Este artigo aborda a questão da educação em espaço prisional e apresenta reflexões decorrentes de pesquisa sobre a experiência vivida por mulheres presas e agentes, no Presídio Feminino Madre Pelletier (PFMP), em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Nesse presídio, foi ofertado, entre 2006 a 2009, para mulheres em situação de aprisionamento, funcionários e agentes, o curso em nível superior de Serviço Social sob a responsabilidade e iniciativa do Centro Universitário Metodista do Instituto Porto Alegre (IPA).
Em 2005, o IPA propôs à Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) a realização de parceria para a criação de uma turma de ensino superior para as apenadas do PFMP. Dado o interesse das partes, realizou-se um levantamento preliminar entre as quatrocentas mulheres presas, a fim de se verificar a escolaridade. Os resultados mostraram, naquele momento, a desigualdade de acesso à educação: no presídio, com mais de quatrocentas mulheres presas, vinte e cinco possuíam o ensino médio concluído (conforme o Projeto Político Pedagógico do IPA). Segundo Moura (2019), após mais de 10 anos da experiência compartilhada neste artigo, essa desigualdade se mantém nas prisões brasileiras, em todos os níveis educacionais.
A proposta da universidade era a organização das turmas com um número maior de estudantes e decidiu-se que para garantir a viabilidade da proposta as vagas não completadas pelas apenadas seriam destinadas a agentes prisionais e funcionários (as) da própria SUSEPE.
Reunidas as vinte e cinco mulheres com a Coordenadoria de Extensão Universitária e a Reitoria do Centro Universitário Metodista, com base no levantamento realizado, ofereceu-se às candidatas a oportunidade de optar entre quatro cursos: Administração, Serviço Social, Direito e Pedagogia. As 25 detentas decidiram pelo curso de Serviço Social e, neste caso, a opção delas foi respeitada e determinou o curso a ser feito pelos demais (funcionários/as e agentes).
A turma foi composta por quarenta e duas pessoas, sendo vi5nte e três presas (duas foram reprovadas no vestibular) e dezenove funcionários (as) da SUSEPE. Funcionários e agentes foram selecionados por não terem o ensino superior e por atenderem aos critérios para comprovação da “carência” nos termos estabelecidos pela Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) e pelo regulamento de bolsas do Centro Universitário. O curso realizado no presídio deu-se na modalidade presencial e regular. As aulas aconteciam à noite, nas dependências do presídio para onde os docentes da Universidade se deslocavam diariamente e teve duração de quatro anos (2006 a 2009).
A metodologia utilizada foi qualitativa do tipo teórico empírico e constituiu como material de análise as entrevistas e os registros feitos em diário no acompanhamento das atividades do curso. Trata-se de um estudo de caso realizado conforme preleciona Ventura:
Para os estudos de caso naturalísticos ou que priorizam a abordagem qualitativa da pesquisa, as características consideradas fundamentais são a interpretação dos dados feita no contexto; a busca constante de novas respostas e indagações; a retratação completa e profunda da realidade; o uso de uma variedade de fontes de informação; a possibilidade de generalizações naturalísticas e a revelação dos diferentes pontos de vista sobre o objeto de estudo VENTURA, 2007, p. 384)
O objetivo geral do estudo foi compreender como se daria a experiência da oferta de ensino superior no contexto prisional e como objetivos específicos, analisar as condições em que a formação se daria no interior do presídio e ainda refletir sobre a viabilidade do espaço para formação profissional em nível superior. Além disso, este trabalho se justifica pelo caráter inovador da experiência e pela relevância de se buscar, por meio da educação, desespacializar a prisão como destinada unicamente ao sistema prisional.
A prisão pensada a partir da epistemologia do sul e do pensamento abissal
A experiência relatada neste artigo é lida a partir da epistemologia do sul e do pensamento abissal propostos por Boaventura de Souza Santos (2009). As contribuições do autor colaboram para compreender o contexto do cárcere, lócus de uma experiência social que produz um contraponto a verdades estabelecidas utilizadas, muitas vezes, para manter as prisões com a dimensão territorial apenas ligada à segurança, distanciando esses territórios de uma construção algo mais alinhada às próprias aspirações constitucionais; desvalendo-se, portanto, de explorar possibilidades da coexistência da segurança e da educação numa demonstração de relações possíveis. Isso posto, o artigo busca compreender a prisão como espaço para formação em nível superior, a partir da experiência que aproximou, em uma mesma turma, mulheres em situação de aprisionamento, agentes e funcionários.
Nesta experiência, se pode enxergar a própria efetivação daquilo que Giorgio Agamben chamou de profanação, termo utilizado pelo filósofo para indicar acerca da necessidade de conferência de novos usos para questões sacralizadas, não dizer, estigmatizadas. Assim, parte-se da compreensão que a própria epistemologia do sul, bem como, o território cárcere enquanto espaço de saber, são concreções da profanação, de um lado, do sistema mundo que concebe o saber de maneira unívoca, de outro, do espaço do cárcere que neste estudo é ressignificado, profanado, em idioma do autor italiano.
A profanação implica (...) uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso (...) desativa os dispositivos de poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado. (AGAMBEN, 2007, p. 68)
A realidade estudada se enquadra na lógica da epistemologia do sul, aqui, apontada pela desumanidade com a qual as mulheres privadas da liberdade convivem diariamente (BRASIL, 2017; SOUZA, NONATO, FONSECA, 2020). Assim, o campo empírico a que esse estudo se dedica parece apropriado para compreender as relações sociais com uma expressiva importância tanto para desacreditar e negligenciar direitos, quanto para produzir contribuições significativas para que o cárcere se constitua como um espaço destinado a segurança e se reconfigure como, também, possibilidade educativa.
Neste mesmo rumo, acerca da noção de espaço, importante a consideração de Yi-Fu Tuan quando ensina acerca da relação espaço-lugar, aquele, se apresentando como um lugar aberto e de liberdade, dando ares de ação, ao mesmo tempo em que traz o medo e a vulnerabilidade; este, se mostra como um ponto algo mais protegido, fechado, culturalmente tocado; contudo, importa-nos aqui as flutuações que ambos os termos trazem e, por isso mesmo, importam na direção de um olhar profanado/descolonizado do espaço-lugar cárcere:
O espaço é um símbolo comum de liberdade no mundo ocidental. O espaço permanece aberro; sugere futuro e convida à ação. Do lado negativo, espaço e liberdade são uma ameaça (...) O espaço aberto não tem caminhos trilhados nem sinalização (...) é como uma folha em branco na qual se pode imprimir qualquer significado (...) O espaço fechado e humanizado é lugar. Comparando com o espaço, o lugar é um centro calmo de valores estabelecidos. Os seres humanos necessitam de espaço e lugar. As vidas humanas são um movimento dialético entre refúgio e aventura, dependência e liberdade. No espaço aberto, uma pessoa pode chegar a ter um sentido profundo de lugar, e na solidão de um lugar protegido, a vastidão do espaço exterior adquire uma presença obsessiva. (TUAN, 2013, p.72)
A epistemologia do sul e o pensamento abissal se manifestam no campo empírico por meio das práticas e dos atores envolvidos no projeto desenvolvido pelo IPA e são apropriados para compreendê-lo por permitir entender que diferentes tipos de relações sociais podem dar origem a diferentes epistemologias. Tais diferenças sociais e epistemológicas, muitas vezes, dão origem às tensões presentes na experiência social e serão aqui refletidas. Neste sentido, a epistemologia do Sul faz parte dos contributos teóricos do pensamento de Santos (2009), cuja matriz passa pela explicitação da epistemologia do sul e da linha abissal que se apresenta na constituição das cidades e que determinam os incluídos e os excluídos; os cidadãos e os não cidadãos; o que é considerado legal e ilegal; enfim, os “do lado de cá” e os “do lado de lá” dessa linha.
A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível (SANTOS, 2007, p. 1)
Compreender a epistemologia do sul, como proposta por Santos (2009), exige entender que as experiências sociais produzem e reproduzem conhecimento e que esse movimento pressupõe uma ou mais epistemologias, as quais emergem das relações sociais que podem ser consideradas fontes epistemológicas por excelência.
Nessa perspectiva, epistemologia, portanto, seria toda a noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido. É por via do conhecimento válido que uma dada experiência social se torna intencional e inteligível. Não há, pois, conhecimento sem práticas e atores sociais. Segundo Santos, “como umas e outras não existem a não ser no interior de relações sociais, diferentes tipos de relações sociais podem dar origem a diferentes epistemologias” (2009, p. 9).
Por essa razão, consideramos que as práticas e relações sociais ocorridas no contexto do cárcere são importantes fontes epistemológicas. Santos considera, ainda, que, as relações sociais são “culturais (intracultural e intercultural) e políticas (representam a distribuição do poder que se dá de forma desigual), qualquer conhecimento válido é sempre contextual, tanto em termos de diferenças culturais quanto em termos de diferenças políticas” (2009, p. 10). Portanto, as experiências sociais, constituídas por vários conhecimentos, são consideradas a partir de critérios próprios de validade e são construídas pelas experiências territoriais dos sujeitos envolvidos.
Considera-se que a epistemologia dominante é uma epistemologia contextual assentada na diferença cultural e política. A pretensão de universalidade que ignora as diferenças, afirma Santos (2009), configura-se como resultante de “uma intervenção epistemológica que só foi possível com base na força com que a intervenção política, econômica e militar do colonialismo e capitalismo modernos se impuseram aos povos e culturas não ocidentais e não cristãos” (ibidem, p. 10).
A dupla dominação cultural e política ocorre na sociedade de tal forma que descredibiliza e até suprime práticas sociais de conhecimentos contrários ao pensamento colonizador. Como, por exemplo, a ideia de que as prisões não sejam territórios próprios também da educação. Recorrendo a Santos (2009), pode-se afirmar essa prática como epistemicídio, ou seja, conhecimentos focados no interesse social são substituídos por conhecimentos estranhos e ditos universais.
O ouvido é o ponto final e inicial da pesquisa. “O início, o fim e o meio”, diria o místico Raul Seixas – que por ser considerado como tal, não poderia comparecer entre os corifeus da construção do conhecimento. A razão, encenada pela saída da caverna de Platão, nunca mais cessou de criar margens que não devem ser exploradas pelo alto comissário do saber. Assim, restam estabelecidas, linguagem, método, prazos e esferas de pesquisa, e aí, talvez, o papel real da pesquisa não seja alcançado, o qual, acreditamos, ser o da própria invenção: pesquisar o impesquisável, explorar o que ainda não foi tocado e, sobretudo, deixar falar um idioma ainda não traduzido. Escutar. De uma maneira menos violenta, talvez buscar deixar vir, das ruas, do gueto, da favela, do escuro, da mulher, do gay, do bárbaro, de todo aquele que vem e que, por causas explicadas cientificamente, costumeiramente não têm vez nesse diálogo. Quase sempre sem cor, sem dor, sem cheiro, insípido e excludente como a injeção letal usada na pena de morte. (NOGUEIRA et. tal. ,2016, p. 41)
O projeto colonizador procura homogeneizar o mundo, adotando práticas únicas para todo um sistema social. Para tentar resgatar experiências sociais vituperadas, Santos propõe a epistemologia do sul que se vale do sentido metafórico para traduzir uma proposta de emergência de experiências culturais e políticas que sobreviveram à dominação colonial e reinventam espaços homogeneizantes como o da prisão.
Aderir à epistemologia do sul pressupõe, segundo Santos (2009), aprender que existe o Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a partir do Sul e com o Sul. Tais orientações possibilitam validar conhecimentos e pessoas que existem e emergem do sul, até então, considerados inválidos, perigosos e inexistentes. Ao mesmo tempo, considerar que a epistemologia, exclusiva à ciência e a determinados grupos, validando seus conhecimentos e saberes, é em si contraditória. Tal contradição permite variações e possibilidades para construção de alternativas epistemológicas contra-hegemônicas e anticolonialistas.
Para Santos (2009), a epistemologia ocidental se alicerçou na base das necessidades de dominação colonial e se apoia em um pensamento abissal no qual linhas abissais dividem as experiências, os conhecimentos, os saberes, os direitos e os atores sociais entre invisíveis e visíveis. Os visíveis representam os do “lado de cá da linha abissal” que são os úteis, válidos e aceitos como incluídos; e os invisíveis identificados como os do “lado de lá da linha abissal” que são os inúteis, os perigosos, os esquecidos:
As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: O universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’. A divisão é tal que ‘o outro lado da linha desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível (SANTOS, 2009, p. 23).
A linha abissal constitui, assim, um divisor de águas entre a sociedade civil e a sociedade incivil, além de consistir num sistema de distinções visíveis e invisíveis que se sustentam e são validados pelo aparato do direito moderno e pelo aparato epistemológico.
O aparato do direito moderno – prescrições, regras, laudos periciais, referendos, pareceres, leis, decretos, normas etc. – determina e “é determinado por aquilo que conta como legal e ilegal” (Santos, 2009, p. 26). Instituindo, desse modo, somente “duas únicas formas relevantes de existência perante a lei” (ibidem, p. 26): a dualidade do legal e do ilegal.
Portanto, a prisão pode ser considerada abissal na medida em que não se admite a possibilidade de outras experiências sociais em seu contexto, limitando-se a reprodução da criminalidade em um movimento evidente de exclusão social e não de reinserção social, como deveria ser.
Assim, a exclusão torna-se simultaneamente radical uma vez que seres sub-humanos não são considerados sequer candidatos à inclusão social. A humanidade moderna não se concebe sem uma sub-humanidade moderna. A negação de uma parte da humanidade é sacrificial e excludente na medida em que constitui a condição para a outra parte da humanidade se afirmar enquanto universal (SANTOS, 2009, p. 30-31).
As condições das prisões brasileiras e de vida das pessoas presas no interior das instituições, bem como a negação do direito à educação e os cerceamentos da prisão que, muitas vezes, negam a humanidade e alcançam as salas de aula, têm sido expostas e denunciadas em diferentes estudos como os de Carreira (2009), Ireland e Lucena (2013), Onofre e Julião (2013) e Julião (2016).
Reafirma-se, assim, a desconsideração social que se tem em relação a determinadas pessoas, grupos sociais ou ainda determinados conhecimentos, traduz a legitimação social de práticas abissais, culturalmente reconhecidas, capazes de promover grupos incluídos e excluídos, humanidades e sub-humanidades. No entanto, a radicalidade abissal se confronta com experiências pessoais e sociais que resistem a tais práticas, conforme foi possível vivenciar no PFMP. E no mesmo sentido, Bell Hooks aponta a necessidade de um zelo pedagógico a partir do território vivido pelo discente, seu corpo, sua condição social, sua memória, ao fim, o ethos que o distingue e, portanto, o constitui no mundo:
Todos nós somos sujeitos da história. Temos de voltar a um estado de presença no corpo para desconstruir o modo como o poder tradicionalmente se orquestrou na sala de aula, negando a subjetividade a alguns grupos e facultando-o a outros (...) se os professores levam o corpo discente a sério e têm respeito por ele, são obrigados a reconhecer que estamos nos dirigindo a pessoas que fazem parte da história, E alguns deles vêm de uma história que, se for reconhecida, pode ser ameaçadora para os modos estabelecidos do saber. (HOOKS, 2017, p. 186-187)
A prisão é histórica e notadamente marcada pela repressão e deseducação social dos presos, nos instigando a interrogar o próprio sentido da Lei de Execução Penal – LEP (BRASIL, 1984). Nos perguntamos se há algum sentido na suposta ideia de ressocialização expressa nessa lei com a prática imposta por ela própria de restringir a pena a privação de liberdade. É possível ressocializar sem que o preso tenha qualquer tipo de convivência social? Não seria a prisão espaço educativo fértil para que a LEP tivesse algum significado prático? Onofre (2016) interroga sobre essa função educativa da prisão e aponta três eixos possíveis para concretude da educação em instituição prisional:
As reflexões sobre a prisão como instituição que permite a promoção de experiências educativas às pessoas que se encontram em situação de privação de liberdade caminham por três eixos: transversalidade no sistema prisional, nas práticas sociais e nas ações educativas que ali ocorrem (ONOFRE, 2016, p. 44).
Nesse sentido, a autora aponta que a transversalidade permitiria quebra de fronteira da prisão com o mundo e as práticas sociais permitiriam interações entre indivíduos de modo que criem novas identidades, modos de ser, pensar e agir. Assim, as práticas sociais, dentro de uma instituição destinada a privação de liberdade, podem “(...) tanto enraizar como desenraizar ou levar a criar novas raízes” (ONOFRE, 2016, p. 47). E, por fim, as ações educativas nas prisões, além de ser uma garantida de direito humano, podem representar a possibilidade para a pessoa ser mais do que uma pessoa condenada; a educação seria “uma intervenção positiva” (ibidem, p. 51) na realidade que na maioria das vezes se limita ao cerceamento.
É evidente que ao pensar a educação em espaços prisionais, não se tem a intenção de atribuir à educação a função redentora, mas em reconhecer a sua importância para instaurar mecanismos balizadores no campo de força existente entre a emancipação social (que aponta para a integração social) e a reguladora (que aponta para processos excludentes).
A perspectiva da educação nas prisões, ainda longe de ser consolidada, parece fazer parte da agenda da crescente presença de militantes dos Direitos Humanos, situados em nível local e nacional, que cobram dos Poderes Públicos a consolidação do Estado Democrático de Direito, tornando a construção de uma política pública de segurança nacional uma emergência.
A experiência objeto deste estudo possibilitou perceber que as mulheres presas tinham consciência de que a prisão tem sido o reduto dos pobres, sentem o peso disso e fazem certos relatos entre lágrimas. Elas se preocupam com a grande probabilidade de os filhos virem a entrar no mundo da criminalidade e afirmam que se alguma coisa fosse feita, muitas mulheres não voltariam a reincidir no crime, como nos mostra o seguinte fragmento:
É assim professora, aquilo ali não recupera ninguém (choro). É um verdadeiro depósito humano. Há o ódio, a ganância... Vi o quanto o ser é esquecido. É só o ter, ter. E é por causa disso que muitos estão lá... Quando eu tava presa, eu fiz um levantamento e vi que há toda uma rede... O que é a SUSEPE? Uma estrutura enorme, cheia de cargos de confiança. A criminalidade não pode acabar, professora. Há muito interesse em jogo, então a coisa vai ficando cada vez mais complicada (choro compulsivo). Vi que quando a mulher vai presa, o marido já tá preso, e daqui a pouco o filho que ficou sozinho rouba uma bolachinha e depois tá roubando outra coisa e vai parar na cadeia também. Então, quanto menos a presa se locomover, melhor para eles. A gente fica lá esquecida... e nada muda. (Edite)
O relato de Edite (nome fictício para preservação dos participantes, conforme aprovação em Comitê de Ética), mostra como a prisão tem segregado parte da população excluída socialmente e, de forma rara, consegue exercer função educativa ou ressocializadora. Para Wacquant (2001, p. 7), “a penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um ‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo”.
Esse modelo de organização do Estado penal acentua as desigualdades sociais e de certa forma aprisiona duplamente os (as) apenados (as): com a prisão do corpo e a prisão da miséria humana. Esta é ainda mais cruel que aquela, porque se consolida com a privação de direitos que, no Estado de direito, a todos são assegurados. Enquanto a prisão do corpo pode ser temporária, a prisão social da miséria cria, muitas vezes, prisões geracionais e prisões que se perpetuam mesmo após o cumprimento da pena de privação da liberdade. Posto que as pessoas retomaram a situação de vida, anterior a prisão, marcada pela pobreza que é administrada, segundo Kilduff (2010, p. 241), pelo “acirramento das funções penais, repressivas e punitivas como forma de gestão da miséria, sendo os trabalhadores precarizados e/ou desempregados o alvo principal dessa política altamente letal”.
Essa realidade pode ser compreendida a partir das denúncias de Wacquant (2001):
Isto é dizer que a alternativa entre o tratamento social da miséria e de seus correlatos – ancorado numa visão de longo prazo guiada pelos valores de justiça social e de solidariedade - e seu tratamento penal - que visa as parcelas mais refratárias do subproletariado e se concentra no curto prazo dos ciclos eleitorais (...) coloca-se em termos particularmente cruciais nos países recentemente industrializados da América do Sul, tais como o Brasil e seus principais vizinhos, Argentina, Chile, Paraguai e Peru (p. 8).
Também, a situação de agentes e funcionários (as) deve ser considerada, uma vez que de modo muito semelhante compõem o campo da desproteção social marcado pela baixa remuneração, além da desqualificação escolar. Embora em situação muito menos degradante que as mulheres aprisionadas, os profissionais acampam também por exercer um trabalho perigoso e estressante. Sem contar que são, muitas vezes, condicionados a uma ideia de dominação totalitária e autoritária, socialmente construída, que trabalha com a noção de que a prisão precisa ser degradante e desumana para que com o sofrimento a pessoa não venha a cometer novos crimes. Isso acaba por consolidar outros pensamentos, como: “bandido é bandido”, “nada vai mudar”. Assim, de acordo com Nunes, os profissionais que atuam no contexto prisional exercem a atividade laboral “com fortes vínculos ideológicos e pautada na forma como os grupos políticos que controlam o Estado entendem que conflitos devam ser tratados” (2014, p. 132).
Portanto, o estabelecimento da relação entre pobreza e Estado Penal; a utilização do sistema carcerário na manutenção da escalada da miséria e dos distúrbios urbanos; a prisão como segregadora de parte da população excluída; o modelo de organização do Estado Penal que acentua as desigualdades sociais; e a ideia de dominação totalitária que promove a imutabilidade da pessoa, parecem confirmar a posição de Goffman com relação à inoperância do sistema prisional, considerado por ele “como uma espécie de ‘mar morto’” (2005, p. 66, aspas do original) tanto para as pessoas presas, quanto para muitos dos profissionais que nele atuam.
Atender à crescente população prisional é um desafio da educação. Se por um lado ela é um direito constitucionalmente garantido a “todos”, por outro é preocupante a análise dos dados apontados pelo Departamento Penitenciário Nacional - Ministério da Justiça e Segurança Pública (2016), segundo o qual 51% dos presos possuem ensino fundamental incompleto e 09% Ensino Médio completo. Assim, a demanda existente de formação escolar alcança tanto a Educação Básica quanto o Ensino Superior.
Dessa forma, acompanhamos o pensamento de Onofre:
Pensar o sistema penitenciário e a instituição prisão em diálogo com outros sistemas e espaços nos parece uma forma de abrir brechas, pequenas fendas que possam anunciar possibilidades de enfrentamento dos paradoxos entre punir e educar (ONOFRE, 2016, p. 44).
Para refletir sobre esse paradoxo, tomamos como ponto de partida o pensamento de Brandão (2007, p. 7) quando afirma que “ninguém escapa da educação”. Todas as pessoas, na relação com o mundo, de modo voluntário ou não, estabelecem processos de aprendizagem e de ensino. Portanto, ensinam e aprendem. Trocam conhecimentos, experiências, compartilham dúvidas e constroem novos saberes e novas práticas sociais. A esse processo denominamos educação.
Brandão afirma ainda que:
em casa, na rua, na igreja, ou na escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender e ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias, misturamos a vida com a educação. Com uma ou com várias: educação? Educações (BRANDÃO, (2007 p. 7).
No decorrer da história, o conceito de educação tem mantido a ideia de preservação da cultura, de construção e perpetuação de saberes. Assim, a educação, ou as várias “educações”, assume destaque na vida social e encarrega-se, eticamente, de fazer parte da vida das pessoas, proporcionando a elas possibilidades de viver e conviver melhor na sociedade.
O caráter social da prática educativa ganha relevo, o que leva à sociologia da educação, com maior ou menor variação, a apontar a educação como Rodrigues sintetiza:
A educação é o elemento da vida social responsável pela organização da experiência dos indivíduos na vida cotidiana, pelo desenvolvimento de sua personalidade e pela garantia da sobrevivência e do funcionamento das próprias coletividades (RODRIGUES, 2008, p. 9).
As contribuições freireanas (FREIRE, 1999, 2003) levam-nos a assumir que a educação no cárcere pode-se constituir como uma experiência humanizadora, reflexiva e transformadora na qual os sujeitos envolvidos (mulheres apenadas, funcionários (as), agentes penitenciários, direção, professores e professoras, pesquisadora) compartilham saberes, se colocam mutuamente como responsáveis pela corresponsabilidade no processo educativo.
Louro (2008), ao discutir a escolarização dos corpos e das mentes, afirma que: “os sujeitos não são passivos receptores de imposições externas. Ativamente, eles se envolvem e são envolvidos nessas aprendizagens – reagem, respondem, recusam ou as assumem inteiramente” (2008, p. 61). Esse pensamento expressa nossa compreensão sobre como se dá o processo educativo que ocorre dentro da escola ou fora dela. O aspecto relacional e construtivo dos saberes e das práticas socioculturais integram nossa compreensão sobre a educação e compõem de forma indissociável os processos educativos.
As poucas experiências de educação prisional em nível superior no cárcere traduzem, de certo modo, um cenário ignorado pelos sistemas de aprisionamento e de educação. A baixa escolaridade das pessoas presas, registrada em sucessivos relatórios anuais do Departamento penitenciário desde 2004 remete supostamente a um raciocínio simplista sustentado pela ausência de demanda em condições de acesso a esse nível de ensino, considerando-se a premência pela educação básica conforme dados recentes relativos à escolaridade (MOURA, 2019).
A pouco oferta da educação superior no cárcere evidencia como ela é vista, a partir de valores e concepções de uma sociedade excludente. Por essa razão, não nos é possível dissociar a possibilidade do ensino superior das discussões em torno da educação prisional.
Ao pensarmos a prisão como um espaço educacional, é necessário compreendê-la como um espaço que pode ser compartilhado com profissionais, garantindo tanto a possibilidade de educação continuada quanto a possibilidade de formação coletiva em torno de pessoas que, embora em condições diferentes, comungam das mesmas demandas por formação. Todas as práticas penais e educacionais são também práticas sociais que, sendo valorizadas no contexto da prisão, podem possibilitar novas oportunidades de integração social. Dessa forma, cabe-nos instigar possibilidades e provocar novos avanços em torno das discussões sobre a educação em contexto prisional. Cabe-nos sobretudo pensar a educação nas prisões levando em consideração as desigualdades sociais, que inquietem e aguçam nosso olhar.
É preciso ainda ter como ponto de partida a subversão que a educação no contexto do cárcere poderá causar na vida, trajetória, nas formas das mulheres apenadas serem reconhecidas socialmente. E também para os profissionais poderá possibilitar muito maior compreensão de suas funções como polo importante das relações que se estabelecem no interior das prisões. No entanto, pensar a educação nesses termos, implica adotar uma postura que considere não só levar processos educativos ao cárcere, mas ter uma postura política sobre o tipo de educação que será levada para lá, além de como fazer para que tais processos educativos possam refletir os interesses e as experiências das pessoas que integram o sistema prisional.
Aprendizagens na experiência coletiva do ensino superior
As aprendizagens vivenciadas pelas mulheres presas, pelos (as) agentes e funcionários da prisão, objeto de discussão nesta seção, foram captadas por meio de entrevistas realizadas com 23 detentas (todas as matriculadas) e 5 profissionais ligados a SUSEPE (1 agente e 4 funcionárias) que se dispuseram a participar do estudo).
Dois dos muitos relatos podem introduzir este tópico, pois dimensionam de certo modo a experiência de se vivenciar o ensino superior dentro do PFMP.
Quando o curso começou, pensei que a Universidade ia tomar conta do Presídio... e aí tudo aqui ia ser diferente. (Andressa)
Esse povo tem que saber que aqui não é escola, aqui não é universidade, aqui é cadeia, melhor que o IPA vá cuidar de seus alunos prá lá. (Marcilene)
Andressa (presa) e Marcilene (funcionária) apresentam duas visões diferentes sobre a chegada da universidade naquele espaço: na fala de Andressa, depreende-se esperança; na de Marcilene, receio e uma indicação de que a universidade não era ali bem-vinda.
A inserção no campo de pesquisa, possibilitou acompanhar o esforço, tanto do IPA, quanto da penitenciária, para que o curso de ensino superior que ali se instalava tivesse condições próximas do campus da Universidade. Assim, a sala onde ocorriam as aulas foi equipada com mesas, cadeiras, carteiras iguais às do campus universitário central e a biblioteca do presídio recebeu novos títulos, conforme exigido pelo Projeto Pedagógico do IPA.
Embora o contrato para a realização do projeto tivesse sido devidamente elaborado e assinado pelos representantes institucionais, a operacionalização dele não foi nada fácil. No âmbito interno, os (as) agentes e os funcionários (as) eram capazes de complicar e inviabilizar os processos e, muitas vezes, o fazia. Estudo realizado por Oliveira confirma que:
Nessa perspectiva, devem ser destacados aqui os depoimentos dos sujeitos da pesquisa a respeito das dificuldades que enfrentam durante a realização de procedimentos de segurança no trajeto até a cela de aula. Conforme os depoimentos de alguns presos, os agentes de segurança penitenciária tendem a dificultar o seu acesso às atividades de educação, contrariamente ao discurso oficial expresso nos documentos e normativas que tratam da educação nas prisões (OLIVEIRA, 2013, p. 962).
Diante dessa situação, foi necessário ter uma pessoa que assumisse a função mediadora entre universidade e presídio, porta-voz do IPA, que resolvesse ou tentasse resolver em nível micro os problemas que apareciam no cotidiano e que se fossem levados para serem resolvidos no âmbito da gestão universitária e prisional, estariam sujeitos a processos burocráticos e, provavelmente, quando resolvidos, a situação poderia ter se agravado muito mais.
Certo é que a relação da educação com o contexto prisional é uma relação difícil e fica condicionada até a quem está trabalhando na guarda naquele dia. Se fosse um simpatizante do projeto, a equipe do IPA era bem recebida e as mulheres eram chamadas com voz audível para que se deslocassem das galerias para a sala de aula. Se, ao contrário, os (as) funcionários (as) do dia não aceitassem bem a ideia de a universidade realizar o projeto naquele espaço, o trabalho, muitas vezes, era inviabilizado porque demoravam a abrir os portões e as galerias; chamavam as mulheres apenadas com voz baixa, para que não ouvissem ou nem iam buscá-las no horário para participarem das aulas.
A efervescência das relações sociais que se davam no interior do PFMP, durante a realização desta pesquisa, mostra que tais relações foram profundamente marcadas por formas diversas de lutas e resistências como nos relatam as alunas:
Professora, tinha dia que a gente ficava lá... arrumada para ir para aula. Os agentes não apareciam lá pra buscar não, mas a agente sempre esperava arrumada. Às vezes os professores não iniciavam a aula até eles irem lá buscar. (Edite)
Eu sempre gostei de estudar. Fui boa aluna. Tinha dia que eu pedia um banquinho para sentar e fazer os trabalhos, e eles por implicância mesmo não davam. Às vezes eu chorava até que alguns ficavam com dó de mim e me davam. (Rosa)
Dentre tantas, a mais tensa situação vivida era o fato de as mulheres privadas de liberdade e os agentes e funcionários da SUSEPE conviverem cotidianamente em uma mesma sala de aula. Há, sem dúvida, nessa convivência, um estranhamento lógico, pois, em um dado horário, o agente é aquele que efetiva a segurança, tem o poder da chave, e, em outro, era o colega de turma.
Na análise dessa experiência educativa, constatamos por meio das observações realizadas e entrevistas que houve uma reconfiguração das relações entre funcionários (as), agentes e apenadas que fizeram parte do projeto e que estudavam juntos.
Registros do diário de campo, feitos durante as observações in loco apontam que as relações entre os (as) próprios (as) agentes e funcionários (as) que estudam e aqueles que não estudavam se tornaram muito complicadas. Foram estabelecidos dois grupos marcados por certo mal-estar. As justificativas para esse mal-estar apontadas por eles iam desde “ciúme” e “inveja” a “sentimento de inferioridade” ou de inconformidade por alguns colegas se colocarem próximos de “bandidos”.
Havia, de certo modo, novas relações entre eles marcadas pela inserção no ensino superior e pelos conhecimentos que eram adquiridos no curso de serviço social (bastante reflexivo e questionador da questão social) que foram definidores de um novo perfil profissional, muito mais respeitoso e consciente da função que exerciam.
Assim, vimos que, embora houvesse o estigma em relação às mulheres presas e a explícita sanção social contra elas (manifestadas pelas poucas visitas que recebem e pelas condições de indignidade humana em que vivem), existia uma minoria de funcionários (as) que torna um pouco mais respeitoso aquele espaço.
Ao mesmo tempo em que funcionários (as) e agentes que não conviviam com as presas mantiveram o preconceito inicial e a rejeição em relação às apenadas, eles (as) começam também a realizar comparações com outras formas de relações existentes entre eles (as) e, por vezes, se incomodaram ainda mais, pois se depararam com a realidade de alguns que tinham menor escolarização que as detentas.
Contudo, os agentes e funcionários (as) que conviviam diariamente na sala de aula com as mulheres privadas de liberdade passaram a respeitá-las e foram responsáveis pela motivação, pelo empréstimo de livros, pela parceria na produção de artigo científico e tantas outras relações positivas que não consideraríamos “uma amizade”, mas definiríamos com as palavras da Ana Paula:
Lá não tinha agente, funcionário, senhor, senhora, éramos todos ‘colegas’ e o que eu aprendi com esse curso do IPA é que é possível conviver com o outro, mesmo que ele seja diferente de mim, desde que eu respeite e seja respeitada. (Ana Paula)
Esse tipo de mudança é objeto de comparação de Clarisse, funcionária, que ao refletir sobre a sua presença, em sala de aula, junto às mulheres presas, relembra seu modo de pensar e seu processo formativo:
Porque no meu ideário, eu tinha claro que bandido é bandido e não vai mudar nunca, porque é assim que a sociedade pensa e porque é assim que o próprio curso que fiz quando fui aprovada no concurso, a gente tinha aula de direito, até de sociologia, a gente aprendia que tem que ser assim. (Clarisse)
Durante a realização desta pesquisa, tornou-se muito interessante acompanhar as aulas ministradas na penitenciária. Começamos a ouvir as conversas durante os intervalos de aula e a verificar como a convivência entre agentes, funcionários e presas se constituíam em valiosas aprendizagens:
Eu vi que tinha agentes que te valorizavam... (Ana Paula)
A princípio houve aquela hostilidade. Têm agentes que querendo uma promoção..., tavam a fim de arrebentar agente, outros não, eles chegavam e conversavam: tô confiando em ti, não pisa na bola. (Edite)
Na sala de aula, não tinha agentes, funcionários, tinha colegas (Lúcia)
Essas aprendizagens marcadas pelas relações com o outro eram geradoras de confiança e de novas relações. Durante algumas conversas, registradas em diário de campo, as presas declaravam compreender a função dos agentes e que, embora tivesse sido difícil nos primeiros dias, superaram as diferenças, os medos e enfrentaram juntos o desafio de conseguirem realizar um curso superior no espaço inimaginável como o presídio.
Entretanto havia tensões que marcavam o acesso de agentes e funcionários à sala de aula:
Professora a pressão é muito grande. Algumas vezes somos impedidas de entrar na sala de aula sob a alegação de que estamos a correr risco de vida. Essa fala ameaçadora constante, as buscas que são feitas repentinamente, o medo que nos é imposto é tremendo. Há muita inveja, um desejo grande de que não convivamos. Só não desisti por considerar que se acontecer alguma coisa comigo, quem sairá perdendo são elas e porque não percebo nas colegas que são presas nenhuma intenção de nos fazer qualquer mal. (Claudia)
Não obstante a essa fala, os (as) agentes penitenciários (as) sentaram-se durante as aulas de um lado e as presas de outro, revelando talvez a ocultação do confronto existente. Contudo, no decorrer das aulas, havia muitos momentos de desabafos, momentos em que os agentes assumiam a posição de conselheiros, acalentando e consolando “as companheiras”. Assim, a “professora conseguia transformar a fala de ambos os lados em instrumento didático-pedagógico e procurava aprofundar o conteúdo estudado e avançar na teorização (Diário de campo)
O medo, parece ter sido amenizado pela convivência, o que possibilitou aos agentes e funcionários (as) acompanharem as mudanças ocorridas tanto nas presas ainda reclusas, quanto naquelas que, tendo ido para o regime semiaberto, estudavam no campus central, trabalhavam e conseguiram mudar a vida “da água para o vinho” (Elena- funcionária).
Pesquisadora: Você fala de mitos, de lendas que existem em relação ao ambiente e às presas. Como isso foi desmistificado, como isso foi vencido, como vocês conseguiram superar isso? E quais eram esses mitos?
Elena: Eu vou relatar uma experiência minha, pessoal, foi um dia que a professora Monica até solicitou que fizéssemos um grupo, na cadeira de atelier, porque a gente trabalha muito em grupo, aí uma detenta que é minha colega até hoje que sempre eu ouvia falar coisa dela, que ela era muito perigosa e tal, né? Ela veio para o meu grupo. Aí eu fiquei com muito medo, ela sentou ao meu lado, até é uma bobagem da minha cabeça, justamente por estar naquele local, tinha caneta e ela pegou a caneta, e eu imaginei que ela ia pegar aquela caneta e grudar em mim (risos). Mas aí eu tinha uma bala, ela disse seu nome é Helô não é? Eu disse é. Ela disse tu me dá essa bala, eu disse claro, dou até mais, tenho aqui na pasta, e ali começou a nossa... não vou dizer amizade, mas companheirismo. Hoje nós já temos um pouco mais de intimidade, ela colocou um apelido em mim, eu aceitei o apelido dela, agora na festinha, dia 19 de dezembro, que nós tivemos, surgiu assim, a gente tava tirando foto e ela disse, mas ninguém está tirando foto comigo, que preconceito é esse? Eu disse: que preconceito? Nunca tive preconceito contigo, vamos lá tirar a foto, tiramos a foto, depois outras colegas vieram para tirar a foto.
Pesquisadora: Que fatores você atribui a essa mudança, essa superação dessas lendas e medos?
Elena: Acho que é o fator querer mudar, e a própria aproximação e o olhar, o olhar que muda... porque quando você ouve falar em preso, imediatamente a sociedade já fala, eu escuto até hoje, outro dia mesmo estava conversando com uma pessoa que eu conheci que eu estudava dentro de uma penitenciária, ela disse, mas você estuda o que lá? Está aprendendo o que lá? A roubar, a matar? Eu disse não, muito pelo contrário, eu aprendo muito com meus colegas de aula, meus mestres e até com as presas eu aprendo, e aprendo e muito, tudo é uma vivência nova, e a gente procura resgatar o que tem de melhor, e procura fazer um ambiente agradável, as próprias detentas mudaram bastante.
Foi possível, também, perceber que havia um preconceito em relação aos agentes e aos funcionários que aceitavam a condição de colega das presas:
No princípio a gente sofreu muito preconceito, pra mim, nunca vi problema. (Jane, funcionária do Presídio Feminino)
Além disso, percebemos preconceitos dos agentes e funcionários em relação às mulheres presas. Contudo, nas entrevistas, eles não se reconheciam vivendo um conflito, um enfrentamento com seu próprio preconceito, ou seja, reconheciam que havia preconceito do colega, mas não o seu próprio:
Tem muito preconceito ainda nos colegas de curso, mas sempre procuro lembrar a todos que ninguém está livre de errar e vim parar aqui dentro. Então, esta experiência, ela é realmente, vem para testar nossas capacidades. Posso falar de mim, e estou vivendo estas duas facetas da vida. (Thomaz)
Nas entrevistas realizadas, as alunas apenadas, por diversas vezes, se referiram a Thomaz (agente penitenciário que atuava no Presídio há muitos anos) como a “parte boa dos agentes”, humano e amigo; por quem tinham profundo respeito, fato que pudemos comprovar tanto durante os anos de observação, quanto durante a entrevista realizada com ele. A cada encontro, sempre o víamos realizando seu trabalho, mas com profundo respeito pelas pessoas. Na entrevista, ele demonstra compreensão da inadequação da estrutura penitenciária para acolhimento e ressocialização da mulher apenada:
No decorrer deste trabalho, procuramos mostrar como as mulheres, os (as) funcionários (as) e os (as) agentes conseguiram constituírem-se como colegas e como profissionais do Serviço Social.
Portanto, foi possível, identificar que a convivência entre as presas, agentes e funcionários/as se constituiu como uma aprendizagem transformadora das mentalidades e das práticas sociais. Além disso, a experiência analisada mostrou que é possível o presídio ser menos segregador e coexistir com outro sistema como o da educação.
Assim, conclui-se que a prisão pode assimilar novo conceito: lugar de (re) construção pessoal e de passagem para novas oportunidades na sociedade. Esse “lugar”, entendido aqui metaforicamente, representaria um “ponto”, início de uma nova reta, nova trajetória, que para a maioria das pessoas aprisionadas foi inviabilizada pelos processos sociais que antecederam a prisão. A linha abissal estabelecida entre os que se encontram do lado de lá ganharia, assim, um significado de recomeço, de potencialização do lugar, do tempo das pessoas privadas da liberdade de ir e vir. A prisão passaria a ser um lugar para novas formas de liberdade, especialmente, aquelas ligadas a sólidos processos de construção de conhecimentos.
Consideramos, também, que a desespecialização da prisão, enquanto espaço concebido para aprisionar, tenha sido importante fator de aproximação entre os (as) estudantes integrantes do Projeto em análise. Ter uma movimentação universitária dentro do presídio se apresentou como possibilidade de aproximação, formação e aprendizagens marcada por relações de alteridade, brechas possíveis em um sistema totalmente fechado.
Assim, apontamos o presídio como um espaço importante para desenvolvimento dos diversos níveis de educação, especialmente, o nível superior, o que pode vir a representar um ponto de partida importante para sinuosidade da linha abissal.
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