A “colonialidade” como um conceito foi abordado pelo sociólogo Aníbal Quijano, no início dos anos de 1990, associado ao grupo de intelectuais latino-americanos que constituíram o Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C). Segundo Luciana Ballestrin (2013), esse grupo foi fundamental para transformações epistêmicas em prol de uma intensificação crítica das Ciências Sociais, no contexto latino no século XXI. Isto é, eles fomentaram uma ampla rede de influências teóricas, proporcionando novas leituras e problematizações quanto as questões importantes a respeito das experiências da América Latina.
Assim, entendemos a colonialidade como uma experiência vivenciada pelos povos latinos na história e que ainda não foi superada, ou seja, ainda vivenciamos sua a produção e reprodução de concepções pejorativas a respeito de sociedades que fogem a lógica eurocêntrica e de indivíduos inseridos no contexto das populações subalternizadas, principalmente por conta das colonialidades do ser, do saber e do poder[1].
Associado a esse conceito, Mignolo (2016) apresenta-nos uma compreensão de “modernidade” enquanto narrativa complexa, cuja origem finca-se na Europa. Essa narrativa auxiliou na construção da civilização ocidental, principalmente ao comemorar suas conquistas e maquiar sua colonialidade. Esta, no que lhe concerne, é constitutiva da modernidade.
Ainda com o mesmo autor, ele evidencia que o pensamento e a ação descolonial, como reação ao século XVI em diante, toma um caráter de resposta às práticas de opressão e políticas imperialistas dos ideais projetados para o globo por europeus modernos.
Isto é, a decolonialidade enquanto resposta, fomenta práticas que evidenciam a colonialidade que reside em nós e na sociedade em que estamos inseridos, como também formas de superá-la. Assim, a protagonização de indivíduos, grupos sociais e étnicos, no contexto educativo, são fundamentais para a desconstrução de preconceitos, do reconhecimento e da valorização das contribuições históricas desses sujeitos e/ou populações.
Nesse sentido, recorrer a produções cinematográficas, musicais, literárias e outras expressões culturais contribuem com a (re)construção das identidades, das sociedades e das crenças feitas por esses indivíduos e povos, auxiliam na aproximação dos alunos a outras culturas e realidades; com isso, fazendo-os conhecer outras formas de enxergar o mundo e as diversidades que nele residem.
Dessa feita, a literatura, por exemplo, produzida pelas populações indígenas pode (e deve) ser usada no ambiente escolar, afinal, ela carrega a experiência colonial, como também formas de resistência a colonialidade, por meio da forte presença da cosmologia, da ancestralidade, do reforço as suas questões identitárias, das demarcações das diferenças entre as etnias, os povos e os outros, possibilitando um processo de desconstrução de ideias e preceitos, bem como o desmembramento de mentiras atribuídas a esses grupos.
O objetivo deste estudo é fomentar uma reflexão metodológica direcionada aos não-indígenas (mas não somente) da rede básica de ensino. Ele se fundamentada no pensamento decolonial, a partir do uso da literatura dos povos originários, em contraponto a colonialidade do ser, e realiza também reflexões sobre o contexto amazônico, uma vez que ainda persiste reprodução de estereótipos e a ausência de ações que visem o protagonismo desses sujeitos.
Enfim, fazemos uso de uma metodologia que embasa nossa discussão crítica e reflexiva a partir dos seguintes autores: Aníbal Quijano (2005), Walter Mignolo (2012), Janice Thiél (2012), Sueli Cagneti (2015), Alcione Pauli (2015), Neide Gondim (2007) e outros intelectuais que buscam debater a colonialidade, a decolonialidade e, as propostas de ensino decoloniais, no contexto amazônico indo de encontro contra ao eurocentrismo.
[1] Esses conceitos serão apresentados ao longo deste texto, com ênfase na colonialidade do ser.
Colonialidade e Decolonialidade
Boaventura de Souza Santos e Maria Paula Menezes (2009) evidencia-nos que todas as experiências sociais vivenciadas produzem e reproduzem conhecimentos válidos, porque é através disso que uma experiência social se torna intencionalmente inteligível, afinal, não há conhecimento sem prática ou atores sociais que coexistam em diversos tipos de relações, e isso pode propiciar várias epistemologias.
A partir disso, esses autores chamam essa diversidade epistemológica de Epistemologias do Sul, considerando esse Sul de modo metafórico. Em outras palavras, eles a compreendem como um campo de desafios epistêmicos a procura do reparo da dívida histórica propiciada pelo sistema capitalista. Isto é, um conjunto de nações e/ou regiões do globo que passaram pelo colonialismo europeu, e, atualmente, não conseguem alcançar níveis econômicos iguais do Norte, pois sucumbiram diante do modelo universalista de poder e buscam por ressarcimento.
Os autores apresentam epistemologias que “fogem” da lógica eurocêntrica de ver e compreender o mundo. Nesse sentido, os escritos de Aníbal Quijano (2009), permitem entender a existência de uma colonialidade como um elemento fundamental e específico do padrão mundial do poder capitalista, a partir de uma hierarquização racial/étnica dos povos do globo.[1]. Essa forma de organização acabou originando inúmeras identidades sociais da colonialidade – índios, negros e outros e as chamadas geoculturas do colonialismo, como a América e a África.
Além disso, destaca-se o eurocentrismo enquanto detentor de um papel fundamental, pois não abarca apenas os europeus, mas todos aqueles que foram educados a sua lógica, uma vez que ele é entendido sob uma perspectiva cognitiva, centrado no capitalismo colonial/moderno e normatizador das experiências dos sujeitos que estão alocados nesse padrão de poder
Quijano (2015) também chama a atenção para o avanço rumo à globalização, destacando esse caminhar como uma continuação de um processo iniciado com a invasão de Colombo à América Latina, em 1492, chamando-o de Mito da Modernidade.
Nessa perspectiva, Walter Mignolo (2016) expõe que o significado da colonialidade, para os intelectuais do pensamento Decolonial, não abarca um sentido totalitário, mas especifica um projeto particular: “o da ideia da modernidade e do seu lado constitutivo mais escuro, a colonialidade que surgiu com a história das invasões europeias de Abya Tala, Tawantinsuyu e Anahuac, com a formação das Américas e do Caribe e o tráfico massivo de africanos escravizados” (MIGNOLO, 2016, p. 2).
No entender de Enrique Dussel (1993) a modernidade foi compreendida como um advento europeu, ou seja, afirma ele que ao longo do século XV a Europa toma para si o status de “centro” de uma mundialidade e, como consequência, cria a ideia de “periferia”. Em outros termos, essa “periferia” deveria ser “educada” aos preceitos eurocêntricos, com o intuito de abandonar suas identidades atrasadas (e em certa medida animalescas) e marcharem rumo ao desenvolvimento social, racional e científico conforme os padrões europeus. Com isso, temos a “inauguração” do Mito da Modernidade, no qual o “Outro” (o não-europeu) fora encoberto de forma violenta e assassina, com isso o eurocentrismo passou a ser um padrão de identidade a ser seguido.
Em suma, a ideia de modernidade está intimamente associada ao novo, do avanço, do racional-científico, do laico e do secular, ou seja, foram esses os ideais políticos e filosóficos que movimentaram o cenário da Europa do final do século XV. Nesse contexto, em um único movimento, os europeus tomaram para si a pretensão de serem os únicos capazes de produzir um modelo de modernidade, em que todas as sociedades deveriam ter por referência, como também enquadram os não-europeus, na base da pirâmide de hierarquização racial e social. Em outras palavras, esse mito da modernidade tem por base a europeização dos “índios”, a partir do processo de homogeneização desses sujeitos.
É nesse contexto que, Mignolo (2017) nos faz compreender que o cenário entre os séculos XVI e XVII era caracterizado pelo controle e administração, cuja instituições que faziam parte daquele tempo-espaço estabeleciam suas regras e exerciam poderes decisórios. E isto significou a exclusão e a discriminação das populações africanas e indígenas, as quais foram tiradas do processo. Dessa maneira, o delinear global e seus desdobramentos foram instituídos pelas nações europeias do Atlântico, considerando seus interesses individuais. Assim, a formação histórica, econômica, cultural e política das Colônias que sofreram (ou sofrem) com a exploração e a inserção forçada de uma epistemologia diferente da sua, e ainda hoje vivenciam os efeitos do movimento opressor, excludente e discriminador, chamado Imperialismo.
Para além disso, a colonialidade está subdividida em ser, saber e poder. Segundo Quijano (2005), a colonialidade do poder surge com a constituição das novas identidades históricas que foram produzidas a partir da ideia de raça, associada à natureza dos papeis e locais de controle de trabalho. Dessa maneira, raça e divisão de trabalhos foram estruturados de modo a associar e reforçar, mutuamente, a instituição de um sistema de divisão racial de trabalho, com formas de controle.
A colonialidade do saber, advém da influência no saber produzido nas antigas Colônias, mesmo com a respectiva independência. Essas ex-colônias ainda continuaram adotando o mesmo padrão de produção e reprodução de conhecimento. Isto é, os saberes locais foram “reféns” de uma tentativa de encobertamento em prol da lógica eurocêntrica de pensamento, uma vez que a modernidade impunha o ideal de desenvolvidos e não desenvolvidos (PERTILE, 2020).
Por fim, a colonialidade do ser refere-se à questão ontológica do sujeito. A esse respeito, Juan Gómez-Quitero (2010) esclarece-nos que sua origem está ligada à colonialidade do poder, pois, é a partir dela que a construção histórica da “civilização” europeia, é tida como trajetória universal, distorcendo a representação do outro, assim como a compreensão de si mesmo.
Logo, entendemos a colonialidade enquanto padrão de poder como instrumentalização de controle sob as sociedades não-europeias, isto no campo do ser, do saber e do poder, pois seus tentáculos penetram o mais íntimo espaço dos sujeitos que estão fora do eixo europeu, atentando sobre suas identidades, culturas, religiões e todos os elementos que os formam.
Convém esclarecer, antes de avançarmos na discussão, que os apontamentos de Quijano nos alerta sobre a colonialidade ser uma etapa histórica que ainda não foi superada. Por conta disso, entendemos o mundo sob a ótica eurocêntrica e, por vezes, fazemos um juízo de valor sobre populações e/ou grupos que não fazem parte da lógica etnocêntrica.
Dito isto, compreendemos que a decolonialidade surge como uma proposta de denúncia e combate à colonialidade nos mais diferentes aspectos. Segundo Reis e Andrade (2018), seu objetivo circunda a problematização de produção e reprodução de condições (e práticas) coloniais, buscando a emancipação de todas as formas de opressão e dominação do etnocentrismo, no qual articula interculturalidade, cultura, política e economia de modo a constituir um campo de pensamento contrário ao eurocêntrico.
Para além dos muros da universidade, a decolonialidade adentra os movimentos sociais, como também as lutas de grupos étnicos, as supostas minorias e outros. Isto é, o pensamento decolonial e sua utilização está associado a busca de uma autonomia que pode ser compreendida quando estamos cientes de que a ela é o contraponto necessário para superação da colonialidade (NETO, 2016). No entender de Mignolo (2017), o pensamento decolonial é um esforço para superação da colonialidade, como também dos padrões estabelecidos pela modernidade e a constituição de opções que ultrapassem tudo que adveio com o colonialismo.
A esse respeito, Frantz Fanon (2005) alerta que o processo de descolonização[2] se propõe a transformar a ordem do mundo, a partir de um movimento de desordem, tomando-se um processo histórico, à medida que não pode ser compreendido e não tem resultado inteligível, uma vez que é o movimento histórico que lhe agrega forma. Ele conceitua esse processo como um encontro de duas forças antagônicas que tiram de si sua respectiva originalidade e alimenta a situação colonial, a violência e a exploração do colonizado, pois, com a longa relação, o colono obtém sua verdade, ou seja, seus bens do sistema colonial.
Ademais, João Mota Neto (2016), a partir da leitura de intelectuais do pensamento decolonial, alerta-nos que esses pensadores não defendem um processo de decolonização associada a ideia de “totalidade” suplantada pela lógica eurocêntrica, no qual exclui outras racionalidades, mas sim voltado para uma ideia de totalidade social baseada na diversidade e heterogeneidade histórica, considerando, em particular, populações, sujeitos e grupos antes esquecidos.
Compreendemos que a decolonialidade abarca inúmeras categorias de análise, como, por exemplo: o pensamento outro, o pensamento de fronteira, a pedagogia decolonial. Infelizmente abordá-los não é um exercício que caberá neste trabalho. Por nosso exercício foi, tão somente, problematizar o pensamento decolonial, uma vez que compreendemos que esses são apontamentos iniciais sobre os estudos que desenvolvemos.
Por fim, entendemos o esse pensamento como uma tentativa de superação da lógica colonial que não advém de um movimento acadêmico, mas abarca uma miríade de sujeitos que lutam no campo dos movimentos sociais, intelectuais, educativos e outros em prol da emancipação do etnocentrismo vigente nos dias atuais. Desse modo, ele a denuncia a produção e a reprodução de suas lógicas, como também estratégias que implicam a valorização de todos aqueles relegados às margens da história.
O contexto amazônico
Enxergamos a mulher e homem amazônicos como fruto de uma história eurocêntrica, cuja principais características são exógenas. A esse respeito, José Alcimar Oliveira (2011) destaca que a Amazônia do século XXI, carrega em seu âmago o peso etnocida da descriminação propiciada pelo colonialismo, muitas vezes produzidas por seus habitantes[3].
Ele nos evidencia um caminho, associando uma discussão entre natureza e ciência como forma de compreender esse homem e essa mulher. Dessa maneira, entende-se que a ameaça a Amazônia, do ponto de vista ontológico, não está localizada na causalidade promovida pela ciência e técnica; porém, está naquela que o capital impõe rumo à objetificação e transformação do real. Afinal, até pouco tempo atrás, a humanidade vivia de forma que as forças naturais eram maiores que a sua, e na Amazônia, habitada “pela sociabilidade do valor de uso” (OLIVEIRA, 2011, p.61), presenciava-se o avanço da revolução tutelada pelo valor de troca.
As sociedades amazônicas tinham como sistema econômico o intercâmbio com a natureza, regulado pelo valor de uso e usufruto coletivo da riqueza material, ou seja, constituída pelo trabalho, assim como pela riqueza material disponível na natureza. Porém, com a incorporação ao sistema capital, vislumbramos a ciência e a técnica associada à emancipação humana.
A partir da categoria ontodialética, o trabalho é uma das chaves epistêmicas que nos deixa compreender a relação natureza-cultura das sociedades indígenas e caboclas, afinal, elas são culturas porque, diante do diálogo entre material e natureza, foram construindo a si mesma e ao seu mundo material e social, assim fugindo da lógica da causalidade natural.
Com isso, o autor busca delimitar o que é cultura e natureza (do ponto de vista ocidental). Dessa maneira, afirma que a segunda está sob o domínio da primeira. Porém, da perspectiva tradicional indígena-caboclo, essa separação não existe, pois, o saber se faz com a natureza e esses sujeitos tal compreensão. Nesse cenário, o projeto da modernidade tem por base um sistema progressivo de absorção formal e material da natureza - segundo a concepção do autor -, com o suporte do sistema capitalista. Em outras palavras, ele assume status de “empreendimento antropocêntrico da ciência moderna” (OLIVEIRA, 2011, p.65).
Desse modo, podemos afirmar que a natureza não é uma constituinte variável, afinal, na lógica etnocêntrica cujo viés é equivocado e hierarquizante, aloca-se a natureza e a cultura de modo dicotômico, posicionando a primeira como um estágio a ser superado pela segunda, enquanto o saber tradicional é trabalhado como uma “compreensão ontológica construída pelo ser social da Hiléia” (OLIVEIRA, 2011, p.66). Isto é, não há espaço para a visão de mundo desses sujeitos ser posicionada enquanto um saber alternativo, pois, carregam em seu interior uma complexidade que ultrapassa o simplismo direcionado pela lógica eurocêntrica.
Com isso, podemos afirmar que as sociedades indígenas e caboclas da Amazônia não se originam de uma causalidade natural, como se disseminou pela ciência eurocêntrica, mas de um alongado e progressivo processo de “intercâmbio subjetivo-objetivo entre homem e natureza” (OLIVEIRA, 2011, p. 67), ou seja, não se trata de um resultado produzido pela natureza, mas sim como consequência de um ser social, que pelo trabalho, se inseriu na ordem natural.
Essa compreensão também é corroborada por Neide Gondim (2007), a qual em seus estudos descontrói a ideia de uma Amazônia descoberta ou construída. Ela nos apresenta uma Amazônia que foi inventada a partir de uma historiografia greco-romana e dos relatos de inúmeros missionários e exploradores que por aqui passaram. A autora nos elucida as estratégias utilizadas para compor um imaginário exótico e aventureiro (pelo menos até o final do século XIX, com a abertura dos rios para comercialização da borracha no cenário internacional).
A invenção dessa Amazônia está fortemente ligada a um imaginário medieval, direcionada a um movimento de universalização e que, Gondim (2007) agrega um sentido de convulsões que vinham ocorrendo ao longo da Idade Média, provindas das mudanças nas políticas, como também de natureza religiosa e ideológicas, sobretudo europeias, envoltas pela cobiça e ao interesse econômico.
Desse modo, compreendemos que essa rejeição as características de sujeitos advindos das populações tradicionais que estão alocadas em nosso meio social e territorial tem base fundamentada no período abordado por Neide Gondim (2007), pois, o explorador que aqui desembarcou estava submerso em um entendimento cuja base era fundamentada na ideia de superioridade e inferioridade, ou seja, podemos ver a modernidade descrita por Quijano (2005) expressa nesses sujeitos.
Nas maravilhas e monstruosidades da Índia as feras estavam restritas aos espaços da natureza. Pode-se presumir que o convívio com esse híbrido ameríndio é quase uma transferência, sem ser explicitada, é uma alusão à natureza monstruosa do “selvagem”, de seus costumes “bárbaros”, fundidos - homem e besta - no mesmo espaço familiar. O que não deixa de ser uma imagem dupla do europeu diante do outro. Julgando, ou melhor, nomeando e qualificando o animal de “serpentes e venenosas”, exorcizava o novo, o que amedrontava, o que o obrigava a reconhecer a inoperância de seu conhecimento, a sua inferioridade; por outro lado, a localização da fera que é domesticada e que servirá de alimento – “e comiam-nas” – dentro da habitação do nativo, é aproximar a natureza do outro, nivelando-a ao animalesco; ao mesmo tempo em que o estrangeiro se distancia, pelo confronto constrói a supremacia de sua raça. (GONDIM, 2007, p. 70)
Dessa maneira, a autora compreende que a “descoberta” da América Latina foi envolvida por uma aura lendária, assim como a incerteza sobre eventuais resultados positivos, ou seja, a ela é incumbido especulações históricas, literárias, antropológicas, sociológica etc., consequentemente, presenciamos vários relatos produzidos por colonizadores ao longo do período de exploração que caracterizam e atribuem adjetivos associados num primeiro momento ao Paraíso e, logo depois, ao Inferno.
Isto é, esses sujeitos amazônicos, submersos na lógica ocidental, são resultados de um longo e intenso processo histórico, social, político e cultural, fortemente ligado a um viés eurocêntrico. Isso significa que a hierarquização étnico/racial é latente, porque naturaliza e enxerga o outro (nesse caso o indígena) como atrasado, selvagem, preguiçoso etc. Assim, fomentar estratégias que vão de encontro a lógica colonial faz-se fundamental, e a escola tem um papel importante nessa questão, uma vez que ela possui a capacidade de formar sujeitos críticos-reflexivos.
Dessa maneira, a decolonialidade é uma proposta viável, afinal, ela surge do lado fora de uma lógica acadêmica e abrange o Outro em diferente formas. Ou seja, ela visa entender e superar a lógica da colonialidade, a qual acompanha a modernidade.
Nesse contexto, é necessário promover práticas de ensino que protagonizem populações historicamente rejeitadas e propensas a sofrer com o racismo, a discriminação, a inferiorização e assim, fazer uso de produções construídas por esses sujeitos e apresentar, aos nossos alunos, diferentes formas de compreender o olhar, as críticas e as crenças dos diferentes sujeitos que coexistem conosco, mas que, por vezes, são silenciados.
A Colonialidade do ser e a literatura dos povos tradicionais como caminho ao protagonismo
Segundo Gómez-Quintero (2010) a colonialidade do ser está associada a colonialidade do poder. Nesse sentido, entendemos que seu alcance ontológico tem por base a tentativa de desvalorização e de substituição de nossa identidade em detrimento a padrões eurocêntricos. Isto é, esse movimento legitimou e naturalizou a violência contra grupos não europeus em níveis mais profundos.
Acrescenta o autor, que os sistemas eurocêntricos de representação e pensamento se tornaram projetos de estados. Porém, dada a complexa realidade da América Latina, a ordem jurídica e social foi apenas um protótipo das sociedades europeias e consequentemente, a comunidade (mesmo no período pós-independência) utilizou uma organização social colonial baseada em padrões sócio-raciais.
Isto é, houve a negação das suas identidades, como também de elementos que compõem as suas culturas. Isso significa o desdobramento da colonialidade do ser, pois, os sujeitos submersos nessa lógica de pensamento entendem seu “eu” como inferior, dada a comparação com a Europa e os seus. Nesse sentido, presenciamos a censura e a desvalorização daquilo que se entende por ser involuído, ou seja, práticas, saberes, produções artísticas e outros, de povos ou grupos não europeus são tidos como ruins, fajutos, ordinários, etc.
Para Frantz Fanon (2008), no contexto neocolonial, tendo po base suas experiências como homem preto diante do imperialismo do século XX, ele realizou uma crítica ao processo de esforço em prol de uma europeização. Nesse caso, entendemos como a busca pela branquitude e o status de civilizado. Ademais, o autor faz-nos enxergar que, dada as particularidades, os sujeitos advindos da experiência colonial carregam em si o anseio por um padrão que não o reconhece, o encobre e mata tudo aquilo que não advêm de sua própria episteme.
O negro quer ser branco. O branco incita-se assumir a condição de ser humano. (...) Mas também é um fato: alguns negros querem, custe o que custar, demonstrar aos brancos a riqueza do seu pensamento, a potência respeitável de seus espíritos. (...) Por mais dolorosa que possa ser essa contestação, somos obrigados a fazê-la: para o negro, há apenas um destino. E ele é branco (FANON, 2008, p. 27-28).
Essa busca por adequação aos esses moldes ainda é vigente em nossa sociedade atual. Nesse sentido, problematizar essa procura, combater a produção e reprodução de desinformações sobre grupos/sociedade/povos e reconhecer suas contribuições ao longo da história no contexto escolar é necessária, para a desconstrução de estereótipos e preconceitos direcionados não somente as populações indígenas.
A parti de uma perspectiva voltada para a edução, Sueli Cagneti e Alcione Pauli (2015) nos fazem questionar a respeito dos currículos de nível superior com forte viés eurocêntrico e o pouco espaço dado a disciplinas com foco nas questões indígenas e afro-brasileira. Isto é, forma-se docentes que não conhecem questões, complexidades e heterogeneidade de populações que aqui habitam e acabam por produzir e reproduzir saberes errôneos e preconceituosos.
Nesse sentido, destacam:
não há como não se indignar ao ver uma mesma face estereotipada, servindo de mote para, além de “festejar o Dia do Índio”, fazer exercícios bizarros como ligar as palavras “índio” ou “coca” aos desenhos, ou relacionar grupos de dois, três ou quatro “índios” como respectivos numerais, ou atividade de pintura para alunos menores, sempre com o mesmo modelinho (CAGNETI; PAULI, 2015, p. 16).
Assim, as autoras abordam como objetivo central descontruir conceitos no professor – antes de tudo – ideias erroneamente construídas e estabelecidas sobre a compreensão dos povos indígenas e suas especificidades, tendo a literaratura como um caminho a ser seguido.
Dessa maneira, as autoras designam a literatura indígena como um movimento literário recente, afirmando que nela consta a arte de como esses povos compreendem a vida. Elas, destacam a memória como motor de propulsão das narrativas que eram orais e agora passavam a ser registradas em livros. Além disso, demarcam o cotidiano como procedimento de criação, afinal, os mitos, as construções, os alimentos, as bebidas e a vida ocorrem dento das histórias cotidianas.
Segundo Thiago Hakiy (2018), a literatura produzida por indígenas brasileiros tem por base a oralidade, pois, é a partir dela que são transmitidos os saberes de suas respectivas etnias. Assim, essa produção literária possui em suas entrelinhas um sentido ancestral, no qual as palavras registradas nos livros, não são apenas meio de perpetuação ou preservação de sua história, mas também assumem um caráter de mecanismo para que os não indígenas possam conhecer mais sobre as riquezas, as complexidades, as lutas e as heterogeneidades dos povos originários.
No entender de Daniel Munduruku (2018), a escrita é uma conquista para a maioria dessas populações, pois, a utilizam como ferramenta de transmissão de suas tradições. Ele compreende que inicialmente os povos originários carregavam em seu âmago a Memória Ancestral, no qual a oralidade era o seu meio de perpetuação. Porém, mediante o avanço da ocidentalização e o atropelamento de seus saberes e história, a necessidade de registrar em livros suas memórias tradicionais tornou-se inevitável.
Desse modo, Munduruku (2018) reforça que o papel da literatura indígena é ser a emissária do (re)encontro, pois ela não destrói a memória, mas sim reforça e soma ao acervo tradicional outros fatos e acontecimentos que corroboram para o pensar ancestral.
Para Márcia Kambeba (2018), mesmo mantendo uma cultura oral, a escrita tem uma grande importância na transmissão dos saberes para os indígenas. Isso significa que, a literatura e sua veiculação não possuem como único objetivo a preservação dos legados, pois no caso dos povos tradicionais, a produção literária abarca uma infinidade de metas, como a luta pelo reconhecimento, a desconstrução de preconceitos e a reafirmação de suas identidades frente a um movimento homogeneizador
A autora ainda destaca que a identidade de cada indígena está associada à etnia a qual pertence, considerando suas peculiaridades manifestadas no modo de vida - cotidiano - e na territorialidade. Isso os tornam diferentes dos não indígenas. Vale destacar, que sua produção literária abarca essas lutas, como também à forma de existência presente nos diferentes modos de viver, pensar e agir.
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Ser Indígena, ser Omágua
Sou filha da selva, minha fala é Tupi
Trago em meu peito
as dores e as alegrias do povo Kambeba
e na alma, a força de reafirma a
nossa identidade
que há tempos ficou esquecida
diluída na história
mas hoje revivo e resgato
a chama ancestral
Sou Kambeba e existo, sim
No toque de todos tambores
na força de todos os arcos
no sangue derramado que ainda colore
essa terra que é nossa.
Nossa dança guerreira tem começo
mas não tem fim!
(KAMBEBA, 2020, p. 26)
Para Márcia Kambeba (2020), ser indígena e ser Omágua estão para além das questões identitárias, ela abrange a luta por direitos, preservação da memória, da história e da ancestralidade de seu povo, ou seja, sua produção literária busca abarcar justamente essa identidade e os outros elementos citados acima e apresenta-las aos não indógenas.
Nessa perspectiva, Janice Thiél (2012) compreende que a literatura dos povos tradicionais pode ser utilizada para problematizar conceitos, estereótipos e viabilizar reflexões sobre suas trajetórias ao longo da história. Além de contemplar as complexidades das diferentes formas de vivências que abarcam essas populações. Assim, nela não há uma textualidade, mas textualidades construídas a partir de suas diversidades culturais, contextos e as várias formas de produzir um discurso.
Para Thiél (2012) esses textos são resultado de um diálogo entre a tradição oral e a escrita, e evocam a memória ancestral e experiências cotidianas. Em outros termos, essa literatura carrega em seu âmago fortes traços de suas identidades, memórias, crenças, religiosidade, mas principalmente suas ancestralidades. Essa ancestralidade, conforme Kaká Werá Jecupé (2020), é um elemento fundamental para o pensamento indígena, uma vez que os “ancestrais” estão ligados a fundação do mundo e da humanidade. Enfim, cada nação ou etnia guarda uma memória cultural de sua ascendência dentro do reino natural, associada ao seus ancestrais.
Nesse contexto, a ancestralidade é parte importantes das populações indígenas, é por meio dela que suas identidades se desdobram e refirmam suas diferenças diante de outras etnias. Na literatura produzida por eles, esse ponto tem um importante destaque, pois, é por meio dela que as suas raízes culturais, seus costumes e suas crenças são evidenciados.
Thiél (2012) proporciona uma percepção em que a escrita produzida por indígenas brasileiros contemporâneos propõe um novo olhar acerca da história do Brasil e dos estereótipos oriundos da colonização. Além disso, ela nos traz perspectivas de comunidade frente a cultura universalista e a reafirmação de identidade diante do não indígena. Dessa maneira, trabalhar essa produção literária no contexto escolar é ter em mãos uma infinidade de materiais repleto de diferentes olhares sobre a história, cultura, modos de vida, etc., afinal:
O índio não se chamava nem se chama de índio. O nome “índio” veio dos ventos dos mares do século XVI, mas o espirito “índio” habitava o Brasil antes mesmo de o tempo existir e se estendeu pelas Américas para, mais tarde, experimentar muitos nomes, difusores da tradição do Sol, da Lua e dos Sonhos (JACUPÉ, 2020, p. 18).
Por conseguinte, a autora ressalta alguns cuidados que devemos nos ater, dentre elas a homogeneização, deve-se sempre destacar as múltiplas identidades que estão alocadas no termo “indígenas”, pois elas representam a pluralidade desses sujeitos. Assim, reconhecê-las é um processo fundamental para valorização das suas contribuições, como também de suas lutas, crenças e exitências.
Ela também elenca, como um dos principais desafios, o reconhecimento dessa literatura no contexto escolar, pois esses autores revelam, através de suas poéticas, seus olhares e isso é de suma importância para formação ética e moral de nossos alunos, uma vez que vivenciamos tempos em que as tidas “minorias” estão cada vez mais perdendo espaço e direitos. Por fim, Thiél (2012) deixa-nos com reflexões sobre como nós, professores, devemos nos apropriar de conhecimentos que fujam à lógica eurocêntrica e contemplem a gama de diversidade epistemológica que coexistem em nossa sociedade, para que juntos possamos instigar nossos alunos a exercitarem o pensamento crítico.
[1] A hierarquização da população está intimamente ligada às modalidades de trabalho que são desempenhadas ao longo do processo de colonização. Segundo Quijano (2005), essas novas identidades têm por base a divisão de atividades e o pagamento delas, isto é, foi desenvolvida uma percepção de trabalho pago que era privilegio de pessoas brancas. Como contraponto, os colonizados deveriam receber (ou não) menores salários.
[2] O termo “descolonização” abordado por Fanon (2005) professores da rede básica de ensino possui o mesmo sentido de decolonizar, ou seja, nesse momento ambos são sinônimos um do outro.
[3] O professor José de Alcimar (2011), para exemplificar esse fato, na utilização do termo “parece mura”, um sentido pejorativo, esclarece que se deixa de lado toda herança histórica desse povo, assim, evidenciando o preconceito naturalizado do sujeito amazônico.
Literatura Indígena e a Decolonialidade: considerações primarias
Em um contexto em que se deixa a cargo do desconhecimento e preconceito, o próprio ser ontológico, conhecer e reconhecer as raízes, traços e identidades são importantes para que possamos valorizar e lutar em prol dos nossos. Dessa maneira, trazer à tona e protagonizar povos/grupos/etnias é um árduo processo, principalmente, no âmbito escolar. Afinal, é por meio dele que se tem o acesso a um conhecimento crítico-reflexivo. Logo, usar práticas, metodologias, ferramentas e outras são essenciais, para que possamos aproximar nossos alunos a diferentes realidades sociais, de perspectivas de mundo e compreensões acerca do seu próprio “eu”.
Utilizar a produção dos povos tradicionais é uma forma de trazê-lo a vista e fazê-los presente em nosso cotidiano. Nesse caso, a leitura a partir de textos literários propiciam um protagonismo que outrora foi substituído por padrões distintos a nossa realidade. Fazendo um uso crítico delas, teremos a oportunidade de fomentar em nossos alunos a capacidade de compreender o outro e suas diferenças, consequentemente, formando um sujeito despido de achismos e preconceitos.
Nesse sentido, a produção literária dessas populações é uma importante ferramenta na luta contra a manutenção da lógica colonial e em prol da emancipação da colonialidade que nos assola desde o nascimento, visto que conhecer para reconhecer pode ser alcançado através de textos que nos façam apreender o ponto de vista do outro. Ressaltamos que, no cenário amazônico, isso nunca foi tão urgente, pois, além de problemas com a aceitação de nossa própria história, cultura e identidade, esse homem e mulher amazônico foi embalado por narrativas mentirosas e criminosas, propiciadas por um jogo de interesses de determinadas classes sociais, e compreende o indígena de forma pejorativa, assim como as suas lutas.
Por fim, as questões coloniais e etnocêntricas que ainda permanecem, bem como, auxiliam para produção e reprodução de estereótipo, violência e negação devem ser sumariamente combatidas. Nesse sentido, utilizar os escritos como os de Márcia Kambeba, Graça Graúna, Ailton Krenak, Daniel Munduruku e tantos outros autores indígenas, é um ato de protagonizar e torna-se resistência diante do padrão de poder mundial universalista, conservador, xenofóbico e preconceituoso.
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