Metadados do trabalho

Juventudes, Educação Profissional E Os Labirintos Do Trabalho

Ana Maria Freitas Teixeira

O texto procura discutir resultados parciais de pesquisa envolvendo estudantes de cursos técnicos de nível médio, oferecidos por uma das unidades da rede federal de educação tecnológica, vinculados ao padrão de terminalidade integrado. Trata-se de analisar a narrativa de jovens inseridos em percursos formativos profissionalizantes focando o significado atribuído à educação, educação profissional, na constituição de projetos de futuro, bem como as referências selecionadas para compor o que consideram como o perfil do bom profissional tendo como parâmetro as demandas do mercado de trabalho. Trata-se de pesquisa qualitativa que adotou a entrevista semiestruturada como estratégia de produção dos relatos que foram gravados e transcritos. A análise dos relatos indica o papel das diferentes experiências de trabalho, a exemplo de envolvimento em atividades familiares e estágios, na identificação das características necessárias a um ‘bom profissional’.

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Como citar este trabalho

TEIXEIRA, Ana Maria Freitas. Juventudes, Educação Profissional E Os Labirintos Do Trabalho. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2021 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/276-juventudes-educa%C3%A7%C3%A3o-profissional-e-os-labirintos-do-trabalho. Acesso em: 16 out. 2025.

Juventudes, Educação Profissional E Os Labirintos Do Trabalho

O artigo aqui apresentado trás alguns resultados de pesquisa cuja questão central repousa sobre as relações entre as transformações no mundo do trabalho e a educação profissional. Um dos focos da investigação está nos impactos que tais mudanças têm produzido sobre o processo de inserção socioprofissional de jovens que buscam profissionalização nos centros federais de educação tecnológica. Nossas interrogações dialogam, portanto, com fenômenos relacionados às transformações no contexto socioeducacional e na esfera da produção para analisar os contextos em que os jovens optam por uma formação técnica de nível médio e os dispositivos e estratégias de que lançam mão para concretizar inserção no mundo do trabalho, considerando a ampliação de um persistente processo discriminatório no mercado de trabalho que atinge a população jovem brasileira.

Nas últimas décadas, as múltiplas e profundas transformações que marcam a sociedade contemporânea, particularmente aquelas que afetam as relações entre Trabalho, Educação e Juventude, têm colocado no centro do debate os dilemas e perspectivas da educação profissional.

Assiste-se ao desmanche da sociedade do emprego ou salarial enquanto a nova base técnico-científica, incorporada ao processo produtivo, permite o aumento da produtividade e da expansão econômica sem incrementos proporcionais de emprego. O desemprego estrutural ganha contornos de irreversibilidade e atinge diretamente aqueles que vivem do trabalho e particularmente a população jovem (Pochmann, 2001).

O desenvolvimento produtivo centrado sobre a hipertrofia do capital morto – isto é – ciência, tecnologia e informação como forças de produção, acaba desenhando uma realidade marcada pela desestabilização dos trabalhadores estáveis, instalação da precariedade do emprego e aumento continuado dos sobrantes (CASTEL, 1997).

Esses cenários sociais marcados pela crescente flexibilização das relações laborais e precarização do emprego tiveram um impacto particular no modo como os jovens acedem ao mercado de trabalho. Um emprego "para toda a vida" é algo que os jovens não podem considerar como garantido o que tem contribuído para aumentar sua mobilidade profissional e geográfica.

Os estudos investigativos na área da inserção profissional e social de jovens tratam desse contexto contemporâneo, sem perder de vista o caráter múltiplo e dinâmico da noção de juventude em sua interface com outras categorias de análise (classe social, gênero, etnia, urbano-rural, global-regional-local) (Dubar, 1999).

A palavra de ordem parece ser empregabilidade, remédio supostamente poderoso e acessível a todos indiscriminadamente. Vale observar que a noção de empregabilidade remete à “recordação” do emprego, assim, os idealizadores das políticas oficiais de formação profissional, para esvaziar a crítica àquela noção, optaram por travesti-la com as noções de trabalhabilidade ou laborabilidade.

Ampliam-se as exigências por uma maior e melhor escolarização sem que esses padrões impliquem necessariamente na garantias de inserção, ascensão e estabilidade socioprofissional mesmo que, simultaneamente, sejam considerados como requisitos básicos para melhores condições de competitividade e empregabilidade no mercado de trabalho. Contraditoriamente, aprofundam-se as desigualdades de escolarização entre as classes sociais (ZAGO, 2006).

De fato, ao analisar os movimentos ocorridos no âmbito do mercado de trabalho e da educação, Kuenzer (2006), destaca uma dupla complementaridade dialética entre esses dois campos. A primeira é a “exclusão includente” promovida pelo mercado de trabalho que exclui a força de trabalho de postos reestruturados promovendo sua reinserção precária em outros pontos da cadeia produtiva; e a segunda refere-se à “inclusão excludente” no âmbito da educação que, sob a égide do discurso democratizante que sustenta políticas públicas, inclui indivíduos em todos os pontos da cadeia “educativa” ao tempo que torna precário esse mesmo processo educativo, progressivamente reduzido à mera possibilidade de certificação, passaporte incapaz de assegurar inclusão e permanência no mercado de trabalho.

Assim, a educação e a formação profissional deslocam-se da política pública para a assistência, filantropia ou como estratégia de atenuar a pobreza. A responsabilidade transita do campo social para o campo individual: os indivíduos devem adquirir competências ou habilidades no campo cognitivo, técnico, de gestão e atitudes/comportamentos para tornarem-se competitivos e empregáveis. Observe-se o caráter do processo de “individualização”, próprio da modernidade (BAUMAN, 2001). Beck (1998) vai mais além ao propor o risco como uma noção central para a compreensão da sociedade em que vivemos cunhando a expressão Sociedade do Risco, uma sociedade marcada pela contingência, pela incerteza e descontinuidade.

Nesse panorama, e no centro da discussão, coloca-se a questão do papel da educação e da formação profissional (técnica e/ou básica) na produção da existência humana, visivelmente marcada pelas mutações nos paradigmas de organização e gestão do trabalho. A definição de uma nova base técnico-científica assentada, sobretudo nas tecnologias microeletrônicas, associada às novas tecnologias organizacionais favorece a emergência da lógica das competências como parâmetro balizador para a formação para o trabalho.

Dessa forma os jovens, sobretudo aqueles que compõem os chamados grupos vulneráveis ou focos de discriminação social, encontram-se duramente castigados e submetidos a uma sociabilidade da incerteza, da volatilidade. Educação e trabalho, binômio antes experimentado como passaporte viável à ascensão e mobilidade social, mostram-se igualmente como campo de fluidez. Nessa perspectiva a educação profissional e outras demandas sociais (segurança, emprego, saúde, lazer, etc.) continuam a exigir políticas públicas que venham eliminar a acentuada precarização dos jovens na cidade e no campo. É nesse quadro de questionamentos que nos apoiamos para a interpretação de parte dos achados de nossa pesquisa.

Tais achados foram produzidos mediante a realização de pesquisa de campo ao longo de 2018 junto a estudantes de diferentes cursos técnicos de nível médio (integrado) oferecidos regularmente por uma das unidades da Rede Federal de Educação Profissional, Cientifica e Tecnológica (RFEPCT) localizada na região Nordeste[i]. Essa Rede, cuja origem remonta ao início do século XX, conta com cerca de um milhão de matrículas e 60 mil servidores. Segundo dados disponibilizados no site oficial do Ministério da Educação a Rede conta com a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), 38 Institutos Federais, 22 escolas técnicas vinculadas às universidades federais, dois Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefet) e o Colégio Pedro II. Essas unidades e seus campi perfazem um total de 665 unidades que configuram uma ‘rede’ que envolve 582 municípios (MEC, 2021).

Os dados acima indicam a relevância da Rede quando se trata de refletir sobre a educação profissional no Brasil e sobre a experiência dos jovens que buscam essa formação. Desse modo, tratamos aqui de apenas duas das dez entrevistas realizadas com estudantes do último semestre dos cursos de Química e Edificações. Optamos por focar nos relatos de estudantes em vias de finalização de seus cursos a fim de potencializar suas vivências ao longo da formação profissional oferecida pela Instituição, as experiências no mundo trabalho bem como a sua ausência.

 

[i]Para evitar possível identificação, optamos por não indicar a Unidade de Ensino em que a pesquisa foi realizada, mantendo, também, anonimato dos estudantes.

Educação profissional: o que dizem os jovens

 

Novas características têm sido apontadas para as trajetórias ocupacionais de jovens, tais como: flutuações e descontinuidade, combinando educação e trabalho, inserção e exclusão do mercado de trabalho (MARTINS, 2004; TREVISAN, 2004). A transição entre a escola e o trabalho ou a “passagem para a vida adulta” torna-se cada vez mais difícil. Parece-nos, portanto, embaraçoso compreender essa nova realidade a partir do conceito de transição linear enquanto sucessão de etapas previsíveis a conduzir à idade adulta quando se observa que tais dificuldades atingem transversalmente a população jovem e mesmo aqueles que dispõem de formação técnica em nível médio, escolaridade em torno da qual os jovens alimentam expectativas mais promissoras em relação à obtenção de um emprego.

Na perspectiva de nos interrogar sobre as trajetórias sociais dos jovens que buscam a formação profissional optamos por focar no relato de Cosme (18 anos), aluno de Edificações na modalidade Integrada e Pérola (21 anos) vinculada ao curso de Química, também da modalidade Integrada. No momento da pesquisa esses dois jovens se encontravam cursando o último semestre de suas formações.

Ouvindo o relato dos estudantes um primeiro aspecto que se destaca, não surpreendentemente, quando se trata de formação profissional, é a busca por inserção no mercado de trabalho, uma inserção que possa ser consumada rapidamente mediante a conquista de um certificado. Isso pode significar “retroceder” do ensino superior para o ensino médio, tal como podemos observar no relato de Cosme.

Cosme, estava cursando Administração numa instituição de ensino superior federal uma formação que ele considerava ter sido uma “escolha bem feita” e com a qual se identificava o que se observa quando ele indica que “eu acabei deixando não porque eu não gostava”, mas questões familiares que demandavam uma mudança de cidade, levaram Cosme a considerar que vivia uma situação de dependência financeira familiar que exigia dele uma atitude. Dessa confluência de situações Cosme decide deixar o curso superior em Administração para ingressar no curso técnico em Edificações.

 

Pra entrar no mercado de trabalho mais rápido, nessa época de dois, três anos ainda é mais fácil com um curso técnico do que com o superior pra entrar imediatamente no mercado de trabalho. (Cosme, Edificações)

 

Partindo dessa busca Cosme explica que antes de ingressar em Edificações fez uma pesquisa junto a profissionais que já atuavam na área e junto a estudantes vinculados a essa formação a fim de melhor direcionar sua escolha quanto ao curso técnico.

Um outro aspecto que emerge da fala desse jovem é a experiência acumulada no âmbito do trabalho ao longo de sua formação no ensino médio, uma experiência inicial que ocorre no âmbito familiar. Num primeiro momento ele ‘ajuda’ sua mãe na preparação do artesanato que ela produz. Posteriormente, já no curso técnico, ele passa a trabalhar com um de seus tios que tinha uma loja de revenda e aluguel de veículos usados. Sobre essas experiências Cosme tem uma leitura positiva que se conecta com a perspectiva de desenvolvimento das competências exigidas pelo mundo do trabalho desde muito cedo, com seus 16 anos. Sobre a experiência auxiliando sua mãe Cosme diz:

 

Eu acho proveitoso é que aprendi assim a questão de lidar com dinheiro, ajudava a fazer as caixas e acabei aprendendo habilidade pra desenho, tudo tinha que fazer o desenho com o formato das caixas, cortar as caixas, aí eu fazia essas parte aí, tipo assim que a gente chamava de esqueleto da caixa e ela fazia a decoração. Foi bom, foi proveitoso aprendi a, até facilitou na questão de desenho pro curso que eu faço hoje, a questão de precisão, medidas exatas, esse tipo de coisa, e assim lidar com, com questão de horários, tinha que lidar, ainda estava cursando o ensino médio. (...) Isso me ensinou também a lidar com dinheiro, eu com minha mãe eu via o valor do dinheiro mesmo pouco, mas trabalhado, conseguido com esforço. Com suas mãos é muito melhor, até demora mais de se gastar, demora mais porque aí dá mais valor. (Cosme, Edificações)

 

Seguindo nessa mesma direção, Cosme avalia o que aprendeu ‘ajudando’ seu tio na loja de veículos, antes de ingressar no curso técnico, numa perspectiva de sua futura inserção como técnico em Edificações: ajudar na loja permitiu que aprendesse sobre como lidar com o público. Cosme, vai delineando em sua vida prática o perfil do que seria um bom profissional, quais as características, habilidades requeridas para ter maiores e melhores chances (e sucesso, de preferência) no merco de trabalho. Ademais, ele relata que cursou o ensino médio numa escola particular onde permaneceu do ensino fundamental ao final do ensino médio e que sempre gostou de estudar.

O fato de acumular diferentes, mas informais, inserções no âmbito do trabalho permite que Cosme aproxime essas multiplicidades de vivências ao seu projeto de inserção profissional na área de sua formação e isso é considerado uma ‘aquisição’ positiva numa logica de complementação da formação certificada pela Rede Federal de Educação Profissional.

Essa mesma perspectiva de se constituir como um bom profissional, emerge na narrativa de Pérola, vinculada ao curso de Química. Mas ela não acumulou experiências prévias de trabalho à sua inserção na Rede e descreve um caminho distinto daquele seguido por Cosme. Vejamos: Para que Pérola pudesse cursar Química na Rede Federal, foi necessário que ela mudasse do povoado de origem para a capital deixando a casa de sua família. Como ela diz, no início foi difícil lidar com a saudade, mas a possibilidade de um futuro promissor contribuiu para enfrentar a situação que a levou a dividir uma casa com outras 4 jovens que também se deslocaram para capital por motivos semelhantes.

Diferente de Cosme que integra uma família com dois filhos dentre os quais ele é o mais novo, Pérola vem de uma família cujos pais são separados e ela tem 7 irmãos. Quando fala do seu povoado ela menciona o fato de que são poucos os jovens que pensam em estudar e acrescenta que “a maioria fica por lá mesmo, casam e vai construir sua família, porque em interior a maioria pensam assim, não são estimulados, apesar de que as dificuldades, que é muito grande”. É curioso observar como Pérola indica, simultaneamente, o que parece considerar como um horizonte limitado dos jovens de seu lugar e procura justificar essa situação referindo-se às dificuldades de deslocamento para centros urbanos que ofereçam maiores possibilidades de formação e continuidade de estudos.

Parece-nos que essa breve passagem nos coloca diante do que Pais (2005) assinala ao tratar da insuficiência em adotar a perspectiva de trajetórias lineares de vida para compreender os caminhos que têm sido percorridos pelos jovens. As transições trazem no cotidiano juvenil as marcas da improvisação, do aleatório ou do acaso (PAIS, 2005), fazendo com que o conceito tradicional de trabalho perca a correspondência com a realidade dos jovens. Multiplicam-se os trabalhos precários, a instabilidade e propagam-se as inserções provisórias. O mesmo ocorre com os conceitos de emprego e desemprego.

A perspectiva de futuro em um curso profissionalizante se associa, como indicamos anteriormente, à noção de ‘bom profissional’ o que para Pérola significa:

 

Ter uma boa base de química, saber manusear equipamentos que a gente aprende preparar solução, ele deve ser capaz de colocar na prática tudo que aprendeu, as suas práticas de fabricação na indústria, usando os equipamentos, os equipamentos de proteção individual, esse é o comportamento de um químico. (Pérola, Química)

 

Ela indica a importância da relação teoria e prática em sua formação e considera que o curso de Química assegura essa dimensão. Entretanto, a prática emerge como elemento central e as aulas nos laboratórios parecem agir como elemento de sedução para quem não sabia nada sobre o curso de Química quando fez essa opção e foi estimulada por uma amiga que lhe disse que o curso “era bom”:

 

o que é dado na teoria à gente vê na prática, tem as visitas, visitas técnicas nas indústrias, a gente vê todo o processo, são legais, foi legal muito bom, prepara para o mercado de trabalho, é bom, é estimulante, porque aí a teoria é um pouco aquela rotina, chatice e quando a gente vai para a prática é que dá mais estímulo pegando, vendo, manuseando.(Pérola, Química)

 

As aulas práticas e as visitas técnicas que tanto estimulam Pérola e parecem aproximá-la das indústrias onde pretende trabalhar futuramente são, para ela, a prova concreta de que está se aproximando do mercado de trabalho e se preparando para atender suas exigências para o que ela não esqueceu de mencionar o uso dos equipamentos de proteção individual. Aprender coisas novas, práticas, aplicáveis, que interferem sobre os materiais parece conectado com mudanças concretas em sua vida como jovem estudante do curso técnico.

Quando tratamos sobre trabalho, buscar um posto no mercado, buscar um estágio na área, Pérola menciona que nunca buscou um experiência desse tipo e sua narrativa continua relatando que uma de suas amigas só conseguiu um emprego por conta do auxílio de “pessoas conhecidas” que atuavam na empresa e acrescenta que não dispõem desse tipo de ‘contatos’ na área, mas indica ter colocado “o currículo pela Internet, mas ir até as indústrias eu não procurei não”. Mas ela indica que o emprego é importante “porque vai ser independente, vai crescer, vai aprender, é isso aí, porque não vai ter os pais por toda a vida, ele tem de aprender a ter responsabilidade e uma profissão”.

Apesar da busca pelo mercado de trabalho, a ausência de experiências nesse âmbito leva Pérola a mencionar que tem uma bolsa-estágio na própria instituição em que estuda: “é bom, estou mais inteirada com o curso, tem vivencia no laboratório auxiliando professor”. A menção a bolsa-estágio evidencia a busca por se aproximar do registro de alguma vivência que se agregasse a sua formação geral e, mais particularmente, à sua formação como técnica de nível médio, mesmo que mediada pela instituição escolar.

Refletir, portanto, em termos de trajetórias enquanto percursos desenhados por sujeitos socializados (que sofrem ingerências diversas: família, escola, sociedade do consumo etc.) capazes de lhes permitir fazer face à imprevisibilidade que os cercam tem se mostrado mais apropriada à análise de como jovens trabalhadores obtém a formação, a qualificação e competências necessárias ao desenvolvimento de suas atividades. Os “modelos mecânicos” de interpretação de tal configuração juvenil, portanto, não acompanham a dinâmica e complexidade desse contexto (PAIS, 2005). Em que pesem os diferentes paradigmas teóricos que as pesquisas têm adotado, os diagnósticos e prognósticos - ora otimistas, ora pessimistas, é consensual a complexidade das transições juvenis na contemporaneidade.

Não é mais possível pensar em trajetórias de obtenção de qualificações e competências para o jovem - nesse contexto, como já dito, de fortes incertezas e de aprofundamento da precariedade do trabalho -sob um enfoque linear calcado na correspondência direta com determinadas faixas etárias. Tal enfoque afeta diretamente a lógica das trajetórias ocupacionais e acaba por refletir nas possibilidades de definição de estratégias de obtenção de formação, qualificação e competências para o trabalho.

É nessa perspectiva que vão se tornando historicamente superadas as formas tradicionais de educação profissional. Mas cabe, ainda, à escola e aos centros de educação tecnológica desenvolver, naquele novo trabalhador, um conjunto variado de competências e de habilidades gerais, específicas e de gestão que os torne aptos. Portanto, a tarefa de formar esse trabalhador de novo tipo, deve, agora, ser implementada observando algumas características da nova realidade do mundo do trabalho: interpretação e uso de linguagens diversificadas, clareza na comunicação, capacidade para trabalhar em grupo, análise, rapidez na resposta, avaliar, resistir a pressões, enfrentar os desafios das mudanças, aprender constantemente, gerenciar processos, etc.

Cosme, um jovem mais experiente do que Pérola, em termos de atividades laborais, tem uma visão ampliada sobre a condição de jovem profissional que busca inserção quando relata sobre como viveu seu primeiro estágio:

 

Durante o estágio, principalmente no começo, eu ficava né, naquela questão de querer fazer bem feito pra causar boa impressão, fazer valer o estágio pra tentar ser contratado, por ser uma empresa daqui do estado, isso é uma área que eu tô vendo que eu gosto, lidar com o campo, com pessoas. Porque eu mesmo sou uma pessoa que me cobro muito, aí ficava me cobrando na questão de me policiar, e a questão de relacionamento também, porque a gente sabe que importante, hoje qualquer emprego, qualquer área, relacionamento interpessoal é muito importante. Eu sempre procurei me dar bem com as pessoas, não é agradar todo mundo, mas assim ser educado com todos, principalmente local de trabalho né, profissional. Por ser também meu primeiro estágio, meu primeiro contato em construção civil, eu recebo tipos de conselhos, por exemplo, pra lidar com operários que eu não concordo, não é certo, até a visão moderna não é mais essa de ser carrasco, mas hoje quem lida com a equipe, quem lidera equipe tem mais que ser um motivador, incentivador, em construção principalmente, em questão de prazo e tudo, tem a cobrança, mas tem que saber, saber lidar com as pessoas. (Cosme, Edificações)

 

Cosme parece ter entendido que se preparar para o mercado de trabalho ultrapassa a formação especificamente técnica que a instituição escolar e o certificado podem atestar e que é necessário evidenciar outras características desde o estágio. Será o desenvolvimento dessas características que influenciará a “empregabilidade, trabalhabilidade, laborabilidade” (Frigotto, 1999) enquanto possibilidade do indivíduo se adequar aos postos de trabalho disponíveis, o que depende cada vez mais de trajetórias diferenciadas e sofisticadas a partir de uma base comum de conhecimentos. A certificação escolar de natureza profissional já não é mais suficiente, ainda que necessária. A vinculação direta entre formação escolar e exercício profissional se altera a medida em que a função certificadora de competências exercida pelas instituições formadoras se transferem, paulatinamente, para o âmbito do mercado e para o ‘lugar’ social de cada indivíduo numa sociedade atravessada pela desigualdade socio-educacional.

Nesse sentido, a “empregabilidade” aparece mediada à noção de flexibilidade (que não parece encontrar limites claros, inclusive legalmente), à disponibilidade para adaptação a situações novas e mutantes o que significa, para a grande maioria dos jovens, submeter-se a contextos cada vez mais precários sob todos os aspectos. A ideia de flexibilidade vinculada a capacidade de criar, aprender ao longo da vida para se adaptar à dinâmica social e produtiva pode, portanto, aparecer como privilégio de poucos.

 

Para refletir em tempos incertos

 

Escolher um curso técnico é, na grande maioria das vezes, uma tarefa complexa que envolve múltiplas dimensões e pode ser vivida de muitas maneiras inclusive como momento fundamental no processo de transição para a vida adulta. Pais (1991) nos indica que a ideia de “passagem” ou “transição” para a vida adulta, vai além da noção de inserção profissional, já que inclui, também, outros aspecto que integram o estatuto de adulto. Assim, analisar o processo de “passagem para a vida adulta” relaciona, igualmente, aspectos que entrecruzam emprego e escolaridade sem esquecer que são inúmeros os modos de ingressar na vida adulta.

Nessa perspectiva os jovens refletem sobre as formações que recebem nas instituições, elaboram seus julgamentos sobre sua pertinência e vinculação (maior ou menor) com as vozes do mercado de trabalho. As instituições, por sua vez, adotam distintos instrumentos avaliativos que permitam balizar suas ações pedagógicas considerando o que dizem seus alunos e empregadores.

É nesse contexto que Cosme, consciencioso da importância em registrar suas considerações sobre o curso de Edificações, no qual se encontra em fase de conclusão, menciona esse tipo de registro e indica que

 

Eu acho que o curso de edificações é bom pra o que o mercado precisa hoje, pelo que meus colegas de outras empresas falam. Eu vejo que é um curso bom, tem coisas que precisam melhorar. Como por exemplo, teve um questionário recente pros alunos que ou já terminaram ou estavam terminando (...). Tem algumas coisas que eu acho que precisa, poderia abordar mais, pelo que eu vejo na minha realidade. Uma coisa que eu acho que podia ter é essa questão de liderança, que um técnico vai acabar liderando um grupo (...). Uma matéria que eu acho importante todos os cursos de ter é ética do trabalho, que eu acho que falta, botei como sugestão. Isso é uma coisa que mais assim voltada pra humanas, porque o curso é mais voltado pro lado técnico. (Cosme, Edificações)

 

Quando tratamos de aspecto semelhante junto a Pérola ela nos indica as referências que adota para considerar que o curso de Química oferece uma boa formação frente às demandas do mercado de trabalho:

 

Os professores preparam, tem a troca de informação, de diálogo, isso é importante, tem a prova teórica e, também, alguns professores que fazem a prova prática, cobra relatórios, relatório de prática, relatório de visita, projetos, isso é importante, porque é preparando para o mercado lá fora, que lá eles exigem mesmo e aqui é uma preparação e quando a gente chegar nas indústrias a gente sempre encontra alunos daqui, que já estudaram aqui, e estão trabalhando. (Pérola, Química)

 

Os aspectos técnicos da formação em Edificações oferecida pela Instituição federal também são destacados por Cosme. Ele considera que:

 

Claro que no campo a gente aprende muito mais coisas, detalhes, macetes como se levar certas coisas, ter jogo de cintura, mas acho que a base o curso dá pra você chegar tranquilo ao mercado de trabalho, se o aluno também se dedicar. A questão é aprender, absorver dos professores experientes, são engenheiros (...) mas assim eu acho que poderia ter mais visitas técnicas, eu acho que uma visita por mês seria o ideal, das matérias principais. Porque a gente vê instalações elétricas, hidráulicas, e a parte de planejamento, orçamento, então eu acho que poderia ter mais visitas pra gente ver na prática (Cosme, Edificações).

 

Os diferentes aspectos indicados pelos jovens ao tratarem sobre os cursos refere, também, a transição entre a escola e o trabalho como outro aspecto relevante da “passagem para a vida adulta” e que se torna cada vez mais difícil. Assim, nos parece limitante compreender esse contexto a partir da perspectiva de transição linear enquanto sucessão de etapas previsíveis a conduzir à idade adulta. Isso porque se observa que tais dificuldades atingem transversalmente a população jovem e mesmo aqueles que contam com uma formação técnica em nível médio, escolaridade em torno da qual os jovens mantêm expectativas mais promissoras em relação à aquisição de um emprego, tal como podemos documentar com os relatos dos estudantes entrevistados.

Em que pese as mudanças no mundo contemporâneo aos jovens é inculcada a percepção do sistema de ensino como passaporte para igualdade de oportunidades, porém os capitais herdados são distintos, assim nem sempre a uma igualdade de oportunidades corresponderá uma igualdade de resultados. Sem esquecer as especificidades, olhando para o caminho traçado por Cosme e Pérola, ambos pertencentes a famílias que os incentivaram nos estudos, ex-alunos da rede pública de educação e concluintes de cursos profissionalizantes de nível médio por um Instituto Federal podemos considerar a relevância da certificação obtida.

Os jovens buscam constituir as competências, termo que passou a reunir os novos requisitos de qualificação dos trabalhadores e se reflete diretamente nas políticas de educação profissional. Entretanto, esse termo, nem sempre, é usado numa mesma referência, sendo adotado, em geral, de forma imprecisa apesar de figurar abertamente no discurso oficial (Damis, 1996; Oliveira, 1993).

De fato, a dimensão polissêmica do termo se encaminha para uma dificuldade em considera-la como noção politicamente neutra. Pelo contrário, segundo Ramos (2001) a visão funcionalista sustenta a formação por competências para o que destaca o foco no processo adaptativo de natureza fortemente subjetivo que implica na formação para a flexibilidade e rotatividade entre diferentes postos, aspecto no qual se sustenta a perspectiva do novo profissionalismo. Seguindo nessa direção Hirata (1994) destaca a vinculação com novos modelos de produção e gerenciamento que visam classificar “novos conhecimentos e novas habilidades geradas a partir das novas exigências de situações concretas de trabalho”.

Certamente a capacidade de adaptação a novas situações, cada vez mais frequentes, emerge como uma necessidade importante no processo educativo, o que Zarifian (2001) chama de “organização qualificante”. Contudo, vale refletir sobre a que e a quem serve o princípio da adaptabilidade. A lógica do mercado parece ser o farol desse processo em que as inovações tecnológicas devem seguir avançando protegida das intempéries sociais, vistas como obstáculos. Aqui nos parece haver uma inversão absoluta em que ao homem cabe se submeter ao mercado e a tecnologia.

Em que pese tais incongruências pesquisas mais recentes têm apontado a forte tendência à dualização do ensino médio e do ensino médio profissionalizante: de um lado um projeto incompleto de formação de cidadania, e de outro, um projeto questionável de modernização ancorada no mercado. Além disso, a flexibilidade de oferta, de acesso e terminalidade acabam por dificultar a continuidade de estudos por parte das camadas menos favorecidas, para as quais a não integração na escola entre tempos e espaços de aprendizagem geral e de formação profissional pode mesmo significar a ausência de uma sólida formação profissional. Some-se a isso, no caso brasileiro, o aprofundamento do caráter dual do financiamento do sistema de ensino (público e privado) evidenciando o fortalecimento do binômio educação pública / baixos padrões de qualidade. Tal fato acentua as desigualdades na formação dos jovens das camadas mais pobres da população onde a vulnerabilidade social se intensifica diante da crescente omissão do Estado.

Palavras Finais

 

As reflexões aqui feitas concentraram-se sobre algumas das principais transformações no mundo do trabalho e seus reflexos particularmente entre os jovens, quando tratamos da educação profissional. Uma boa formação profissional ainda pode assegurar aos jovens, em especial, àqueles mais vulneráveis, a possibilidade de dar continuidade a sua escolaridade e melhor condição de inserção no cenário do trabalho.

Segundo Sposito (2005) “o trabalho faz a juventude” uma vez que ‘trabalhar’ é uma experiência precoce na vida de crianças e jovens brasileiros. Nessa direção, Abramovay e Castro (2006) indicam uma radiografia dessa população ao referir a insatisfação dos jovens entre 15 e 24 anos com a própria escolaridade: mais de 26 milhões (61,5%) com ensino fundamental completo ou incompleto. Além disso, eles indicam a ausência de correlação entre estudo e trabalho: 61,3% dizem não haver correspondência entre atividades desempenhadas e o que estudam ou já estudaram. Em relação ao trabalho a situação é alarmante, seja em relação a proteção social - aproximadamente 20.391.914 (38,4%) dos jovens afirmam não receber os benefícios sociais previstos por lei - bem como no que diz respeito a políticas eficazes de emprego e renda, pois quase metade dos jovens brasileiros busca trabalho (46,9%), representando 22.433.951 indivíduos.

O nível de escolaridade é considerado o aspecto mais importante para conquista de um emprego, segundo os jovens, e daí resulta parte da valorização atribuída à escola e a educação profissional (ABRAMOVAY e CASTRO, 2006). Junte-se a isso a questão do primeiro emprego, um desafio difícil de ser superado uma vez que não depende, exclusivamente, do engajamento dos indivíduos. Além disso, se retomamos a perspectivas das transições para a vida adulta, da qual tratamos anteriormente, é possível indicar, na sociedade contemporânea, o processo de descronologização e desinstitucionalização da sociedade que tenderia a tornar o marcador ‘idade’ menos central sem, contudo, dever ser negligenciado para explicar heterogeneidade e desigualdade entre jovens (SPOSITO, SOUZA, SILVA, 2018).

É nesse contexto que a profecia ideológica da incapacidade da escola, e mesmo da escola profissionalizante, preparar os jovens para o mercado de trabalho se articula com a eliminação de postos de trabalho, gerando um cenário em que insegurança e incerteza tornam cada vez mais difícil “seguir uma carreira”, mas os jovens sergipanos e de outros rincões esperam e desejam ter uma profissão, ter orgulho de si mesmo, mudar suas vidas. Os desafios contemporâneos estão postos, aos governos e a sociedade, quando o debate ilumina a questão das interseções entre juventude, trabalho e educação no Brasil.

Certamente alguns avanços ocorreram na legislação, e no debate, em favor de uma nova perspectiva de educação profissional. Entretanto, a ideia de treinar para o trabalho ainda não foi superada. É certo, também, que na última década ocorreu a ampliação de acesso a educação quando consideramos, em especial, o ensino superior com o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), Programa Universidade para Todos (PROUNI), e as políticas afirmativas, ações que, de algum modo, retardaram a chegada de jovens ao mercado de trabalho. Entretanto, o cenário não parece animador considerando que o Brasil, desde 2013, vive uma crise econômica e política importante que se aprofundou, significativamente, desde 2020, quando a grave crise sanitária vinculada a pandemia da Covid-19 (SARS-CoV-2) se instalou de modo global evidenciando, no Brasil, o aprofundamento dos desafios e as limitações das políticas governamentais implementadas.

[1]Para evitar possível identificação, optamos por não indicar a Unidade de Ensino em que a pesquisa foi realizada, mantendo, também, anonimato dos estudantes.

Referências

 

ABRAMO, H. & BRANCO, Pe. P. (Orgs.). Retratos da juventude brasileira: análises de uma pesquisa nacional. São Paulo, Instituto da Cidadania/Fundação Perseu Abramo, 2005.

ABRAMOVAY, M. e CASTRO, M.G. Juventude, Juventudes: o que une e o que separa. Brasília: UNESCO, 2006. Disponível em <http:www.unesco.org.br>. Acesso em 20 jul. 2021.

BAUMAN, Z.. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001.

BECK, U. La sociedade del riesgo: hacia uma nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998.

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