino da Ciência da Computação e nas demais áreas em que ela se faz presente, visto os desafios encontrados no seu processo de ensino e aprendizagem. Ao nos aproximarmos dos estudos de Chevallard, buscamos desenvolver uma reflexão sobre a Transposição Didática enquanto teoria de análise da transformação de saberes científicos em saberes das instituições de ensino. É essencial a reflexão sobre a relação com o saber e o aprender nesta área, a partir de um olhar como nos aponta Charlot (2020, p. 22) sobre a questão de onde vem o homem e para onde está indo. Novas formas que busquem mobilizar o estudante, facilitar a relação entre o(a) professor(a) e estudantes para um sentido e significação na linguagem de programação de computadores, com vistas à transformação nesse cotidiano para a emancipação e solidariedade.
Neste estudo, debruçamo-nos para refletir a relação com o saber na linguagem de programação de computadores, em especial os sentidos construídos pelo(a) professor(a) no processo das vivências, as experiências reverberadas na relação com os estudantes. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras; não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é, sobretudo, construir sentidos ao que somos e ao que nos mobiliza/acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras. E, portanto, também tem a ver com as palavras o movimento, o modo como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos. Enfim, emergiu dessa investigação as dimensões expressas por palavras: mobilização, experiência, sentido, prazer e significado na relação com o saber linguagem de programação. A partir de estas dimensões pensar a Educação num olhar de mundo mais humano solidário e fraterno.
Agradecimentos
Nossos agradecimentos à Coordenação de Programa de Bolsas de Pós Graduação do Estado de Santa Catarina (UNIEDU), por subsidiar bolsas de estudos para que a pesquisa fosse realizada.
REFERÊNCIAS
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