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Eu Quero Fazer Faculdade, Mas Isso Não É Coisa Simples

Ana Maria Freitas Teixeira

O artigo apresenta resultados parciais de pesquisa voltada a melhor compreender o fenômeno da transição entre ensino médio e ensino superior, considerando como sujeitos centrais os jovens estudantes no ensino médio público, em particular aqueles que se encontram na situação de concluintes, ou seja, cursando o 3º ano. Trata-se de investigação de natureza qualitativa cujos dados foram produzidos mediante a adoção da entrevista semiestruturada como ferramenta central. A pesquisa foi realizada em uma escola de grande porte da rede estadual de ensino da Bahia. A ánalise dos dados indica a mobilização dos jovens em direção ao prolongamento dos estudos após a conclusão da educação básica havendo uma acentuada conexão entre a educação e trabalho.

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Como citar este trabalho

TEIXEIRA, Ana Maria Freitas. Eu Quero Fazer Faculdade, Mas Isso Não É Coisa Simples. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2021 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/277-eu-quero-fazer-faculdade-mas-isso-n%C3%A3o-%C3%A9-coisa-simples. Acesso em: 16 out. 2025.

Eu Quero Fazer Faculdade, Mas Isso Não É Coisa Simples

Introdução

 

Tratar de questões relacionadas às juventudes contemporâneas significa refletir sobre diferentes temas que buscam compreender, dentre outros aspectos, os processos de acesso a escolarização básica, a ampliação da violência, as transformações na sexualidade, a inserção no mercado de trabalho dentre outras temáticas que se configuram como desafios historicamente constituídos. Na sociedade brasileira, marcada por profundas e múltiplas desigualdades que se evidenciam nos mecanismos de mobilidade social seletiva, tratar dessas questões implica em lidar com as diferentes abordagens sobre juventudes.

Ao mesmo tempo, categorizar “juventude” não se configura como tarefa simples quando se admite tratar de um arbitrário cultural socialmente construído para definir em que dado momento, e mediante quais rituais de passagem, é possível transpor uma etapa da vida em direção a outra. Antes definida a partir de padrões etários, hoje ela se refere principalmente ao período “[...] marcado por ambivalências, pela convivência contraditória de elementos de emancipação e subordinação, sempre em choque e negociação.” (NOVAES e VANUCCHI, 2004, P.12), durante o qual o sujeito elabora seu próprio amadurecimento.

Na verdade é intenso o debate em torno das ambiguidades relacionadas ao tema que dificultam a definição de parâmetros gerais que podem se mostrar pouco eficazes para analisar esse período da vida. Sobre isso Pais (1990) indica o caráter socialmente manipulável dessa categoria atentando para o risco de tratar os jovens como uma homogeneidade, para o que o autor chama atenção quanto às correntes geracionais que tendem a destacar os elementos comuns da fase da vida.

As teorias sociais buscam, portanto, possibilidades de avançar nas análises a partir de alternativas que contemplem tanto o que há de comum quanto o que se identifica como especificidade sem esquecer os aspectos geracionais e as condições de origem de classe. Nesse intuito os estudos sobre os cotidianos dos jovens tem contribuído para a compreensão das continuidades e descontinuidades intergeracionais apontadas por Pais (1990).

Numa observação geral, é comum que os jovens sejam reconhecidos como um todo homogêneo que partilha as mesmas perspectivas, anseios e problemas. Em que pese a existência de similaridades relativas, é inegável que há diferenças sociais entre eles, o que nos permitiria adotar o termo “juventudes”. Entre similaridades e diferenças situa-se, igualmente, o que se convencionou      chamar de “problemas dos jovens” (arranjar um emprego, enfrentar o vestibular, escolher uma profissão, as drogas, a relação com a família, o sexo, etc.), ainda que estes últimos em nada possam ser considerados como um bloco homogêneo. Apesar disso, podemos dizer que as juventudes enfrentam esses “problemas de jovens” de maneira igualmente heterogênea.

É dentro dessa configuração complexa que nos interessa focar, dentre as múltiplas juventudes, um grupo social em particular: os jovens de origem popular, e um “problema” específico no campo dos debates contemporâneos: o acesso desses jovens ao ensino superior. Isso significa refletir sobre o caminho percorrido entre o ensino médio e o ensino superior. Certamente, esse caminho não se inicia no momento em que ocorre o ingresso no nível médio, mas se inscreve em toda a trajetória socioeducacional que o antecede, ainda que o ensino médio se configure como a etapa pré-requisito para ingresso na universidade. Além disso, as intensas mutações sociais que marcam a contemporaneidade, têm influenciado nos padrões educacionais tornando indispensáveis níveis mais elevados de escolarização de modo tal que o certificado de conclusão do ensino médio tornou-se pré-requisito indispensável para quase todas as funções produtivas.

Diante desse cenário, privilegiamos em nossa investigação o grupo social composto por “jovens pobres”, originários de famílias com baixa escolarização, baixo padrão de renda e baixos níveis de qualificação, ou seja, distantes de corresponderem à figura de detentores do capital econômico e cultural dominante (BOURDIEU, 2001). Para   esse grupo, a passagem pelo ensino médio em escolas públicas é um traço relevante não só como um dos elementos que compõe seu perfil numa ótica quantitativa, mas, também, pelo que significa ser um ex-estudante de escola pública quando se pretende uma vaga no ensino superior.

Willis (1991) e Boudon (1981) observam em seus estudos a importância de compreender alguns aspectos das experiências escolares dos jovens oriundos das classes populares tais como o papel da história familiar, dos amigos, parentes e vizinhos. Segundo esses autores, o valor atribuído por esses jovens à educação e, por conseguinte, ao prolongamento da escolarização formal, resulta da combinação instável entre os riscos e benefícios frente à trajetória escolar e profissional daqueles que lhes são mais próximos. Portanto, vale lembrara que, em geral, esses jovens convivem com uma história familiar de escolarização incompleta, precária e fragmentada que poderia estimular, entre eles, certa resistência à cultura escolar e baixa valorização da educação, leitura que, mostra-se uma frágil explicação para as dificuldades que enfrentam para o ingresso no ensino superior.

Desse modo, percorre o caminho do ensino médio público em direção ao ensino superior público significa, para essa população, lidar com as desigualdades socioeducacionais que se evidenciam nessa transição.

Assim, para discutir os aspectos mencionados anteriormente, focando especialmente no prolongamento da escolaridade, tratamos aqui de alguns resultados de pesquisa realizada junto a alunos concluintes do ensino médio vinculados a uma das unidades da rede pública de educação do Estado da Bahia. Para essa investigação, de cunho qualitativo, adotamos as entrevistas como estratégia de produção de dados optando por realiza-las no ambiente escolar, muitas vezes em meio a curiosidade de outros alunos.

O foco estava em compreender em que medida o ingresso no ensino superior se apresentava como um projeto de continuidade dos estudos ao término do ensino médio. Nos perguntávamos se esses jovens consideravam que a universidade era um lugar para eles, também, levando em conta as politicas de acesso ao ensino superior implementadas no Brasil, especialmente, a partir de 2003 com o Programa Universidade para Todos (Prouni), a adoção do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como critério para ingresso nas universidades públicas federais (e algumas estaduais), a Lei de cotas instituída pela Lei nº 12.711/2012) e mesmo o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

Aqui, mantando o anonimato dos participantes mediante a adoção de codinomes, utilizamos três entrevistas do total das 10 realizadas entre 2017 e 2018. Segundo Minayo (2015) a entrevista pode ser entendida como “uma conversa com finalidade”. Pode ser considerada como uma maneira de interação social mediada pelo uso das palavras, signos e símbolos mediante os quais os atores procuram dar sentido a realidade que os cerca. Ao privilegiar a fala dos sujeitos possibilita compreensão da realidade humana e social dando voz ao interlocutor. Ao mesmo tempo, a situação da entrevista favorece a interação subjetiva que contribui para melhor compreensão dos significados, dos valores, opiniões e atitudes dos envolvidos na pesquisa.

Mas, afinal, será que eu posso ‘virar’ universitário?

 

Para a maioria dos estudantes a passagem do ensino médio ao ensino superior é uma transição difícil, pois o sujeito entra em um novo mundo. Contrariamente ao que se pode acreditar essa transição não se configura numa continuidade do ensino médio. Ao contrário, o novo estudante experimenta uma série de rupturas simultâneas em relação ao mundo que conhece: ruptura familiar, geográfica, psicológica, cognitiva. Os hábitos de sua vida cotidiana, suas condições de existência mudam, violentamente em alguns casos.

A mudança mais profunda se dá em relação às regras do trabalho intelectual e aos saberes. Existe, na universidade, um número muito maior de regras importantes e eventualmente simultâneas. Além disso, essas regras são bem mais complexas. Enfim, elas são, frequentemente, articuladas entre si, de modo que o desconhecimento de uma delas significa o desconhecimento de todo um conjunto de regras. Ao mesmo tempo, quando ocorre o ingresso na universidade, a relação aos saberes é totalmente afetada. Isso ocorre, por um lado, em função da amplitude dos campos intelectuais estudados e, por outro lado, por conta de uma necessidade maior de síntese; enfim devido às conexões que se estabelecem entre o ensino superior, seus saberes e a atividade profissional futura.

A afiliação é, assim, uma aprendizagem que deve ser realizada para além do trabalho intelectual propriamente dito: trata-se de passar da situação de um iniciante para aquela de um especialista; passar do estado de estranhamento que caracteriza o iniciante para o estatuto daquele que tem familiaridade. Um estudante que não consegue se afiliar fracassa em sua vida acadêmica. A primeira tarefa que um estudante deve realizar ao ingressar na universidade é, então, aprender seu oficio de estudante universitário. De fato, se ao longo desses últimos anos uma certa democratização do acesso ao ensino superior tornou-se realidade no Brasil, como também em outras partes do mundo, a democratização do acesso aos saberes está longe de ter sido assegurada. Constatamos, em praticamente todas as universidades do mundo, taxas importantes de fracasso ao longo do primeiro ano de estudos universitários. Esse fracasso não afeta apenas os estudantes identificados como ‘fracos’ ou que enfrentaram ‘dificuldades’: eles afetam, igualmente, os estudantes cujo percurso no ensino médio foi ‘normal’ e por vezes ‘muito bom’. (COULON, 2008)

A necessidade dessa afiliação ao mundo universitário afeta, portanto, todos os estudantes. Trata-se de poder identificar progressivamente, de decifrar e, em seguida, incorporar os códigos que se ocultam nas práticas e no funcionamento da universidade. Estamos afiliados a partir do momento em que entendemos o que não é dito, vimos o que não é mostrado, desde que ‘naturalizamos’ as evidencias do mundo em que queremos viver. Essa familiaridade com as práticas universitárias não está dada para todos, mas todos devem progressivamente adquiri-la. Os estudantes devem ‘naturalizar’ o ambiente que antes lhes era estranho.

Portanto, ‘virar’ um estudante universitário não é uma passagem instantânea e gera, ao contrário, inúmeras indagações.

 

O que dizem os dados quando os jovens falam

Em geral, quando o encerramento do Ensino Médio se aproxima os jovens, em especial os jovens pobres, se interrogam sobre o futuro e procuram mapear o que a realidade mais próxima aponta como possibilidades que possam se concretizar: parte desses jovens, já inseridos no mundo do trabalho (ainda que na informalidade), se interrogam sobre as chances de continuar os estudos já que a questão financeira coloca suas exigências; outros se interrogam sobre sua capacidade de ingressar na ‘Faculdade’ e ter ‘uma profissão’ já que isso demanda estudos mais longos e aprofundados; ainda há outros que consideram o ensino superior ‘uma coisa’ muito distante de sua realidade e nem mesmo cogitam essa possibilidade. Como se vê, nesse momento se entrecruzam inúmeras certezas, incertezas, possibilidades, dificuldades e hesitações.

É compreensível, portanto, que esses jovens se interroguem sobre a continuidade ou não dos estudos em direção ao ingresso no ensino superior ou mesmo em direção a um curso técnico, bem como sobre conseguir ou mudar de trabalho, ir embora da cidade em que vivem, casar ou não, ter filhos ou não, enfim um conjunto de questionamentos que marcam esse momento.

Partimos então para ouvir os jovens.

Aldo tinha 17 anos no momento da pesquisa e quando perguntado sobre o que vai fazer da vida quando concluir o 3º ano, não hesita em dizer:

 

Pretendo fazer faculdade. Estou pensando fazer ou direito ou enfermagem, estou fazendo ENEM e agora só estou esperando o resultado para ver se eu passei ou não, porque sem estudo para encontrar algo na vida é difícil, para encontrar emprego... Trabalho pode encontrar em mercado, mas isso não é o que eu quero, quero algo melhor pra minha vida. Então, para eu buscar isso a única forma é estudando. (Aldo)

 

Um outro estudante da mesma turma de Aldo, o Isaias, 20 anos, também deseja ingressar no ensino superior. Ele quer fazer o curso de Educação Física. Mas ele se apressa em salientar que a busca por uma vaga nesse curso não se configura como uma ‘obrigação’, mas se relaciona com a sua identificação com o curso pretendido:

 

Assim que terminar a escola agora, tenho plano de ir embora, cursar uma faculdade também de Educação Física que é uma coisa que eu gosto. Não vou fazer por ser forçado ou só por fazer como muita gente faz, não! Vou fazer porque gosto (...) Meu plano de vida é esse, porque eu também acho que só dinheiro, dinheiro, dinheiro, não leva ninguém a lugar nenhum. Eu quero fazer uma coisa que eu goste. (Isaias)

 

Por outro lado Ivna, 17 anos, não parece interessada em ingressar no ensino superior e se mostra pouco mobilizada para fazer o Enem:

 

Meus planos na verdade.... estou esperando ter uma oportunidade, porque o mais difícil é ter uma oportunidade. Assim, pra falar a verdade eu não tenho sonho de fazer faculdade, mas hoje em dia há uma necessidade, né. Então se um dia eu tiver essa oportunidade, eu faria. Pretendo fazer cursinhos, sei lá, que consiga um trabalho, trabalhar. Ter uma vida trabalhando, fazendo cursinho, sei lá. Eu gosto de um curso que é de culinária. Eu gosto muito, tenho o sonho de abrir o meu negócio, de ter o meu negócio. Então seria um dos que eu faria primeiro. Um curso profissionalizante. Esse ano não deu pra eu me inscrever no Enem. Até tentei, mas não deu então, porque o sistema estava travando o tempo todo. (Ivna)

 

Enquanto para Ivna a busca por um curso profissionalizante emerge como caminho mais curto para o mercado de trabalho observamos que Aldo tem uma percepção ampliada da sua realidade e do que deseja para sua vida. Na elaboração desse olhar sobre o mundo ele indica a distinção entre ‘trabalho’ e ‘emprego’ posto que vincula seus planos de vida a diferenciação entre essas duas condições:

 

Trabalho é, tipo assim, não tem muita coisa. Quando um jovem termina o Ensino Médio não tem muita coisa a oferecer, o único trabalho que você pode encontrar é trabalhar em mercado, farmácias, em venda, essas coisas. Eu quero um emprego mesmo, quero fazer faculdade pra fazer direito, ser um advogado ou fazer enfermagem para quem sabe mais na frente poder fazer até medicina. Não sei, mas acho que isso é a diferença. (Aldo)

 

Aldo olha para o futuro e procura conectar as informações de mundo a que tem acesso, mas tem, também, uma leitura apurada da experiência do ensino médio, da escola, dos professores e aponta as lacunas que observou ao longo desses três anos.

 

Foi bom, não tive muita dificuldade, foi bom, gostei do Ensino Médio. Aprendi muita coisa, os professores aqui do colégio foram ótimos. Mas teve falta de professores, inglês mesmo a gente ficou uma boa parte do ano sem ter essa matéria (...) a professora de literatura, minha professora teve um problema de depressão faltou e não teve ninguém pra substituir, ficou uma boa parte também sem aula. As salas tem goteiras, algumas salas do terceiro andar estão alagadas. Acho que deveria melhorar isso aí também. Aqui no colégio também a gente podia usar mais o laboratório, a sala de informática. Nos três anos que tive aqui usei bem pouco, não usei nem cinco vezes o laboratório e quando usei foi só no 1º e 2º anos. No 3º ano não usei nenhuma vez. A sala de informática só no 3º ano mesmo. Mas acho que a gente poderia ter utilizado isso aí mais vezes (Aldo).

 

Para Aldo a limitação no uso do Laboratório de Internet da escola é preocupante seja porque tem colegas que não possuem computador em casa, seja porque “hoje no mundo tudo que tiver que pesquisar tem na internet. Agora eu acho que ela é uma boa fonte de pesquisa, para você pesquisar, estudar, mas não, por exemplo, passar um trabalho e a pessoa clonar”. É bom observar que esse jovem chama atenção para o uso das tecnologias da informação no processo educativo em 2017.

O ‘balanço’ sobre a experiência no ensino médio também é tema da entrevista com Isaias que destaca suas preocupações quanto às logicas pedagógicas que detecta na escola. Essas lógicas, relatadas por ele mais abaixo e, de modo geral, observadas na educação, se relacionam com a ótica da meritocracia em que os bons alunos encontram condições de seguirem estimulados a se tornar cada vez melhores, enquanto os ‘outros’ parecem penalizados por seus resultados abaixo das médias e por suas dificuldades de aprendizagem:

 

O colégio tem viagens que leva alguns alunos. Tipo, são chamados os melhores alunos pra fazer a viagem. Acho que se levasse pelo menos metade da sala, se esquecesse de melhores alunos e levassem aqueles que têm notas mais baixas, pra dar um incentivo a mais, acho que isso seria melhor também (...)Eu acho isso errado, deveria levar também aqueles que têm notas mais baixas para ver se eles se interessam, pra dar um incentivo a mais e mostrar que não é só quem tem nota alta que merecesse estar lá dentro, que a partir do esforço todo mundo pode chegar lá. (Isaias

 

Aldo gosta da escola, gosta de estudar, gosta dos professores, considera que aprendeu muitas coisas com eles que, inclusive atuaram como portadores de informações sobre o ensino superior já que a faculdade suscita muitas dúvidas e curiosidades.

 

a gente pergunta direto! No 3º ano mesmo a gente fez várias perguntas aos professores. A professora de redação mesmo me incentivou muito, deu vários temas de redação pra gente fazer para a gente se preparar para o ENEM. Os professores assim, o de matemática, o de biologia, todos os professor conversavam com a gente sobre isso, sobre os vestibulares, sobre o ENEM, sobre a faculdade como é. (Aldo)

 

Já para Ivna, 20 anos, o ensino médio foi conturbado por seus problemas de saúde e na família que a levaram a transitar pelos três turnos com sucessivas transferência de turma. Essa situação comprometeu seu rendimento e as notas não foram boas. Para ela a incompreensão de alguns professores frente a suas dificuldades tornou os estudos mais difíceis. Em seu relato ela demanda uma relação mais personalizada com os docentes que, em sua ótica, deveriam ter mais atenção com os alunos e se interessar pelas agruras de suas vidas:

Seria bom o professor buscar saber o porquê de cada aluno, porque cada aluno é de um jeito. Eu acho que o professor deveria procurar conhecer mais cada aluno. Porque a gente passa muitas dificuldades às vezes em casa em questão de relacionamento entre a família, aquela coisa, e tudo isso, quando a gente vem pra escola de qualquer jeito isso faz uma mistura e às vezes acaba complicando. Eu acho que esse ano eu tive um pouco de dificuldade com relação a isso e achei que se meus professores tivessem mais atenção quanto a isso, acho que seria melhor. Eu não tive muito boas notas pelo fato do problema de saúde e foi aquela coisa, eu faltei um período e fiquei trazendo atestado pra escola. Um dia eu fiquei chateada. Conversei, trouxe todos os atestados, trouxe os remédios que eu estava tomando, porque eu queria a escola tomasse uma atitude, né, que alguém tomasse uma atitude com aquilo. Eu não estava vindo não porque não queria vir. (Ivna)

 

Enquanto Aldo deposita sua mobilização em seguir seus estudos Ivna convive com a possibilidade de migrar em busca de seu objetivo: começar a trabalhar rapidamente. A independência financeira ocupa o centro dos planos apesar de admitir que gostaria de fazer o curso de medicina:

 

eu recebi uma proposta de uma prima minha que ela está em São Paulo e ela me chamou, ela me disse que eu poderia fazer algum curso, alguma coisa lá e trabalhar. Ela falou que lá tem mais oportunidades de trabalho. Eu acho uma boa proposta (...) Eu quero trabalhar, porque é bom a gente trabalhar, ter o nosso dinheiro, as nossas coisas. (Ivna)

 

Ainda que o foco de Ivna seja concluir o ensino médio e começar a trabalhar para conquistar independência financeira, tal como assinalou anteriormente, ela destaca a importância do diploma universitário: “Ter diploma muda, com certeza. E na questão do trabalho mesmo é uma coisa que ajuda. Hoje em dia Ensino Médio não é mais nada, você tem que ter mais do que isso. Quem não tem vai ter mais dificuldade”.

Ivna entendeu, desde cedo, que existe uma relação (mesmo que não seja uma relação direta e uniforme) entre escolaridade e inserção no mercado de trabalho como se antevisse dificuldades que pode enfrentar no futuro próximo. Ao longo de seu relato ela indica, várias vezes, que “tudo é uma questão de oportunidades”, como se isso lhe tivesse faltado ao longo do ensino médio e mesmo em sua vida:

 

Tem muita gente que quer fazer faculdade e os professores ficam perguntando logo, perto do ENEM, quem queria e tinha muita gente interessada em fazer. Eu acho que o que falta é oportunidade, mas tem muita gente que quer. Tem muita gente também que não quer, mas tem muita que quer também. (Ivna)

 

Ao mesmo tempo, o estabelecimento de estratégias sistematizadas de diálogo e aproximação entre ensino médio e ensino superior, ao longo das décadas, tem se mostrado insuficientes quando não são inexistentes no que se refere a ações ou programas implementados pelas secretarias de educação e mesmo pelo Ministério da Educação. Nesse vácuo de ações estruturadas os jovens em situação de maior vulnerabilidade encontram, também, esse obstáculo: a dificuldade de acesso a informações e orientações quanto às possibilidades de acesso ao ensino superior.

A fragilidade das passarelas entre ensino médio e ensino superior associada às informações fragmentadas sobre ‘como funciona a universidade’ se associam ao desejo de ingresso em uma faculdade e, na mistura dessas contingencias, as projeções e especulações sobre o espaço acadêmico se produzem:

 

Eu acho assim, a faculdade tem que ter muito mais responsabilidade que num colégio, porque o colégio a gente já é da cidade, conhece várias pessoas, eu acho que a gente gosta de ir por causa dos amigos e tudo mais. Agora na faculdade o negócio é mais sério, você tem que estudar mesmo para que você aprenda para o seu futuro, pra você ser alguém na vida. Não sei explicar direito, mas é um negócio mais sério. Os professores do colégio até alivia às vezes, mas acho que lá eles não devem aliviar, devem ser bem rigorosos. Não é como no colégio que às vezes os professores passam a mão por nossa cabeça. Falta um trabalho: Ah, entregue na próxima semana. Acho que lá não deve ser assim. Na data que é pra entregar, é pra entregar. Se não entregou tem problema, né. Eu acho que é bem mais sério lá, não tem bagunça como tem no colégio, nem nada. (Aldo)

 

Apesar de não mirar o ingresso no ensino superior Ivna comenta sobre a vida universitária:

 

Acho que lá seria mais puxado, a gente teria que se dedicar mais lá. Meu amigo que faz faculdade fala que é corrido. Ele falou que acha que está envelhecendo mais rápido por causa das preocupações, por causa do trabalho e que não é fácil. Ele teve que se mudar. Então ele tem que pagar aluguel, estudar, então tudo isso é bem complicado. (Ivna)

 

Os depoimentos dos jovens indicam que a passagem entre o ensino médio e o superior não é uma tarefa simples, trata-se de uma travessia longa que demanda não apenas o domínio de conteúdos disciplinares, mas enfrentar o processo de afiliação à vida universitária (COULON, 2008).

 

As outras dificuldades vão aparecer depois que eu entrar na faculdade

 

Apesar do desejo de ingressar no ensino superior, as dificuldades a serem enfrentadas ganham espaço nas preocupações dos alunos. Dentre elas podemos observar que as inquietações vinculadas aos aspectos financeiros (custos) são enfatizadas. Além disso, considerando o conjunto das entrevistas, o domínio da língua portuguesa em suas expressões escrita e oral figura como a segunda maior preocupação. Já os aspectos cognitivos relacionados a compreensão de conteúdos disciplinares e da linguagem dos professores são apreensões que também se apresentam e se somam aos desafios a enfrentar nas disciplinas vinculadas às ciências exatas (cálculos, formulas).

Isaias, não tem dúvidas sobre as dificuldades que terá que enfrentar caso consiga uma vaga no curso de Educação Física: “além de não conhecer ninguém, esse primeiro ano vai ser uma experiência nova. Você não sabe direito o que se passa lá dentro, o que vai acontecer com você. É mais pra você pegar experiência, agora do segundo ano em diante, já se firmou, já está tudo certinho, aí já vai mais tranquilo.”

A perspectiva das dificuldades destacadas por Isaias nos remete às análises de Coulon (2008) ao indicar que tornar-se um universitário significa entrar num universo cognitivo e intelectual mais complexo que demanda ferramentas basilares, nem sempre constituídas ao longo da educação básica, do que resulta a preocupação em superar as lacunas do ensino médio.

Assim, tornar-se estudante universitário demanda um trabalho sobre si mesmo (SCHWARTZ, 1987), aspecto que podemos observar no que segue:

 

Estudar muito também, muito, muito. Estudar com mais determinação e foco naquilo que estou fazendo. Não adianta também fazer uma coisa e esperar que a sorte bata. Não. Tem que ter competência e capacidade. Estudar. Esquecer essa coisa de festa, muita amizade, socializar muito e estudar. Porque pra ter um emprego hoje bom, basta isso estudar. (Isaias)

 

As dificuldades são múltiplas e se espraiam para diferentes domínios da vida dos jovens: finanças, tempo para estudar, conteúdos ‘complexos’, as fórmulas de física, as regras de língua portuguesa, ler e interpretar os textos, o caráter abstrato dos conteúdos estudados que não dialogam diretamente com seus cotidianos, etc.

Nesse panorama, o sucesso na vida universitária não está assegurada com a conquista de uma vaga e os jovens indicam de que ferramentas dispõem caso consigam ingressar. Tal como fala Isaias, ‘estudar muito’ parece ser o recurso básico. Os outros jovens também indicam que além de estudar muito, precisam de disciplina e força de vontade para não desistir uma vez que associam o ensino superior com mais altos níveis de exigência e complexidade dos conteúdos. Vale observar, ao mesmo tempo, que ocorre uma associação entre níveis mais elevados de exigência e o fato da instituição de ensino superior pretendida ser pública, uma vez que a questão econômica é um aspecto comum entre os jovens.

Enfim, ‘estudar muito’ é também uma tentativa de se  auto referir positivamente, de provar para si mesmo o quanto se é capaz e, portanto, merecedor de uma vaga no ensino superior. A importância e valorização atribuída a formação universitária evidencia a identificação da educação como fator de mobilidade e ascensão social tanto mais valorizado e mesmo via única para aqueles que são originários das camadas populares. Junte-se a isso o fato desses jovens serem, frequentemente, os primeiros de suas famílias a concluírem o ensino médio (VIANA, 2000).

Conclusões...provisórias

 

Os obstáculos existentes para reverter as desigualdades sociais e econômicas de acesso a uma escolaridade mais longa parecem evidentes. O processo de inserção de novos públicos no ensino superior não pode ser entendido apenas a partir de dados especificamente educacionais uma vez que a questão se entrecruza com a transição entre ensino médio e ensino superior, e seus reflexos múltiplos sobre as trajetórias escolares e acadêmicas. Parte dessa ‘nova’ população que ingressa no ensino superior encontra-se representada nessa pesquisa: jovens que cursaram o ensino médio público, integrantes de famílias cujos pais frequentaram a escola por pouco tempo e que enfrentam dificuldades para garantir o orçamento familiar.

Nesse contexto, os entrevistados já superaram o nível de escolaridade de seus pais ainda que não tivessem concluído o ensino médio. Eles desejam ingressar numa ‘faculdade publica’ e a despeito das lacunas referentes às informações e orientações sobre o ensino superior identificam o papel relevante de alguns professores que os alertaram e estimularam a continuar estudando. A escola pública de ensino médio, em que pese o abandono de que são alvo e todas as merecidas críticas, atua como espaço para obtenção de orientações sobre possibilidades de prolongamento dos estudos. A escola e alguns professores são ponto de apoio, encorajamento e, sobretudo, de reconhecimento do potencial desses jovens, aspecto, em geral, minimizado socialmente.

A forte dissociação entre ensino médio/educação básica e ensino superior, que produz reflexos mais nefastos sobre os jovens alunos do secundário público, revela-se, em si mesmo, exemplo das desigualdades do sistema de ensino brasileiro. O acesso a informação de boa qualidade sobre os múltiplos programas do governo federal a exemplo do PROUNI (Programa Universidade para Todos), FIES (Fundo de Financiamento Estudantil), sobre os parâmetros de avaliação do ENEM e sobre a lógica de funcionamento do SISU evidenciam-se como recurso relevantes para ampliação do processo de inclusão dos egressos da escola pública para além das formalidades estatísticas. Assim, a diversificação do perfil do estudante universitário, processo em andamento, revela o aprofundamento dos avanços (limitados) e retrocessos (acelerados) impostos à universidade brasileira. A confluência desses elementos desenha um contexto em que a presença mesma dos egressos do ensino médio público funciona como aspecto emblemático das inflexões contemporâneas sobre o ensino superior que inclui a democratização da universidade brasileira.

Referências

BOUDON, R. A desigualdade das oportunidades: a mobilidade social nas sociedades industriais. Brasília: Editora UnB, 1981.

BOURDIEU, P. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (orgs.). Escritos de Educação, 3ª ed., Petrópolis: Vozes, 2001.

COULON, Alain. A Condição de Estudante - A entrada na vida universitária. Tradução: Georgina Gonçalves dos Santos e Sônia Maria da Rocha Sampaio. Salvador: EDUFBA, 2008.

ELIAS, N; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

NOVAES, R.; VANUCCHI (org.). Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

SCHWARTZ, Yves. Travail et usage de soi. In : BERTRAND, M. (et alii.). Je, Sur l’Individualité. Paris, Messidor. 1987.

VIANA, M. J. Braga. Longevidade escolar em famílias de camadas populares: Algumas condições de possibilidade. In: NOGUEIRA, Maria Alice; ROMANELLI, Geraldo & ZAGO, Nadir (Orgs.). Família e escola: trajetórias da escolarização em camadas médias e populares. Petrópolis, vozes, 2000, p. 45-60.

WILLIS, P. Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistência e reprodução social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

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