- Considerações iniciais sobre a noção de relação ao saber (rapport au savoir) e problemática do estudo
A relação ao saber[i] (Rapport au Savoir) é no contexto francês uma das principais noções das Ciências da Educação, incluindo os campos da Didática e da formação, estando sua origem ligada à Psicanálise – considerando a primeira utilização do sintagma rapport au savoir na literatura científica francesa por Jacques Lacan, em 1960, à Sociologia – a partir de sua utilização por Pierre Bourdieu e Passeron em 1970 na obra La Reprodution (cf. CAVALCANTI; BRITO LIMA, 2018; CAVALCANTI, 2020; XYPAS; CAVALCANTI, 2020).
De acordo com os trabalhos citados acima, nas décadas seguintes após o surgimento da expressão ‘rapport au savoir’, observa-se um movimento de propagação tanto nos campos da Psicanálise e Sociologia, mas sobretudo no campo da Formação de Adultos e na recém-institucionalizada disciplina científica ‘Ciências da Educação. A partir das décadas de 1980-1990, pode-se identificar os primeiros trabalhos sistematizando a questão da relação ao saber como problemática de pesquisa e noção teórica em Ciências da Educação e Didática. Essa sistematização, por sua vez, acontece sob diferentes perspectivas teóricas aportadas em diferentes disciplinas (e.g. Psicanálise, Sociologia, Antropologia, Educação).
Dessa forma, considera-se que a noção da Relação ao Saber tem uma natureza multidisciplinar, estando associada às seguintes abordagens: clínica/socioclínica/psicanalítica – sistematizada por Jack Beillerot e a equipe Savoir et Rapport au Savoir do CREF[ii]; Sociológica/Microssociológica/Socio-Antropológica - sistematizada por Bernard Charlot e a equipe ESCOL[iii]; didática/antropológica/didático-antropológica – sistematizada por Yves Chevallard (cf. CAVALCANTI; BRITO LIMA, 2018; CAVALCANTI, 2020; XYPAS; CAVALCANTI, 2020).
A abordagem explanada nessa pesquisa será a Socioantropológica, destacamos, portanto, que nos baseamos teoricamente nos estudos de Charlot (1993, 1996, 200, 2005, 2009) sobre a relação ao saber. Essa abordagem busca estudar o sujeito através de sua individualidade e subjetividade. Sujeito esse, que nasce inacabado, que precisa passar pelo processo de hominização, para se tornar homem, e consequentemente se apropriar do mundo. Por tanto, já nasce com a obrigação de aprender.
A questão da relação ao saber manifestado com os trabalhos desenvolvidos por Charlot e a equipe ESCOL, teve como via de reflexão crítica e de investigação, a problemática do fracasso escolar (CAVALCANTI, 2015). Os estudos desenvolvidos nessa área, visaram sobre tudo, a análise do porquê alguns estudantes se encontrarem na situação de fracasso com relação aos conteúdos escolares. Essa via de estudo, corroborou para o desenvolvimento de pesquisas que visassem investigar a relação que os alunos tinham com a Matemática. A atenção dada ao estudo da relação ao saber e essa disciplina em especial se justifica, pois segundo Charlot e Bautier (1993) “tudo se passa como se a matemática e seu ensino tivessem um valor extraordinário, seja para os alunos com sucesso ou para aqueles que estão em dificuldade escolar”, por essa perspectiva a relação ao saber e a matemática terão destaque nessa pesquisa.
No que diz respeito a conceituação da relação ao saber no conjunto de obras de Bernard Charlot é possível verificar diferentes definições. Em Charlot (1993) a relação ao saber é descrita como a relação de sentido e de valor de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender, já em Charlot (2000) a relação ao saber “é a relação com o mundo, com o outro, e com ele mesmo, de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender” (p. 80) e em 2005 o mesmo autor diz que é um “conjunto de relações”. Ora, diante de tais definições nos questionamos: Há uma definição mais correta que a outra? E ainda, existe uma definição de possamos chamar de canônica[iv]?
A partir de tais indagações, e dada a importância da noção da relação ao saber nas pesquisas brasileiras, o objetivo desse artigo, é de analisar como as definições da noção de relação ao saber de Bernard Charlot foi utilizada em teses e dissertações no contexto do ensino de Matemática. Para tanto, buscaremos responder a seguinte a pergunta norteadora: Como as definições de Bernard Charlot foi utilizada em teses e dissertações no contexto do ensino de Matemática?
A fim de alcançar tal objetivo, a metodologia desse trabalho foi desenvolvida através do mapeamento em pesquisa educacional (mapeamento horizontal e vertical) que consistiu em uma análise detalhada de algumas teses e dissertações mapeadas por Cavalcanti (2015)[v], o que nos permitiu realizar um estudo tanto exploratório quanto analítico dessas produções.
- 1.1 Definições da noção de relação ao saber desenvolvidas por Bernard Charlot
A expressão “Relação ao Saber” não costumava ser sistematicamente acompanhada de uma definição como constata Cavalcanti (2015, p. 107). É tanto que a primeira definição elaborada por Bernard Charlot só foi proposta em 1982, aonde o referido autor definiu a relação ao saber como sendo uma ‘relação social’, que pode ser entendida como uma relação ao saber em si mesma ou como inscrição social do indivíduo. (CAVALCANTI, 2015, p. 108). É essa primeira ideia de ‘relação social’[vi] que vai sustentar as bases teóricas para as próximas definições.
A partir de 1987, Charlot quando funda a equipe ESCOL decide retirar o adjetivo ‘social’ deixando a noção da Relação ao Saber mais ampla. Com uma retomada, portanto, aos estudos anteriores de Charlot e através da análise de abordagens advindas de outros campos como das Ciências da Linguagem e da Psicanálise. A equipe, então, avança no sentido de sistematização da questão da relação ao saber em termos de noção e propõem uma nova definição a noção passa a ser então “uma relação de sentido, portanto, de valor, entre um indivíduo (ou um grupo) e os processos ou produtos do saber (CHARLOT, 2000, p. 80).
Nesse primeiro momento Charlot utiliza da expressão, Relação ao Saber, sob uma abordagem mais sociológica ou microssociológica, principalmente para discutir a questão do fracasso escolar. Segundo essa perspectiva, Charlot (2000) considera válida a afirmativa de que “existe uma correlação estatística entre os resultados escolares das crianças e a categoria socioprofissional dos pais” (p. 12). Contudo, para ele existe algo além dessa correlação.
Imbuído do pressuposto de que o sucesso ou o fracasso não estão relacionados apenas a capital cultural[vii] que os filhos herdam dos pais, o referido autor dedicasse a estudar o caso de alunos de meios populares (liceus profissionais[viii]) na França.
Posteriormente, Charlot (1997/2000) define a noção de maneira mais genérica sistematizando a Relação ao Saber em uma abordagem socioantropológica, baseada na ideia do aprender como condição antropológica do filho do homem que nasce hominizado, mas não humanizado. Nessa perspectiva, deve passar pelo triplo processo de hominização (tornar-se homem), socialização (tornar-se membro de uma comunidade, partilhar valores) e singularização (tornar-se um exemplar de homem) (CAVALCANTI, 2015, p.113). Durante o processo de construção de si, necessitará se relacionar com o mundo, com os outros seres humanos e consigo mesmo (Ibid., 2009), de modo que a relação ao saber é a relação com o mundo-outro-consigo mesmo, como um conjunto de significado, e como espaço de atividades inscritas no tempo. É nesse contexto mais socioantropológico que a noção é situada em seus últimos trabalhos.
Como evidencia Cavalcanti (Ibid.), as discussões teóricas publicadas por Charlot (1997/2000)[ix] retoma três conceitos – ‘mobilização’, ‘atividade e ‘sentido’– utilizadas pela equipe ESCOL nas análises realizadas acerca da relação com o saber. A ideia de mobilização implica no movimento interno que impulsionará o sujeito a querer aprender ou não. A atividade trata-se das ações que são desenvolvidas para o alcance de uma meta. Já o sentido é posto em termos de algum acontecimento ou enunciado que possa ser exposto em relação aos outros (CHARLOT, 2000, p. 56).
Posteriormente a ideia de mobilização-atividade-sentido, Charlot (2000) introduz a questão de desejo, de modo que o sujeito é posto como “um nó de desejos no qual se inscreve a questão do sentido de um ato, de uma situação ou acontecimento” (CAVALCANTI, 2015, p. 114). Desse modo, a mobilização ocorrerá conforme o sentido que o sujeito atribui ao saber e ver-se desejante pelo saber o culminará em uma atividade.
Consciente dessas relações, Charlot (2000), sob uma perspectiva socioantropológica do sujeito, sistematiza da relação ao saber a partir das seguintes definições:
A relação com o saber é o conjunto das relações que um sujeito estabelece com um objeto, um “conteúdo de pensamento”, uma atividade, uma relação interpessoal, um lugar, uma pessoa, uma situação, uma ocasião, uma obrigação, etc. (Ibid., 2005, p. 45).
Segundo Charlot e Bautier, é o sentido e valor atribuídos ao saber que subsidiarão a maneira com que o sujeito se relacionará com o mundo, com os outros e com ele mesmo. De modo que, o saber pode ter sentido e valores diferentes, evidenciando a importância de se considerar a história social e singular do sujeito. Por exemplo, um aluno que trabalha na agricultura para ajudar seus pais a manter a casa, pode ver pouco sentido em ir pra escola dedicar tempo e esforço ao estudo da Álgebra ou outros conhecimentos específicos e, assim, o valor que ele atribui a esse saber pode levá-lo a recusar-se aprender, ou não mobilizar-se para aprender. Outro aluno, do mesmo contexto, pode atribuir um sentido totalmente diferente, tal como, um objeto de fascínio, desejo e, assim, mobilizar-se para aprendê-lo.
Seguindo essa linha de pensamento, a relação ao saber versa em abordar a questão do sentido e do valor atribuído por um determinado sujeito a partir de sua história singular. Dessa maneira, “Supondo que o saber é relação, o seu valor e sentido só existem quando ocorrem nas relações de apropriação consigo, com os outros e com o mundo” (MANOSSO, 2012, p. 26). De fato, como já foi assinalado, são essas relações e apropriações que lhe permitirão se constituir como homem.
Contudo o que significa para Charlot as relações do sujeito com “o mundo, com o Outro e consigo mesmo”? O que é o mundo para Charlot? A que outro ele se refere? Que tipo de relação é a relação do sujeito consigo mesmo?
De Charlot (2000, 2009) podemos inferir que toda relação ao saber é uma relação com o outro, o outro é a figura de alteridade, é aquele que está próximo ao sujeito, mas é aquele que está distante, é um artista, o outro de uma comunidade distante, é o outro professor, colega de sala, é ao mesmo tempo relação consigo mesmo, de um sujeito que se reconhece inteligente ou fracassado, essas múltiplas relações são ao mesmo tempo relação com o mundo de significados. Nessa mesma linha de pensamento, o mesmo autor argumenta: “não há sujeito e não há saber senão em uma certa relação com o mundo, que vem a ser, ao mesmo tempo e por isso mesmo, uma relação com o saber. Essa relação com o mundo é também relação consigo mesmo e relação com os outros” (CHARLOT, 2000, p.63). A relações mundo-Outro-consigo mesmo são, portanto, indissociáveis, e uma não pode existir sem a outra.
Enquanto relação com o mundo, Charlot (2009) entende esse espaço (mundo) como “o lugar de um combate entre as forças do mal de um lado (a “adversidade”) e, do outro, os grandes princípios, os grandes sentimentos, a vontade pessoal de triunfar” (p. 73). Esse mundo é para o sujeito, um universo de significados e de atividades, que lhe moldará e lhe mostrará seu lugar na sociedade. Essa relação está associada ao mundo humano criado pelos sapiens, como categoria, como cultura da família, é também o mundo religioso que se frequenta e também o mundo escolar.
A relação ao saber é relação com o Outro, como uma forma de cultura, mas também uma forma singular do ser humano. Dessa forma, o outro pode ser aquele que media o saber – os pais, o professor, etc. e, portanto, “implica um regulamento da distância” (Charlot, 2009, p. 243). Esse regulamento se justifica pelo autor, pois, assim como na relação consigo mesmo se pode esperar o pior e o melhor de si, assim também deve ser a relação com o outro. No mundo escolar, o outro é professor de uma determinada disciplina, é o colega que se admira, mas é também aquele que não se tem proximidade.
Disso, podemos concluir, que a relação ao saber é relação com o outro porque o saber é produto histórico cultural, é uma relação que se insere no tempo. Tempo esse que carrega uma forma de ser, uma cultura, uma maneira própria de se relacionar.
1.2 Difusão da noção de relação ao saber no contexto do ensino de matemática
A noção da Relação ao Saber se difundiu a partir das décadas de 1990/2000 em países francófonos (Bélgica, Canadá, Suíça), hispanófonos (Espanha, Argentina, Uruguai, Colômbia) e lusófonos (Brasil, Portugal). No Brasil, Cavalcanti (2015) realizou um mapeamento de sua utilização na literatura científica repertoriando um conjunto de 241 referências bibliográficas que fazem menção direta em seu título à noção de relação ao saber, sendo 17 teses, 55 dissertações, 41 artigos publicados em períodos e 128 comunicações científicas publicadas em anais de eventos. Essas produções científicas correspondem a um panorama das publicações da relação ao saber no Brasil até 2015.
Do total de referências repertoriadas pelo precedente autor, 68 referências estão vinculadas ao contexto do Ensino de Matemática, o que corresponde a 28%. Evidenciado assim a difusão da noção em pesquisas ligadas a matemática no Brasil.
Em Cavalcanti e Brito Lima (2018) os autores apresentam um mapeamento horizontal respectivo à produção científica acerca da noção de relação ao saber no contexto do ensino de Matemática. Aonde apresentam um esboço do cenário da produção científica acerca da noção de relação ao saber no contexto específico do Ensino de Matemática.
O nosso trabalho, contudo, buscará realizar um mapeamento vertical de tais produções, ou seja, nos empenharemos em analisar como as definições da noção de relação ao saber de Bernard Charlot foi utilizada em teses e dissertações no contexto do ensino de Matemática. Por conseguinte pretendemos constatar que as pesquisas se limitam ao uso da definição de Charlot (Relação ao saber enquanto relação do sujeito com o mundo, com o outro e consigo mesmo) sem considerar o contexto e as condições subjacentes nas quais foi sistematizada pois, a que mundo e a que outros se referem? A seguir, portanto, trazemos a metodologia traçada a fim de alcançarmos nosso objetivo de pesquisa.
[i] Embora no Brasil seja mais comum encontrar a tradução ‘relação com o saber’ para a expressão ‘rapport au savoir’, optamos pela tradução como ‘relação ao saber’, que é utilizada pelo Núcleo de Pesquisa da Relação ao Saber (NUPERES) e fundamentada na tese de Cavalcanti (2015) sobre a história e epistemologia dessa noção..
[ii] CREF - Centre de Recherche Éducation et Formation (CREF);
[iii] ESCOL – Educação, Socialização e Coletividades Locais;
[iv] A conceituação da palavra “Canônica” segundo o site da Wikipédia, “refere-se de forma geral à forma normal e clássica de representar uma dada relação” (FORMA CANÔNICA, 2021).
[v] Para a seleção das teses e dissertações analisadas esse trabalho, estabelecemos que como critério de escolha seriam analisadas apenas as produções científicas que em seus títulos fizessem menção direta à relação ao/com saber no contexto da matemática (isso pela formação de um dos pesquisadores ser nessa disciplina).
[vi] A primeira definição da Relação ao Saber elaborada por Charlot foi em 1985: “Chamo de relação com o saber o conjunto de imagens, de expectativas e de juízos que concernem ao mesmo tempo ao sentido e à função social do saber e da escola, à disciplina ensinada, à situação de aprendizado e a nós mesmos” (CHARLOT, 1982 apud CHARLOT 2000, p. 80);
[vii] Vocabulário utilizado por Bourdieu e Passeron (1970) para designar o grau de instrução escolar dos pais. A título de exemplo, filhos de pais com capital cultural (ensino médio completo, ensino superior), teriam mais chances de serem êxitos nos estudos.
[viii] Os anos escolares do liceu profissional na França equivalente aos anos iniciais e finais do fundamental no Brasil;
[ix] CHARLOT, Bernard. Du rapport au savoir. Éléments pour une théorie. Paris: Anthropos, 1997. Estamos discutindo essa referência de Charlot (2000) referente à sua versão publicada no Brasil;
2. Metodologia
A fim de analisarmos o uso das definições da Relação ao Saber na literatura científica brasileira, pautaremos nossa pesquisa a partir de dois mapeamentos (horizontal e vertical) que consistiu em uma análise detalhada de algumas teses e dissertações mapeadas por Cavalcanti (2015)[i], o que nos permitiu realizar um estudo tanto exploratório quanto analítico dessas produções.
No tratamento de dados, obtidos a partir do recrutamento de algumas produções científicas de Charlot e das teses e dissertações mapeadas por Cavalcanti (2015), utilizaremos em cada etapa citada a metodologia do mapeamento horizontal e vertical, tal esquema de análise de dados foi desenvolvido por Biembengut (2008) e adaptado por Cavalcanti (2015), segundo essa perspectiva,
Os questionamentos ‘quantos, quem e onde já fizeram algo a respeito?’ apontaria para um estudo exploratório horizontal se concentrando mais no relevo observável das produções científicas, isto é, na topologia do território. Já os questionamentos ‘que avanços foram conseguidos e quais problemas estão em aberto para serem levados adiante’ indicaria um estudo vertical que poderia ter como orientação o que está sob (isto é, os trabalhos já desenvolvidos – indicariam tendências) e o que está sobre (isto é, os trabalhos que podem ser desenvolvidos – indicariam perspectivas) a superfície da literatura científica (CAVALCANTI, 2015, p. 219, negritos do autor).
Nesse artigo, iremos realizar as duas perspectivas de mapeamentos, com o horizontal, de forma mais descritivas serão destacados os trabalhos encontrados (título), autores, orientadores, ano e local da publicação. Já com o mapeamento vertical são apresentadas uma descrição geral do trabalho (títulos e objetivos); metodologia utilizada e uma análise do aporte teórico da noção da relação ao saber presente em cada produção.
Em especial, nas teses e dissertações mapeadas por Cavalcanti (2015) analisaremos ainda, se há contradições ou polêmicas sobre o tema. Dessa forma, o objetivo do mapeamento vertical é de justificar nossa pesquisa, mostrar sua importância e que corrente epistemológica estamos seguindo.
Para tanto, nessa pesquisa foi utilizada a abordagem qualitativa de investigação, tal metodologia permite ao pesquisador preocupar-se com o processo e não somente com o produto de pesquisa. De modo que cada achado da pesquisa será analisado individualmente pelo pesquisador (BOGDAN; BIKLEN, 1991).
3. Resultados e discussões
3.1 Mapeamento Externo a algumas Teses e Dissertações mapeadas por Cavalcanti (2015): Análise horizontal e vertical
Acima trouxemos algumas reflexões a respeito da definição da relação com o saber e de que maneira Charlot aborda essa temática em suas pesquisas. Contudo, desejamos ir além e procurar compreender o que discutem algumas produções científicas quando se utilizam dessa conceituação. Qual é a definição canônica da noção da Relação ao Saber segundo os autores que se inspiraram na obra de Charlot?
As pesquisas apresentadas nos quadros 01 e 02 correspondem a um recorte do estudo de mapeamento realizado por Cavalcanti (2015) em sua tese de doutoramento. Para a nossa análise, foram incluídas algumas (03) teses e (07) dissertações mapeadas por Cavalcanti (2015) e que em seus títulos fazem menção direta à relação ao/com saber e o ensino de matemática, como mencionado anteriormente, assim como Cavalcanti (Ibid.) utilizaremos o termo “Território” para nos referirmos ao vasto campo científicos dessas produções, com isso analisaremos o “Território das Teses” e o “Território das Dissertações”.
A seguir, trazemos o mapeamento externo, procurando responder os questionamentos precedentes, a partir uma análise horizontal e vertical dos territórios: Teses e Dissertações.
3.1.1 Território das Teses
No território das Teses analisamos 03 trabalhos que foram defendidos entre os anos de 2007 e 2014. No quadro 01 apresentamos as informações gerais do mapeamento horizontal.
Quadro 01 - Síntese das Teses: Título, autor, ano da defesa, local da publicação e orientador(a)
Nº |
Título |
Autor da Tese |
Ano |
Local da Publicação |
Orientador(a) |
1. |
O Professor de Matemática e seus saberes e suas necessidades em relação à sua disciplina |
Marcos Rogério Neves |
2007 |
Universidade Federal de São Carlos |
Alice H. Campos Pierson |
2. |
CYBERFORMAÇÃO SEMIPRESENCIAL: A relação com o saber de professores que ensinam matemática |
Vinícius Pazuch
|
2014 |
Universidade Luterana do Brasil |
Maurício Rosa |
3. |
A relação do professor com o saber matemático e os conhecimentos mobilizados em sua prática |
Itamar Miranda da Silva
|
2014 |
Universidade Federal do Pará |
Tadeu Oliver Gonçalves |
Fonte: Os autores/NUPERES
Na sequência, são apresentadas o mapeamento vertical de cada uma das teses recrutadas. Buscamos enfatizar, portanto, o objetivo, a metodologia, o problema de pesquisa e o embasamento teórico da noção da relação ao saber. Posterior a síntese evidenciamos o que cada autor entende por relação ao/com o saber segundo a perspectiva de Charlot.
A primeira tese que analisamos é a de Marcos Neves, defendida em 2007 na Universidade Federal de São Carlos e tem como título: “O Professor de Matemática e seus saberes e suas necessidades em relação à sua disciplina”. O objetivo do trabalho é de “analisar, descrever e discutir os saberes docentes do professor participante da pesquisa em sua complexidade, caracterizando-os em função das exigências de racionalidade que estruturam seus saberes referentes aos conteúdos específicos de matemática e sua relação com esses saberes”. A metodologia do estudo empírico de abordagem qualitativa foi desenvolvida a partir de estudos de casos e de entrevistas com professores de Matemática. Que objetivavam responder à pergunta: “Como se caracterizam os saberes docentes referentes aos conteúdos específicos da matéria de ensino que o professor de matemática possui e como ele os vem elaborando/reelaborando ao longo de sua trajetória profissional?”. No que desrespeito à relação ao saber, o autor procurou referenciar sua pesquisa através da abordagem teórica dos saberes docentes (TARDIF; LESSARD; LAHAYE) e dos estudos desenvolvidos por Charlot e a equipe ESCOL. Marcos Neves, aponta que a partir dos estudos de Tardif, Lessard e Lahaye (1991) teve um contato mais sistematizado com a problemática que envolve a relação dos professores com seus saberes, o foco de tais autores é a construção de uma epistemologia da prática profissional dos professores. Ainda segundo essa perspectiva, conclui-se que os saberes docentes podem ter nuances diferentes que se apresentam particulares a cada professor. Dessa forma, Marcos Neves (2007) recorre ao estudo da relação ao saber segundo a visão de Charlot (2005; 2002; 2001; 1997; 1996), evidenciando a problemática do fracasso escolar, e as questões de desejo pelo aprender e a consequente mobilização pelo saber.
A segunda Tese analisada versa sobre “Cyberformação semipresencial: A relação com o saber de professores que ensinam matemática” (PAZUCH, 2014). O objetivo foi de “investigar como se evidenciam, expressam e discutem relações/ações/situações com o saber mobilizado por professores que ensinam matemática em Cyberformação Semipresencial. Sua metodologia é de natureza qualitativa, desenvolvida através de entrevistas semiestruturadas com professores e observação e análises de aulas, ministradas pelos participantes de pesquisa. O estudo buscou a responder a indagação: “Como se mostra a relação com o saber, em termos matemáticos (de geometria), pedagógicos e tecnológicos de professores que ensinam matemática no Ensino Fundamental, em Cyberformação Semipresencial?”. O referencial teórico mescla conceitos dos os saberes docentes (TARDIF, 2002), os estudos de relação de poder de FOUCAULT (1987) e a relação ao saber de Charlot (2000). A partir de Charlot (Ibid.), Pazuch (2014) busca compreender como ocorrem as relações dos professores com o saber matemático (geométrico), pedagógico e tecnológico em Cyberformação Semipresencial. Na perspectiva de Charlot (Ibid.) o referido autor, intenta mostrar que o saber é relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo, defendendo a ideia de que o saber é “produzido nas relações interpessoais, comunicado pela relação que cada sujeito estabelece com a geometria, como também, ao ensinar e ao aprender matemática” (Pazuch, 2014, p.59) o autor da tese analisada, compreende ainda que segundo Charlot (Ibid.) a relação ao saber pode ser científica ou prática, diferenciada nos processos de validação e do contexto em que ocorrem. Por fim, ele (Pazuch), considera a ideia de saber como um movimento - como produto comunicável - produzido com o mundo, com os outros e comigo mesmo (2014, p. 54).
A tese elaborada por Silva, Itamar (2014) tem como título “A relação do professor com o saber matemático e os conhecimentos mobilizados em sua prática” e seu objetivo: Buscar compreensões acerca da relação do professor com o saber matemático e identificar conhecimentos mobilizados em sua prática. Além do mais, tem como modelo metodológico a análise qualitativa e empírica, através do estudo de percurso formativos, que requereu a utilização de questionários, entrevistas e observação das aulas. Que buscaram respostas para a pergunta de pesquisa: “De que maneira o professor se relaciona com o saber matemático e constrói a sua prática?” O embasamento teórico segundo a relação ao saber foi tecido através da teoria antropológica do didático (TAD) de Chevallard (2004, 2006,2009), as concepções sobre saber conhecimento e de relações com o saber de Brousseau (1996) e Charlot (2000, 2005) respectivamente. Outros teóricos que discorrem sobre as contribuições da formação e dos saberes docentes também foram evocados (TARDIF; SHULMAN; MASETTO; PERRENOUD; GARCIA; FIORENTINI; FREIRE). A cerca da definição canônica de Charlot (2000), A relação ao saber é a relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo, Silva (2014) compreende que,
a relação com o mundo se configura como sendo a condição que o homem só percebe o mundo, por meio do que ele deseja, do que ele sente; a relação com ele mesmo é apropriar-se do mundo e apoderar-se dele materialmente e perceber que ele não é apenas um conjunto de significados, mas é também, um horizonte de atividades (p.19).
O autor passa a referenciar a relação ao saber através de uma perspectiva individual e institucional ligado especificamente a relação do professor com o saber matemático.
3.1.2 Território das Dissertações
No quadro 02 apresentamos as informações gerais do mapeamento horizontal de 08 dissertações defendidas entre os anos de 2001 e 2014.
Quadro 02 – Síntese das Teses: Título, autor, ano da defesa, local da publicação e orientador(a)
Nº |
Título |
Autor (a) da Dissertação |
Ano |
Local da publicação |
Orientador(a) |
1. |
Relação ao saber: um estudo sobre o sentido da matemática em uma escola pública. |
Ronaldo Nogueira Rodrigues |
2001 |
Universidade Católica de São Paulo |
Anna Franchi |
2. |
Relação com o saber matemático de alunos em risco de fracasso escolar |
Simone Amorim castro Kiefer Oliveira |
2009 |
Universidade Federal de Minas Gerais |
Plinio Cavalcanti Moreira |
3. |
A relação com o saber: professores de Matemática e práticas educativas no Ensino Médio. |
Denize da Silva Souza |
2009 |
Universidade Federal de Sergipe |
Bernard Charlot |
4. |
A relação de estudantes do ensino médio de uma escola pública de Mariana - MG com o saber matemático e suas implicações no desempenho escolar em matemática |
Vilma Conceição da silva |
2010 |
Universidade Federal de Ouro Preto |
Francisco de Assis Moura |
5. |
A experiência escolar de alunos jovens e adultos e sua relação com a matemática |
Carla Cristina Pompeu |
2011 |
Universidade de São Paulo |
Vinício de Macedo Santos |
6. |
Relações com o saber: professores de matemática e seus pontos de vista sobre a formação continuada no estado do Paraná |
Marcia Viviane Barbetta Manosso |
2012 |
Universidade Federal do Paraná |
Carlos Roberto Vianna |
7. |
A relação com o saber matemático de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa: sentidos e significados em um espaço privado de liberdade |
Viviane Andrade de Oliveira Dantas |
2014 |
Universidade Federal de Sergipe |
Ana Maria Freitas Teixeira |
Fonte: Os autores/NUPERES
A seguir, trazemos uma análise vertical de algumas dissertações mapeadas por Cavalcanti (2015), nesse território buscamos enfatizar o objetivo da pesquisa, a metodologia e o embasamento teórico referente a noção da relação ao saber. Essa análise, portanto, é mais sistemática, sem comentários particulares, extrair o que cada autor entende por relação ao/com o saber segundo a perspectiva de Charlot. Posteriormente, traçaremos algumas considerações a respeito desses achados.
A primeira dissertação que recrutamos através do mapeamento realizado por Cavalcanti (2015) tem como título “Relação ao saber: um estudo sobre o sentido da matemática em uma escola pública” (RODRIGUES, 2001). O objetivo da pesquisa foi de “averiguar como se manifesta a relação entre escola e matemática em nossa realidade”. Como metodologia se utilizou de questionário e entrevistas com alunos. No que concerne ao embasamento teórico, notamos uma forte presença das definições da relação ao saber sob uma abordagem sociológica na perspectiva de Bernard Charlot. Além do mais as questões de sentido e de valor pelo saber escolar, em especial o matemático, são enaltecidos através de citações diretas que foram recortadas das publicações de B. Chalort, E. Bautier e Rochex, J. Y. (1992, p.29) e Charlot e Bautier (1993), como por exemplo a que diz: “Uma relação com o saber é: uma relação de sentido, logo de valor, entre um indivíduo (ou grupo) e os processos ou produtos do saber” (apud RODRIGUES, 2001, p. 25). A partir de Charlot (2000) Rodrigues considera que o autor amplia sua definição da relação ao saber “chamando a atenção para a necessidade de se levar em conta a existência de uma pluralidade de relações do sujeito com o mundo” (Ibid., p.27). Rodrigues (2001), portanto, frisa em sua dissertação, a relação do sujeito com o mundo, de modo que o compreende como um espaço a ser conquistado pelo aluno, que por vezes é também traduzido como o mundo do trabalho e da profissão que garantirão a sua posse (p. 66).
A dissertação produzida por Oliveira (2009) com o título de “Relação com o saber matemático de alunos em risco de fracasso escolar”, teve como objetivo: compreender as relações ao saber de dois grupos de alunos em uma mesma sala de aula, sendo um grupo formado por alunos considerados “bem sucedidos” em matemática. Quanto a metodologia foi utilizada entrevistas, aplicação de questionários com os alunos e testes de conhecimento matemático. O embasamento teórico de um dos capítulos da dissertação é pautado segundo a problemática do fracasso/sucesso escolar a partir da abordagem de autores como Bourdieu e Passeron (1975), Bourdieu (1992, 2003), Lahire (2004) e principalmente Bernard Charlot (1996, 2000, 2005). A partir dos estudos de Charlot (2000), Oliveira (2009) compreende que as relações ao saber “se constroem como um processo que se desenvolve no tempo e que implica atividades, práticas. Estas, por sua vez, exigem mobilização do sujeito. E, para haver mobilização, a atividade deve ter um sentido para o sujeito (itálico do autor, p. 17).
Por seguinte temos a dissertação de Souza, Denize (2009) com o título “A relação com o saber: professores de matemática e práticas educativas no ensino médio” cujo objetivo foi de “Investigar a relação com o saber dos professores de Matemática e a lógica de como esses professores, em suas aulas no Ensino Médio, mobilizam a atividade intelectual dos alunos nos Centros de Excelência da rede estadual de Sergipe”. A fim de alcançar tal objetivo utilizou-se como metodologia de entrevistas e questionários com professores. A teorização foi tecida a partir da abordagem sociológica segundo os pressupostos de Basil Bernstein (1996); Bourdieur (1992; 2002; 2004); Charlot (2000; 2001; 2005); Kuenzer (2007), entre outros. Na dissertação, é apresentada a epistemologia da relação ao saber, sendo destacados aspectos do sucesso/fracasso escolar (CHARLOT, 2000). O texto também enaltece as figuras do aprender em termos de relação ao saber como relação epistêmica, identitária e social. Segundo o entendimento da autora da dissertação “A relação com o saber do professor vai depender do sentido dado ao ensinar, ou ao que se recusa a ensinar. Dessa maneira, depende da sua relação com a disciplina que ensina, da sua relação consigo mesmo, com os seus alunos e com o contexto escolar” (SOUZA, 2009, p. 35). Disso evidencia-se que para a autora a relação com o saber apresenta como ponto de partida a questão do sentido e do desejo (Ibid., p.123). E seguindo Charlot (2005) a partir da sua definição canônica (Relação com o mundo, com outro e consigo mesmo) sistematiza da seguinte forma:
Relação com o mundo, porque a própria condição humana permite ao sujeito se apropriar do que vê ao seu redor, quando experimenta, interpreta, controla.
Relação consigo mesmo, pois a partir do aprender, em qualquer sentido que seja este “aprender” (dentro ou fora da escola), sempre está em jogo a contrução do seu Eu, da imagem de si mesmo.
Relação com o outro, porque é preciso a existência do “outro”- seja o outro que ensina, seja o mundo humano que representa o “outro” (a própria espécie humana), seja também, o outro Eu, que cada um tem no seu interior, carregado de informações e saberes (SOUZA, 2009, p. 35, negrito nosso).
A quarta dissertação analisada nesse trabalho é sobre “A relação de estudantes do ensino médio de uma escola pública de Mariana - MG com o saber matemático e suas implicações no desempenho escolar em matemática” (CONCEIÇÃO DA SILVA, 2010). O estudo objetivou “desvendar a relação que os alunos do Ensino médio estabelecem com o saber matemático e a implicação disso em seu desempenho escolar”. A coleta de dados foi através de questionários em uma abordagem qualitativa. A pesquisa tem como subsídio teórico os estudos da relação ao saber de Bernard Charlot (2000, 2001), e estudos na interface da psicanálise e educação de produzidos por Kupfer, Freund e Lacan. Conceição da Silva (2010) frisa em sua pesquisa que o conceito da relação ao saber remente ao conceito de desejo, de sujeito desejante e também de subjetividade (p. 22). Na dissertação é possível encontrar um estudo que evidência a epistemologia da noção da relação ao saber que busca justificar seu desdobramento no estudo especifico da relação ao saber através da perspectiva do ensinar e aprender matemática. Conforme destaca a autora “A relação com o saber matemático é o conjunto organizado das relações que o aluno mantém com tudo quanto estiver relacionado com “o aprender” e o saber matemático. (CONCEIÇÃO DA SILVA, p.114).
Na dissertação “A experiência escolar de alunos jovens e adultos e sua relação com a matemática” (POMPEU, 2011) o intuito é de “Analisar os modos de interação e as relações de alunos jovens e adultos com o conhecimento matemático dentro e fora da escola, bem como as possibilidades de aproximação entre conhecimento matemático escolar e não escolar”. A metodologia qualitativa contou com uma análise bibliográfica, observação de aulas e entrevistas realizadas com alunos e professores. A teorização compõe-se da noção da relação ao saber de Bernard Charlot (2001,2005), da noção da aprendizagem desenvolvida por Jean Lave e Etienne Wenger (1991) e da análise matemática como cultura de Bishop (1999). Nesse estudo a relação ao saber é mencionada especificamente na relação que o professor tem com o saber matemático, como foi sua escolha pelo curso e sua atuação docente. Não conseguimos aferir de forma clara o que a autora entende por Relação ao Saber.
A sexta dissertação destacada nesse estudo é de Manosso (2012) “Relações com o saber: professores de matemática e seus pontos de vista sobre a formação continuada no estado do Paraná” que objetivou “investigar as enunciações de professores de matemática em relação a sua formação continuada”. A metodologia exploratória foi realizada através de entrevistas com professores. O referencial teórico foi tecido segundo o Modelo Teórico dos Campos Semânticos (MTCS) na perspectiva de Romulo Lins (1993, 1996, 1999 e 2004), Lins e Gimenez (1997) e da relação ao saber segundo Bernard Charlot (2000), em uma sua abordagem microssociológica relacionada ao fracasso escolar. Ainda em sua abordagem teórica Manosso (2012) destaca as definições da relação ao saber encontradas em Charlot (2000) em que o autor define a relação
- Considerações Finais
Através da análise dos territórios explorados, Teses e Dissertações, que foram recrutadas a partir do mapeamento realizado por Cavalcanti (2015), constatamos que a ideia de relação ao saber está sempre em pauta através dos termos teóricos apresentados por Charlot. Na análise, foi notada uma tendência no que concerne a definição da relação ao saber, de modo que, ao explorar o uso da noção os autores (em sua maioria) recorreram ao uso de uma ou mais de uma das seguintes definições:
- A relação com o saber é uma relação sentido, logo de valor, entre um indivíduo (ou um grupo) e os processos ou produtos do saber”. (CHARLOT; BAUTIER; ROCHEX, 1992, p. 29 apud RODRIGUES, 2001, p. 25);
- A relação com o saber é relação de um sujeito com o mundo, com ele mesmo e com os outros. É relação com o mundo como conjunto de significados, mas, também, como espaço de atividades e se inscreve no tempo (CHARLOT, 2000, p.78);
- A relação com o saber é o conjunto das relações que um sujeito estabelece com um objeto, um “conteúdo de pensamento”, uma atividade, uma relação interpessoal, um lugar, uma pessoa, uma situação, uma ocasião, uma obrigação, etc., relacionados de alguma forma ao aprender e ao saber – consequentemente, é também relação com a linguagem, relação com o tempo, relação com a atividade no mundo e sobre o mundo, relação com os outros e relação consigo mesmo, como mais ou menos capaz de aprender tal coisa, em tal situação (Charlot, 2000, p.45).
A fim de instituirmos uma definição canônica da noção da relação ao saber esboçamos o seguinte quadro que nos ajudará a encontrar apontar qual definição é mais usual nas publicações:
Quadro 03 – Uso das definições canônicas por autor da Tese/Dissertação
Autor (a) da Teses/Dissertação |
Definições da Relação ao Saber utilizadas |
Marcos Rogério Neves |
Não há definições formais sobre o que de fato seja a relação ao Saber |
Vinícius Pazuch |
Definição 2 |
Itamar Miranda da Silva |
Definição 2 |
Ronaldo Nogueira Rodrigues |
Definições 1, 2 e 3 |
Simone Amorim castro Kiefer Oliveira |
Definições 2 e 3 |
Denize da Silva Souza |
Definições 1,2 e 3 |
Vilma Conceição da silva |
Definições 2 e 3 |
Carla Cristina Pompeu |
Não há definições formais sobre o que de fato seja a relação ao Saber |
Marcia Viviane Barbetta Manosso |
Definições 1,2 e 3 |
Viviane Andrade de Oliveira Dantas |
Definições 1,2 e 3 |
Através do leitura do quadro 03 podemos verificar que das dez (10) teses/dissertações analisadas, quatro (04) apresentam a definição 1 o que corresponde a 40 % das publicações analisadas, oito (08) apresentam a definição 2 o que contabiliza 80% das produções, seis (06) a definição 3 no caso 60% e 02 (duas), ou seja 20%, não trazem em seu texto nenhuma das definições mencionadas anteriormente.
Por essa análise podemos inferir que a definição canônica da Relação ao Saber é a definição 2, “A relação com o saber é relação de um sujeito com o mundo, com ele mesmo e com os outros... (CHARLOT, 2000, p.78); Destacamos contudo, que essa é uma dedução particular, e para que de fato essa seja atestada como uma definição canônica, deve ser realizada uma pesquisa mais ampla, com um maior número de análise de produções científicas
Mas a partir dessa nossa aferição de que existe uma definição canônica indagamos: O que quer dizer o próprio Charlot por Relação do sujeito com o mundo, com e com ele mesmo? A que mundo e outro se refere? Acreditamos que essas são indagações que necessitam de uma pesquisa da própria Obra de Bernard Charlot, procuraremos, portanto, formular um novo artigo a fim de esclarecer esses questionamentos.
Além da contatação da definição canônica da relação ao saber trazemos também outras considerações, acerca das produções científicas analisadas nesse artigo. No território das teses analisadas foi notado que tanto o trabalho de Neves (2007), quanto o de Pazuch (2014) e o de Silva Itamar (2014) trazem em seu referencial teórico Tardif (2002) explorando questões dos saberes docentes. O trabalho de Silva Itamar (Ibid.) se distingue de todos os outros por focalizar a relação ao saber sob perspectiva da Didática segundo os pressupostos teóricos de Chevallard (2004, 2006, 2009).
Em nossa análise, notamos ainda, que abordagem da problemática do fracasso escolar é trabalhada em pelo menos quatro (04) dos dez (10) trabalhos analisados, o que pode indicar uma tendência de estudo da relação ao saber. Além do mais, todas as teses e dissertações possuem abordagem qualitativa, realizada através de entrevistas semiestruturadas, estudos de casos, observações, entre outros.
Percebemos que a relação ao saber em algumas teses e dissertações é trabalhada evidenciando aspectos da sua epistemologia e/ou procurando aplicar a definição da noção em termos de sentido e valor ao objetivo de pesquisa, como na citação seguinte:
Uma vez em contato com os seus objetos matemáticos, o aluno, considerado em sua subjetividade, empreenderá esforços, mobilizando-se no sentido de aprender esse novo conhecimento, se conseguir atribuir-lhe um valor e que não está, necessariamente, relacionado com o valor que o professor de Matemática dá a esse objeto ao oferece-lo. (CONCEIÇÃO DA SILVA, p.84).
Por se tratar de trabalhos que fizessem a Matemática e seu ensino/aprendizagem, verificamos que, no que concerne à relação ao mundo, a matemática e o saber escolar são evocados como o mundo referenciado por Charlot (2000). Analisamos ainda que a definição canônica da relação ao saber (relação com o mundo, com outro e consigo mesmo) embora seja muito citada é pouco explorada. E ficamos surpresos por encontramos que as relações de sentido e de valor do saber são mais exploradas nas pesquisas do que a definição canônica.
Em suma, notamos uma fragilidade no trato da relação ao saber especificamente no que diz respeito a identificar o que os próprios autores entendem por relação ao saber. As definições são apresentadas de forma abrangentes, retiradas em sua grande maioria dos estudos de Charlot (2000) e com pouco espaço para atualizações.
Por fim, cabe destacar, conforme já apresentado anteriormente, que a metodologia desse artigo se limitou a análise de algumas teses e dissertações mapeadas por Cavalcanti (2015) e que as impressões pessoais postas aqui são resultantes das deduções das pesquisas aqui apresentadas. Esses resultados nos apontam a necessidade de estudos que visem explorar mais a relação ao saber em sentidos mais amplos, que considerem as especificidades do objeto estudo em termos de sentido e de valor de suas relações com o mundo, com o outro e consigo mesmo.
[1] Embora no Brasil seja mais comum encontrar a tradução ‘relação com o saber’ para a expressão ‘rapport au savoir’, optamos pela tradução como ‘relação ao saber’, que é utilizada pelo Núcleo de Pesquisa da Relação ao Saber (NUPERES) e fundamentada na tese de Cavalcanti (2015) sobre a história e epistemologia dessa noção..
[2] CREF - Centre de Recherche Éducation et Formation (CREF);
[3] ESCOL – Educação, Socialização e Coletividades Locais;
[4] A conceituação da palavra “Canônica” segundo o site da Wikipédia, “refere-se de forma geral à forma normal e clássica de representar uma dada relação” (FORMA CANÔNICA, 2021).
[5] Para a seleção das teses e dissertações analisadas esse trabalho, estabelecemos que como critério de escolha seriam analisadas apenas as produções científicas que em seus títulos fizessem menção direta à relação ao/com saber no contexto da matemática (isso pela formação de um dos pesquisadores ser nessa disciplina).
[6] A primeira definição da Relação ao Saber elaborada por Charlot foi em 1985: “Chamo de relação com o saber o conjunto de imagens, de expectativas e de juízos que concernem ao mesmo tempo ao sentido e à função social do saber e da escola, à disciplina ensinada, à situação de aprendizado e a nós mesmos” (CHARLOT, 1982 apud CHARLOT 2000, p. 80);
[7] Vocabulário utilizado por Bourdieu e Passeron (1970) para designar o grau de instrução escolar dos pais. A título de exemplo, filhos de pais com capital cultural (ensino médio completo, ensino superior), teriam mais chances de serem êxitos nos estudos.
[8] Os anos escolares do liceu profissional na França equivalente aos anos iniciais e finais do fundamental no Brasil;
[9] CHARLOT, Bernard. Du rapport au savoir. Éléments pour une théorie. Paris: Anthropos, 1997. Estamos discutindo essa referência de Charlot (2000) referente à sua versão publicada no Brasil;
[10] Quando analisamos as produções científicas mapeadas por Cavalcanti (2015) nos deparamos com um grande quantitativo de trabalhos científicos que apresentam em seus títulos menção direta à relação ao/com o saber. Dessa maneira, em virtude do tempo limitado para produção dessa dissertação, optamos por analisarmos apenas algumas teses e dissertações mapeados pelo referido autor. No seleção das teses e dissertações foram analisadas apenas os trabalhos que em seus títulos fazem menção direta à relação ao/com saber e o ensino de matemática (isso pela formação de um dos pesquisadores ser nessa disciplina), outro critério para a escolha das produções foi de que tivessem fácil localização no mecanismo de busca Google Acadêmico. A partir desses filtros de busca, foram encontradas três (03) teses e sete (07) dissertações que para o objetivo desse trabalho foram consideradas suficientes. Com isso, esperamos ter um panorama de como tem sido utilizada a noção da relação ao saber nas pesquisas brasileiras.
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