Metadados do trabalho

As Contribuições De Paulo Freire Para A Formação Docente: Uma Experiência Do Parfor/Cfp/Ufrb/Castro Alves Com Jovens, Adultos E Idosos

Irandir Souza da Silva; Maria Eurácia Barreto de Andrade; Sineide Cerqueira Estrela

Este artigo apresenta reflexões sobre o trabalho desenvolvido no curso de Pedagogia, do CFP/UFRB, turma PARFOR – Castro Alves, por meio de um trabalho na perspectiva remota, em tempos de pandemia da Covid-19, utilizando a plataforma Google Meet, tendo como centralidade a Pedagogia de Paulo Freire. Para tanto, objetiva refletir sobre a experiência vivenciada no componente optativo “Diálogos sobre Alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos” destacando os caminhos trilhados no processo e os impactos causados às professoras cursistas e comunidade interna e externa.  Os dados autorizam-nos afirmar que a experiência, para além das aprendizagens promovidas, transcenderam os muros da Universidade, contemplando outros espaços-tempos, por meio de um trabalho freireano, alicerçado no diálogo e na colaboração.

Palavras‑chave:  |  DOI: 10.37444/issn-2594-5343.v4i1.181

Como citar este trabalho

SILVA, Irandir Souza da; ANDRADE, Maria Eurácia Barreto de; ESTRELA, Sineide Cerqueira. As Contribuições de Paulo Freire para a Formação Docente: Uma Experiência do Parfor/CFP/UFRB/Castro Alves com Jovens, Adultos e Idosos. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2021 . ISSN: 1982-3657. DOI: https://doi.org/10.37444/issn-2594-5343.v4i1.181. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/306-as-contribui%C3%A7%C3%B5es-de-paulo-freire-para-a-forma%C3%A7%C3%A3o-docente-uma-experi%C3%AAncia-do-parfor-cfp-ufrb-castro-alves-com-jovens-adultos-e-idosos. Acesso em: 16 out. 2025.

As Contribuições de Paulo Freire para a Formação Docente: Uma Experiência do Parfor/CFP/UFRB/Castro Alves com Jovens, Adultos e Idosos

O ano de 2021 está sendo marcado por várias crises e inúmeros retrocessos das mais diversas ordens, sobretudo, de forma geral, na Educação e, especificamente, na Educação/Alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos. Ao mesmo tempo que o país e o mundo sofrem com o luto de tantas vidas perdidas em razão da Pandemia-covid-19, a desigualdade social revela-se despidamente, com a negação de direitos constitucionais essenciais à vida, atingindo de forma veloz e cruel o público que constitui a Educação e a Alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos.

Em contraposição a todo esse momento de caos em que se evidenciam as injustiças sociais, a negação de direitos, os retrocessos do ponto de vista de conquistas históricas garantidas e que se encontram em ameaça, o ano de 2021 demarca um momento histórico, que mais do que nunca deve ser visibilizado, difundido e refletido em todas as instituições formativas: o centenário de Paulo Freire. Em meio a todo esse contexto sombrio, de negação da ciência, da democracia, da educação e até da vida, precisamos nos revestir de esperança na perspectiva freireana, precisamos alimentar as nossas ações daquilo que Freire nos mobilizou: lutar em favor da justiça social, em favor da vida, em favor da educação emancipadora e libertadora que possibilite aos homens e as mulheres o pensamento crítico-reflexivo, a fim de compreender e intervir responsavelmente a/na realidade sociocultural.

E foi exatamente neste contexto pandêmico e marcado por tantas outras crises que se deu a experiência formativa com professores em exercício do Parfor/UFRB/CFP, turma Castro Alves, com o componente optativo “Diálogos sobre Alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos”. Para tanto, esse diálogo foi entrelaçado com as ideias e pensamentos de Paulo Freire como forma de resistência, como bandeira de luta pela causa da educação, sobretudo a Educação e Alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos. Conforme anunciado por Andrade, Freitas e Santos (2019), essa é uma abordagem necessária e urgente, sobretudo nos cursos de formação de professores, de modo que

 

[...] o debate sobre os sujeitos, os contextos e o lugar ocupado pelos jovens, adultos e idosos não alfabetizados seja ampliado com a intenção de romper com o seu caráter assistencialista e, ao mesmo tempo, na perspectiva contra-hegemônica, avançar na luta pela superação da dualidade construída historicamente na educação brasileira. (ANDRADE; FREITAS; SANTOS, 2019, p. 65)

 

Este artigo visa apresentar reflexões sobre o trabalho desenvolvido no curso de Pedagogia, do Centro de Formação de Professores (CFP), da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), turma PARFOR – Castro Alves, na Bahia, destacando os caminhos trilhados no processo. Para tanto, este artigo objetivou refletir sobre a experiência vivenciada no componente optativo “Diálogos sobre Alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos” destacando os impactos decorrentes dela.

Sistematizado em quatro tópicos, este artigo busca contemplar reflexões relevantes sobre a experiência em pauta, iniciando com estas notas introdutórias, anunciando e contextualizando a experiência vivida. Em seguida, apresenta os caminhos da docência em Paulo Freire, com abordagens e reflexões relevantes acerca da formação respaldada na teoria básica da experiência: Paulo Freire. Logo após, chega o momento das reflexões sobre o processo, com o tópico intitulado “Paulo Freire, presente! A vivência”, anunciando o processo formativo vivenciado. Por fim, são apresentadas as notas conclusivas.

Espera-se que esta experiência possa contribuir para uma maior reflexão sobre a alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos e como possibilidade formativa em articulação com a teoria freireana.

 

CAMINHOS DA DOCÊNCIA EM PAULO FREIRE

 

[...] o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já não valem (FREIRE, 2005, p. 79).

 

A epígrafe que inicia as reflexões desta seção convida-nos a pensar sobre a constituição da docência, dada a importância do processo junto aos educandos para construção da sua profissionalidade. Tanto educador quanto educando são educados no processo por meio da mediação e do encontro dialógico de aprendizagens. É neste embate que vão se tornando sujeitos no processo, vão crescendo e aprendendo juntos, e o professor vai, cotidianamente, constituindo-se e assumindo seu papel social e sua militância, para a formação de sujeitos mais conscientes e livres.

No bojo dessas reflexões atravessadas por ponderações que imprimem a inseparabilidade educador/educando e a processualidade da constituição docente, vamos trilhando os caminhos com as contribuições de Paulo Freire para a materialidade da docência, buscando legitimar, no fazer pedagógico cotidiano, a educação libertadora em que “[...] tanto os professores como os estudantes devem ser os que aprendem; devem ser sujeitos cognitivos, apesar de serem diferentes” (FREIRE; SHOR, 1987, p. 46), pois discência/docência, ensinar/aprender são processos concomitantes, indissociáveis, inseparáveis, conforme anuncia Freire (1993). Em suas palavras,

 

[...] ensinar e aprender se vão dando de tal maneira que quem ensina aprende, de um lado, porque reconhece um conhecimento antes aprendido e, de outro, porque observando a maneira como a curiosidade do estudante aprendiz trabalha [...] o ensinante se ajuda a descobrir incertezas, acertos, equívocos. (FREIRE, 1993, p. 27)

           

Partindo deste ponto de vista, o cenário da sala de aula e outros espaços educativos e formativos que envolvem o movimento dinâmico de ensinar/aprender tornam-se terreno fértil para materialização de diversas aprendizagens não apenas para os estudantes, mas também para os professores inseridos no processo. O exercício da docência torna-se campo nutrido de sentido pela possibilidade de crescimento intelectual a partir da reflexão, da curiosidade, da descoberta forjada por meio de um processo revestido de diferentes saberes.

Assim, a docência se veste de significado e constrói diálogos horizontais com os estudantes, compreendendo que ambos assumem papéis importantes, distintos, porém inseparáveis e diretamente articulados. Em que pesem todos os caminhos trilhados na docência, ela se materializa e se consolida no palmilhar cotidiano junto aos estudantes e seus pares, na relação estreita com o outro por meio de um processo amoroso, afetivo e carregado de compromisso com o outro e com a sociedade. É neste movimento que se desenham ações de comprometimento com a autonomia e libertação dos sujeitos, com a possibilidade de serem “seres mais” e de escreverem novas histórias. Isso só pode ser construído por meio das ações pedagógicas democráticas, dialógicas e problematizadoras, assumidas por uma docência libertadora, conforme defendido por Freire e Shor (1987, p. 162): “A pedagogia democrática materializa-se pela ação do professor libertador que convida os estudantes para transformação, que ensina de modo dialógico e não de modo autoritário, que dá exemplo como estudioso crítico da sociedade”.

No bojo destas reflexões de Freire e Shor (1987), ao convidar para a materialidade pedagógica a partir de uma ação libertadora, o docente defende uma prática que promova a criticidade, inventividade e uma ação transformadora diante de todo cenário opressor.  Desse modo, delineia possibilidades educativas para que o sujeito aprendiz possa ser nutrido de consciência crítica de sua condição de oprimido, no intuito de promover movimentos de resistência e enfrentamentos para intervir autônoma e responsavelmente no contexto social.

Todo esse processo se reveste de sentido diante da responsabilidade dos educadores no processo formativo dos educandos que vai para além do ensino na dimensão conceitual, ou da capacidade científica, mas uma responsabilidade ética vivenciada na prática, de modo que seja testemunhada pelo estudante. É neste contexto que o(a) professor(a) pode se assenhorar de uma prática libertadora, dialógica, problematizadora e democrática, partindo da perspectiva da educação como um campo político e de direito. Uma educação humanizadora que fomente a possibilidade de libertação e emancipação do sujeito.

Sob o ponto de vista de Freire, a docência deve ser abastecida, dentre outros aspectos, de conscientização, de responsabilidade, de atitude política, de bagagem de saberes, de criticidade, de afeto e de amorosidade. Conforme anunciado por Cortesão (2018, p. 58), Freire defendeu a necessidade de que o educador seja estimulado cotidianamente a:

 

[...] conscientizar os problemas existentes e a compreender as responsabilidades pedagógicas, sociais e políticas que cabem a quem trabalha em educação. Defende que, numa atitude não submissa, não resignada, o professor procure agir. E para agir, é importante, que esteja empenhado, que seja corajoso e que esteja “armado” com uma suficiente bagagem de saberes, disponibilidade de afetos [...].

 

De fato, sob o ponto de vista de Freire, é inerente ao educador, além da bagagem de saberes, a vivência afetiva e amorosa, e esta amorosidade, conforme evidencia Fernandes (2018, p. 39), a partir do legado do referido autor, “[...] se materializa no afeto como compromisso com o outro, que se faz engravidado da solidariedade e da humildade”. É no exercício dialógico, respeitoso, ético e corajoso do educador que se materializa o amor como ato de coragem, como compromisso com a causa, conforme Freire (2005) anunciou.

A amorosidade assume centralidade na concepção freireana por estar diretamente relacionada à vida dos e com os sujeitos. Ocupa lugar de destaque por assumir condição necessária para a possibilidade de diálogo junto com a confiança. Conforme reflexão de Fernandes (2018), no cerne da amorosidade, a dialogicidade torna-se conceito fundante da teoria pedagógica de Paulo Freire.

É neste movimento amoroso que Paulo Freire assume o diálogo/dialogicidade como uma das categorias centrais da sua teoria educacional humanista/libertadora, por constituir-se como força impulsionadora do pensamento crítico e problematizador. Conforme reflexão de Zitkoski (2018) baseado no pensamento freireano, é por meio do diálogo que podemos problematizar e dizer sobre o mundo a partir da nossa própria percepção, uma vez que implica, sobretudo, em práxis social que se constitui como o compromisso entre a palavra e a ação humanizadora dos sujeitos, em que ação e reflexão são solidárias e intimamente fundadas.

Para Freire (2005), é por meio do diálogo que a palavra assume sentido, transformando-se em práxis. O educador destaca a importância da palavra verdadeira para a transformação do mundo. Nesta percepção, Freire convida para que seja forjada nas práticas pedagógicas uma postura dialógica como fundamento central. Desafia educadores e educadoras à materialidade de um projeto de educação libertador e comprometido com os sujeitos e, para isso, há necessidade de coerência de suas convicções políticas.

Em que pese o legado de Freire atravessado por uma concepção de educação nutrida de amorosidade, afetividade e dialogicidade, não se pode esquecer que a prática educativa deve ser revestida de uma formação científica com seriedade e responsabilidade, conforme anunciou o autor:

 

É preciso [...] reinsistir em que não se pense que a prática educativa vivida com afetividade e alegria, prescinda da formação científica séria e da clareza política dos educadores ou educadoras. A prática educativa é tudo isso: afetividade, alegria, capacidade científica, domínio técnico a serviço da mudança ou, lamentavelmente, da permanência do hoje. (FREIRE, 1999, p. 161).

 

É no bojo desse contexto que o professor se assenhora do seu fazer docente, por meio de uma prática comprometida com o outro e com a mudança social. Reafirmamos, conforme anunciado por Freire, que a capacidade científica e o domínio técnico, somados à afetividade, alegria, amorosidade, compromisso social e político, alimentados pela dialogicidade pedagógica, constituem-se elementos fundantes para uma prática docente libertadora.

Dada a centralidade das questões elucidadas sobre a prática docente, um ponto merece destaque: a reflexão sobre a prática, o repensar a ação docente, que, segundo Freire (1993), produz um novo conhecimento. Nas suas palavras, anuncia: “A prática de pensar a prática e de estudá-la nos leva à percepção anterior ou ao conhecimento do conhecimento anterior que, de modo geral, envolve um novo conhecimento” (FREIRE, 1993, p. 112). Assim, a reflexão sobre a própria prática implica e articula a dimensão da pesquisa na prática educativa, envolve, portanto, atitude do(a) professor(a) pesquisador(a).

Nesse sentido, por meio da pesquisa da prática docente, o processo pedagógico se nutre de possibilidade, uma vez que, conforme anunciado por Freire, “[...] quanto mais [...] progride a problematização mais penetram os sujeitos na essência do objeto problematizado e mais capazes são de ‘desvelar’ esta essência” (FREIRE, 1980, p. 89). A busca por conhecer passa a ser um exercício constante de investigação, pesquisa e descoberta.

É neste contexto de problematização, reflexão, diálogo e pesquisa que o(a) professor(a) vai construindo o seu fazer docente. A reflexividade crítica é coberta de sentido no exercício, no fazer, no pensar e repensar as ações pedagógicas vividas cotidianamente nos espaços educativos. No entanto, a prática docente progressista exige uma atitude simples e não simplista, e isso Freire (1978, p. 15) elucida muito bem:

 

Uma coisa que eu aprendi muito com Cabral, foi como um educador progressista precisa fazer-se simples, sem, porém, jamais virar simplista. [...]. Para mim o simplismo, é uma expressão fantástica, contundente do elitismo, é pior até do que o populismo, mas coincide muito com certas vocações populistas. Quer dizer, no fundo o simplismo é autoritário. O simplista é aquele que diz: como vou falar a essa gente que não é capaz de me entender. Então ele fala meias verdades, quartos de verdade, não são nem meias verdade, são pitadas de verdades. Em Cabral a gente vê o contrário disso, o que Cabral faz é buscar, com simplicidade, falar do concreto seriamente. (FREIRE, 1978, p. 15).

 

Assim como evidenciado por Freire (1978), a simplicidade deve estar forjada no bojo das ações docentes. A busca pela simplicidade no processo pedagógico, sem jamais ser simplista, é uma forma de respeito, seriedade e responsabilidade com o outro, significa valorizar a prática com o outro e não para o outro, como uma nutrição cultural. É procurar a materialidade de uma prática humanizadora em busca da humanização dos sujeitos, homens e mulheres. Conforme anunciado por Zitkoski (2018), Freire, percebendo-se como um educador que buscou em toda sua prática e sua obra a construção de um mundo mais humanizado, assumiu o compromisso com as lutas em favor da humanização e a resistência contra qualquer forma de desumanização.

Assim como Freire, concordamos que o processo de humanização deve ser uma busca constante de todo(a) educador(a), no intuito de possibilitar ao sujeito ser mais, elevar o indivíduo à condição de sujeito. De acordo com Osowski (2010, p. 382) em estreito diálogo com a concepção freireana, sujeito é

 

[...] um homem enraizado não só historicamente, mas acima de tudo aquele que expressa sua humanização. Ele exercita sua liberdade, assume as tarefas do seu tempo, reflete e analisa-as, posicionando-se criticamente e tomando decisões que interferem e alteram a realidade. Faz isso junto com os demais, em comunhão: dialoga e age.

 

Assim como Freire, apostamos na materialidade de uma educação contra-hegemônica, que problematize a cultura, a sociedade e contribua fortemente para a formação do sujeito autônomo, responsável, capaz de participar, de decidir e atuar com responsabilidade frente aos problemas apresentados cotidianamente. Para tanto, há necessidade de pensar certo e isso exige, corroborando Freire (1999), uma atitude exigente; nada simplista.

Todo esse panorama autoriza-nos afirmar que a educação e a formação, conforme defende Freire, não são neutras, são atos políticos que exigem posicionamentos e tensionamentos constantes. Segundo Cruz e Ghiggi (2020), pensar a formação de professores pressupõe reconhecer que o processo é uma forma de regulação e controle social. Sendo assim, torna-se ainda mais relevante a dimensão da pesquisa, a prática pedagógica nutrida pela pesquisa, para que os(as) professores(as) possam transformar suas práticas cotidianas em objeto de reflexão, problematização, investigação e criação do conhecimento novo.

PAULO FREIRE, PRESENTE! A VIVÊNCIA                                                           

Mais do que nunca, precisamos reafirmar a força/presença de Paulo Freire. Mais do que nunca, precisamos denunciar os ataques e anunciar a esperança. Neste momento de negações a legados históricos e de ameaças à democracia, a educação e até a vida humana, torna-se urgente reascender as lições deixadas por Freire e defender as suas bandeiras de luta: luta por justiça social, por equidade, pela educação para todos e todas, luta pela democracia, luta pela vida e tantas outras lutas em defesa da classe trabalhadora.

Em meio a todos estes ataques, negacionismos e retrocessos no Brasil, o mundo parou em 2020. No dia 30 de janeiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou Emergência da Saúde Pública em razão da Infecção Humana pelo novo coronavírus (COVID-19). Logo em seguida, no dia 3 de fevereiro do mesmo ano, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 188, declara Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN). Depois da declaração de emergência de âmbito mundial e nacional, outras portarias, instruções normativas e Leis foram criadas, no intuito de orientar e regulamentar a operacionalização de medidas para o enfrentamento ao Coronavírus.

 Atendendo às normativas, a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), por meio da Portaria nº. 322, de 17 de março de 2020, suspende por tempo indeterminado as atividades letivas de graduação e pós-graduação presenciais em todos os campi da UFRB. A partir desse momento, foram iniciados os debates para adoção de formatos emergenciais para a oferta dos componentes de ensino que atendessem aos protocolos de segurança, de modo a garantir a interação mantendo o distanciamento.

Foi neste contexto que se deu a oferta do componente optativo Diálogos sobre Alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos no âmbito do curso de Pedagogia do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor), turma Castro Alves – Bahia. Este se constituiu como um momento novo, permeado por muitos desafios, mas com inúmeras possibilidades de potentes construções.

             Sem sombra de dúvida, a experiência vivenciada foi extremamente desafiadora, considerando a sua oferta em caráter de ensino remoto. Dialogar sobre alfabetização de pessoas jovens, adultas e idosas em novo formato, sem o encontro presencial, sem as rodas de conversa, sem os círculos de cultura, inicialmente causou medo. No entanto, tivemos o desafio de criar estratégias novas que pudessem atender ao novo contexto de distanciamento, tendo como aporte as tecnologias que possibilitaram o reencontro de pessoas de diferentes espaços, permitiram novas rodas de conversa e outros círculos de cultura, fomentando a participação não apenas das professoras cursistas inseridas, mas transcendendo para as suas famílias.

Nesse novo processo foi possível refletir, discutir, problematizar e dialogar sobre a alfabetização de pessoas jovens, adultas e idosas em um tenso contexto histórico de incertezas e ataques. Momentos marcados pela tentativa de negação da ciência, da vida e do legado histórico do nosso imortal Paulo Freire, que neste ano completa cem anos da sua presença/existência.

Foi na tentativa de refletir e problematizar sobre a educação e a alfabetização de pessoas jovens, adultas e idosas que mobilizamos forças, semeamos sonhos e construímos novas formas de aprender e ensinar, a partir da plataforma Google Meet, no formato de ensino remoto, junto às professoras cursistas do Parfor, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), do Centro de Formação de Professores (CFP), no curso de Pedagogia.

No transcorrer do componente, os conteúdos e temáticas trabalhadas foram forjadas por meio de um processo dialógico, mediado por círculos de cultura, com a participação direta de todas as professoras cursistas envolvidas. Neste processo dialógico e dialético de ensinar-aprender, conseguimos solidariamente compreender os fundamentos da Alfabetização de Pessoas Jovens, Adultas e Idosas, refletir sobre as concepções e práticas educativas na Alfabetização para os diferentes tempos geracionais, compreender a Alfabetização direcionada a esse público na perspectiva da Educação Popular, além de refletir sobre a temática Educação e Envelhecimento Humano. Todas as temáticas trabalhadas, discutidas e problematizadas tiveram como centralidade as ideias, concepções e epistemologias de Paulo Freire, representando a referência central do componente por toda sua contribuição para a alfabetização de jovens, adultos e idosos.

Para tanto, foi importante a adoção de estratégias metodológicas que buscassem

valorizar a dinâmica relacional e a troca de experiências com vistas à construção do conhecimento de forma colaborativa. Assim, a preocupação metodológica do componente curricular buscou romper com a dicotomia teoria/prática e ensino/pesquisa por meio de um processo dialógico, interativo, participativo, com círculos virtuais e virtuosos de cultura. Dessa maneira, com base nos momentos de aulas síncronas, via Google Meet, conseguimos produzir potentes reflexões, sistematizações, análises e problematizações que transcenderam as expectativas iniciais.

Além disso, nos momentos assíncronos, além das leituras textuais e fílmicas, as professoras cursistas tiveram o desafio e a oportunidade de conhecerem experiências de (não) alfabetização de pessoas jovens, adultas e idosas e todas as suas trajetórias de lutas e negações de direitos. Sem dúvida esta foi uma experiência ímpar em razão de possibilitar o encontro, no âmbito da própria família ou do entorno, com pessoas não ou pouco escolarizadas que vivenciaram, ao longo da sua trajetória de vida, a exclusão, a vergonha e o preconceito por ter sido vítimas de um sistema social perverso e injusto, que nega a muitas pessoas direitos constitucionais básicos, sobretudo o da leitura e da escrita.

Desse modo, destacamos a potência dos momentos síncronos e assíncronos, considerando as diversas reflexões, aprendizagens e produções construídas no processo. Evidenciamos, portanto, a produção da atividade final que exigiu das cursistas lançarem mão das reflexões e estudos realizados no transcorrer do semestre para a produção do trabalho prático que constituiu na pesquisa, produção e edição de um vídeo-documentário com pessoas jovens, adultas ou idosas sobre o seu processo de alfabetização ou não alfabetização, destacando as suas trajetórias e contextos de vida.

Essa produção exigiu das cursistas um encontro dialógico com pessoas próximas que tiveram seus processos alfabetizatórios ou escolares interrompidos ou não iniciados pelos mais diversos motivos. A partir da pesquisa realizada com esses homens e essas mulheres foi possível a sistematização, produção e edição do vídeo-documentário, evidenciando as trajetórias dessas pessoas, com foco nos seus processos de escolarização ou não.

Depois de todo o processo formativo, envolvendo as reflexões, discussões e construções dialógicas, além dos estudos, pesquisas e produção dos vídeos pelas professoras cursistas, consideramos necessário estender as ações no âmbito do ensino (momentos síncronos) e da pesquisa (momentos assíncronos) e articular os resultados desse processo de estudo e investigação com a extensão acadêmica, a fim de envolver não apenas as cursistas do Parfor, mas toda a comunidade interna interessada, além da comunidade externa e pesquisadores da área. Portanto, na perspectiva de um maior alcance das pesquisas e reflexões é que o Ciclo de Diálogos Formativos foi realizado, com a intenção de promover um amplo debate acerca da temática em pauta, envolvendo para além das cursistas do Parfor, estudantes das licenciaturas, professores em exercício na Educação de Jovens, Adultos e Idosos, pesquisadores e demais interessados na temática.

O evento de extensão, intitulado Ciclo de Diálogos Formativos - Alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos e os processos de emancipação humana, foi realizado como uma ação do Núcleo Carolina Maria de Jesus: Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação Popular, Agroecologia e Alfabetização da Classe Trabalhadora, do Centro de Formação de Professores, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e teve como foco as reflexões acerca da Alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos e os seus processos emancipatórios, bem como as perspectivas e enfrentamentos a partir do lugar que ocupa no contexto atual. Nesse evento, foi possível a apresentação dos vídeos produzidos em seção de Grupo de Trabalho (GT) e todas as cursistas tiveram a oportunidade de socializar as suas produções e refletir sobre a experiência.

Tivemos a oportunidade de contar com a participação de muitos estudantes, professores, gestores escolares da modalidade da Educação de Jovens, Adultos e Idosos, além de pesquisadores e pessoas interessadas na temática. Todas as ações, considerando as aulas síncronas – com as reflexões e discussões solidárias e colaborativas tendo a epistemologia de Paulo Freire como centralidade; as atividades assíncronas – com a pesquisa realizada junto aos jovens, adultos e idosos sobres suas trajetórias e seus processos de alfabetização ou não alfabetização; e a ação extensionista – com Ciclo de Diálogos Formativos – foram de muita riqueza, teórico-conceitual e metodológica, e revestidas de muitas aprendizagens. Mesmo como uma experiência em um contexto não habitual, sendo necessário apossarmo-nos das tecnologias por meio de uma prática que não permite o contato presencial entre os envolvidos, foi uma vivência extremamente significativa, que garantiu amplas reflexões e novos olhares sobre a Alfabetização e Educação de Jovens, Adultos e Idosos.

Os resultados apresentados convidam-nos a fortalecer o debate sobre a alfabetização e Educação de Jovens, Adultos e Idosos no âmbito acadêmico, sobretudo quando se refere aos cursos de formação de professores, assim como nos provocam a lutar, conforme anunciado por Andrade, Freitas e Santos (2019, p. 73): “[...] pelo direito à educação e à alfabetização na perspectiva da Educação Popular de modo que possa garantir o processo de Formação Humana”.

Ainda na perspectiva das autoras supracitadas, é urgente pensar e lutar em favor das pessoas inseridas na Educação de Jovens, Adultos e Idosos, nas suas trajetórias de vida, exclusão e negação de direitos. “É nessa perspectiva contra-hegemônica que precisamos avançar. E este debate sobre a alfabetização como um direito precisa ser fortalecido como forma de resistência aos retrocessos provocados no momento atual” (ANDRADE; FREITAS; SANTOS, 2019, p. 73).

Portanto, é possível verificar que esse componente de natureza optativa do curso de Pedagogia, longe de ser apenas um que compõe a matriz curricular para conclusão do curso, constitui-se como de fundamental relevância para o processo de formação das cursistas. As temáticas discutidas, as problematizações levantadas, os apontamentos acerca do contexto, dos sujeitos, dos processos, das trajetórias, em um processo atravessado pelo legado de Paulo Freire, na perspectiva de uma educação libertadora e emancipadora, promoveram potentes reflexões formativas e aprendizagens solidárias.

Após as abordagens aqui narradas, os dados nos autorizam a destacar que a experiência, para além das aprendizagens promovidas, transcenderam os muros do Parfor e da Universidade, contemplando outros espaços-tempos, por meio de um trabalho freireano, alicerçado no diálogo e na colaboração. Todas as ações foram forjadas por ricas reflexões solidárias, sendo os momentos síncronos revestidos por círculos virtuais de cultura e os momentos assíncronos banhados por potentes diálogos formativos, pesquisas e produções a partir dos sujeitos não ou pouco alfabetizados, suas trajetórias e lutas. Ademais, os círculos de diálogos formativos, como ação de extensão que ultrapassou os espaços da instituição, agregando pesquisadores, professores da Educação Básica, sobretudo da modalidade da Educação de Jovens, Adultos e Idosos, ganharam maior dimensão por promoverem a ampliação de um debate tão relevante e urgente no cenário atual.

Muito mais que um componente optativo do curso de Pedagogia, este se constituiu como um espaço de discussões, reflexões, problematizações, aprendizagens, além de promover um novo olhar sobre os sujeitos da Educação/alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos, que foram e continuam sendo vítimas de um sistema cruel, perverso, que nega aos homens e as mulheres direitos constitucionais essenciais, como o da alfabetização e do acesso aos bens culturais produzidos pela humanidade. Estes precisam de um olhar atencioso, sensível, para que muitos outros possam levantar esta causa como suas bandeiras de luta, como foi a de Paulo Freire. Mais do que nunca, precisamos tomar as causas defendidas por Freire como nossas e ir para o enfrentamento. Precisamos lutar contra o negacionismo, o anticientificismo, a educação bancária e em favor da vida, da educação, da democracia, dos direitos humanos, da classe trabalhadora. Negar Freire nestes tempos atuais significa negar a cada um de nós na condição de classe trabalhadora, pois as causas defendidas por ele são as nossas causas.

Não temos nenhuma dúvida de que o componente em pauta estabeleceu-se como um movimento de busca para compreender a Educação/Alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos, o seu lugar ocupado e o lugar que cada um deve ocupar no sentido de se constituir enquanto sujeito do processo, enquanto ser humano, enquanto gente.

Esperamos que esta experiência possa contribuir para o fortalecimento do debate sobre a alfabetização nos diferentes tempos humanos, principalmente para jovens, adultos e idosos que tiveram seus processos interrompidos por diversos motivos. Almejamos, ainda, que esta experiência possa contribuir para fomentar novas discussões e pesquisas, e também para ampliar as reflexões nos centros formativos de professores e na educação básica, de modo a fomentar um processo alfabetizador comprometido com as pessoas não alfabetizadas. Esperamos, também, que esta experiência contribua para promover novas formas de compreender a modalidade na luta contra a injustiça social por meio de um processo pautado nos princípios da Educação Popular.

ANDRADE, Maria Eurácia Barreto; FREITAS, Gilselia Macedo Cardoso; SANTOS, Andreia Barbosa. Diálogos sobre Alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos no âmbito do CFP/UFRB. Revista Educação, Psicologia e Interfaces, Volume 4, Número 1, p. 64-75, Janeiro/Março, 2020. ISSN: 2594-5343. DOI: https://doi.org/10.37444/issn-2594-5343.v4i1.181

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FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não. Cartas a quem ama ensinar. São Paulo: Olho D’água, 1993.

FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau. Registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1980.

FREIRE, Paulo; SHOR, Ira.  Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

OSOWSKI, Cecília Irene. Sujeito/Objeto. In: STRECK, Danilo. (Org). Dicionário Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

ZITKOSKI, Jaime José. Diálogo/Dialogicidade. In: STRECK, Danilo R.; RENDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. 4. ed. Revisada e Ampliada. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.

 

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